Open-access Cancelling: debate ou censura? O liberalismo de John Stuart Mill e a cultura de cancelamento

Cancelling: debate or censorship? John Stuart Mill’s Liberalism and cancel culture

Resumo:

Apesar da grande cobertura mediática, a cultura de cancelar tende a ser pouco analisada em publicações científicas. O presente artigo discute a legitimadade do cancelling, argumentando que pode (1) regular condutas sociais e, (2) que é um ato de expressão utilizada por grupos minoritários no espaço público. Olhando para a teoria de John Stuart Mill, (1) é rejeitado, devido aos riscos de difamação, mas também à dificuldade de aplicação do princípio do dano, largamente indefinido. Por outro lado, é reconhecida a possibilidade de legitimar o cancelamento graças a (2), embora existam riscos relacionados com conformismo e empoderamento da polícia social. O artigo termina com um apelo para mais trabalho sobre o tema, mas refletindo que apesar dos apelos ao fim do cancelamento, tendo por base os valores da liberdade de expressão, a complexidade do fenômeno faz com que mesmo Mill possa ser utilizado para legitimar o cancelling.

Palavras-chave:
cancelar; Liberalismo; John Stuart Mill; liberdade de expressão; debate

Abstract:

Despite widespread media coverage, cancel culture (or cancelling), has rarely been the subject of academic analysis. This article aims to contribute to the scholarly debate by discussing two arguments for why cancelling might be considered legitimate: (1) that cancelling regulates social conduct and behaviour and, (2) that it is a form of expression used by minority groups in the public sphere. Looking at John Stuart Mill’s theory, the article rejects the first argument, arguing that the possibility of vilification and the vagueness of the principle of harm make it difficult to justify cancelling for the sake of regulating social behaviour. Nonetheless, the article suggests that cancelling might be more easily justified according to the second argument, although this approach risks promoting conformism and the empowerment of the “social police”. The article closes with a call for more work on the subject, reflecting that despite calls for an end to cancelling based on the values of freedom of expression, the complexity of the phenomenon implies that even Mill could be used to legitimise cancel culture.

Keywords:
cancelling; Liberalism; John Stuart Mill; freedom of expression; debate

Introdução

Em julho de 2020, dezenas de figuras públicas assinaram uma carta publicada na revista Harper (Ackerman e et al., 2020) contra o fenômeno da cancel culture (doravante cultura de cancelar, cancelar ou cancelamento), argumentando contra o que chamaram de “novos compromissos políticos e atitudes morais” que levam ao conformismo ideológico. A carta destaca a importância de proteger a liberdade de expressão, num claro paralelismo com a defesa do mesmo valor que podemos encontrar na obra de John Stuart Mill. No seu “Ensaio sobre a liberdade” (1964), Mill fala da importância do não conformismo e da necessidade de proteger opiniões que possam ser vistas como pouco populares ou até contrárias à maioria. Assim sendo, o presente artigo pretende contribuir para a compreensão do que é a cultura de cancelar, procurando também enquadrá-la na defesa da liberdade individual em John Stuart Mill.

Discutir a legitimidade do fenômeno da cultura de cancelar é essencial, sobretudo se considerarmos a sua prevalência, mas também a polarização de opiniões em torno da mesma. E a utilização da teoria de Mill justifica-se não apenas pelos ecos presentes na carta mencionada, mas também porque, ao ler Mill, podemos perceber como o ato de cancelar não é um fenômeno novo. John Stuart Mill falava sobre censura social, difamação, destruição de reputação e até boicotes, enquanto mecanismos utilizados para regular condutas do indivíduo que eram tidas como erradas pela sociedade. Stuart Mill reconhecia o papel das mesmas, mas alertava para a necessidade de preservar a esfera da individualidade. Contudo, se é verdade que “sempre” cancelamos pessoas, é também verdade que as redes sociais trazem novos desafios à nossa compreensão e legitimação do cancelamento. Assim sendo, procurarei responder à questão sobre se os limites impostos à liberdade de expressão pela cultura de cancelar são legítimos ou não, de acordo com a teoria de Mill.

O presente ensaio começa com uma apresentação do que é a cultura de cancelar, discutindo de que forma pode ser enquadrada numa teoria que diz respeito à liberdade de expressão. Na seção 2, serão enunciados os princípios da teoria de John Stuart Mill. Esta análise será ainda complementada com visões contemporâneas da sua obra. Finalmente, na seção 3, serão apresentados os principais argumentos a favor da cultura de cancelar, discutindo potenciais objeções. O ensaio termina apelando à continuidade da discussão sobre o caráter normativo da cultura de cancelar e sobre a necessidade de olhar para além da teoria de John Stuart Mill.

A cultura de cancelar

Cancelar alguém é uma expressão da cultura pop, utilizada nas redes sociais, tendo-se vulgarizado em 2017, como forma de responsabilizar figuras públicas por ações ou comentários considerados imorais. O dicionário Merriam-Webster (2011) define a cultura de cancelar como uma forma de exigir às figuras públicas maior responsabilidade pelas suas ações e comentários. Consideremos alguns exemplos.

Em 2017, na sequência do movimento #MeToo, o comediante americano Louis C.K. foi cancelado após acusações de comportamento sexual impróprio em relação a várias mulheres. As alegações, e a declaração que fez de seguida, levaram ao cancelamento de vários espetáculos e contratos. Um caso semelhante, e bastante mediático, foi o do ator Kevin Spacey, que após uma denúncia de assédio sexual, foi alvo de uma campanha de cancelar, que se estendeu até ao seu papel na série House of Cards. Desde essa altura que a sua exposição tem sido reduzida a nula. Mais recentemente, no início de 2020, o ator americano Hank Azaria anunciava que não voltaria a dar voz à personagem Apu dos Simpsons na sequência do lançamento de um documentário em 2017, “The problem with Apu”, em que muitos dos estereótipos associados com a personagem foram abertamente criticados. Várias pessoas nas redes sociais mostraram o seu descontentamento com os escritores e produtores dos The Simpsons, exigindo a reformulação da personagem e a substituição do ator.2

Meredith Clark traça a gênese da prática de cancelar às comunidades queer e ao chamado Black Twitter, sendo que, para a autora, trata-se de um mecanismo inspirado nas práticas das mulheres negras nos EUA que sinalizavam pessoas cuja conduta era vista como reprovável, pelo que não se deveriam associar às mesmas (Clark, 2020, p. 2; Ng, 2022, p. 3).3 Clark define um cancelamento como:

Uma expressão das intenções de alguém, uma escolha de retirar a atenção a uma pessoa ou a algo cujos valores associados à ação ou discurso são tão ofensivos, que um certo indivíduo não quer estar na sua presença, ou oferecer-lhe o seu dinheiro ou tempo (Clark, 2020, p. 1, tradução nossa).

Além disso, refere que se trata dum ato que visa à mudança social, condenando comportamentos ou discursos que se pretende que sejam erradicados. Uma interpretação superficial dos três exemplos indicados acima poderia realçar apenas o aspeto de silenciamento de cada um deles. Aliás, a maioria das definições do ato de cancelar existentes realça o contexto interpessoal, onde um agente (individual ou coletivo) solicita a ostracização de outro. Como indicado por Pipa Norris, a cultura de cancelar pode ser definida como “as estratégias coletivas utilizadas por ativistas para fazer pressão a nível social ou alcançar a ostracização cultural dos seus alvos (alguém ou algo), os quais são acusados de atos ofensivos” (Norris, 2023, p. 148, tradução nossa). O foco no aspecto da censura da cultura de cancelar domina também a sua discussão pública. O conceito carrega uma carga pejorativa (Ng, 2022, p. 6), sendo associado a fenômenos como o McCarthyism nos EUA, ou até às purgas Estalinistas (Dershowitz, 2020). No entanto, se expandirmos a nossa compreensão do fenômeno, poderemos analisá-lo para além da sua conotação política, focando-nos na sua análise como termo analítico (Ng, 2022). Para o fazer, proponho que olhemos para a genealogia dum ato de cancelamento.

No momento inicial, T0, o sujeito, chamemos-lhe João, publica uma mensagem no Twitter. Neste caso, o Twitter é uma rede social, pública, de grande abrangência, sendo que o João é uma pessoa influente, no sentido mais lato da palavra.

O momento seguinte, T1, é o momento-chave de cancelar. Geralmente pouco tempo depois do T0, vários sujeitos sancionam publicamente o João, incitando a que o mesmo seja cancelado, ou seja, pedindo a quem concorda com as acusações que se junte ao movimento, optando por deixar de divulgar as opiniões do João ou de consumir bens ou serviços produzidos por ele. Neste momento, e como definido por Eve Ng, o João torna-se o cancel target, e os pedidos de cancelamento podem ser definidos como o ato de cancelling ou as cancel practices (Ng, 2022, p. 5).4

Após o momento T1, sucedem-se as reações em cadeia: quer seja da pessoa a ser cancelada, que reage às acusações que lhe são direcionadas, quer seja de outras pessoas ou instituições que, tendencialmente, posicionam-se junto do movimento de cancelamento, por questões de reputação. Eve Ng define estes momentos como cancel discourses, que podem ser de primeira ou segunda ordem, uma vez que se estendem no tempo e no espaço (Ng, 2022, p. 6).

A descrição acima apresenta de forma breve e simplificada o processo de cancelar alguém, em linha com a tese de Eve Ng que, quando falamos de cancelamento enquanto categoria analítica, devemos distinguir entre práticas e discursos de cancelamento. Podemos ainda procurar caracterizar o fenômeno de cancelar alguém, focando-nos em sete principais aspectos:

  • Presunção de culpa: no processo de cancelamento, o “objeto” que está a ser cancelado é considerado culpado das ofensas que lhe são atribuídas;

  • Abstração: na formulação da ofensa que foi cometida, é realizado um exercício de abstração, passando-se de uma frase com uma acusação concreta: o sujeito X insultou um sujeito Y, que é homossexual, por exemplo, assim o sujeito X é homofóbico, porque insultou o sujeito Y que é homossexual;

  • Existencialismo: uma vez que, vulgarmente, critica-se a pessoa pelo que ela é, ao invés da ação ou ofensa concreta que ela possa ter cometido;

  • Pseudo-intelectualismo ou pseudo-moralismo utilizado para justificar o cancelamento;

  • Ausência de perdão;

  • Propriedade “transitiva”, uma vez que a ofensa que justifica o cancelamento é transposta (contagia) todos os que concordam, apresentam empatia ou até apenas se relacionam com a pessoa ou objeto a ser cancelado;

  • Dualismo: existem apenas bons e maus, errados e certos, o que se traduz numa polarização do discurso, sem qualquer possibilidade de consenso entre as duas posições (Cancelling, 2020).

É importante mencionar que as sete características não se verificam de igual forma em todos os casos de cancelamento. Além disso, podemos até questionar a eficácia do ato de cancelar: por exemplo, o comediante Louis C. K. já regressou aos palcos. Após esta breve definição e caracterização do cancelamento, passaremos ao enquadramento do ato de cancelar no contexto da discussão sobre liberdade de expressão.

Cancelar e a liberdade de expressão

Uma teoria da liberdade de expressão centra-se na definição dos atos de expressão que devem ser limitados ou aqueles que, pela sua natureza, consequência ou abrangência devem ser protegidos. Para Scanlon, uma teoria da liberdade de expressão requer “uma primeira definição da classe de atos que deve ser protegida, e de seguida uma explicação acerca da natureza e pressupostos que determinam o privilégio desses atos” (Scanlon, 2003, p. 204, tradução nossa). Importa, por isso, definir de que forma, 1) o ato de cancelar pode ser enquadrado enquanto um ato de expressão e 2) de que forma é que poderá fazer parte “da classe de atos que deve ser protegida”.

Scanlon define os atos de expressão que devem ser regulados por uma teoria de liberdade de expressão, como: “qualquer ato cujo objetivo do seu agente é comunicar para uma ou mais pessoas, uma proposição ou atitude” e ainda “atos que expressam proposições ou atitudes com uma certa generalidade de interesse, que são comunicados para uma grande audiência (senão a audiência mais alargada possível)” (Scanlon, 2003, p. 206, tradução nossa).

Como vimos acima, cancelar é um ato de sanção ex-post, que se compõe de três principais momentos: T0, T1 e os seguintes. Todos eles podem ser vistos como atos de expressão independentes. Por outro lado, todos estes atos tendem a ser comunicados ou expressos para uma audiência que podemos considerar alargada. Por um lado, porque acontecem no seio de redes sociais globais. Por outro lado, porque comumente têm como alvos figuras proeminentes. Além disso, o cancelar tende a resultar de acusações de conduta imprópria, ou após afirmações tidas como ofensivas, pelo que esta premissa permite-nos afirmar que o cancelamento se enquadra no seio dos atos de expressão de interesse generalizado. Assim sendo, podemos determinar que cancelar se trata de um ato de expressão.

Mas como mencionado aquando da discussão do conceito de cancelamento, este pode ainda ser enquadrado de outra forma numa teoria de liberdade de expressão. Isto porque, para além de podermos olhar para o cancelar como um ato de expressão (e por isso “positivo” no sentido que expressa algo), ele é também um ato de censura. Aliás, é o seu caráter de censura ex-post que tende a gerar maior controvérsia. Ao cancelar, expressamos uma opinião em relação à conduta do outro (momento T1 em reação ao que acontece em T0), mas origina (ou pelo menos apela) à censura ou boicote nos momentos que se seguirão. Assim sendo, e ainda no contexto de uma teoria de liberdade de expressão, podemos determinar se o cancelar se enquadra no âmbito das sanções sociais e não legais. De alguma forma, muitos atos de cancelamento são prévios ou paralelos a julgamentos de condutas cuja lei já tem preconizadas sanções e restrições. No entanto, enquanto mecanismo de regulação social, cuja característica de presunção de culpa se sobrepõe ao processo legal, o ato de cancelar surge como uma forma de controle e de regulação social da conduta ou discurso veiculado por uma determinada figura pública.

Resta por isso determinar qual dos momentos temporais do cancelamento iremos considerar. O foco da nossa análise será direcionado para a legitimidade do ato de cancelar que acontece em T1 (cujas consequências se propiciam em T2 e T3). Nesse sentido, procuraremos saber de que forma o ato em T1 é legítimo e deve ser respeitado enquanto uma forma de expressão que não deve ser restringida, e não se o ato realizado em T0 é legítimo. O problema é que, por vezes, a nossa intuição sobre a legitimidade de cancelar ou não alguém é consequência da nossa percepção sobre se a acusação realizada - ou seja, sobre se a conduta em T0 - é errada ou não. Esta é também a razão pela qual podemos ou não considerar que as consequências que surgem do cancelamento em T2 ou T3 são legítimas. Por exemplo, muitos de nós podem considerar que as acusações a Louis C.K. levantam questões legítimas e que o cancelamento é legítimo, e até a melhor forma de sinalizar que comportamentos semelhantes não serão tolerados. Esta teia intrincada de momentos complexificam a nossa análise.

Uma defesa da liberdade

No “Ensaio sobre a Liberdade” John Stuart Mill enuncia uma das defesas mais robustas da liberdade individual. Mill determina três tipos de liberdade como parte do “terreno próprio da liberdade humana”: a liberdade de consciência, que inclui liberdade de “pensamento e sentimento; liberdade absoluta de opinião em todos assuntos práticos ou especulativos, científicos, morais ou teológicos” (Mill, 1964, p. 61). A liberdade de expressão e discurso, a qual é o âmbito deste ensaio, é consequência direta deste primeiro tipo. Mill introduz ainda a liberdade de “gostos e ocupações” e a liberdade de “associação entre indivíduos” (Mill, 1964, p. 62).

A análise de Mill tem como grande destaque as formas de intervenção de governos sobre o indivíduo, mas também da sociedade, em particular, da opinião pública, ou da maioria sobre a minoria, o qual considera extremamente pernicioso (Mill, 1964, p. 64). Uma vez que o ato de cancelar traduz uma forma de controle e de poder da sociedade sobre o indivíduo pela força de opinião, será sobre este aspecto da teoria de Mill que o presente ensaio se focará.

Os argumentos de John Stuart Mill a favor da liberdade individual

Para Mill, a liberdade individual deverá ser restringida apenas quando a conduta do indivíduo tem consequências perniciosas para o outro: trata-se do “princípio do dano” a terceiros. Como citado acima, “só em caso de necessidade de obstar a que um membro de uma sociedade civilizada prejudique os outros, é que legitimamente pode empregar-se a força contra ele” (Mill, 1964, p. 64). Mais, Mill indica que para sancionar ou censurar alguém:

é preciso que a conduta de que querem desviá-lo leve em mira o prejuízo de terceiros. Ninguém é responsável pela sua conduta para com a sociedade, senão só pelo lado que contende com os interesses alheios. Pelo lado que ao indivíduo simplesmente interessa, a sua independência é, de direito, absoluta. Sobre o mesmo, sobre o seu corpo, sobre o seu espírito, é ele soberano (Mill, 1964, p. 58).

O dano sobre terceiros deve por isso regular as restrições à liberdade. O problema é o que poderemos considerar como dano.5 Robert Amdur revê o trabalho de Joel Feinberg e considera que as ações que representam danos para terceiros são as que “dificultam, impedem ou destroem os interesses do outro, de tal forma que violam os seus direitos” (Amdur, 1985, p. 1947, tradução nossa). Mas, como veremos abaixo na discussão sobre a cultura de cancelar, definir quando é que o princípio do dano se pode ou não aplicar, pode ser particularmente difícil.

Para além do princípio do dano, Mill define quais as razões que devem justificar a liberdade de expressão. Para o autor, o direito ao debate livre é consequência natural do respeito pela liberdade de consciência e pensamento. Esta última é essencial para atingir a verdade. Devemos por isso evitar restringir a liberdade de expressão para garantir que não caímos em dogmas que podem ser falsos, ou dogmas que são aceites como costume e com isso verdade, sem clara compreensão: os “dogmas mortos” (Mill, 1964). Além disso, Mill diz-nos que é mais provável encontrar a verdade através do confluir de opiniões distintas. Numa clara inspiração positivista, defende que a discussão não deve ser restrita porque sem diversidade de opiniões a verdade não pode ser determinada, nomeadamente através da “falsificação” de alguma opiniões e confirmação de outras.

Importa, no entanto, considerar que a tese de Mill não assenta apenas na sua visão positivista do conhecimento.6 Devemos impedir a criação de dogmas mortos não só porque queremos cimentar crenças verdadeiras, mas também porque Mill tem uma certa visão de bem-estar e de aperfeiçoamento do indivíduo. Numa passagem chave, Mill enuncia o porquê de a individualidade ser essencial:

É contra a individualidade que estamos em guerra: pensamos que teríamos feito maravilhas se nos houvéssemos feito todos iguais, esquecendo que a dissemelhança entre uma e outra pessoa é em geral a primeira coisa que atrai a atenção ou para a imperfeição do seu próprio tipo, e a inferioridade de outro, ou para a possibilidade, pela combinação de vantagens de ambos, de produzir alguma coisa melhor do que qualquer dos dois (Mill, 1964, p. 49).

Naquela que pode ser vista como a ideia tendencialmente perfeccionista em Mill, apenas cultivando a autonomia e a capacidade deliberativa, poderão os indivíduos desenvolver-se em plenitude, e com isso garantir o seu bem-estar e felicidade.

Absolutista do discurso livre?

A defesa da liberdade de expressão em John Stuart Mill é uma defesa baseada em princípios morais, que em nada dependem das características de um sistema legal ou político (Scanlon, 2003, p. 205-206). Como Scanlon refere, em Mill a liberdade de expressão não é consequência de uma criação artificial de determinadas instituições políticas. Uma justificação assente neste último defenderia que apenas determinados atos, inscritos numa determinada constituição, deveriam ser protegidos; ou que a defesa da liberdade de expressão se justificaria para o garante das capacidades essenciais para os cidadãos atuarem em democracia (Scanlon, 2003, p. 206). Contudo, e como vimos acima, a defesa da liberdade de expressão em Mill é justificada pela busca da verdade e do aperfeiçoamento das capacidades deliberativas dos indivíduos. Pelo que, como Scanlon argumenta, a mesma é fundamentada por “princípios morais gerais” (Scanlon, 2003, p. 206), sendo independente de leis civis ou de instituições políticas particulares. Trata-se também de uma visão baseada em categorias de expressão. Como David O. Brink menciona, Mill refere que o princípio do dano é uma razão legítima para restringir a liberdade do indivíduo (ainda que tenha também uma dimensão positiva),7 mas apelos à moralidade, paternalismo ou até ofensa nunca o são, pelo que categorias de discurso elucidam se determinado ato deverá ou não ser censurado (Brink, 2008, p. 42).

Mas qual dos princípios enunciados por Mill, a procura da verdade ou o bem-estar e desenvolvimento do indivíduo, deverá ser chave para a nossa discussão sobre cancelamento? Como Jonathan Riley apresenta, existem duas grandes concepções da defesa da liberdade em Mill. A primeira foca-se na justificação para a defesa de liberdade de expressão apresentada por Mill. Nesta concepção, existem duas justificações prevalentes: o objetivo de desenvolvimento do indivíduo e do bem-estar e, uma segunda, que se trata do argumento sobre a procura da verdade. Aliás, ecoando a própria divisão que Mill faz no seu ensaio. Nesta visão, apenas a procura da verdade (e uma visão restrita do princípio do dano) determinará que atos devem ser protegidos da censura. Para Riley, a indefinição em termos de que limites poderão ou não ser considerados e de que autoridade deverá definir esses mesmos limites, tenderá a resultar em soluções mais iliberais do que Mill eventualmente apoiaria (Riley, 2005, p. 152). Também David O. Brink encontra limitações numa defesa da liberdade de expressão que tenha apenas por base a procura da verdade, nomeadamente o fato de não explicar se deveríamos ou não censurar opiniões que sejam objetivamente falsas (como o exemplo dos que defendem que a terra é plana) ou ainda como poderemos legitimar formas de censura que são úteis na manutenção de uma verdade objetivamente comprovada - o mesmo exemplo mencionado pode aplicar-se (Brink, 2008 p. 46).

Riley apresenta uma segunda concepção, que se baseia nos limites à aplicação do princípio do dano. Por um lado, Mill será tido como um “absolutista do discurso livre” (Riley, 2005, p. 153). Nesta visão, o princípio da liberdade aplica-se da mesma forma ao pensamento, consciência e discussão, aplicando-se o princípio do dano, mas numa versão muito reduzida. Mas Riley considera que esta perspetiva - Mill como um apologista do discurso livre praticamente sem restrições - não considera todas as situações onde o ato de expressão impacta de tal forma terceiros, que o apelo à liberdade individual não deveria sobrepor-se. De forma a sustentar a sua leitura de Mill, e uma potencial utilização mais abrangente do princípio do dano, Riley argumenta que em Mill a defesa da liberdade de expressão baseia-se não tanto no direito moral de uma liberdade de pensamento e consciência sem restrições (a leitura mais comum da obra de Mill), mas antes na ideia de que a sociedade tem autoridade moral para regular a conduta social (Riley, 2005, p. 176). Para o autor, a distinção entre o que diz respeito ao indivíduo, e o que diz respeito aos outros, é muito mais complexa quando falamos de atos de expressão e de discurso, ao contrário do que acontece na liberdade de pensamento. Mais, o aspecto chave na defesa da liberdade de expressão em Mill é a completa liberdade que deveremos garantir aos elementos da audiência, para que possam receber e usar quaisquer comunicações que considerem relevantes para formar o seu julgamento, desde que não impliquem qualquer dano a terceiros (Riley, 2005, p. 174-175). Mais do que o direito de quem expressa uma opinião, é o direito da audiência em receber a maior diversidade de opiniões que deve ser salvaguardado.

A defesa de Jonathan Riley aproxima-se da visão de David O. Brink. Para este último, Mill defende a liberdade de expressão em grande parte para evitar que crenças verdadeiras se tornem dogmáticas. Mas o aspecto chave nesta defesa anti dogma é a ideia de que a liberdade de discussão é essencial para ir ao encontro do nosso desenvolvimento como seres humanos. Trata-se de uma defesa baseada na promoção das “capacidades deliberativas” como uma das principais características que compõem seres humanos desenvolvidos, apelando por isso aos pressupostos perfeccionistas de Mill sobre a felicidade e desenvolvimento do indivíduo (Brink, 2008, p. 47).

As diferentes posições mencionadas oferecem perspetivas que podem auxiliar-nos no enquadramento da teoria de cancelar enquanto ato legítimo ou não de acordo com a teoria de Mill, tema sobre o qual se debruça a seção 3.

A cultura do cancelar e a teoria de J.S. Mill

Para enquadrar a cultura do cancelar de acordo com a teoria de John Stuart Mill, podemos olhar para dois dos argumentos utilizados para justificar o ato de cancelamento, e de que forma os mesmos se relacionam com a teoria de Mill.

Cancelar pode ser justificado com base nos seguintes argumentos:

  1. A cultura de cancelar é uma forma da sociedade regular condutas que são consideradas danosas pela sociedade. Neste caso, vemos o cancelamento como um mecanismo de censura ou de regulação da conduta social dos indivíduos;

  2. A cultura de cancelar é uma forma de uma minoria utilizar o novo espaço público oferecido pelas redes sociais para trazer a público temas cuja elite que regula e determina a opinião não tem permitido que sejam discutidos. Neste segundo argumento, o ato de cancelamento é visto como um ato de expressão, que visa trazer novos temas para o debate público.

Vamos olhar para cada um deles de seguida, procurando enquadrá-los na teoria de Mill.

Cancelar surge muitas vezes após um indivíduo revelar uma conduta considerada ofensiva ou danosa para um certo grupo. Nesse sentido, cancelar é uma forma de censurar a pessoa pelo comportamento que teve, uma vez que a sociedade que a cancela pretende demonstrar que aquela conduta é errada. Como Mill refere, existem ações cuja responsabilidade pode ser imputada à sociedade.8 Nesse sentido, para podermos justificar o mecanismo de cancelar enquanto ato legítimo precisamos de determinar se os motivos do cancelamento se enquadram no princípio do dano, ou seja, se são ações prejudiciais aos interesses do outro, uma vez que este se trata do único princípio que deverá legitimar a restrição da liberdade de expressão em Mill. Para isso, consideraremos 1) se os atos são danosos para terceiros; 2) se os atos podem levar a ações que constituem danos a terceiros. Neste sentido, a conduta, o fórum em que o ato é expresso, e o tipo de audiência que frequenta o mesmo, são variáveis relevantes para a análise. John Stuart Mill concordava com a existência de discurso danoso a terceiros. Mill considerava legítimo restringir discurso “incendiário” que pudesse levar a ações violentas contra terceiros. Isto seria especialmente verdade, consoante o tipo de discurso e a audiência do mesmo:

Uma opinião de que os negociantes de cereais matam o povo à fome, ou de que a propriedade particular é um roubo, não deve ser molestada quando simplesmente tem curso pela imprensa, mas pode justamente incorrer na pena de lei quando oralmente exposta a uma turba aglomerada diante da casa de uma desses negociantes, ou quando em forma de proclamação impressa é distribuída a essa mesma turba (Mill, 1964, p. 125-126).

O exemplo acima corresponde a um tipo de discurso que deve ser censurado devido ao seu conteúdo (1) e à audiência a que se dirige (2). Podemos imaginar vários exemplos de atos de cancelar que se enquadram nesta visão. Num exemplo recente, alguns posts de Facebook de Trump foram eliminados pela plataforma, após vários utilizadores os considerarem falsos ou instigadores de violência (por exemplo, quando apelou à mobilização de movimentos de extrema-direita). Tratando-se o Facebook de uma plataforma de grande alcance, onde se juntam pessoas de vários quadrantes políticos e opiniões, e onde muitas delas procuram legitimidade ou confirmação para as suas crenças, a confirmação de algumas destas conspirações pode ser vista como incitando à violência contra terceiros. Nesse sentido, poderíamos enquadrar a censura de alguns destes posts, e as exigências de cancelamento da presença online de Trump no princípio do dano. O mesmo argumento poderá ser aplicado com o cancelar de pessoas que publicitaram a injeção de lixívia no corpo, como forma de combater o Covid-19. Neste caso, o princípio do dano enunciado por Mill enquadra a censura deste tipo de opiniões.

Muitos dos atos de cancelar justificam a sua ação no facto de a conduta cancelada poder levar a dano de terceiros, ou porque constitui uma ofensa ou uma forma de difamação. O primeiro ponto enquadra-se nos exemplos acima: cancelar é legítimo nos casos onde a natureza do discurso, e a audiência a que se destina, constituírem um risco potencial elevado de dano a terceiros. As acusações consideradas ofensivas são de mais difícil legitimação. Joel Feinberg procurou fazer isso mesmo, argumentando que o princípio do dano é limitado, e enunciado um princípio que diz ser complementar: o princípio da ofensa, o qual permitiria incluir todas as situações onde os atos de discurso têm efeitos perniciosos para terceiros, e deveriam ser publicamente até possivelmente legalmente sancionados. O princípio da ofensa define-se como o princípio que permitiria instituir uma proibição criminal de forma a impedir uma ofensa tida como gravosa, em oposição a um ato que causa dano ou lesão (Feinberg, 1985, p. 1). Feinberg acrescenta que tal como com o princípio do dano, o conceito de ofensa também tem um sentido “geral” e um “normativo”, sendo o segundo o que se enquadra no princípio da ofensa. Este segundo sentido caracteriza os casos onde atos moralmente ilícitos (wrongdoing como violação de direitos) constituem uma ofensa, definida como “o estado mental desagradável” que deriva dessa ofensa (Feinberg, 1985, p. 2). Assim sendo, o princípio da ofensa poderá incluir atividades que afrontam ou chocam crenças morais ou religiosas, ou que provocam humilhação, embaraço, ansiedade, entre outros (Amdur, 1985, p. 1950). Apesar de se tratar de uma defesa robusta da necessidade de responder às limitações do princípio do dano, que permitiria potencialmente enquadrar de forma legítima muitos dos atos de cancelamento, trata-se de uma teoria distinta da apresentada por Mill.9

Por último, importa considerar o discurso difamatório. David O. Brink acredita que uma leitura mais alargada do princípio do dano, que tenha em consideração a promoção das capacidades deliberativas individuais, permite restringir discurso difamatório:

É verdade que Mill considera que argumentos falsos, apresentados em boa consciência, podem avançar as nossas capacidades deliberativas, ao obrigar-nos a considerar a sua falsidade. Mas o discurso difamatório não é expresso em boa consciência. E é sem dúvida um caso onde mais discurso não é melhor, uma vez que a apresentação de argumentos danosos e falsos, sem consideração pela sua falsidade ou potenciais consequências prejudica, em vez de promover, a análise razoável dos temas abordados. (Brink, 2008 p. 57, tradução nossa).

No entanto, como o próprio autor admite, trata-se de uma interpretação particular da teoria de Mill, e não de uma posição que possamos atribuir com confiança ao autor (Brink, 2008). E ainda que ofereça uma defesa plausível do cancelamento, veremos mais à frente que a existência de difamação em “consciência” pode também ser utilizada como objeção ao mesmo fenômeno.

Objeção 1: como definir, quem define, é sempre possível?

Parte da dificuldade em legitimar o ato de cancelar pelo princípio do dano, advém da própria indefinição do princípio em si. Vejamos um exemplo.

A autora britânica J.K. Rowling tem vindo a sofrer exigências de cancelamento, como resultado de comentários com conteúdo transfóbico. Alguns dos seus tweets foram considerados como uma negação de pessoas não-binárias e de transgêneros. Para muitos, isto constitui uma ofensa, sendo que alguns consideraram ainda como uma legitimação do discurso de ódio e de violência contra transgêneros (Romano, 2020). Mas será que conseguimos definir com certeza que todo o discurso que traduz oposição a transgêneros leva a instâncias de violência contra os mesmos? Ou, conseguiremos dizer que a ofensa infligida pelas palavras da autora pode constituir-se como uma forma de dano a terceiros de acordo com o princípio de Mill? Se considerarmos a visão de Feinberg, onde dano inclui instâncias de violação de direitos do outro, será que uma ofensa como a mencionada viola os direitos das pessoas trans? A indefinição no que pode ou não ser considerado dano, torna a justificação do cancelamento de muito difícil aplicação - exceto em alguns casos particulares, que o próprio Mill considerou e que mencionamos acima.

Mas para além da questão de definição do conceito, existe ainda a questão sobre quem poderá definir que determinada conduta é de fato danosa. Este é um problema que rodeia a análise do papel da sociedade quando Mill fala da censura moral da conduta do indivíduo. Neste caso, a legitimação ou não do cancelar como forma de regulação da conduta pela sociedade também não é de resposta fácil. Podemos até apelar aos avisos que Mill apresenta sobre o potencial impacto da “polícia moral”:

Mas a opinião de semelhante maioria imposta à minoria como lei, em questões de conduta restrita ao indivíduo tem de certo tanta probabilidade de ser errada como acertada: porque nesses casos a opinião pública significa quando muito, a opinião de uma parte do povo do que é bom ou mau para outra parte, e muitas vezes nem mesmo isso significa, passando o público, com a mais perfeita indiferença, por sobre a vontade ou conveniência daqueles cuja conduta censura, e tendo em consideração só a sua própria preferência (Mill, 1964, p. 169).

Mill alerta-nos para o facto de que a maioria que censura a conduta de um indivíduo o faz tendencialmente tendo por base o seu próprio interesse. Se, no caso da conduta que diz respeito ao outro, Mill pode considerar a legitimidade da sua atuação, quando se trata da conduta restrita ao indivíduo, a maioria não deverá ser chamada a censurar esta mesma conduta, uma vez que não julgará de acordo com os interesses do indivíduo. Mas, como poderemos no caso da cultura de cancelar, definir quais os casos que dizem respeito à conduta restrita do indivíduo que se pretende cancelar, e os casos em que a conduta diz respeito ao outro? Mais uma vez as fronteiras são tênues. Em muitos dos casos, falamos da expressão de opiniões que impactam o outro, mas que dizem respeito às opiniões que se enquadram na esfera da individualidade. Ainda assim, talvez nos casos onde existiram acusações fundadas de assédio, por exemplo, como no caso do Movimento #MeToo, o cancelamento possa ser considerado legítimo, atendendo a que a conduta dos indivíduos cancelados impactou negativamente, e disse respeito a outros e não apenas a eles. Mas para todos os outros casos, o conteúdo veiculado serve-nos de muito pouco para legitimar ou não o ato de cancelar, quer seja por olharmos para o princípio do dano, quer seja se considerarmos os limites impostos ao controle da sociedade pelo indivíduo que Mill preconiza.

Uma outra objeção à legitimação do cancelar pelo princípio do dano relaciona-se com a legitimação do cancelamento, tendo por base o potencial danoso de determinada conduta. Quando Mill falava das acusações ao negociante de cereais, reconhecia a necessidade de censurar opiniões com objetivo e potencial de instigar atos violentos. Na cultura de cancelar, as opiniões são expressas em fóruns que contêm milhões de utilizadores, de diversas nacionalidades, gêneros, opiniões e espectros políticos, pelo que se trata de um fórum onde a probabilidade de existirem elementos radicalizados é bastante elevada. Assim sendo, podemos de fato afirmar com alguma segurança, ainda que sem certeza empírica, que algumas mensagens veiculadas nestes fóruns poderão instigar ações violentas contra terceiros. Mas o fato de isso poder ser verdade em alguns casos, não o torna verdade em muitos outros. O fórum alargado que são as redes sociais faz com que tenhamos que censurar mais mensagens, por defeito, do que aquelas que potencialmente levariam a atos violentos. No caso do ato de cancelar, significaria que teremos que legitimar quase todos os cancelamentos. A impossibilidade de saber quais os casos que levarão a violência, impelir-nos-á a uma solução potencialmente muito mais iliberal do que Mill pretenderia.

Objeção 2: existencialismo e natureza difamatória do ato de cancelar.

Nos casos de cancelamento é comum o indivíduo tornar-se a acusação: ContraPoints no seu vídeo menciona um caso paradigmático de um youtuber que foi cancelado após um comentário no twitter, onde foi considerado homofóbico, por uma afirmação que tinha publicado, e pela qual se retratou de seguida (Cancelling, 2020). Também em 2020, foi publicado um vídeo de uma mulher americana que ligou à polícia para denunciar que estava a ser atacada por um afro-americano num parque público, quando a pessoa em questão estava apenas a observar pássaros. O vídeo foi divulgado e tornou-se viral, e a mulher, Amy Cooper, foi tida como exemplo do racismo institucional que a sua ação representava. Apesar de podermos considerar a conduta reprovável, no seguimento da divulgação do vídeo, Amy Cooper foi despedida e foi ainda obrigada a devolver o seu cão. Neste caso, o cancelamento determinou a reputação de Amy Cooper como racista e várias pessoas e instituições quiseram dissociar-se da sua presença e influência.

Se considerarmos a visão de David O. Brink de como a difamação poderá ser censurada de forma legítima de acordo com Mill, poderíamos considerar que muitos dos atos de cancelamento que se traduzem em destruições da reputação de determinados indivíduos, pondo em causa o seu caráter e personalidade com base em algumas afirmações públicas, são na realidade difamatórios. Se esse for o caso, a natureza existencialista da cultura de cancelar pode deslegitimar o seu papel de modelo de censura e regulação de conduta social, e remeter o mecanismo para um ato difamatório, e por isso, ilegítimo. Aliás, Mill receava este caráter “existencialista” de discussões que opõem visões distintas. Como o próprio advertia: “O pior agravo que um polemista pode cometer é estigmatizar de maus e imorais aqueles que seguem opinião contrária” (Mill, 1964, p. 123). No entanto, a visão de David O. Brink não é a visão de Mill, pelo que a difamação não é uma resposta robusta para uma análise do cancelar segundo Mill.

Importa ainda assim considerar a natureza transpositiva do cancelar onde para além do “cancelado”, os seus amigos, familiares, marcas associadas são também cancelados “por ligação”. Nesse sentido, o processo de difamação estende-se muito para além do cancelado, podendo ser visto como uma medida desproporcional de censura da sociedade a uma determinada conduta do indivíduo. Ainda assim, veremos mais à frente que este ponto se relaciona mais com uma objeção ao potencial de promoção da conformidade, do que com a natureza difamatória do cancelamento.

Claro que todas estas situações se traduzem em análises muito particulares: será que todos os atos de cancelamento são existencialistas? Poderão existir cancelamentos a figuras que demonstraram consistentemente posições que justificam a acusação de caráter que lhes é direcionada. Mas, sobretudo, parece que muitas das justificações usadas para o cancelamento, fundamentadas no dano, ou no potencial de dano, traduzem mais um princípio de ofensa, do que o princípio de dano em Mill. Como vimos, estabelecer a legitimidade do cancelamento de acordo com o princípio do dano de Mill é bastante difícil e nebuloso - nos casos onde se afirma que as afirmações podem incitar à violência pelo seu conteúdo e audiência - ou potencialmente incorreto - nos casos onde são ofensas e não danos que motivam o cancelamento. Passemos por isso ao segundo argumento que poderá legitimar o cancelamento.

O cancelar foi inicialmente utilizado por minorias que procuravam expor condutas ofensivas ou reprováveis, muitas vezes porque atentavam contra as próprias minorias em questão. O cancelamento feito com recurso a redes sociais permitiu que muitos grupos marginalizados pudessem expressar as suas agendas, quando historicamente viram o acesso aos meios de comunicação social ditos tradicionais excluído ou limitado (Ng, 2022).10 Trata-se por isso de um mecanismo de justiça e de poder, onde a minoria utiliza as redes sociais para expor situações ou discursos que consideram que deveriam ser sujeitos à regulação da sociedade, mas que foram sistematicamente excluídos pela elite que forma a opinião pública. Como Clark menciona: “A cultura de cancelar situa-se dentro do conceito Habermasiano de esfera pública, que assume que o discurso público faz parte do terreno das elites”. Além disso, os “cancelados” tendem a ser elementos de uma determinada elite: “Ser cancelado é uma designação geralmente reservada para celebridades, marcas e outras figuras, normalmente fora do alcance, sendo que deverá ser lido como um último apelo por justiça” (Clark, 2020, p. 2). O fato de o cancelamento ocorrer maioritariamente nas redes sociais reforça esta posição, uma vez que se trata, por vezes, do único fórum onde é possível responsabilizar figuras influentes. Importa mencionar que esta justificação é reforçada pela genealogia que Clark, mas também Eve NG, faz do ato de cancelar (Clark, 2020; Ng, 2022). O mesmo advém de práticas orais de indivíduos de grupos marginalizados, nomeadamente Afro-Americanos, que promoviam a responsabilização do outro através do discurso.11

Esta é a visão partilhada por alguns dos defensores mais acérrimos da cultura de cancelar e até por figuras políticas proeminentes, como foi o caso de Alexandra Ocasio-Cortez (Ocasio-Cortez, 2020). Podemos compreender a legitimidade da argumentação utilizada, se pensarmos em alguns dos cancelamentos mais midiáticos, e de como os mesmos trouxeram para a discussão pública global, temas até aqui pouco mediatizados. Foi o caso do Movimento #MeToo que levou a milhares de acusações de assédio. O cancelamento do Apu dos Simpsons, e outros, tem trazido à discussão a falta de diversidade de personagens e atores em algumas das principais séries de sucesso mundial. Os cancelamentos como o da autora J.K. Rowling ou de Amy Cooper obrigam a discussões sobre gênero e sobre racismo institucional.

Podemos encontrar paralelismo desta defesa nos argumentos de procura da verdade e de promoção de capacidades deliberativas de Mill. Como O. Brink menciona, para Mill é essencial que possamos trazer para a discussão novos temas, que permitam evitar que verdades se tornem dogmáticas e que nos permitam desenvolver as nossas capacidades deliberativas (Brink, 2008 p. 47). Parece obviamente um contrassenso defender um ato de censura enquanto promotor de diversidade de opiniões. Mas, na realidade, e como mencionado inicialmente, o ato de cancelar visa censurar, mas também expressar opiniões e visões distintas das que são tidas como maioritárias. Como Mill menciona:

Parece, todavia, que quando as opiniões das massas de homens de simples mediania têm em toda a parte tornado ou se vão tornando o poder dominante, o contrapeso e o corretivo para esta tendência seria a individualidade cada vez mais pronunciada dos que ocupam as eminências superiores do pensamento. É nestas circunstâncias muito especialmente que indivíduos excecionais em vez de serem postos de parte deveriam ser animados a proceder de modo diferente da coletividade (Mill, 1964, p. 142-143).

A consequência e o cerne desta linha de argumentação é também a constatação do cancelar enquanto mecanismo de expressão de opiniões distintas. Nesse sentido, cancelar é tido como um ato de expressão legítimo, porque origina novas discussões na arena pública. Como Charlotte Lydia Riley argumenta, atos que podem ser caracterizados como restrições à liberdade de expressão, e que para o nosso propósito aqui, podemos incluir na definição de atos de cancelamentos, inserem-se e são parte constituinte dum “campo de batalha cultural mais vasto”, merecendo por isso uma interpretação que faça jus a esse contexto (Riley, 2021, p. 14).

A argumentação da legitimidade do cancelar enquanto mecanismo que permite a uma minoria articular opiniões distintas, e com isso promover as capacidades deliberativas de todos, apresenta-se como uma defesa mais robusta de acordo com a teoria de Mill. Mas não deixa ainda assim de poder ser sujeita a objeções.

Objeção 3: conformismo

Como mencionado acima, o ato do cancelamento que acontece em T1 promove a discussão de novos temas os quais não são habitualmente considerados no discurso público. Mas se isso é verdade para o momento T1, podemos preconizar o potencial impacto no T2, e T3. Devido ao caráter transpositivo da cultura de cancelar, nos momentos seguintes ao cancelamento, é exigido que outros se “afastem” das posições mencionadas. Além disso, o cancelamento tende a ser muito rápido: após T0, T1 desenvolve-se rapidamente e o cancelado tem de responder às alegações, desculpando-se ou reafirmando as posições que expressou inicialmente. A rapidez e os mecanismos que são consequência das exigências do cancelamento e da sua abrangência podem levar a um dos aspetos mais perniciosos da regulação da sociedade sobre o individuo: o conformismo (Mill, 1964, p. 170).

Nesse sentido, embora a cultura de cancelar possa trazer novos argumentos e temas à discussão pública, pode também levar à adoção de visões sem qualquer deliberação. O fato de muitas empresas automaticamente retirarem apoio a figuras canceladas sem procederem a qualquer análise interna das suas práticas e culturas, pode ajudar a exemplificar uma pressão para o conformismo que não gera novas atitudes, nem reforça julgamentos ou visões. Como o mecanismo de cancelar sinaliza opiniões tidas como erradas, pressiona ao conformismo rápido e quase automático - pelo menos publicamente - da posição tida como correta. O mesmo argumento que podemos utilizar para justificar a cultura de cancelar, pode por isso ser utilizado para a sua limitação, se pensarmos que em muitas instâncias as opiniões que justificam o cancelamento podem ser consideradas sem verdadeira deliberação para justificar a concordância com as posições veiculadas ou não. Uma verdade que se estende até ao cancelado: perante um ataque repentino à sua reputação, o mesmo é impelido a desculpar-se rapidamente, sem julgar em consciência se o pedido se justifica ou não.

Podemos até considerar que talvez o problema é que a cultura de cancelar não é suficientemente eficaz: que, por se tratarem de indivíduos com grande perfil, a sua exposição permite-lhes e impele-os a retratarem-se das posições por receio do que a destruição temporária da sua reputação pode gerar. Nesse sentido, cancelar alguém deveria ser mais prolongado no tempo, garantindo que o cancelado é confrontado com as suas alegações o maior tempo possível, e assim forçado a repensar a sua conduta. Mas se isso pode ser verdade para o cancelado, não tem de o ser para os outros: quem assiste, ou quem dirige organizações, empresas ou instituições políticas. Se a pressão do cancelamento for maior, poderá também levar a uma maior pressão para o conformismo dos “outros”. Ao invés de promover uma maior pressão para a discussão, tende-se a promover uma maior pressão do ponto de vista da conformidade com a regra estabelecida com o cancelamento. Se esta relação proporcional entre o cancelamento e o conformismo se verificar, o argumento do reforço da nossa capacidade deliberativa coletiva poderá ser enfraquecido.

Objeção 4: a tirania (de uma) maioria

Como vimos na objeção anterior, no cancelar temos como consequência a transformação de uma minoria numa maioria que regula a conduta e o que deve ou não ser permitido.12 O ensaio da feminista americana Joreen de 1976 debruça-se sobre este mesmo perigo (Joreen, 1976). Ambos os casos mostram como aquilo que pode ser um mecanismo utilizado por uma minoria para trazer discussões e responsabilizar atores que fazem parte de uma elite que domina a opinião pública, pode transformar-se em algo mais. Na realidade, quando o cancelamento é feito a alguém dentro de um movimento que discorda de uma posição, estamos a ver uma maioria a sobrepor-se à opinião do indivíduo, recorrendo à censura e até à difamação para sinalizar essa pessoa, e talvez até mais importante, para sinalizar para os outros que assistem e fazem parte de um grupo, de que aquela conduta não será tolerada. Neste caso, aquilo que é o mecanismo chave de mudança social que a cultura de cancelar argumenta como grande vantagem, transforma-se numa consequência penosa para quem não partilha das visões veiculadas.

Mas não apenas nestes casos podemos ver esta “transformação”. De novo, quanto maior for a pressão para o conformismo, maior será o potencial da minoria se tornar uma pressão maioritária. Neste caso, a plataforma das redes sociais amplifica vozes e junta pessoas que partilham ideias e visões. Se nestes movimentos a pressão centrifugadora do conformismo for forte, as redes sociais podem dar uma plataforma que amplifica a sua voz, pressionando outros fora do movimento a agir em conformidade com o cancelamento. Nessa altura, aquele que era um movimento minoritário, ganha força como maioria que regula a conduta social dos outros. Nalgumas das passagens de Mill ilustradas acima, o filósofo refere o papel e a importância da individualidade, não só como mecanismo de compreensão das nossas imperfeições, mas também como forma de produzir algo melhor, através da combinação de pontos de vista distintos (Mill, 1964, p. 149). Se, mais uma vez, a pressão para o conformismo for grande, e a rejeição da individualidade no seio de um grupo particular for promovida, legitimar a cultura de cancelar em Mill não parece ser possível.

Conclusão

Este ensaio traduz uma tentativa inicial de problematizar a cultura de cancelar, o qual se torna ainda mais relevante considerando a tendência atual de considerar o cancelamento como uma prática ilegítima, por vezes até inconstitucional, que atenta contra vozes conservadoras ou contra a expressão política no geral. Procurou-se perguntar se os limites à liberdade de expressão, impostos pela cultura de cancelar, podem ou não ser legítimos, e com isso, discutir a tensão fundamental que existe quando falamos da cultura de cancelar, nomeadamente a sua natureza como ato de expressão política e como tentativa de silenciamento de determinadas práticas ou opiniões. Olhando para aquela que é uma das principais defesas da liberdade individual - a teoria de John Stuart Mill - a resposta à pergunta colocada não é absoluta.

Se, por um lado, o “Ensaio sobre a liberdade” de Stuart Mill oferece alguns argumentos para como deveremos regular o poder da sociedade sobre o indivíduo, e assim de que forma poderemos legitimar total ou parcialmente a cultura de cancelar, a própria natureza do fenômeno complexifica essa análise. À primeira vista, poderíamos resolver a discussão concordando com a perspetiva de Mill como um “absolutista do discurso livre”. Mas, como vimos, isso deixaria de lado aspectos importantes da teoria. Antes de mais, não consideraria perspectivas do princípio do dano que se poderiam aplicar, nomeadamente, opiniões veiculadas que instigam violência ou que atentam contra a integridade física do outro. Mas é a segunda versão do argumento que é talvez mais robusta, nomeadamente a ideia de que a cultura de cancelar permite trazer para a esfera pública temas que têm sistematicamente sido excluídos. Nesse sentido, o ato de censura é, na realidade, uma forma de questionar dogmas pré-existentes, e com isso, reforçar as capacidades deliberativas de todos, dois aspectos que Mill considerava essenciais para o bem-estar e desenvolvimento individual. Casos recentes de cancelamento mostram exatamente isso. Mas se esta defesa parece ser mais robusta, não deixa ainda assim de estar sujeita a fortes objeções.

Na realidade, a teoria de Mill oferece-nos uma espécie de encruzilhada: pelo princípio do dano justificado pela busca da verdade e a necessidade de evitar o estabelecimento de “dogmas mortos” é difícil legitimar a cultura de cancelar; mas sobre a necessidade de garantir diversidade de opiniões, o ato de cancelar surge como uma das formas de uma minoria trazer para o discurso público opiniões que têm sido negligenciadas. Na realidade, no ato de cancelamento censurar e expressar novas visões são dois lados de uma mesma moeda, razão pela qual a nossa análise se torna mais complexa.

Acresce a tudo isto que, embora o fenômeno do cancelamento não seja novo, as plataformas onde o fazemos atualmente trazem novos desafios à nossa compreensão do mesmo. Não só por causa da abrangência das redes sociais, mas também por causa do espaço temporal em que a mensagem é recebida e disseminada. É hoje mais fácil que, em segundos, milhões de pessoas partilhem a nossa visão. Estes dois aspectos complexificam (ou certamente reforçam) os potenciais impactos do cancelamento de alguém. Se assim for, o problema não é tanto o cancelamento em si - que de muitas outras formas consideramos legítimo em várias situações - mas o formato de cancelamento que, entretanto, transformou-se e adaptou com as redes sociais.

Assim sendo, mais deverá ser discutido sobre de que maneira sua teoria pode ou não justificar o cancelamento de alguém. Mas talvez necessitemos de olhar para além de J.S. Mill. Como Scanlon menciona, uma teoria da liberdade de expressão pode ter como base uma doutrina de princípios morais ou pode ser fruto de uma construção artificial de instituições políticas. Scanlon enuncia a sua própria teoria como contendo um misto de ambos. Já Stanley Fish apresenta a sua visão da inexistência de direitos naturais ou morais que justifiquem a liberdade de expressão. Para o autor, as fronteiras do que pode ou não ser considerado um discurso livre são definidas pelos interesses e visões políticas vigentes pela política, sendo por isso mutáveis (Fish, 1994). Nestas duas visões, o argumento da necessidade de trazer novos temas, cancelando outros, ancorado na ideia de uma minoria que reclama para si espaço na esfera pública poderá ser mais robusto.

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  • 2
    Hank Azaria é um ator branco, americano, ao passo que Apu retrata um imigrante indiano nos EUA.
  • 3
    Importa referenciar o trabalho mais recente de Eve Ng em Cancel Culture. A Critical Analysis em que a autora corrobora Meredith Clark e a sua descrição da origem do cancelar na subcultura ativista afro-americana no chamado Black Twitter. No entanto, Eve Ng refere outras genealogias para o conceito, nomeadamente, as subculturas de fãs dos anos 2000, mas também a cultura hip hop, nomeadamente nos anos 80, 90 e início dos anos 2000, onde o termo “tu estás cancelado” começa a surgir, inicialmente como brincadeira, passando progressivamente para o domínio do discurso político (Ng, 2022).
  • 4
    Como Eve Ng refere, as práticas de cancelamento que acontecem em T1 podem assumir vários formatos, nomeadamente, postagens ou artigos nos media ou nas redes sociais. Podem também incluir a retirada de apoio público - deixar de seguir nas redes sociais, boicotar os seus produtos, serviços, ou qualquer conteúdo ligado ao alvo. Eve Ng refere ainda a existência de práticas de cancelamento a nível institucional, como quando uma produtora cancela um programa de televisão (como no caso de Louis C. K.), ou quando uma empresa termina precocemente um contrato com uma celebridade ou despede um trabalhador. De acordo com a autora, todas estas práticas podem constituir práticas de cancelamento (Ng, 2022, p. 5).
  • 5
    Seguindo a visão de Joel Feinberg , no seio do liberalismo apenas o princípio do dano, inicialmente enunciado por Mill, e o princípio da ofensa, poderão legitimar a criminalização de determinada conduta (Feinberg, 1985). O princípio do dano, em particular, é tido como universalmente aceite, mas de difícil aplicação, caso não seja feita uma definição rigorosa de quando se poderá aplicar (Feinberg, 1985; Amdur, 1985).
  • 6
    A visão de Mill da nossa natureza sensível determina também que considere que apenas a liberdade individual, incluindo a liberdade de expressão, pode garantir a exposição necessária para a aquisição de conhecimento (MacLeod, 2021, p. 5-6).
  • 7
    Importa considerar que o princípio do dano pode ser utilizado para justificar a restrição da liberdade de expressão, mas também para encorajar determinados atos, e com isso, caracteriza-se também por um aspecto positivo. Como refere o próprio John Stuart Mill, o princípio do dano pode compelir os indivíduos a realizarem uma série de atos, para além da sua justificação para eventuais censuras de conduta: “Existem também muitos atos positivos em benefício alheio que o indivíduo pode legitimamente ser compelido a praticar - tais como depor num tribunal, suportar a sua parte razoável na defesa comum, ou em qualquer outro trabalho coletivo necessário ao interesse da sociedade cuja proteção goza. [...] Uma pessoa pode causar dano a outra, não apenas pelas suas ações, mas ainda pela sua inação, e em ambos os casos é justo responda para com a outra pela injúria” (Mill, 1964, p. 36). Ver também Gustavo Hessman Dalaqua na sua discussão do princípio do dano de Mill (2020, p. 133-134), mas também ao longo do capítulo 3 (2020).
  • 8
    “Por aquelas ações que são prejudiciais aos interesses alheios é o individuo responsável e pode estar sujeito a ser social ou legalmente punido se a sociedade for de opinião que de um ou outro modo é isso preciso para a proteção dela” (Mill, 1964, p. 186).
  • 9
    Acresce a isto, que a própria definição do que pode constituir uma ofensa é também bastante difícil. Feinberg apresenta muitas circunstâncias onde a definição do que poderá legitimamente ser considerado uma ofensa são pouco claras (Feinberg, 1985).
  • 10
    Apesar de historicamente os meios de comunicação tradicionais colocarem barreiras à sua utilização por grupos marginalizados, parece ter existido uma tendência distinta nos primeiros anos do Twitter. De facto, nos Estados Unidos, os primeiros anos do Twitter registaram um número desproporcionalmente elevado de utilizadores Afro-Americanos (Ng, 2022, p. 44-47).
  • 11
    Técnicas de discurso oral como chamar a atenção de alguém (call out) ou de “reading someone”, definida como uma descrição do outro, usando linguagem incisiva e “colorida”, seriam práticas usadas para promover a responsabilização do outro por via do discurso oral, por vezes até em tom de brincadeira (Clark, 2020; Ng, 2022, p. 48).
  • 12
    É sobre isto que a vlogger ContraPoints fala quando se refere a um episódio de cancelamento que sofreu (Cancelling, 2020).

Editado por

  • Debora Rezende de Almeida
  • Rebecca Neaera Abers

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Jan 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    05 Dez 2023
  • Aceito
    15 Out 2024
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