Resumo
O artigo apresenta a noção de não indiferença, a mais importante inovação da política externa brasileira desde o primeiro governo Lula, como uma reação anti-hegemônica nesse contexto de crise mundial capitalista. Por relativizar o princípio de soberania, a versão brasileira da não indiferença abre-se ao engajamento solidário em situações de crise humanitária ou política, desde que solicitado. Juntamente com os complementos de desenvolvimento econômico compartilhado e de completo compromisso com os valores democráticos, a não indiferença apresenta-se não apenas como proposta bem sucedida de estreitamento da cooperação latino-americana, mas mostra-se especialmente integrada à “família” de atividades antissistêmicas por exteriorizar propósitos humanitários e pacifistas associados a uma longa tradição diplomática de tolerância e de negociação, traços incomuns no atual sistema interestatal. Essa virtuosa associação pode servir como referência para a construção de uma verdadeiramente nova comunidade ideológica de consciência para o Sul Global.
Palavras-chave:
crise de hegemonia; movimentos antissistêmicos; multilateralismo humanitário; não indiferença.
Abstract
This paper intends to show the notion of non-indifference, the main innovation of the Brazilian foreign policy since the first term of Lula presidency, as an anti-hegemonic reaction in the current crisis of the world capitalism. By relativizing the principle of sovereignty, the Brazilian version of non-indifference is open to the supportive engagement in those situations of humanitarian or political crises, providing it has been invited to participate. Because of its association to mutual economic development and deep commitment to democratic values, non-indifference has become quite supportive in promoting Latin American cooperation, showing especial connection to the “family” of antisystemic practices due to its humanitarian and pacifist components together with a long diplomatic tradition of tolerance and negotiation, an uncommon set of behavior within the interstate system. Because of such peculiarities, the notion of non-indifference may become the basis of the building up of a truly new ideological community of conscience of the Global South.
Keywords:
antisystemic movements; hegemony crisis; humanitarian multilateralism; non-indifference.
O conceito de movimento antissistêmico foi criado por Immanuel Wallerstein no final dos anos 1970 com o intuito de abrigar sob uma única denominação dois conjuntos de movimentos que se desenvolveram como entidades distintas e até rivais, sendo, consequentemente, analisados a partir de referenciais independentes um do outro. Até então, os movimentos sociais e os movimentos nacionais - produtos das lutas sociais e políticas do século XIX - eram tratados como movimentos isolados, pelas peculiaridades de seus objetivos mais imediatos, como agentes da contestação à opressão econômica/social, de um lado, ou como agentes de construção/afirmação nacionais contra a opressão étnico-nacional, de outro. Assim, a fundamentação originária motivadora para construir essa nova denominação, a de movimento antissistêmico, foi a de fazer convergir, em um único conceito, as contestações das desigualdades e opressões existentes no sistema-mundo capitalista, de modo a conciliar ontologicamente a concepção de unicidade sistêmica da perspectiva do sistema-mundo com a análise da ocorrência e desenvolvimento dos movimentos de contestação ali gerados.1 1 Os fundamentos do conceito de movimentos antissistêmicos aqui apresentados acompanham a moldura básica apresentada por I. Wallerstein em diversas oportunidades. Ver, por exemplo, Wallerstein (2002, p. 29-39).
Um segundo traço característico do conceito é a explicitação de sua historicidade. Nesse caso, o marco histórico divisório é a Revolução Francesa, avaliada menos pela rebelião bem-sucedida de destruição da dinastia Bourbon e mais pelos efeitos político-culturais e ideológicos que provocou. Aqui, o processo revolucionário do século XVIII e seus desdobramentos durante o século XIX são vistos como tendo permitido aos seus contemporâneos reconhecer a historicidade das formas de existência de suas instituições, de modo a ressaltar sua emergência, desenvolvimento e inevitável dissolução como produtos da ação humana e, assim, historicamente determinados. Esse reconhecimento trouxe consigo um complemento importante para o surgimento e desenvolvimento dos movimentos sociais e nacionais durante o século XIX, que foi a progressiva percepção de normalidade da mudança política, especialmente reforçada por um traço ideológico importante e em plena expansão durante o século XIX - herança enciclopedista - que era a auspiciosa visão contida na ideia de progresso. A esse ambiente em que mudança era progresso, e mudança política passava a ser vista como natural, acrescente-se a primeira grande transformação dos fundamentos da ideia de soberania, investida agora nos cidadãos, o corpo político da nação, substitutos do antigo detentor da soberania, o rei (“Eu sou o Estado”).
Deve-se, ainda, acrescentar um terceiro componente que comporá a tríade fundante da eclosão dos movimentos antissistêmicos no sistema-mundo capitalista e que acabou por exercer enorme influência para o futuro desses movimentos: o fracasso das revoltas/revoluções de 1848, a Primavera dos Povos ou a Primavera das Nações, como também ficou conhecida essa explosão revolucionária que, por um curto período, incendiou o continente europeu. A rapidez das insurreições, seus avanços iniciais, a feroz repressão desencadeada pelos estados europeus e a extensão da derrota em todos os cenários em que ocorreram, fizeram os insurretos perceberem a fragilidade de atitudes espontaneístas e voluntaristas quando o objetivo era tomar o poder do estado, redirecionar sua ação política ou mesmo iniciar sua imediata dissolução, de acordo com o credo anarquista, por exemplo. A derrota os fez invariavelmente reconhecer a ineficácia desse tipo de rebelião, mostrando ainda a importância da organização e da estratégia para o alcance dos objetivos almejados por esses movimentos. Indispensável para a continuidade da luta pelo reconhecimento e afirmação político-social desses interesses subalternos, portanto, passou também a ser a apropriação, ou a construção, de ideologias que identificassem e instrumentalizassem as etapas da luta assim como o objetivo final a ser alcançado.
Desse modo, ao se referir a movimento antissistêmico deve-se ter claro que, mesmo considerando recorrente ao longo da história humana a existência de insurreições, revoltas, movimentos reformistas ou de contestações da ordem, a denominação estará sempre referida a movimentos contra opressões econômico-sociais ou étnico-nacionais, com ocorrência a partir da segunda metade do século XIX, com propósitos de reconhecimento (gênero, raça, etnia, religião, linguística), de conquista do poder do estado (socialistas/comunistas) ou de destruição do próprio estado (anarquistas). Pode-se apontar como traço comum em todos esses casos uma valorização positiva da mudança política na medida em que o movimento ocorre por rejeição a situações sociopolíticas dadas, e o objetivo é o de inaugurar um novo e mais elevado padrão de convivência coletiva de mais igualdade e liberdade sistêmica. Por fim, contrariamente aos que os precederam, esses movimentos agora dispunham de organização e de objetivos definidos de médio e de longo prazos.
Do que foi dito, ou seja, da substituição do soberano pelos cidadãos como fundamento legitimador da soberania nacional e das consequências políticas provocadas no sistema interestatal a partir do aprendizado obtido pelos insurretos de 1848 - para lembrar alguns dos desdobramentos mais importantes e com impacto definitivo no moderno sistema de Estados -, temos, de um lado, a emergência do império alemão e as lutas pela unificação italiana como variantes das aspirações nacionalistas e, de outro, o surgimento e a expansão dos movimentos socialistas que culminaram com a Revolução Russa. Esses exemplos testemunham o início, em termos sistêmicos, de um crescente encadeamento dos movimentos sociais e nacionais, originalmente apartados que, com ênfase variada, vai se difundir por todo o mundo logo após o final da Segunda Guerra Mundial nos movimentos de descolonização na África e na Ásia. Dois dos exemplos mais eloquentes da indissociação de motivações nacionais e de justiça social são a Revolução Chinesa e a guerra de libertação nacional do Vietnã, ambos inequivocamente antissistêmicos e de imenso impacto para a ordem global. Nos dois casos, a luta de libertação nacional naquelas nações assumiu simultaneamente o caráter de uma luta anticolonial e de revolução social, consequentemente tornando indistintos os movimentos e ideologias nacionais e sociais. Entretanto, mesmo onde os movimentos políticos se apresentavam com um predomínio de aspirações de cunho mais nacional, as bandeiras de luta sempre enfatizavam a importância da independência e autonomia nacionais para a superação da exploração e da miséria. Com isso, fica muito difícil, se não impossível, interpretar de modo satisfatório a trajetória de tensões e conflitos antissistêmicos no sistema de Estados na contemporaneidade sem entendê-los como parte de um mesmo movimento.
Ademais, os movimentos que em um primeiro momento circunscreviam-se aos limites dos Estados-nações vão se expandindo e encontrando identidades político-ideológicas transnacionais, transformando desse modo os movimentos antissistêmicos em movimentos de alcance mundial. Exemplos dessa vigorosa ramificação podem ser encontrados nos objetivos internacionalistas dos movimentos socialistas na Europa do início do século XX. Em que pese o refluxo posterior do internacionalismo socialista, é importante assinalar que, em primeiro lugar, os movimentos antissistêmicos apresentam-se ativos em processos interestatais, sempre buscando obstruir ou aliviar o fluxo regular da exploração e da desigualdade. Isso significa também que, em muitos casos, movimentos da sociedade civil interferem de modo decisivo na dinâmica do sistema interestatal e que processos antissistêmicos frequentemente apresentam-se como de mais longa maturação. Tal intervenção pode ser claramente demonstrada pela luta, especialmente da juventude, contra a presença norte-americana no Vietnã nos anos 1960-70 e, mais recentemente, pelo assim chamado movimento antiglobalização de Seattle, quando manifestantes impediram que decisões fortemente impopulares, mas de especial importância para o grande capital corporativo internacional, fossem tomadas em um encontro da Organização Internacional do Comércio ocorrido naquela cidade em 1999.
Assim, a unicidade trazida pela ideia de movimento antissistêmico, a diversidade de situações em que efetivamente tais processos ocorrem, bem como suas manifestações concretas, necessitam de terminologias complementares para apreender a diversidade de situações de inconformidade com uma ordem mundial nada harmônica e muito desigual. Isso significa que, pari passu à emergência de novos desenhos de projetos antissistêmicos, provenientes dos tipos de lutas que se engajam, sejam desenvolvidas terminologias com o intuito de traduzir de modo conceitualmente mais preciso as múltiplas gradações de resistências à ordem hegemônica estabelecidas com a emergência e ampliação de novas resistências a novos - ou velhos - tipos de opressão, assim como pela complexificação do sistema interestatal. Lembrar aqui do sistema interestatal é fundamental, porque este representa o aparato político-militar da desigualdade e da exploração do sistema-mundo capitalista e, assim, um lugar privilegiado da luta antissistêmica.
Considerando a importância e, em mais de um sentido, a urgência em identificar e apreender teórica e politicamente as iniciativas inovadoras em busca de um mundo progressivamente menos desigual, o presente artigo apresenta a trajetória da noção de não indiferença e sua posterior apropriação e adaptação como um dos principais eixos da política externa brasileira neste século XXI. Por ter fundamentado práticas políticas que reagem a princípios teóricos/políticos/ideológicos que naturalizam a exploração e a opressão, a noção de não indiferença aplicada pelo Estado brasileiro afigura-se oportuna por pelo menos dois motivos. Em primeiro lugar, por pretender fazê-la substituta, em várias situações, daqueles princípios de aplicação irrestrita e universal como soberania, não intervenção e autodeterminação, importantes reguladores das relações entre os Estados no sistema interestatal. Em segundo lugar, pelo conteúdo promissor da noção de não indiferença, especialmente por permitir inovar as relações desenvolvidas no âmbito do Sul Global, espaço que se afigura cada vez mais importante como núcleo gerador de reações antissistêmicas no atual quadro de crise do sistema-mundo capitalista.
Não indiferença: da contenção de crises humanitárias à promoção compartilhada de democracia e desenvolvimento
É hoje reconhecido como um axioma no âmbito das relações interestatais que o princípio da soberania afigura-se como um dos mitos fundadores do estado moderno em sua acepção de pressuposto de verdade civilizacional originária e de crença fundadora compartilhada. Ao mesmo tempo, a ideia de soberania também traz consigo forte conteúdo mistificador, em vista do reiterado desrespeito a seus fundamentos de autodeterminação, em primeiríssimo lugar devido à distribuição altamente desigual de poder e de riqueza entre os estados componentes do sistema interestatal. Além disso, a ampliação e complexidade que o ambiente internacional adquiriu desde a segunda metade do século XX, a partir do fim do colonialismo, da reemergência da questão das etnias na Europa e do rápido avanço da globalização, acabaram por comprometer os fundamentos desse princípio, em todos os sentidos descritos, por exemplo, por Krasner - soberania internacional legal, soberania westfaliana, soberania doméstica e soberania interdependente.2 2 O título e o conteúdo do livro de Stephen Krasner Sovereignty: Organized Hypocrisy são eloquentes o bastante para demonstrar quão virtual tem sido o conceito desde seus primórdios, nos séculos XVI e XVII. Uma quantificação preliminar da expansão e complexificação dos interesses presentes no sistema interestatal pode ser facilmente exemplificada pelo rápido crescimento do número de Estados-membros da Organização das Nações Unidas (ONU) que, de um total de 51 Estados fundadores em 1948, alcançou em 2014 a ainda provisória soma de 193 membros participantes (e contando...).
Embora o conceito de soberania tenha sido criado no século XIII3
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“[...] chacun baron est souverain en sa baronnie; le roi est souverain par dessous tous” (Philippe de Remi Baumanoir, Livre des costumes et des usages de beauvaisis, 1280-83, apud José Eduardo de Faria, 2000, p. 18).
e tornado conhecido nas cortes e nos ambientes de poder da Europa a partir da obra de Jean Bodin (1576), foi somente com o final da Guerra dos Trinta Anos e com a Paz de Westfália que os componentes fundacionais da ideia de Estado nacional, a saber, povo, território e soberano, teve acrescentado o conceito de soberania, o que, em tese, significava a garantia de existência independente no sistema interestatal, de acordo com os interesses do soberano, que deixava de prestar obediência quer ao papa, quer ao imperador do Sacro Império Romano Germânico. Isso significa que o princípio Cuius regio, eius religio (“Tal o príncipe, tal a religião”) ressaltava o predomínio do poder político sobre a confissão religiosa no território sob jurisdição da autoridade terrena, além de trazer implícito que poderes externos não tinham mais autoridade para qualquer tipo de intervenção nos assuntos domésticos de um Estado. Fato pouco conhecido desse aspecto típico da “soberania westfaliana”, entretanto, foi o direito dos súditos migrarem para regiões identificadas com suas crenças religiosas nos casos em que estas não coincidissem com a orientação confessional oficial real. Nesses casos surpreendentes de direitos dos súditos em contextos de consolidação dos Estados absolutistas, de acordo com o Tratado de Osnabrück, de 24 de outubro de 1648 (com signatários diferentes, a Paz de Westfalia foi assinada no mesmo dia, também em Münster), estes teriam até cinco anos de prazo para mudarem-se para regiões mais afinadas às suas convicções religiosas (Moita, 2012MOITA, Luís. Uma releitura crítica do consenso em torno do sistema vestefaliano. JANUS. NET e-Journal of International Relations [online], 2012. Disponível em: Disponível em: http://observare.ual.pt/janus.net/pt
. Acessado em: 25 mar. 2015.
http://observare.ual.pt/janus.net/pt...
, p. 24).
Não é intenção avançar aqui nos detalhes da evolução e dos debates existentes a respeito do princípio da soberania no moderno sistema de estados. Deve ser lembrado, no entanto, que as limitações teóricas, as fragilidades práticas e os recorrentes desrespeitos aos fundamentos do conceito de soberania abriram inevitáveis oportunidades para reforçar as posições dos críticos do eurocentrismo e dos pressupostos homogeneizadores e universalizantes, por exemplo, de uma ciência social atualmente predominante, vista por seus críticos como produto da colonialidade do poder e do saber.4 4 A respeito da ideia de colonialidade, ver o livro organizado por Edgardo Lander (2005), especialmente o capítulo de Aníbal Quijano, “Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina”. É importante lembrar que a noção5 5 A aplicação da expressão “noção” em vez de princípio advém do fato de que a não indiferença apresenta-se como entidade jurídico política ainda a reivindicar seu reconhecimento, enquanto princípio - postulado que se apresenta como norma jurídica compartilhada, estendendo-se como suporte último e legítimo, que fundamenta decisões e julgamentos essenciais a um sistema de normas. Entretanto, a expressão vem sendo pensada como capaz de fundamentar não apenas ações entre Estados, mas também “problemas relacionados a dificuldades econômicas, catástrofes ambientais, convulsão social, crime organizado, tráfico de drogas, rompimento com o estado de direito, fome, miséria, conflitos armados [...] variáveis que podem afetar os estados soberanos” (Guerra, 2008, p. 365). de não indiferença, por sua origem e trajetória recentes, não é estranha a esses questionamentos ao mesmo tempo em que o que ela tem fundamentado ressalta as potencialidades de construção de um protagonismo inovador para a política externa brasileira no contexto latino-americano, apresentando-se também como um atraente referencial para a cooperação do Sul Global.
Em um artigo que se situa entre os primeiros publicados no Brasil a tratar com detalhe a noção de não indiferença, Seitenfus, Zanela e Marques (2007SEITENFUS, Ricardo A. S.; ZANELA, Cristine K.; & MARQUES, Pâmela M. O direito internacional repensado em tempos de ausências e emergências: a busca de uma tradução para o princípio da não indiferença. Revista Brasileira de Política Internacional , v. 50, n. 2, p. 7-24, 2007.) apresentam os balizamentos que orientarão o desenvolvimento daquela interpretação, extraídos de uma obra de Boaventura S. Santos (2000SANTOS, Boaventura S. Critica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2000.):
Estão contidas três ideias centrais à compreensão desta análise, que busca inspiração na teoria proposta por Boaventura: a) o entendimento de que fora dos grandes centros de poder - leia-se Estados Unidos e Europa - estão sendo conduzidas experiências alternativas àquelas hegemônicas nos âmbitos político, jurídico, social, econômico e cultural (sociologia das emergências); b) que estas experiências têm sido vistas por estes centros como marginais, irrelevantes e/ou equivocadas, e, dentro desta lógica, são cinicamente produzidas como não existentes (sociologia das ausências); c) que, no entanto, estas experiências se apresentam com um incrível potencial de sucesso e que, estando localizadas em grande parte no hemisfério Sul, poderão servir de modelo entre estes países, com a necessária adaptação à realidade de cada um (trabalho de Tradução) (Seitenfus, Zanela e Marques, 2007, p. 8).
A citação claramente reconhece o potencial criativo de experiências inovadoras e não convencionais, novas direções ricas em conteúdo e descompromissadas com o convencionado nos núcleos do poder do sistema interestatal. Entretanto, não foi nesse sentido que a noção de não indiferença foi inicialmente utilizada. O termo foi criado pelo Vaticano e apresentado pela primeira vez pelo papa João Paulo II no discurso de abertura da Conferência Nacional sobre Nutrição da FAO/OMS, em Roma, em dezembro de 1992. O pontífice contextualizou o sentido da expressão do seguinte modo:
Muito frequentemente, situações em que não existe paz, em que a justiça é desprezada e em que o ambiente natural está destruído, colocam populações inteiras diante do grande perigo de não poderem satisfazer às suas necessidades alimentares básicas. Não é possível que as guerras entre nações e os conflitos internos condenem, por motivos egoístas ou partidários, populações civis indefesas a morrer de fome. Nesses casos, deve-se, de qualquer modo, assegurar a ajuda alimentar e sanitária e eliminar todos os obstáculos, inclusive aqueles que decorrem de recursos arbitrários ao princípio de não interferência nos assuntos internos de um país. A consciência da humanidade - apoiada, a partir de agora, por disposições de direito internacional humanitário - exige que seja tornada obrigatória a ingerência humanitária em situações que comprometem gravemente a sobrevivência de povos ou de grupos étnicos inteiros: trata-se de um dever para as nações e para a comunidade internacional (João Paulo II apud Herman, 2011, p. 196, grifos meus).
Pouco tempo depois, em março de 1994, o conceito aparece em sua plenitude em novo pronunciamento do sumo pontífice mantendo, entretanto, seu propósito intervencionista em situações de crise humanitária: “O princípio da não indiferença ou, na formulação positiva, da ingerência humanitária em face dos dramas dos povos, confia aos militares e aos exércitos um papel novo e importante, ao qual o Evangelho está em condições de oferecer motivações mais fortes e determinantes do que qualquer outra razão de caráter político e econômico” (João Paulo II apud Herman, 2011HERMAN, Breno. Soberania, não intervenção e não indiferença: reflexões sobre o discurso diplomático brasileiro. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2011., p.197, grifos meus).
Na época, o uso da expressão foi favorecido pelos efeitos da conjuntura internacional, às voltas com massacres e fome causados pelas guerras-civis na ex-Iugoslávia e na Somália, que impuseram, respectivamente, a intervenção da Otan e da ONU em ambos os lugares. Em um contexto de genocídios e de crise humanitária, a contribuição papal da não indiferença acabou por ser vista como próxima à ideia de guerra justa (Herman, 2011HERMAN, Breno. Soberania, não intervenção e não indiferença: reflexões sobre o discurso diplomático brasileiro. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2011., p.196). Anos depois, em 2001, na constituição da União Africana (UA), substituta da Organização da União Africana, a expressão foi lembrada e incluída em seu Acto Constictutivo “para respaldar a intervenção em um Estado Africano em duas circunstâncias: a) mudanças inconstitucionais de governo (golpes de Estado) [...] e b) intervenção humanitária nas chamadas “grave circunstances”, entre as quais figuram crimes de guerra, genocídios e crimes contra a humanidade” (Seitenfus, Zanela e Marques, 2007SEITENFUS, Ricardo A. S.; ZANELA, Cristine K.; & MARQUES, Pâmela M. O direito internacional repensado em tempos de ausências e emergências: a busca de uma tradução para o princípio da não indiferença. Revista Brasileira de Política Internacional , v. 50, n. 2, p. 7-24, 2007., p. 12). O intuito de tal inovação foi impedir as consequências da aplicação rigorosa do princípio de autodeterminação e de não intervenção em um contexto em que a delimitação física dos Estados no continente acompanhou os limites estabelecidos ainda durante a ocupação colonial, que serviram como marcadores dos espaços territoriais dos Estados africanos, em grande parte sem qualquer correspondência étnica e/ou cultural, criados principalmente no contexto pós-Segunda Guerra Mundial. O reconhecimento de que não havia como manter intocado o entendimento dos princípios de não intervenção e autodeterminação sobre uma base política/cultural tão peculiar como a africana, que, por esse motivo, exigia a construção de novas abordagens que os tratamentos universalistas das relações internacionais não podiam oferecer, impulsionou os membros da UA a adotar a não indiferença como medida acauteladora contra o distanciamento e, até mesmo, a paralisia demonstrada pelos Estados-membros diante dos conflitos da Somália, Ruanda, Congo e Darfur/Sudão, especialmente com respeito ao genocídio em Ruanda em 1994.
Nesse particular, é facilmente identificável uma semelhança entre as posições do Vaticano e da UA quanto ao sentido que atribuíam à não indiferença que, em ambos os casos, se apresentava como justificativa para interromper, se necessário via intervenção armada, as situações de conflitos étnico-nacionais e religiosos como os ocorridos na ex-Iugoslávia e na África. Deve ser lembrado, entretanto, que o sentido da expressão de modo algum significa um direito de ingerência - instrumento convencional da política de poder - porque a ingerência considera prioritários os interesses e direitos das populações diretamente envolvidas. No caso do entendimento africano da não indiferença, construído como resultado de longa recorrência de situações de extrema violência, de mortandade étnica e de perseguições generalizadas, estão explícitos os limites da intervenção ao se limitar o direito de a UA intervir em qualquer Estado-membro apenas em situações configuradas como crimes de guerra, genocídio e crimes contra a humanidade. Além disso, conforme detalhado no Acto Constictutivo da UA, existe a exigência da “iniciativa da intervenção partir: a) de decisão da Assembleia Geral da UA ou, b) da solicitação de um Estado-membro” (Seitenfus, Zanela e Marques, 2007SEITENFUS, Ricardo A. S.; ZANELA, Cristine K.; & MARQUES, Pâmela M. O direito internacional repensado em tempos de ausências e emergências: a busca de uma tradução para o princípio da não indiferença. Revista Brasileira de Política Internacional , v. 50, n. 2, p. 7-24, 2007., p.12).
Trazido daqueles ambientes conflituosos para outro no qual a longa tradição de busca pacífica para solução de conflitos chegou a permitir chamar o Brasil de “potência cordial” (Vidigal, 2010VIDIGAL, Carlos. Brasil: potencia cordial? A diplomacia brasileira no início do século XXI. RECIIS, v. 4, n. 1, p. 36-45, 2010. ), o sentido para a não indiferença incorporou novos conteúdos. No discurso de posse do ministro Celso Amorim, em 2 de janeiro de 2003, a ideia de colaborar no apaziguamento de situações de tensão no continente - uma aproximação da recomendação papal e das precauções da UA - teve de ser retomada, como consequência da influência direta dos eventos que se desenrolavam naquele momento na Venezuela. Exatamente um mês antes, em 2 de dezembro de 2002, uma greve geral dos trabalhadores petroleiros pela deposição do presidente Chaves reinstalava tempos de incerteza, com ameaças de golpe de Estado e de intervenção norte-americana que, na verdade, rondavam o país desde antes da grotesca deposição de Chaves por dois dias em abril daquele ano.
Com o comprometimento da produção de derivados de petróleo ocasionado pela greve e para evitar o colapso da oferta de combustíveis, cuja escassez empurraria os venezuelanos ainda para mais perto de uma guerra civil, o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso atendeu a uma solicitação de assessores do recém-eleito presidente Lula - com posse marcada para daí a poucos dias - e autorizou o envio de um substancial carregamento de gasolina à Venezuela, aliviando a aflitiva situação do país. Entretanto, embora contida, a crise só deu sinais claros de refluxo em janeiro, quando, por iniciativa do recém-empossado governo brasileiro, foi proposta a criação do grupo dos Amigos da Venezuela que, em sua composição final, incluiu o Brasil, México, Chile, os Estados Unidos e o presidente da OEA, além de Espanha e Portugal como observadores. Com essa composição o grupo passou a se chamar Amigos do Presidente da OEA, por sugestão do representante dos Estados Unidos (Agência Brasil, 2003). A consequência imediata desse bem-sucedido movimento da diplomacia brasileira foi, na verdade, paralisar o golpe de Estado, naquele momento em suas preliminares, neutralizando os defensores, internos e externos à Venezuela, de medidas violentas para aquele cenário..
Conforme comentado, a crise venezuelana de dezembro 2002 ocorreu exatamente no momento em que se preparava a transição para o primeiro termo do governo do presidente Lula, estendendo-se durante os primeiros meses após a posse e sendo, consequentemente, o batismo de fogo da nova administração em questões internacionais. Desse modo, os Estados envolvidos, os interesses em jogo e o sucesso da intervenção preventiva e pacífica certamente compuseram excelente fundamentação para o reforço da nova atitude brasileira da não indiferença, diplomaticamente apresentada logo no discurso inaugural do novo ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim: “Temos que levar esta postura de ativismo responsável e confiante ao plano das relações externas. Não fugiremos de um protagonismo engajado, sempre que for necessário na defesa do interesse nacional e dos valores que nos inspiram” (Lula da Silva, Amorim e Guimarães, 2003LULA DA SILVA, Luis I.; AMORIM, Celso; & GUIMARÃES, Samuel P. A política externa do Brasil. Brasília: Ipri-Funagm, 2003., p. 51-2).
E, mais adiante: “Respeitaremos zelosamente o princípio da não intervenção, da mesma forma que velaremos para que seja respeitado por outros. Mas não nos furtaremos a dar nossa contribuição para a solução de situações conflituosas, desde que convidados e quando considerarmos que poderemos ter um papel útil, tendo em conta o primado da democracia e da constitucionalidade” (Lula da Silva, Amorim e Guimarães, 2003LULA DA SILVA, Luis I.; AMORIM, Celso; & GUIMARÃES, Samuel P. A política externa do Brasil. Brasília: Ipri-Funagm, 2003., p. 56).
E foi no contexto desse protagonismo bem-sucedido logo no início de sua gestão que o chanceler brasileiro detalhou a nova atitude do Brasil em discurso pronunciado na XXXV Assembleia Geral da OEA em 2005, nos seguintes termos: “A diplomacia brasileira pauta-se pelo princípio de não ingerência em assuntos internos, consagrado em nossa Carta. O governo do presidente Lula tem associado a esse princípio básico uma atitude que descrevemos como de ‘não indiferença’. Temos prestado nosso apoio e solidariedade ativos em situações de crise, sempre que somos solicitados e consideramos ter um papel positivo” (apud Seitenfus, Zanela e Marques, p. 19).
Parece não haver dúvida que a participação brasileira nesse tenso episódio foi, por todos os ângulos possíveis, um sucesso diplomático, especialmente pelo afastamento da ameaça de golpe de Estado contra o governo Chaves e, segundo algumas interpretações, até por ter abortado uma bastante provável intervenção norte-americana, que aguardava o desenrolar do conflito naquele país (Bandeira, 2003BANDEIRA, Luiz A. M. Os EUA e a crise na Venezuela. Revista Espaço Acadêmico, n. 20 [online], 2003. Disponível em: Disponível em: http://www.espacoacademico.com.br/20bandeira.htm
. Acessado em: 23 de abr. 2015.
http://www.espacoacademico.com.br/20band...
). Assim, o comportamento demonstrado pelo governo brasileiro nesse episódio pode perfeitamente ser enquadrado como uma muito hábil resistência contra-hegemônica de um Estado intermediário em um momento de predomínio dos falcões no núcleo do poder hegemônico norte-americano. Nesse caso, considerando que a moldura da não indiferença já havia sido rascunhada antes mesmo da proposta de constituição dos Amigos da Venezuela, conforme demonstrado pelas referências presentes no discurso de posse do ministro Amorim, pode-se sem receio atribuir tal atuação de solidariedade ativa às novas práticas preconizadas nos fundamentos da não indiferença.
Entretanto, a ideia de solidariedade ativa, componente nuclear da não indiferença, não se limita àquelas situações de crise, embora esteja mais frequentemente identificada com elas. Dois outros conteúdos claramente humanistas, frequentemente lembrados pela diplomacia brasileira no início de século XXI e fortemente conectados à não indiferença, são o reconhecimento do desenvolvimento como processo transnacional e universal, portanto impossível de ser alcançado por um estado individual, complementado pela disposição de compartilhar, especialmente com os outros Estados latino-americanos, a busca de solução para seus problemas sociais e econômicos, de acordo com o argumento de que o bem de um depende do bem dos outros (Seitenfus, Zanela e Marques, 2007SEITENFUS, Ricardo A. S.; ZANELA, Cristine K.; & MARQUES, Pâmela M. O direito internacional repensado em tempos de ausências e emergências: a busca de uma tradução para o princípio da não indiferença. Revista Brasileira de Política Internacional , v. 50, n. 2, p. 7-24, 2007.).
De fato, em que pese a circunstância da primeira intervenção da nova orientação política do governo Lula ter sido a de atuar na Venezuela, a pedido do presidente Chaves, para evitar explosões de violência com resultados imprevisíveis, a atitude de não indiferença teve oportunidade de reaparecer uma segunda vez durante a crise do Haiti. Em 2004, o Brasil foi chamado a participar da Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Mission des Nations Unies pour la Stabilisation en Haïti -Minustah, pela primeira vez com o comando de uma força internacional de paz a fim de evitar, tal como na Venezuela no ano anterior, o desencadear iminente de violência político-social. Em si mesmo, o gesto não distinguiria esta de outras presenças do Brasil em missões de paz organizadas pelas Nações Unidas, não fosse pela presença ostensiva em outras atividades não necessariamente típicas desse tipo de atuação, como, por exemplo, desenvolver junto à população do país esforços de cunho social e técnico, além de estimular a mobilização internacional para o drama haitiano, especialmente após a destruição causada pelo terremoto de 2010. Herman (2011) detalha o envolvimento complementar do Brasil no Haiti, mostrando a extensão e a peculiaridade daquela presença. Além da Minustah, o engajamento brasileiro em relação ao Haiti também se expressa na participação de diversos grupos de coordenação e apoio no âmbito multilateral, como os grupos de contato em Nova York e em Porto Príncipe, o Grupo de Amigos das Nações Unidas, o grupo consultivo ad hoc do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas (Ecosoc) e o grupo de principais doadores (G-10), sem falar da Organização dos Estados Americanos (OEA), que atua de forma complementar às Nações Unidas na questão haitiana. Não menos importante, por fim, do ponto de vista da solidariedade com o Haiti, é o conjunto de projetos bilaterais de cooperação técnica desenvolvidos pelo governo brasileiro que englobam áreas diversas como segurança alimentar, agricultura, manejo e reconstituição da cobertura vegetal e formação profissional. O exército brasileiro está, ademais, encarregado do desenvolvimento de projeto de engenharia para construção de barragem para produção de eletricidade em Artibonite. [...] Os exemplos delineados constituem, no entanto, demonstração palpável e como essa missão, cujo comando militar, desde sua criação, cabe a um militar brasileiro [...] e cujo maior contingente é formado por militares de nosso país [...] tem contribuído para mitigar a miséria do povo haitiano, o que a diferencia das missões de paz em sentido tradicional. De forma coerente com essa prática, o Brasil ampliou, em 2008, o número de engenheiros militares da missão no Haiti, que passaram para 250 efetivos, ao mesmo tempo em que reduziu o contingente militar. Trabalhando em conjunto com agências da ONU em presença no Haiti (PNUD, OMS, Fundo das Nações Unidas para a Infância - Unicef - e Organizações das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura - Unesco), a Minustah tem tido atuação importante junto à população, por exemplo, ao promover campanha de vacinação e ao socorrer as vítimas das enchentes em 2008 (Herman, 2011, p. 207-8).
Essa descrição evidencia a diferença do mecanismo brasileiro de aplicação da não indiferença em contraposição ao da União Africana, que, segundo Herman, tem identificado o princípio com o uso da força, enquanto o Brasil o aplica de forma mais maleável e com uma visão de conteúdo de engajamento solidário em seus envolvimentos (2011, p. 227). Essa interpretação solidária da diplomacia da não indiferença encontra reforço no perdão de dívidas de difícil ressarcimento que o Brasil, como credor, concedeu a alguns dos países os mais pobres do mundo. Em 2004, o governo perdoou dívidas de Moçambique (US$ 331 milhões), Gabão (US$ 36 milhões), Bolívia (US$ 52 milhões), Cabo Verde (US$ 2,7 milhões) e Nigéria (US$ 84 milhões). Na mesma direção, em 2006, o Brasil reconheceu o direito boliviano de nacionalizar as reservas de hidrocarbonetos e de reivindicar preço justo para o gás exportado. Na oportunidade, aos que criticavam uma suposta tibieza do governo brasileiro frente a essa “agressiva” investida boliviana, foi lembrada a Soberania Permanente dos Recursos Naturais, a resolução 1803 da ONU, de 1962, reconhecida pelo Brasil, que estabeleceu a soberania dos Estados sobre suas riquezas e recursos naturais.
Do mesmo modo, em 2008, o Paraguai reivindicou reajuste dos preços da energia elétrica gerada por Itaipu, tema que foi utilizado como principal plataforma eleitoral do candidato a presidente Fernando Lugo no ano anterior. Assim que tomou posse, o presidente Lugo iniciou campanha reivindicando a revisão do Tratado de Itaipu, especialmente a parte referente aos preços pagos ao Paraguai pela energia consumida pelo Brasil.6
6
As reivindicações apresentadas pelo Paraguai para revisão no acordo foram: 1) maior transparência sobre a gestão financeira da usina; 2) cogestão do complexo Itaipu; 3) realização das obras complementares previstas no acordo; 4) revisão das tarifas; 5) auditoria das dívidas da usina; 6) liberdade de comercialização do excedente gerado por cada parte (Câmara Notícia, 2009).
Os três primeiros questionamentos foram resolvidos sem dificuldades, conforme noticiado pela imprensa da época (Câmara Notícia, 2009). No caso dos três pontos seguintes listados, houve um acordo que resolveu a pendência mais importante e urgente, que era a revisão dos preços da energia, tendo o novo acordo (maio de 2011) determinado a triplicação dos preços da energia adquirida do Paraguai. A rediscussão da dívida paraguaia e a questão da liberdade de livre comercialização da energia excedente foram deixadas para discussões mais aprofundadas, a ocorrerem em um momento posterior (De Paula, 2013DE PAULA, Orlando F. A política externa brasileira e as relações com o Paraguai: a revisão do Tratado de Itaipu. Cadernos de Campo - Programa de Pós-graduação em Sociologia, n. 17, p. 127 [online], 2013. Disponível em: Disponível em: http://seer.fclar.unesp.br/cadernos/article/download/7370/5202
. Acessado em: 21 abr. 2015.
http://seer.fclar.unesp.br/cadernos/arti...
, p. 127).
Essa variedade de formas de ação, unidas pelo envolvimento solidário - que faz convergir desde a participação em uma missão da ONU até a doação de uma usina termoelétrica à Bolívia (2015), passando por ações diretamente orientadas a aliviar dificuldades econômicas e amenizar seus efeitos para as populações desses Estados -, permite, de um lado, apontar a não indiferença como um dos aspectos mais importantes e inovadores da política externa brasileira, senão aquele que vem distinguindo o Brasil no sistema interestatal neste novo século. De outro lado, uma das conclusões apresentadas por Herman em seu estudo apresenta robusto reforço à tese de que se está diante de uma inequívoca atitude de resistência contra-hegemônica, demonstrada, inclusive, pelos múltiplos sentidos que uma noção ainda não enrijecida como princípio jurídico-político permite conter. Ou, de acordo com suas palavras:
A partir dessas diversas acepções, é possível identificar o traço comum que une manifestações tão distintas da ação diplomática: trata-se de iniciativas para auxiliar países vizinhos e amigos a superar a condição de subdesenvolvimento e a não sucumbir diante de situações de convulsão sociopolítica ou de conflitos armados. Ao desenvolvê-las, o Brasil contribui para maior estabilidade de seu entorno e do cenário internacional como um todo e cria um ambiente mais favorável aos seus interesses, seja de uma perspectiva de valor seja de uma perspectiva econômica, ligada ao bem-estar de parceiros no comércio e em um projeto de integração regional. A originalidade do conceito não está, assim, tanto no que tornou possível ao país fazer, mas na justificativa que empresta a ações que não se enquadram na busca do interesse nacional no curto prazo (Herman, 2011, p. 231-2).
Do que foi dito, é possível adiantar que a não indiferença, como opção de orientação de ação política externa de um estado ou mesmo de um organismo multilateral, como no caso africano, não pode, a rigor, ser entendida como um movimento social de acordo com seu sentido mais amplo, ou seja, visto como um fenômeno coletivo e organizado, politicamente orientado para a realização de objetivos de mudança definidos e compartilhados, com temporalidade e abrangência variáveis (regional, nacional ou global). No entanto, é perfeitamente identificável ali a presença de um sistema de crenças, ideias e valores que, se ainda não encontrou compartilhamentos por parte de outras entidades estatais, contém ao menos dois aspectos dignos de nota, especialmente pela densidade de seus conteúdos. Em primeiro lugar, a não indiferença praticada pela política externa brasileira não apresenta uma visão oportunista de curto prazo, priorizando, na medida das possibilidades, objetivos orientados para a busca de estabilidade democrática e de diminuição da imensa desigualdade e pobreza disseminadas pelo continente latino-americano. Em segundo lugar, e como consequência dessa atitude solidária, a noção de não indiferença assumida pelo estado brasileiro desafia o comportamento prevalecente no sistema interestatal do capitalismo em seus suportes mais fundamentais: o de buscar/adquirir vantagens econômicas e/ou proeminência política invariavelmente às expensas de outros Estados. Nesse sentido, embora não se possa afirmar a priori que seja totalmente desprovida de interesse, essa atitude não imediatista e sensível ao reconhecimento de situações particularistas que se distanciam das regras convencionais da política e da economia internacional deve ser entendida como uma forma de resistência contra-hegemônica, precursora potencial de compartilhamentos que se orientam para a construção de uma verdadeira comunidade ideológica de consciência das periferias do atual sistema-mundo capitalista.
Com isso, é importante lembrar que a ideia de resistência contra-hegemônica faz parte do conjunto de comportamentos antissistêmicos de referência encontrado na literatura que compartilha a matriz teórica do sistema-mundo, como, por exemplo, as ideias de manifestação, de mobilização e de movimento antissistêmicos, todos conceitos derivados da perspectiva teórico-metodológica do sistema-mundo (Fotopoulos, 2001FOTOPOULOS, Takis. The end of traditional antisystemic movements and the need for a new type of antisystemic movement today. Democracy & Nature: The International Journal of Inclusive Democracy, v. 7, n. 3, p. 415-55, 2001.; Dunaway, 2003DUNAWAY, Wilma A. Ethnic conflict in the modern world-system: the dialectics of counter-hegemonic resistance in an age of transition. Journal of World-System Research, v. IX, n. I, p. 3-34, 2003. ; Rojas, 2010ROJAS, Carlos A. A. Movimientos antisistémicos: historia y evolución del concepto. Concepto y Fenómenos Fundamentales de Nuestro Tiempo [online], 2010. Disponível em: Disponível em: http://conceptos.sociales.unam.mx/conceptos_final/626trabajo.pdf
. Acessado em: 25 mar. 2015.
http://conceptos.sociales.unam.mx/concep...
). O panorama subjacente à constituição desse conjunto de conceitos pretende, por um lado, aglutinar sob uma única denominação constructos de práticas de contestação, resistência e repúdio à opressão e à exploração sistêmicas, bem como aos diferentes graus de organização e persistência desses comportamentos, nos moldes daquela unificação que Wallerstein organizou quando concebeu o conceito de movimento antissistêmico a partir da junção dos movimentos sociais e nacionais. Por outro lado, esses esforços analíticos provêm de uma perspectiva que entende que o moderno sistema-mundo capitalista vive hoje sua crise terminal ou, ao menos, uma crise de hegemonia que, em ambos os casos, ainda não apresenta elementos demarcadores de cenários futuros, nem ao menos com imprecisa moldura. O que se tem atualmente de concreto, no entanto, é o reconhecimento de uma crise ainda mais avassaladora que todas as precedentes, porque agravada pela devastação ambiental do planeta, coexistindo e contrastando
[...] com os experimentos da formação de uma “Outra economia” e de “Outro comércio”, não regidos nem pela lógica da acumulação de capital, nem pela obtenção de maior lucro. O mesmo que a decomposição geral do tecido social de todas as sociedades capitalistas do mundo, contrapostas pela emergência de novas formas comunitárias, que nascem e crescem entre os neozapatistas das montanhas do Sudeste mexicano, ou em alguns bairros piqueteiros argentinos, ou no seio dos Assentamentos brasileiros do Movimento dos Sem Terra, ou em lugares como a cidade de El Alto na Bolívia, ou em algumas comunidades indígenas do Equador, ou Peru ou Colômbia (Rojas, 2010ROJAS, Carlos A. A. Movimientos antisistémicos: historia y evolución del concepto. Concepto y Fenómenos Fundamentales de Nuestro Tiempo [online], 2010. Disponível em: Disponível em: http://conceptos.sociales.unam.mx/conceptos_final/626trabajo.pdf . Acessado em: 25 mar. 2015.
http://conceptos.sociales.unam.mx/concep... , p. 13).
Ambientes como este, de crise e de completa indefinição sistêmicas, a tomar as contribuições de Arrighi (1996, 1999, 2007) a respeito das crises de hegemonia, dos declínios dos ciclos de acumulação e do consequente e inevitável caos sistêmico, se de um lado favoreceram o surgimento e eventual florescimento de inovações políticas, econômicas e culturais, de outro - e em boa medida como resultado dessas inovações - sempre prestaram-se a preparar a emergência de novos ciclos de acumulação mais intensos, produtivos e globais que os anteriores. Seu último trabalho sobre o tema, no entanto, abriu a possibilidade de se vislumbrar um novo ciclo de acumulação, desta vez possivelmente chinês que, com a reorientação política e econômica que ele via em progresso na China, poderia apresentar um resultado sistêmico assim apresentado:
Se a reorientação for bem sucedida em reviver e consolidar a tradição da China de desenvolvimento auto centrado baseado no mercado, a acumulação sem desapropriação, mobilização de recursos humanos ao invés de não humanos e governo através da participação da massa na formulação de políticas, então existem chances que a China esteja em uma posição para contribuir decisivamente para a emergência de uma comunidade de civilizações verdadeiramente respeitadora de diferenças culturais (Arrighi, 2007, p. 389).
Aprofundando essa tendência ao extremo, ao comentar a respeito da importância da criação do Fórum Social Mundial (2001) como a principal peça contra-hegemônica da esquerda mundial de confronto ao predomínio do neoliberalismo - juntamente com os movimentos de Chiapas (1994) e de Seattle (1999) -, Wallerstein (2012_____The World Social Forum: great success, shaky future, passé?, em SEN, J.; & WATERMAN, P. (eds.). World Social Forum: critical explorations. New Dehli: OpenWorld (Challenging Empire Series, v. 3), 2012. , p. 32-4) apontou o limite temporal do sistema-mundo capitalista (de vinte a cinquenta anos) e as boas possibilidades que uma estratégia conjunta teria, a partir daquelas três experiências antissistêmicas, para continuar avançando em direção à justiça social e a um sistema social histórico mais justo.
Se a questão é se o Fórum Social Mundial como uma instituição continuará a ser a principal moldura para o movimento mundial por justiça social e um melhor sistema histórico, minha resposta é que não tenho certeza. Entretanto, ele é o melhor suporte que temos no momento. E por isso penso que devemos continuar a tentar utilizá-lo. Se, entretanto, daqui a vários anos não estiver mais funcionando - por não ter aprendido como combinar as três diferentes táticas e prioridades (Seattle, Chiapas e Porto Alegre) - então podemos ter que criar uma alternativa. Entretanto, vamos nos esforçar para realizar a fusão das três aparentemente contraditórias táticas e prioridades (Wallerstein, 2012, p. 34).
Independentemente da direção tomada pelo moderno sistema-mundo capitalista, a da emergência de um novo ciclo hegemônico de expansão sob direção chinesa, ou mesmo de outra ainda indefinida entidade nacional, ou até a do final da ordem capitalista mundial, que por cinco séculos dirigiu os destinos dos povos do mundo, o potencial dos novos valores civilizatórios desencadeados por essas famílias de movimentos antissistêmicos tornarão muito difícil a construção de novas hegemonias sem a participação desses novos atores sociais globalmente capilarizados. Se, até então, todas as hegemonias foram construídas a partir de conflitos e alianças, com a liderança exclusiva das classes e grupos dirigentes, uma eventual nova hegemonia deverá se constituir sob bases diferentes, com novos fundamentos, protagonistas e objetivos.7 7 A esse respeito, ver a excelente tese de doutorado de Ana Maria Prestes Rabelo (2011). Exemplo da dimensão das transformações em andamento no cenário internacional é que, pela primeira vez, o Sul se apresenta como interlocutor legítimo de temas de relevância mundial, com alguns Estados sendo já observados como atores globais ou, ao menos, continentais. É nesse cenário que o referencial da não indiferença se insinua como substituto humanitário de aspectos basilares dos princípios fundadores do sistema interestatal, como a soberania, a não intervenção e a autodeterminação.
Por fim, é indispensável lembrar que, embora a não indiferença não seja uma invenção da diplomacia brasileira, o multilateralismo humanitário que a acompanha vem, sim, sendo uma contribuição inovadora da política externa brasileira da última década, conforme detalhado. Entretanto, mais recentemente têm surgido análises relatando o declínio do projeto de inserção internacional do Brasil, especialmente no âmbito econômico e, consequentemente, em suas aspirações de ator global. Mesmo experimentando esse eventual declínio em sua importância econômica e política mundiais, a orientação humanitária multilateral vem sendo mantida, segundo conclui a detalhada análise de Cervo e Lessa (2014CERVO, Amado L.; & LESSA C. Lessa. Declínio: inserção internacional do Brasil (2011-2014), em Revista Brasileira de Política Internacional, v. 57, n. 2, p. 133-51, 2014.).8 8 Também com relação à perda de força da política externa brasileira no período pós-Lula, ver Amado L. Cervo e Antonio C. Lessa (2014).
A esse respeito, mesmo considerando que o corolário da não indiferença venha a arrefecer como consequência do declínio econômico e da perda, ao menos temporária, da importância política do país, de modo algum se pode presumir que as práticas originadas desse princípio tenham vida breve e caminhem para o esquecimento. Do mesmo modo que o Brasil radicalizou a dimensão pacifista da noção de não indiferença, outras adesões a essa orientação política certamente poderão fazer avançar tais práticas, ampliando seu campo de ação política e ideológica.
Se se leva ao limite a certeza da justeza de tais atitudes, não resta alternativa aos participantes das práticas contra-hegemônicas - estatais ou societais - a não ser reconhecer que o que realmente importa nessas lutas antissistêmicas é participar da formulação e afirmação de um novo percurso moral supranacional, de congregação de todas as periferias e de todos os explorados contra todas as formas de exploração e opressão. O processo é lento, com avanços e recuos. Mas, como diz Bertold Brecht (apud Harvey, 2013HARVEY, David. A liberdade da cidade, em MARICATO, Ermínia; et al. Cidades rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo, 2013. ):
Muitas coisas são necessárias para mudar o mundo:
Raiva e tenacidade. Ciência e indignação.
A iniciativa rápida, a reflexão longa,
A paciência fria e a infinita perseverança,
A compreensão do caso particular e a compreensão do conjunto,
Apenas as lições da realidade podem nos ensinar como transformar a realidade.
Referências
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Notas
-
1
Os fundamentos do conceito de movimentos antissistêmicos aqui apresentados acompanham a moldura básica apresentada por I. Wallerstein em diversas oportunidades. Ver, por exemplo, Wallerstein (2002, p. 29-39).
-
2
O título e o conteúdo do livro de Stephen Krasner Sovereignty: Organized Hypocrisy são eloquentes o bastante para demonstrar quão virtual tem sido o conceito desde seus primórdios, nos séculos XVI e XVII.
-
3
“[...] chacun baron est souverain en sa baronnie; le roi est souverain par dessous tous” (Philippe de Remi Baumanoir, Livre des costumes et des usages de beauvaisis, 1280-83, apud José Eduardo de Faria, 2000, p. 18).
-
4
A respeito da ideia de colonialidade, ver o livro organizado por Edgardo Lander (2005), especialmente o capítulo de Aníbal Quijano, “Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina”.
-
5
A aplicação da expressão “noção” em vez de princípio advém do fato de que a não indiferença apresenta-se como entidade jurídico política ainda a reivindicar seu reconhecimento, enquanto princípio - postulado que se apresenta como norma jurídica compartilhada, estendendo-se como suporte último e legítimo, que fundamenta decisões e julgamentos essenciais a um sistema de normas. Entretanto, a expressão vem sendo pensada como capaz de fundamentar não apenas ações entre Estados, mas também “problemas relacionados a dificuldades econômicas, catástrofes ambientais, convulsão social, crime organizado, tráfico de drogas, rompimento com o estado de direito, fome, miséria, conflitos armados [...] variáveis que podem afetar os estados soberanos” (Guerra, 2008, p. 365).
-
6
As reivindicações apresentadas pelo Paraguai para revisão no acordo foram: 1) maior transparência sobre a gestão financeira da usina; 2) cogestão do complexo Itaipu; 3) realização das obras complementares previstas no acordo; 4) revisão das tarifas; 5) auditoria das dívidas da usina; 6) liberdade de comercialização do excedente gerado por cada parte (Câmara Notícia, 2009).
-
7
A esse respeito, ver a excelente tese de doutorado de Ana Maria Prestes Rabelo (2011).
-
8
Também com relação à perda de força da política externa brasileira no período pós-Lula, ver Amado L. Cervo e Antonio C. Lessa (2014).
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Ago 2016
Histórico
-
Recebido
05 Jun 2015 -
Aceito
04 Mar 2016