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Teatro legislativo e representação democrática: a Câmara na Praça como aliança entre democracia e representação 3 3 Este trabalho foi escrito com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), processo nº 2015/22251-0.

Resumo

O artigo busca contribuir para o debate na teoria política contemporânea sobre democracia e representação por meio de uma análise da Câmara na Praça, proposta elaborada por Augusto Boal na obra Teatro legislativo e praticada quando o autor foi eleito vereador. Após reconstruir a conceptualização de Nadia Urbinati da representação democrática como uma diarquia resultante da circularidade entre os juízos dos representados e as decisões dos representantes eleitos, endossamos parcialmente a crítica de Hélène Landemore e afirmamos que a representação democrática exige mecanismos de participação direta que concedam poder decisório à troca de juízos dos representados. É isto o que a Câmara na Praça faz ao conceder aos representados o poder de julgar e decidir os termos gerais dos projetos de lei propostos pelos representantes.

Palavras-chave:
representação política; democracia; participação; Augusto Boal; teatro legislativo; Nadia Urbinati

Abstract

This article seeks to contribute to the debate in contemporary democratic theory on how democracy can be reconciled with political representation by analyzing the Chamber in the Square, a proposal advanced by Augusto Boal in Legislative Theatre and put into practice when he was elected city councilor. After reviewing Nadia Urbinati’s reconceptualization of democratic representation as a diarchy of will and judgment, we partially endorse Hélène Landemore’s criticism and contend that democratic representation requires citizens’ exchange of opinions in the public sphere to be invested with the power not only to judge but also to decide about political affairs. By opening up a space where the represented can decide the general terms of the bills representatives present in the assembly, the Chamber in the Square offers a scheme that can reconcile democracy and representation.

Keywords:
political representation; democracy; participation; Augusto Boal; legislative theatre; Nadia Urbinati

"Vós vos assemelhais mais a espectadores sentados [...]do que a cidadãos deliberando sobre a cidade"

Tucídides, História da Guerra do Peloponeso, III, 38, 7

Introdução

A tentativa de garantir uma salvaguarda para a representação democrática é um esforço que há mais de duas décadas anima os pensadores da chamada virada representativa da teoria democrática contemporânea.4 4 Para um recenseamento dos teóricos contemporâneos da democracia que têm dado ímpeto à virada representativa, vide a introdução de Mónica Brito Vieira (2017). Para um recenseamento historicamente mais denso dos pensadores políticos que reivindicaram a representação em prol da democracia, ver Debora Rezende de Almeida (2015, cap.1) e Pierre Rosanvallon (2008). Nesse sentido, é surpreendente que o pensamento político de Augusto Boal permaneça negligenciado pelos autores da virada representativa, haja vista ele propor um modelo teórico e prático que, justamente, alia democracia e representação política.5 5 Sobre o silêncio em torno da teoria de Boal, ver Frances Babbage (2004, p. 36). O mesmo não se diz dos experimentos teatrais do autor que, como Babbage mostra, foram estudados e aplicados em vários países. O corrente trabalho reconstrói a proposta da Câmara na Praça elaborada por Boal não para simplesmente resgatá-la do esquecimento, mas sim para mostrar como ela contribui para o debate contemporâneo sobre a relação entre democracia e representação.

A fim de ilustrar o debate em torno da relação entre democracia e representação no pensamento político contemporâneo, iremos primeiro reconstruir a teoria de Nadia Urbinati, uma das expoentes mais conspícuas da virada representativa. Feito isto, na terceira seção, passaremos em revista a crítica que Hélène Landemore disparou contra Urbinati. Segundo a politóloga francesa, ao fim e ao cabo, Urbinati não entrega o que promete, isto é, não compatibiliza representação política e democracia, pois não concede aos representados o poder equânime de decidir os termos perante os quais as leis propostas por seus representantes serão debatidas e votadas na assembleia representativa.

Ainda que concorde em parte com a crítica acima, o presente trabalho se afasta de Landemore, pois não supõe ser incompatível com o governo representativo a adoção de mecanismos de participação direta que, por exemplo, concedam aos representados o poder de direcionar os termos dos projetos de lei votados pelos representantes eleitos. Por meio de uma análise da prática da Câmara na Praça do teatro legislativo boalino, sustentamos na quarta seção que a criação de semelhantes mecanismos tem por fito, justamente, democratizar o governo representativo.6 6 Neste artigo, fazemos uma distinção entre “governo representativo” e “democracia representativa”. Pelo primeiro, entendemos qualquer regime político cujo governo se dá por indivíduos que declaram, quer verdadeiramente ou não, representar o povo. Pelo segundo, denotamos o regime político cujo governo é ocupado por indivíduos que de fato representam o povo. Ou seja: toda democracia representativa é um governo representativo, mas nem todo governo representativo é uma democracia representativa. A Câmara na Praça, concluímos, oferece um modelo prático capaz de entrelaçar democracia e representação política.

Democracia e representação em Urbinati

No início de Representative Democracy, Urbinati (2006b, p. 6)URBINATI, Nadia (2006b). Representative democracy: principles & genealogy. Chicago: University of Chicago Press., estabelece que “a concepção moderna de soberania” é o motivo por que vários teóricos opõem representação e democracia.7 7 Uma versão resumida dos argumentos contidos neste livro foi traduzida para o português (Urbinati, 2006b). Elaborada por Rousseau (1973, p. 49-50) ROUSSEAU, Jean-Jacques (1973). “Do contrato social”, in Os pensadores, vol. XXIV. São Paulo: Abril Cultural. Tradução de Lourdes Santos Machado. no século XVIII, semelhante concepção assevera que a soberania (i) diz respeito apenas à vontade e (ii) só pode ser exercitada imediatamente. A expansão da franquia eleitoral iniciada em meados do século XIX, contudo, teria segundo Urbinati (2006b, p. 8)URBINATI, Nadia (2006b). Representative democracy: principles & genealogy. Chicago: University of Chicago Press. tornado anacrônica a visão moderna da soberania. De acordo com ela, a criação de um eleitorado composto pelas massas teria transformado a soberania de um jeito que Rousseau não previra. Uma vez que o poder se torna um lugar vazio cujos ocupantes são periodicamente realocados pelo voto popular, um novo elemento é costurado no tecido da soberania.

Em uma democracia representativa, a soberania é diárquica - isto é, ela abrange dois componentes: vontade e juízo (Urbinati, 2017, p. 196)URBINATI, Nadia (2017). “The democratic tenor of political representation”, in Vieira, Mónica Brito (Ed.). Reclaiming representation: contemporary advances in the theory of political representation. London: Taylor & Francis.. “Diarquia” é uma palavra composta por dois termos gregos: dis, adjetivo que significa “duplo”, e arché, sufixo que pode ser traduzido como “poder” (Accetti et al., 2016, p. 209)ACCETTI, Carlo Invernizzi et al. (2016). “Debating representative democracy”. Contemporary Political Theory, v. 15, n. 2, p. 205-242.. Afirmar que a soberania em uma democracia representativa é diárquica significa, pois, afirmar que ela se exerce por meio de dois poderes: de um lado, há a vontade, poder que Rousseau contemplou em sua teoria da soberania e que se manifesta, por exemplo, na decisão tomada no interior da assembleia representativa; de outro, há o juízo dos cidadãos que interagem e trocam opiniões na esfera pública.8 8 Seguindo Urbinati (2014, p. 22), não faremos distinção entre “juízo” e “opinião”. Outrossim, empregaremos os termos “vontade” e “decisão” indiscriminadamente.

Todo o esforço de Urbinati converge para mostrar que, embora careçam de autoridade formal para promulgar leis, os juízos circulantes fora da assembleia representativa podem ser considerados um lócus de soberania na medida em que influenciam as decisões realizadas dentro da assembleia representativa. A representação é democrática quando os juízos e as decisões que emergem, respectivamente, fora e dentro das instituições estatais mantêm uma relação circular entre si:

A diarquia da vontade e da opinião aplica-se em particular à democracia representativa, sistema no qual uma assembleia de representantes eleitos [...] detém a função ordinária de promulgar leis. [...] A conceptualização da democracia representativa como diarquia postula duas teses: [i] a “vontade” e a “opinião” são os dois poderes soberanos e [ii] elas são distintas e assim devem permanecê-lo [...] na democracia representativa o soberano não é simplesmente a vontade autorizada contida na lei civil implementada pelos magistrados e instituições estatais. Em vez disso, é uma entidade dual na qual a decisão é um componente, sendo o outro [componente] a opinião daqueles que obedecem e participam apenas indiretamente [...]. A opinião participa da soberania mesmo sem poder formal [authoritative power]; sua força [...] e autoridade são informais, pois não se traduzem em leis diretamente e não são dotadas de poder de comando (Urbinati, 2014, p. 22)URBINATI, Nadia (2014). Democracy disfigured: opinion, truth, and the people. Cambridge, Mass.: Harvard University Press ..

No modelo de democracia representativa proposto por Urbinati, o poder de construir os termos das leis civis confina-se ao polo da vontade da diarquia, quer dizer, aos representantes eleitos. Na visão da autora, a influência dos representados sobre os representantes deve conduzir-se apenas por meio de uma “política informal” - sustentada, por exemplo, pela advocacy de associações da sociedade civil - e dispensa a institucionalização de práticas que concedam aos representados qualquer poder formal para decidir diretamente a pauta das discussões dos representantes (Urbinati apudLandemore, 2016, p. 146)LANDEMORE, Hélène (2016). “A democracia representativa é realmente democrática? Entrevista com Bernard Manin e Nadia Urbinati”. DoisPontos, v. 13, n. 2, p. 143-156. Tradução de Fernanda Belo Gontijo, Gustavo Hessmann Dalaqua e Patrick Diener..9 9 Sobre a defesa urbinatiana da representação como advocacy, ver Urbinati (2000). Daí a ênfase de Urbinati (2014, p. 24)URBINATI, Nadia (2014). Democracy disfigured: opinion, truth, and the people. Cambridge, Mass.: Harvard University Press . na “natureza informal do poder pertencente à opinião política [...]. É verdade que, ‘em si mesma, a deliberação pública não decide nada’”. A troca de juízos populares na esfera pública não decide nada no sentido em que não tem poder para determinar de maneira direta as pautas que são debatidas dentro da assembleia. Daqui não se infere, é claro, que os representados não contem com nenhum poder de decisão em uma democracia representativa, haja vista eles permanecerem com o poder de decidir quais representantes serão eleitos (Urbinati, 2014, p. 26URBINATI, Nadia (2014). Democracy disfigured: opinion, truth, and the people. Cambridge, Mass.: Harvard University Press .). A vontade é um poder que se exerce pela decisão do voto: voto dos representantes nos projetos de leis que constantemente promulgam dentro da assembleia; voto do povo (geralmente a cada dois anos) nos representantes que farão as leis.

O poder negativo que os representados têm de destituir os governantes pela não recondução ao cargo é, na teoria de Urbinati, crucial para a manutenção da representação democrática (Miguel, 2014, p. 247MIGUEL, Luis Felipe (2014). Democracia e representação: territórios em disputa. São Paulo: Unesp.). Sem ele, não há relação de mútua influência entre representantes e representados, i.e., não há representação democrática. Afinal, a representação democrática só ocorre quando a troca de juízos fora da assembleia representativa configura um lócus de participação política indireta que franqueia aos cidadãos o poder de influenciar as decisões realizadas dentro da assembleia representativa. Esse “movimento circular [...] enlaça as instituições estatais à sociedade [...] e dá sentido à democracia representativa como diarquia” (Urbinati, 2014, p. 27URBINATI, Nadia (2014). Democracy disfigured: opinion, truth, and the people. Cambridge, Mass.: Harvard University Press .).

O corrente trabalho aprova a reconceptualização da soberania feita por Urbinati na medida em que ela busca realçar a troca de juízos entre os cidadãos na esfera pública como um campo de exercício do poder político, evitando, assim, a ideia de que este deveria ser confinado às instituições estatais. No entanto, ao procurar expandir o poder político para além das instituições estatais, Urbinati (2014, p. 22)URBINATI, Nadia (2014). Democracy disfigured: opinion, truth, and the people. Cambridge, Mass.: Harvard University Press . aparta decisão e juízo de um modo tal que destitui de poder decisório a troca de opiniões do povo na esfera pública que ocorre no intervalo entre as eleições. Urbinati justifica a cisão entre decisão e juízo explicando que a compatibilização entre democracia e representação, a seu ver, requer ir contra a tese de que a soberania sempre implica poder de decisão. Segundo a autora, quem crê que a soberania sempre tem de estar atrelada a alguma espécie de poder decisório cedo ou tarde acaba por se situar contra a democracia representativa, pois nega que o poder político possa ser exercido de maneira não imediata (Urbinati, 2006b, p. 7URBINATI, Nadia (2006b). Representative democracy: principles & genealogy. Chicago: University of Chicago Press.).

A prática da Câmara na Praça elaborada por Boal, como veremos, lança dúvidas quanto à propriedade do raciocínio de Urbinati. Ao mesmo tempo em que admite a representação e o exercício não imediato do poder, a Câmara na Praça não insula a troca de juízos do povo na esfera pública do poder decisório. Ela concede aos representados o poder de discutir e decidir a pauta de discussões dos representantes eleitos e o teor geral dos projetos de lei que eles apresentarão na assembleia. Porém, ao concedê-lo, não nega o papel intermediador do representante, que permanece com o poder de finalizar o projeto de lei. Como veremos na quarta seção, ao permitir que a troca de juízos na esfera pública decida de maneira direta a agenda de discussões dos representantes, a Câmara na Praça opera, por assim dizer, como um óleo lubrificante que facilita a circularidade entre o lado de dentro e o lado de fora das instituições representativas, sustentando, pois, uma representação democrática.

A crítica de Landemore

Uma crítica interessante que se pode levantar contra Urbinati consta em Landemore (2017, p. 58)LANDEMORE, Hélène (2017). “Deliberative democracy as open, not (just) representative democracy”. Daedalus, v. 146, n. 3, p. 51-63., autora segundo a qual as sociedades contemporâneas devem “mudar inteiramente para além da ‘democracia representativa’”. Em vez de apostar suas fichas em um tipo de governo que “foi especialmente desenhado para manter o povo a uma distância considerável do poder decisório”, Landemore (2017, p. 56)LANDEMORE, Hélène (2017). “Deliberative democracy as open, not (just) representative democracy”. Daedalus, v. 146, n. 3, p. 51-63. conclama pela instauração de mecanismos de democracia direta, isto é, não representativa. A democracia representativa há de ser descartada porque ela “permite a dissociação completa entre as decisões dos representantes e as preferências dos representados” (Ibidem, p. 55). “[N]a democracia representativa de Urbinati os cidadãos podem protestar e criticar o quanto quiserem, mas eles não [...] têm qualquer forma de acesso direto ao processo decisório. Outrossim, o poder de formar a pauta de discussões [da assembleia] é ausente no modelo dela [i.e., de Urbinati]” (Ibidem, p. 56). Feita essas considerações, Landemore (2017, p. 57)LANDEMORE, Hélène (2017). “Deliberative democracy as open, not (just) representative democracy”. Daedalus, v. 146, n. 3, p. 51-63. arremata:

a democracia representativa [...] é um paradigma excludente, e não verdadeiramente democrático. Ela [...] não consegue satisfazer os padrões [democráticos] cruciais de participação efetiva [...] e do controle da pauta de discussões [control of the agenda].

A reprimenda de Landemore é válida na medida em que aponta para uma certa ingenuidade que perpassa o pensamento de Urbinati. Ao defender a representação como veículo de promoção da democracia, Urbinati - como quase todos os autores da virada representativa - tem como um de seus objetivos se colocar contra o participacionismo que, dos anos 1970 em diante, tendia a dicotomizar representação e democracia. Publicado por Benjamin Barber nos anos 1980, o livro Strong Democracy é ilustrativo a esse respeito. De acordo com ele, uma democracia na qual os cidadãos possam participar e influenciar os rumos da política é incompatível com a representação (Barber, 1984, p. 146BARBER, Benjamin (1984). Strong democracy. Berkeley: University of California Press.).10 10 Cabe notar que Barber não mais opõe a democracia à representação tout court (cf. a entrevista que ele concedeu a Michael Saward, 2012, p. 35-6). Cabe notar também que nem todos os participacionistas dos anos setenta e oitenta opunham representação e participação. Na visão de participacionistas como Barber (1984)BARBER, Benjamin (1984). Strong democracy. Berkeley: University of California Press., a representação asfixia a democracia porque votar para um representante implica delegar o poder político em sua completude. Ao pensarem dessa maneira, os participacionistas secundavam a descrição minimalista que Joseph Schumpeter (2003, p. 295)SCHUMPETER, Joseph (2003). Capitalism, socialism & democracy. London: Routledge . oferecera nos anos 1940 para o governo representativo:

os eleitores fora do Parlamento devem respeitar a divisão de trabalho entre eles e os políticos que elegem. Eles não devem retirar sua confiança [...] entre as eleições e devem entender que, uma vez que elegeram um indivíduo, a ação política é prerrogativa dele, e não deles [sc. dos eleitores].

Não obstante sua ojeriza às ideias de Schumpeter, os participacionistas que seguiam a linha de Barber (1984)BARBER, Benjamin (1984). Strong democracy. Berkeley: University of California Press. não questionavam a assunção schumpeteriana de que a representação necessariamente requer o confinamento da participação política popular ao instante solitário do voto.11 11 Subscreve-se, aqui, a leitura mais consolidada de que Schumpeter seria um minimalista que compreendia a democracia como o regime no qual o papel do povo consiste primordialmente em eleger as elites políticas que os governarão (Miguel, 2014, cap. 1). Para uma interpretação diferente, ver John Medearis (2001). Em vez de procurar entender quando e sob quais circunstâncias a representação pode ser democrática, eles aceitaram sem mais a premissa de Schumpeter e decretaram que a prática da representação institui uma oligarquia na qual os representantes eleitos são os únicos imbuídos de poder soberano. Em certo sentido, o diagnóstico sombrio que emitiram pode ser acusado de servir de mola propulsora para o conformismo e a apatia. Afinal, se o conceito “democracia representativa” não passa de um oximoro, por que perder tempo tentando transformar nossas instituições representativas em veículo de promoção da democracia? Da premissa de que representação e participação democrática são irreconciliáveis, a consequência que se infere é a de que, para haver democracia, precisamos destruir os governos representativos existentes e, por assim dizer, começar do zero.

Ao se opor ao diagnóstico sombrio enunciado por alguns detratores da representação da corrente participacionista dos anos setenta e oitenta, Urbinati por vezes pinta um retrato demasiado cor-de-rosa, anuviando o fato de que, em verdade, a articulação entre democracia e representação não é fácil de se obter. Ao se esforçar para mostrar que a representação pode criar uma relação horizontal pujante entre representantes e representados que torna a democracia possível em países populacional e territorialmente amplos, Urbinati parece não atentar suficientemente para o fato de que, na prática, esse modelo teórico tem ganhado pouca vazão.12 12 Em Democracy Disfigured, Urbinati (2014, p. 4, 53-9, 215) reconhece que a concentração do poder midiático atrapalha o funcionamento adequado da soberania diárquica. Ademais, em um de seus últimos escritos sobre representação, Urbinati (2019, p. 64) admite que o uso atual da internet atravanca a efetivação do modelo de democracia representativa que defende. Entretanto, ainda que os reconheça, o modo como Urbinati atenta para os problemas reais que obviam a representação democrática é insuficiente no sentido em que não a levam a revisar sua cisão rígida entre juízo e vontade. Conforme aponta Landemore (2017), ao postular que a interação diária dos juízos populares na esfera pública não deve contar com qualquer poder formal para decidir as pautas que serão de fato debatidas pelos representantes na assembleia, a partição urbinatiana entre juízo e vontade aborta a emergência da representação democrática. Isto ocorre porque, destituída de poder decisório, a troca de juízos na esfera pública não configura um lócus de exercício de participação efetiva no poder político.13 13 Endossamos, neste artigo, a definição de participação oferecida por Luis Felipe Miguel (2018, p. 198) como ação política que detém de “poder decisório”. É nesse sentido que empregaremos o termo doravante. Eis um ponto que Urbinati tende a não perceber.

Outro ponto cego do pensamento urbinatiano para o qual a crítica de Landemore (2017)LANDEMORE, Hélène (2017). “Deliberative democracy as open, not (just) representative democracy”. Daedalus, v. 146, n. 3, p. 51-63. acena, mas que a autora não tematiza, diz respeito à igualdade política. Ao instarmos pela criação de mecanismos de participação direta nos quais cada cidadão recebe apenas um voto para decidir qual ação realizar-se-á, a questão de como a igualdade política pode ser garantida volta a ter uma resposta. Nesse caso, a igualdade é protegida pela fórmula “uma cabeça, um voto”, que confere a cada cidadão um poder de impacto equânime. Já com relação à troca de juízos tal qual Urbinati a descreve, como salvaguardar a igualdade política? Se, como insiste Urbinati, a troca de juízos por si só configura um âmbito de participação no poder político, como podemos ter certeza de que assimetrias no acesso ao tempo de fala pública não criarão desigualdades neste âmbito? Como garantir que a troca de juízos entre os cidadãos na esfera pública não seja monopolizada? Ao apregoar que os cidadãos fora da assembleia apenas discutem mas não decidem os rumos da política, Urbinati não oferece garantias no que tange à igualdade política.14 14 Com efeito, mesmo nos momentos em que reconhece a concentração do poder midiático como um problema para a soberania diárquica (cf. supra nota dez), Urbinati hesita em propor a institucionalização de práticas que, concedendo aos representados um poder de impacto político equânime para além do período eleitoral, minorem tal problema. O modo como a autora tergiversa, ao fim da seção sobre o poder da voz na democracia representativa no primeiro capítulo de Democracy Disfigured, é exemplar a esse respeito: “Finalmente, [a concepção diárquica da soberania] sugere que um governo democrático deve sentir a responsabilidade de regular o fórum público das opiniões de modo a reforçar que todos tenham ao menos uma oportunidade igual de exercitar alguma influência no sistema político” (Urbinati, 2014, p. 58, grifo nosso). Os itálicos na frase precedente servem para destacar o caráter reticente e tímido da proposta de Urbinati (cf. Miguel, 2014, p. 249). Desnecessário dizer, sugerir a um governo que ele deve sentir a responsabilidade de implementar X é muito diferente do que instá-lo a fazer X.

Tendo reconstruído a crítica de Landemore, cabe apontar que nossa intenção não é a de simplesmente resgatar a polarização entre participação e representação feita por alguns participacionistas de outrora. Tal oposição mais atrapalha do que ajuda, quando mais não seja porque a representação é uma realidade incontornável com a qual temos de lidar.15 15 A representação é incontornável nas comunidades politicas contemporâneas não só porque permite que agentes separados espacial e temporalmente possam coordenar ações políticas, como também porque ela permanece operante mesmo em assembleias políticas presenciais (Dahl, 2000, p. 108). Quando, por exemplo, uma trabalhadora participa de um conselho de saúde para exigir que o posto de saúde do seu bairro funcione aos domingos, ela age como uma representante das trabalhadoras. Nas assembleias presenciais ou arenas digitais em que os cidadãos participam diretamente, a representação permanece em operação sempre que as pautas que se discutem são abordadas sob uma perspectiva coletiva - ou ainda, sob uma perspectiva política - e não meramente idiossincrática. Todavia, é preciso tomar cuidado para que a aproximação entre participação e representação não sirva simplesmente de justificativa para a manutenção do statu quo e para o abandono da exigência de participação efetiva do povo no poder político.

Na introdução de Representative Democracy, Urbinati (2006b, p.3)URBINATI, Nadia (2006b). Representative democracy: principles & genealogy. Chicago: University of Chicago Press. parece ter ciência deste perigo ao escrever: “Não é minha proposta diminuir o valor normativo da participação direta em nome da exequibilidade pragmática da democracia eleitoral, tampouco argumentar em prol de uma aceitação resignada do existente”. Acontece que, mesmo que declare não desvalorizar a participação do povo no poder político, Urbinati redescreve o termo de tal maneira que chega a lançar dúvidas se o que chama de participação se qualifica, de fato, como tal. Ainda que de um ponto de vista teórico seja possível especular que a mera troca de juízos do povo configura um lócus de participação no exercício do poder político, na prática, isso tende a não se efetivar. Destituída do poder de formar a agenda de discussão dos representantes no interior da assembleia, a troca de juízos na esfera pública não gera participação efetiva, isto é, não gera impacto eficaz nas ações dos representantes e não decide o teor geral das leis que eles votarão. Sendo assim, a fim de evitar “a dissociação completa entre as decisões dos representantes e as preferências dos representados”, é preciso que a participação dos cidadãos na troca de juízos políticos fora da assembleia seja de fato participativa - isto é, é preciso que ela detenha, por exemplo, o poder de decidir os termos dos projetos de lei que os representantes vão debater na assembleia (Landemore, 2017, p. 55LANDEMORE, Hélène (2017). “Deliberative democracy as open, not (just) representative democracy”. Daedalus, v. 146, n. 3, p. 51-63.).

Landemore acerta ao conclamar pela criação de mecanismos de participação direta nos quais os cidadãos discutem e decidem sobre os problemas coletivos que os concernem. Contudo, diferente da autora, pensamos que a criação de tais mecanismos não precisaria rumar as sociedades atuais “para além” da democracia representativa (Landemore, 2017, p. 58LANDEMORE, Hélène (2017). “Deliberative democracy as open, not (just) representative democracy”. Daedalus, v. 146, n. 3, p. 51-63.). Ainda que concorde com a crítica da autora, o corrente trabalho afasta-se de Landemore na medida em que não pretende desqualificar o pensamento de Urbinati por inteiro, mas tão somente alertar-lhe sobre a existência de uma lacuna.

Urbinati tem razão: a representação pode servir de meio de promoção da democracia, de modo que seria contraproducente, àqueles interessados em promover a democracia, rebaixar a “democracia representativa” como mera contradição em termos que precisa ser descartada. Entretanto, a filósofa italiana merece o seguinte alerta: para que a representação democrática se concretize, é necessário que os cidadãos que não foram eleitos representantes tenham acesso a espaços onde sua discussão e troca de juízos possuam, sob algum aspecto, poder decisório. PaceLandemore (2017, p. 56)LANDEMORE, Hélène (2017). “Deliberative democracy as open, not (just) representative democracy”. Daedalus, v. 146, n. 3, p. 51-63., tais espaços não precisam ser interpretados como o dobre de finados da democracia representativa. Ao contrário, podem a ela ser acoplados e lhe servir de insumo restaurador. Para mostrar como isso é possível, examinemos o pensamento político de Boal, autor que apoiava o governo representativo ao mesmo tempo em que defendia a criação de mecanismos de participação popular direta como a Câmara na Praça.

A Câmara na Praça como meio de promoção da representação democrática

A questão da representação democrática é estudada por Boal em Teatro legislativo, obra que o autor publicou, em 1996, três anos após ser eleito vereador pelo município do Rio de Janeiro. Não obstante, seria equivocado afirmar que Boal voltou sua atenção à representação democrática apenas a partir da década de 1990. O próprio autor, com efeito, declara que sua atuação parlamentar, cujo objetivo era inaugurar um modo de representação compatível com a democracia, remetia a uma preocupação que o animava desde o início de sua trajetória intelectual (Boal, 1996c, p. 42BOAL, Augusto (1996c). Teatro legislativo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira . ).

A relação entre representação e participação democrática é um tema que aparece já em Teatro do oprimido e outras poéticas políticas, um dos primeiros livros de Boal. Compilação de ensaios escritos entre 1962 e 1973, Teatro do oprimido inicia declarando ter por meta criar um modo de representação teatral que não confisca dos espectadores o poder de “protagonizar” (Boal, 2005, p. 12BOAL, Augusto (2005). Teatro do oprimido e outras poéticas políticas. 7ª ed. rev. e ampliada. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira .). Para tanto, o teatro do oprimido (TO) pretende abolir a polarização entre, de um lado, uma massa de espectadores passivos que apenas observa e, de outro, um pequeno número de atores que detém a prerrogativa de agir. Boal quer que o povo deixe de ser espectador e se torne espect-ator, neologismo que denota o espectador que também pode tornar-se ator e interagir com aqueles que realizam a performance teatral. No TO “todos os presentes podem intervir a qualquer momento na busca de soluções para os problemas tratados. [...] Atores e espectadores se encontram no mesmo nível de diálogo e de poder” (Boal, 2005, p. 20BOAL, Augusto (2005). Teatro do oprimido e outras poéticas políticas. 7ª ed. rev. e ampliada. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira .). A fim de compreender o grande diferencial do TO,

deve-se ter sempre presente seu principal objetivo: transformar o povo, “espectador”, ser passivo no fenômeno teatral, em sujeito, em ator, em transformador da ação dramática. [...] O espectador [...] assume um papel protagônico, transforma a ação dramática inicialmente proposta, ensaia soluções possíveis, debate projetos modificadores (Boal, 2005, p. 181-82BOAL, Augusto (2005). Teatro do oprimido e outras poéticas políticas. 7ª ed. rev. e ampliada. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira .).

O que tudo isto tem a ver com a política? Por qual motivo teria Boal considerado o TO uma “poética política”? Ora, responde Boal, o TO é de relevância política porque a polarização rígida entre espectadores e atores que procura eliminar é a mesma que afasta representados e representantes nos governos representativos atuais. No penúltimo capítulo do Teatro do oprimido, prenunciando um tema que décadas mais tarde desenvolveria a contento em Teatro legislativo, Boal denuncia o caráter oligárquico dos governos representativos contemporâneos. Os governos representativos contemporâneos são hipócritas porque se declaram democráticos, porém na realidade os representantes que neles promulgam leis “tendem a interpretar o povo sem ouvi-lo, traduzindo em sua própria linguagem de elite palavras que em nenhuma parte foram pronunciadas. Ao povo, depois, informam sua tradução” (Boal, 2005, p. 288 e cf. 2009, p. 131-32BOAL, Augusto (2005). Teatro do oprimido e outras poéticas políticas. 7ª ed. rev. e ampliada. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira .). No governo representativo atual, os representados constituem uma massa passiva de espectadores que apenas assiste os “atores” - os representantes - que realizam ações no “palco” da assembleia representativa. Segundo Boal, ficar comentando e trocando juízos entre si sobre as performances dos atores no palco é insuficiente para tornar os espectadores participantes da ação dramatúrgica. Para tanto, é imprescindível criar algum instrumento que propicie aos espectadores o poder de “intervir decididamente na ação dramática e modificá-la” (Boal, 2005, p. 211BOAL, Augusto (2005). Teatro do oprimido e outras poéticas políticas. 7ª ed. rev. e ampliada. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira .).

O que o TO busca fazer no âmbito teatral, o Teatro legislativo quer realizar no âmbito do governo representativo (cf. Baiocchi, 2006BAIOCCHI, Gianpaolo (2006). “Performing democracy in the streets: participatory budgeting and legislative theatre in Brazil”, in Cohen-Cruz, Jan; Schutzman, Mady (Eds.). A Boal companion: dialogues on theatre and cultural politics. London: Routledge ., p. 78; Boal e Pereira Bezerra, 1999, p. 247BOAL, Augusto; PEREIRA BEZERRA, Antonia (1999). “Entretien avec Augusto Boal”.Caravelle (1988-), n. 73, p. 241-252.; Britto, 2015BRITTO, Geo (2015). “Teatro popular pós-ditadura”, in Carvalho, Sérgio de; Matsunaga, Priscila; Boal, Julian (Eds.). Augusto Boal: atos de um percurso. Rio de Janeiro: Ministério da Cultura e Banco do Brasil; Rio de Janeiro: Instituto Augusto Boal., p. 119; Heritage, 1994HERITAGE, Paul (1994). “The courage to be happy: Augusto Boal, legislative theatre, and the 7th International Festival of the Theatre of the Oppressed”. TDR (1988-), v. 38, n. 3, p. 25-34., p. 25; Picher, 2007PICHER, Marie-Claire (2007). “Democratic process and the theater of the oppressed.” New Directions for Adult & Continuing Education, n. 116, p. 79-88. ).16 16 Nesse sentido, a abordagem de Boal opõe-se a de Jeffrey E. Green (2010). Ambos partem da mesma constatação: a de que nos governos representativos atuais os representados constituem uma massa de espectadores cuja principal função é assistir à performance dos representantes. A diferença é que, ao passo que Boal tenta reverter esse quadro por meio da figura do espect-ator, Green (2010, p. 6) admoesta os teóricos da democracia a respeitar a estrutura atual da experiência política da massa espectadora: “Por que não, em vez disso [i.e., em vez de aceitar a posição de espectador a que os representados foram relegados nos governos representativos], procurar maneiras de transformar os espectadores em atores? Uma razão é que [...] a filosofia política de cunho democrático tem uma obrigação especial de desenvolver princípios políticos de uma maneira que respeite a estrutura habitual da experiência política”. Na esteira de Boal, poder-se-ia redarguir que a obrigação de uma filosofia política de cunho democrático é não a de resignar-se ao existente e desenvolver princípios que mantenham inalterada a estrutura atual da vida política a que estamos habituados, mas sim a de elaborar uma teoria que nos ajude a mudar essa estrutura em prol de outra mais democrática. Boal (1996c, p. 34)BOAL, Augusto (1996c). Teatro legislativo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira . define o teatro legislativo como um conjunto de práticas por meio das quais “o cidadão se transforma em legislador, por interpósito do vereador”.17 17 Embora a definição do autor possa dar a impressão de que o teatro legislativo deveria restringir-se ao nível municipal, cabe apontar que o próprio Boal (2006, p. 17) acabou mais tarde utilizando técnicas do teatro legislativo para democratizar a representação no nível nacional. Recentemente, o teatro legislativo (incluso a Câmara na Praça) tem sido utilizado no âmbito da representação nacional por José Moura Soeiro, deputado, reeleito em 2015, à Assembleia da República de Portugal (cf. Soeiro, 2019). No Brasil, o teatro legislativo é usado atualmente na Câmara Municipal de Belo Horizonte pelas vereadoras do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), Áurea Carolina e Cida Falabella, que criaram a “Gabinetona”, prática que democratiza o mandato dos representantes ao compor os cargos comissionados que lhes são concedidos por meio de chamada pública. Para uma análise das semelhanças entre o teatro legislativo de Boal e a “Gabinetona”, cf. Noeli Turna da Silva (2017). Boal (1996c, p. 48)BOAL, Augusto (1996c). Teatro legislativo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira . não joga fora a figura do representante, pois considera a “democracia direta [...] impossível”.18 18 Este ponto é ignorado por Baz Kershaw (2001, p. 219) e Tómas Motos (2010), que opõem o teatro legislativo boalino à democracia representativa. Seu intuito é aproximar representantes e representados e tornar ambos coautores da legislação (que no modelo de Boal continua a ser promulgada, oficialmente, no interior da assembleia representativa).

Em sua campanha para vereador, Boal (1996c, p. 41)BOAL, Augusto (1996c). Teatro legislativo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira . deixou claro que, se eleito, implementaria “uma audaciosa proposta, da qual os eleitores deveriam mais tarde participar. Eu explicava que não queria apenas que votassem em mim, mas que, se eleito, trabalhassem comigo durante todo o mandato”. Boal queria salvaguardar o caráter democrático da representação, convocando, para tanto, o povo como coautor dos projetos de lei que apresentaria na assembleia representativa.

O que torna a representação democrática? Boal responde a questão no capítulo dois do Teatro legislativo, quando constata que a maior parte dos governos representativos existentes não é democrática, visto fazer do povo uma multidão passiva de espectadores. Para que a representação seja democrática, o representado não pode ser “mero espectador das ações do parlamentar” (Boal, 1996c, p. 46BOAL, Augusto (1996c). Teatro legislativo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira . ). Em vez disso, é preciso que “opine, discuta, contraponha argumentos, [e] seja corresponsável por aquilo que faz o seu parlamentar” (Ibidem).

Segundo Boal, a representação é democrática quando as leis apresentadas pelos representantes dentro da assembleia emergem a partir da interação com os representados que estão fora dela. No afã de salvaguardar o caráter democrático da representação, Boal advoga em prol de duas práticas que conectam o interior e o exterior da assembleia legislativa. A primeira delas se dá com a criação dos Núcleos, conjuntos de cidadãos que de forma “frequente e sistemática” colabora com as ações dos representantes eleitos mediante a comunicação e a formação coletiva de “suas opiniões, desejos e necessidades” (Boal, 1996c, p. 66BOAL, Augusto (1996c). Teatro legislativo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira . ). Os Núcleos utilizam técnicas teatrais para explicitar os conflitos latentes existentes na sociedade. Daí o alvitre de Soeiro (2019)SOEIRO, José (2019). “Legislative theatre: can theatre reinvent politics?”, in Howe, Kelly; Boal, Julian; Soeiro, José. The Routledge companion to theatre of the oppressed. Abingdon: Routledge. de que o teatro legislativo gera uma politização democrática da sociedade.19 19 Sobre a caracterização da “politização” como campo do conflito, ver Boal (2004). O papel de destaque que Boal confere ao conflito na política democrática levou Geraldine Pratt e Caleb Johnston (2007, p. 107), a afirmar que o teatro legislativo “cria uma esfera pública agonística” próxima da vertente agonística da democracia. Com efeito, podemos dizer que o teatro legislativo boalino realiza a arte como intervenção agonística no espaço público que Chantal Mouffe (2013, cap. 5) considera parte essencial de uma teoria agonística da democracia. Na Estética do oprimido, Boal (2009, p. 71-2) afirma que sua concepção da política como campo do conflito remonta a Maquiavel. Sobre a recepção de Maquiavel na teoria de Boal, ver Jane Milling and Graham Ley (2000, cap. 6). Ao tematizar os vários eixos de opressão que perpassam o tecido social e os conflitos deles resultantes, os Núcleos permitem a construção de uma política democrática, isto é, de uma política que realiza “o trabalho dos e sobre os conflitos” (Chaui, 2005, p. 24CHAUI, Marilena (2005). “Considerações sobre a democracia e obstáculos à sua concretização”, in Teixeira, Ana Claudia Chaves. Os sentidos da democracia e da participação. São Paulo: Instituto Pólis.). Quando os conflitos que ocorrem entre os membros do demos são silenciados ou camuflados, não há política democrática possível.

Dentre as técnicas teatrais utilizadas pelos Núcleos, destaca-se o Teatro-Fórum, que incita o próprio povo a abordar temas que lhe são relevantes em peças nas quais qualquer um dos presentes pode intervir e modificar a ação teatral. O recurso à dramatização torna menos difícil para os oprimidos exporem suas queixas com relação àqueles que os perturbam e dá maior destaque, portanto, aos conflitos sociais. Ao dramatizar os problemas da comunidade, os Núcleos aclaram as diferentes posições em questão e facilitam a construção consciente das preferências coletivas (Boal, 1996c, p. 66, 83BOAL, Augusto (1996c). Teatro legislativo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira . ).20 20 Sobre o modo como a dramatização teatral facilita a reflexividade da deliberação democrática, cf. Katherine Goktepe (2018, p. 381).

De acordo com Boal, os Núcleos se classificam em três categorias. Os comunitários são formados por cidadãos que “vivem ou trabalham na mesma comunidade e têm, portanto, muitos problemas e preocupações em comum” (Boal, 1996c, p. 70BOAL, Augusto (1996c). Teatro legislativo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira . ). Os temáticos são formados por cidadãos cuja reunião se dá por alguma razão, ideia ou objetivo mais “forte” do que a mera convivência territorial (Ibidem). Como exemplo, Boal menciona coletivos formados por cidadãos de grupos discriminados por conta de raça, gênero e/ou sexualidade, portadores de necessidades especiais, entre outros. A terceira e última categoria é um compósito das duas primeiras. Como exemplo de Núcleo comunitário e temático, Boal cita as ligas de camponeses que, partidários de uma ideia forte sobre a questão agrária, resolvem viver juntos em um mesmo pedaço de terra.

A segunda prática que Boal propõe para conectar o lado de dentro e o lado de fora das instituições representativas é a Câmara na Praça. Sua diferença principal com relação às reuniões costumeiras dos Núcleos é que ela tem por objetivo central elaborar um rascunho de projeto de lei que, posteriormente, será defendido na assembleia representativa. Boal não veda aos cidadãos que participam dos Núcleos o poder de elaborar rascunhos de projetos de lei que depois serão repassados aos vereadores. Ocorre que a elaboração de rascunhos de projetos de lei - no vocabulário de Boal, súmulas - não é a finalidade principal dos Núcleos. Para Boal, os motivos que podem levar à convocação de uma reunião dos Núcleos são legião. Um Núcleo qualquer pode se reunir, por exemplo, simplesmente para fazer com que os cidadãos interajam e se conheçam. Boal (1996c, p. 78)BOAL, Augusto (1996c). Teatro legislativo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira . , inclusive, sugere aos Núcleos organizar espetáculos e festivais públicos, de sorte a tirar as pessoas do isolamento e incentivá-las a socializarem.

Em resumo, a questão da eficácia do impacto legislativo não é a razão de ser do Núcleo.21 21 Ademais, o caráter mais solto da conversa pública que se desenrola nas reuniões usuais dos Núcleos a torna menos apropriada para a elaboração de uma proposta de política pública clara e concisa (cf. infra nota vinte e quatro). Segundo argumenta Mark Dineenn (2013, p. 149)DINNEEN, Mark (2013). “Teatro legislativo: estimulando a ciudadanía ativa”. Teatro: Revista de Estudios Culturales / A Journal of Cultural Studies, n. 26, p. 141-161., “seria reducionista demais medir o valor do teatro legislativo exclusivamente em termos das novas leis que produz”. O Núcleo é uma prática do teatro legislativo boalino que anseia cumprir um objetivo amplo: o de incutir no povo o gosto pela participação democrática e o interesse pelos assuntos públicos, afugentando, pois, o desencantamento, a apatia, o cinismo e o derrotismo que têm sido observados em vários dos governos representativos hoje em dia.

A Câmara na Praça, em contraste com as reuniões habituais do Núcleo, tem uma finalidade exclusiva: resolver um problema coletivo específico por meio da elaboração de uma súmula e/ou de um comunicado que expresse claramente aos representantes o que a comunidade não quer. O uso do conectivo “e/ou” se explica na medida em que é incomum os representados não acabarem esclarecendo, ao proporem soluções, o que não querem ver implementado. Daqui não se segue, é claro, a impossibilidade de haver uma situação na qual o desejo da comunidade seja simplesmente proibitivo. Em tal caso, a Câmara na Praça não precisa elaborar uma súmula e pode apenas emitir uma nota que comunique aos representantes o que não deve ser feito. Como exemplo, Boal cita uma Câmara na Praça que se reuniu para debater uma proposta do prefeito Cesar Maia de armar a Guarda Municipal, que para a maioria dos presentes era problemática e que foi o que provocara a convocação da reunião. Nesse caso, os participantes não elaboraram uma súmula e optaram por apenas comunicar aos representantes que não queriam que semelhante medida fosse aprovada pela assembleia legislativa (Boal, 1996c, p. 122BOAL, Augusto (1996c). Teatro legislativo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira . ).

Via de regra, contudo, a solução dos problemas que ocasionam a convocação de uma Câmara na Praça exige a elaboração de uma súmula, sendo por isso imprescindível que semelhante reunião proceda “mais ou menos como uma sessão da Câmara, com tempo cronometrado, ordem do dia, encaminhamentos etc. O que se quer saber é a opinião da cidadania sobre os temas [...] os quais eu, como Vereador, deverei dar minha opinião” (Boal, 1996c, p. 120BOAL, Augusto (1996c). Teatro legislativo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira . ).

Boal repara que a Câmara na Praça não precisa ocorrer em uma praça, podendo ser realizada em qualquer lugar de fácil acesso público, como quadras de esporte, igrejas ou escolas públicas (Boal, 1996c, p. 122BOAL, Augusto (1996c). Teatro legislativo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira . ). O importante é que os seguintes procedimentos sejam seguidos: primeiro, deve-se delimitar um tema que servirá de justificativa para a reunião da Câmara na Praça.22 22 A lista de passos que enumeramos a seguir não deve ser vista como uma cartilha inflexível, pois todas as técnicas do teatro legislativo (o que inclui a Câmara na Praça) podem ser contestadas por aqueles que as aplicam na prática. Daí que Boal (1996c) exorte os leitores, em várias passagens do livro, a lhe mandar cartas relatando suas experiências com o teatro legislativo e sugerindo possíveis mudanças. A sugestão inicial do tema pode vir do povo ou dos próprios representantes.23 23 Cabe notar, todavia, que durante o mandato de Boal, quase todas convocações da Câmara na Praça ocorreram por iniciativa do povo (Dinneen, 2013, p. 148). Delimitado o tema, a Câmara na Praça é convocada e divulgada com antecedência à população. Um assessor legislativo é designado para ajudar os cidadãos presentes no que diz respeito aos “aspectos legais relacionados ao tema, e traduzir em termos legais as possíveis sugestões” (Boal, 1996c, p. 120BOAL, Augusto (1996c). Teatro legislativo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira . ).

Recordemos que, na denúncia do caráter não democrático da representação política feita em Teatro do oprimido, Boal (2005, p. 288)BOAL, Augusto (2005). Teatro do oprimido e outras poéticas políticas. 7ª ed. rev. e ampliada. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira . estabelecera que um governo representativo é oligárquico quando seus representantes alegam falar em nome do povo “sem ouvi-lo, traduzindo em sua própria linguagem de elite palavras que em nenhuma parte foram pronunciadas”. A Câmara na Praça salvaguarda a democraticidade da representação porque permite aos representados pronunciar, com suas próprias palavras, seus desejos, interesses e demandas.24 24 A democracia para Boal exige não só isonomia - igualdade perante a lei, visível, por exemplo, na concessão de um voto para cada eleitor - como também isegoria, isto é, a igual capacidade de fala no que tange o mundo da política. “Para mim, na democracia [...] qualquer um pode dizer: ‘Pare, eu quero poder falar’. Isto que é democracia, isto que é liberdade, e é por isso que eu luto” (Boal apudMorelos, 1999, p. 38). Repare que a recuperação do antigo ideal democrático da isegoria não significa, reiteremos, que Boal fosse contra a representação. Conforme explica o autor na Estética do oprimido, ao buscar fazer da pólis ateniense um modelo inspirador para as democracias representativas contemporâneas, o propósito é não abolir mas sim “diminui[r] as distâncias entre base [sc. os representados] e vértice [sc. os representantes]” (Boal, 2009, p. 132 e cf. 1996a, p. 51). Os representados conseguem, assim, comunicar seus juízos e opiniões aos representantes, sendo a função principal destes traduzir as demandas populares em projetos de lei.

O passo final é a elaboração da súmula, cujos principais pontos são votados pelos presentes, algo que só deve ocorrer após debate entre eles. Terminada a súmula, os participantes podem decidir qual representante eleito será responsável por transformá-la em projeto de lei.25 25 Isso é especialmente recomendável nos casos em que os participantes sabem que a súmula que fizeram pode receber forte oposição de alguns representantes. Nesse caso, é provável que, ao verter a súmula em projeto de lei, o representante tenha de alterar um ou outro ponto de modo a angariar votos suficientes para que o projeto seja aprovado e vire lei. Voltaremos a esse ponto adiante quando explicarmos que a Câmara na Praça não nega a prática do compromisso (compromise). Sobre a importância da prática do compromisso em uma democracia representativa, cf. “Essência e valor da democracia” de Hans Kelsen (1993). Os debates na Câmara na Praça devem prezar pela ponderação, sendo por isso que Boal considera importantíssimo que os cidadãos participantes sigam os procedimentos deliberativos operantes no interior da assembleia representativa. A cronometragem equânime dos discursos, o direito à réplica e à tréplica, a concessão de apenas um voto para cada um na hora de decidir o teor geral da súmula, assim como outros procedimentos, estimulam os presentes a “expor com precisão seus pensamentos e sugestões” e tende a difundir neles “a reflexão e a compreensão” (Boal, 1996c, p. 123BOAL, Augusto (1996c). Teatro legislativo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira . ). Além disso, esses mecanismos resguardam a igualdade política, pois concedem igual tempo de fala aos cidadãos (isegoria) e igual poder de impacto político por meio da adoção da fórmula “uma cabeça, um voto” (isonomia).

Boal em momento algum assevera que a adoção dos procedimentos deliberativos que defende fará com que todos os cidadãos sejam claros e se compreendam totalmente na Câmara na Praça. Mais modesta, sua afirmação é a de que um debate popular estruturado por semelhantes procedimentos tende a gerar mais compreensão do que um debate desordenado e evita que a reunião do povo seja muito dispersa, garantindo, portanto, maior eficácia legislativa à Câmara na Praça em comparação com as reuniões rotineiras dos Núcleos.26 26 O estudo de caso feito por Kelly Howe (2009) sobre a adoção do Teatro-Fórum pelo Practicing Democracy - projeto de uma companhia teatral apoiado pela Câmara de Vereadores de Vancouver, Canadá - ilustra bem como a ausência de procedimentos deliberativos claros pode fazer com que a sugestão de leis por parte dos representados deixe de gerar resultados concretos. Membros do Practicing Democracy convocaram os cidadãos de Vancouver para uma sessão de Teatro-Fórum que visava discutir os efeitos dos cortes do governo no orçamento da assistência social. Na sessão específica ocorrida em Vancouver, os espect-atores foram instados a propor medidas legislativas após o término da peça. Ocorre que, na ausência de procedimentos deliberativos que estruturassem o debate, a sessão desembocou em propostas dispersas, longas e genéricas. Sem a obrigação de elaborar uma súmula mais ou menos clara e concisa, os participantes do Teatro-Fórum acabaram produzindo um relatório de “vinte e sete páginas com espaçamento simples [...]. As recomendações dizem respeito a uma pletora de preocupações, sendo que nem todas podiam ser endereçadas à Câmara de Vereadores de Vancouver (algo que o próprio relatório reconhece)” (Howe, 2009, p. 251). Não surpreendentemente, tal dispersão acabou impedindo que as propostas dos representados culminassem em algum projeto de lei por parte dos representantes (Howe, 2009, p. 252). Em contraste com o Teatro-Fórum, a Câmara na Praça não só visa explicitar o conflito e as diferenças que permeiam as relações entre os representados como impor esquemas deliberativos que de algum modo aglutinem as visões díspares dos cidadãos, de modo a permitir a elaboração de uma súmula capaz de gerar um projeto de lei que valerá para todos.

Boal (1996c, p. 121)BOAL, Augusto (1996c). Teatro legislativo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira . destaca que, enquanto rascunho de projeto de lei, a súmula não precisa ser excessivamente detalhada. A escritura final do projeto de lei ficará a cargo de um ou mais representantes. Quanto à presença destes no evento, Boal a considerava de importância palmar. Afinal, a Câmara na Praça tem como razão de ser aproximar representantes e representados e salvaguardar a “política democrática do [...] Mandato [representativo]” (Ibidem). Seja como for, é possível conjecturar que, na eventualidade dos representantes não conseguirem comparecer, o assessor legislativo ficaria encarregado de lhes relatar o desenrolar do debate público. Quanto à presença do assessor, Boal é categórico: a Câmara na Praça fica impossibilitada de ocorrer sem ele, visto ser ele quem ajudará a população com o conhecimento jurídico necessário para a elaboração da súmula (Ibidem).

Seria a Câmara na Praça simplesmente uma ressureição do mandato imperativo, prática recorrente na Idade Média que, como mostra Simone Goyard-Fabre (2003, p. 128-29)GOYARD-FABRE, Simone (2003). O que é democracia? São Paulo: Martins Fontes. Tradução de Cláudia Berliner., compelia o representante a seguir ao pé da letra as instruções dadas pelos representados? Os apontamentos acima já nos permitem responder que a Câmara na Praça não é a mesma coisa que o mandato imperativo. Ao mesmo tempo em que confere aos representados o poder de guiar os termos dos projetos de lei que os representantes dentro da assembleia deverão debater, a Câmara na Praça deixa a cargo dos representantes a escritura final do projeto de lei a ser votado na assembleia - o que, obviamente, abre a porta para a prática do compromisso.

A Câmara na Praça difere do mandato imperativo porque não impede que, ao ser confrontado com parlamentares de partidos opostos que contrariam partes das orientações expressas pelos constituintes na súmula, o representante ou representantes que foram escolhidos para verter a súmula em projeto de lei possam, eventualmente, alterar ou deixar de lado um ou outro ponto que os representados na praça levantaram. Em consonância com o aspecto democrático da representação, tais alterações poderiam suscitar a convocação de novas Câmaras na Praça nas quais os representados debateriam possíveis insatisfações que a prática do compromisso feita pelo representante lhes teria suscitado.27 27 O fato de a súmula não implicar em um mandato imperativo impede que seus autores subvertam o princípio da maioria (que é constitutivo da democracia). Afinal, acaso resultasse em um mandato imperativo, seria possível que os participantes da Câmara na Praça gerassem uma lei contrária à vontade da população em geral. Ao exigir que a súmula seja aprovada pela maioria dos representantes (eleitos por voto popular), Boal evita que os participantes da Câmara na Praça sequestrem, por assim dizer, a democracia. No modelo de representação democrática esboçado por Boal, a troca pública das opiniões dos representados conta com poder para decidir a pauta das discussões dos representantes diretamente. Ainda que não ditem os pormenores das leis promulgadas pela assembleia, os representados têm poder para decidir o teor geral dos projetos de leis que os representantes votam. O esquema político boalino, nesse sentido, garante aos cidadãos algo fundamental para a sustentação da representação democrática: o poder de direcionar e moldar a agenda de discussão dos representantes.28 28 Sobre a importância fulcral de tal poder para a democracia, ver Roger Cobb e Charles Elder (1971). Ao conceder ao povo o poder de decidir a pauta de discussões dos representantes, a teoria de Boal se coloca contra a tese que Robert Jackson (2007, p. 92) apresenta em Sovereignty: “Os cidadãos das democracias representativas não estão em posição de decidir qual lei ou política deverá ser implementada. Eles estão em posição de decidir quem, dentre os partidos e políticos disputando seus votos, deverão ser os representantes. O papel deles é esse”. Na contramão de Jackson, Boal entende que a soberania popular em uma democracia representativa requer o poder de decidir não só quem será eleito como também os termos gerais das leis e políticas públicas que serão implementadas na assembleia representativa.

Caso o projeto de lei finalizado na assembleia lhes desagrade por algum motivo, os representados podem criar novas súmulas que deverão ser debatidas e votadas pelos representantes. Na democracia representativa, o trabalho do representante é análogo ao de Sísifo: condenado a um vaivém constante, ele deve sempre retornar à praça pública para averiguar e traduzir juridicamente as inexauríveis insatisfações que a atividade dos legisladores está fadada a produzir entre o povo.

A representação democrática é um trabalho de tradução que nunca acaba, pois é difícil que uma lei promulgada na assembleia representativa não agrade um, poucos ou muitos setores da sociedade em detrimento de outros. O teatro legislativo boalino não pressupõe que a Câmara na Praça conseguirá acabar com a opressão de uma vez por todas. É justamente porque parte do reconhecimento de que a opressão é mais ou menos inerente à vida em sociedade que Boal (1996b, p. 53BOAL, Augusto (1996b). O arco-íris do desejo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. e 2003, p. 115)BOAL, Augusto (2003). O teatro como arte marcial. Rio de Janeiro: Garamond. conclama pela criação da Câmara na Praça, local em que a contestação do povo obtém um canal de acesso ao poder instituído. Ao dar vazão à democracia contestatória por meio da manutenção de um espaço onde o povo consegue criticar o poder vigente e propor a feitura de novas leis, a Câmara na Praça é conducente à concepção de liberdade como não dominação que Boal (2009, p. 78)BOAL, Augusto (2009). A estética do oprimido. Rio de Janeiro: Garamond . esposava.

Conclusão

Seguindo a crítica de Landemore, este artigo sustentou que o pensamento político de Urbinati merece reproches por conta de uma certa ingenuidade que o perpassa, qual seja, a de supor que a troca de juízos do povo fora da assembleia representativa consegue, mesmo sem mecanismos participativos que lhe deem poder para decidir diretamente as pautas debatidas no legislativo, cultivar uma relação circular com os representantes eleitos. Conforme aponta Landemore, no modelo de Urbinati, os representados fora da assembleia não participam efetivamente do poder político porque, por mais que deem palpites e ajuízem sobre as decisões tomadas pelo representante que elegeram, eles não têm poder para intervir decididamente sobre a agenda de discussões e os projetos de lei que o representante cria.

Nesse sentido, é necessário criar mecanismos de participação direta que concedam aos cidadãos comuns o poder de esboçar os termos perante os quais as leis serão votadas. Não podemos simplesmente esperar, como sugere Urbinati, que o poder de influência dos representados sobre os representantes emerja, espontaneamente, a partir de uma “política informal” criada pela advocacy de associações da sociedade civil (Urbinati apudLandemore, 2016, p. 146LANDEMORE, Hélène (2016). “A democracia representativa é realmente democrática? Entrevista com Bernard Manin e Nadia Urbinati”. DoisPontos, v. 13, n. 2, p. 143-156. Tradução de Fernanda Belo Gontijo, Gustavo Hessmann Dalaqua e Patrick Diener.). É necessário formalizar práticas institucionais que fomentem semelhante relação de influência para além do período de eleições (Hamilton, 2014, p. 2005HAMILTON, Lawrence (2014). Freedom is power: liberty through political representation. Cambridge: Cambridge University Press. e Peonidis, 2013, cap. 2PEONIDIS, Filimon (2013). Democracy as popular sovereignty. Lanham, MD: Lexington Books.). Tais práticas, ademais, precisam ser estruturadas de modo a proteger a igualdade política. Como exposto na terceira seção do texto, ao apregoar que a troca de opiniões na sociedade constitui um âmbito de participação no qual os cidadãos ajuízam mas não decidem sobre os temas políticos, Urbinati deixa a igualdade política sem proteção, porquanto não oferece mecanismos que impeçam a monopolização da conversa pública.

Nossa diferença com relação à Landemore (2017, p. 58) LANDEMORE, Hélène (2017). “Deliberative democracy as open, not (just) representative democracy”. Daedalus, v. 146, n. 3, p. 51-63. é que não pensamos que a adoção de mecanismos de participação direta nos dirija “para além” da representação. Longe de acusar a virada representativa de se deixar ludibriar por uma forma de governo fadada a ser antidemocrática, o intuito do corrente trabalho foi o de apenas advertir Urbinati sobre a necessidade de se criar mecanismos de participação direta que concedam aos representados o poder equânime de direcionar e decidir a pauta de discussões dos representantes. Posto de outra maneira, o propósito do trabalho foi o de apontar uma lacuna na teoria democrática urbinatiana e de preenchê-la mediante recurso ao pensamento político boalino. Criar mecanismos de participação direta que invistam os representados com o poder equânime de decidir a pauta de discussões dos representantes é indispensável para tornar a democracia compatível com a representação - algo que a Câmara na Praça mostrou quando foi implementada. Prática integrante do teatro legislativo inaugurado por Boal quando era vereador, a Câmara na Praça gerou a promulgação de treze leis dentro da assembleia representativa que foram elaboradas em parceria com os representados fora dela.29 29 A lista das leis aprovadas por meio da Câmara na Praça no munícipio do Rio de Janeiro entre 1993 e 1996 consta em Boal (1996c, p. 134-41). A Câmara na Praça também foi posta em prática e conseguiu produzir leis em outros lugares (Dinneen, 2013, p. 148-55). Não se trata, portanto, de um modelo teórico “impraticável”. 30 30 Usamos o termo “impraticável” para aludir à rejeição de Urbinati das Assembleias Primárias, sistema desenhado por Condorcet (1793) que, de maneira análoga à Câmara na Praça, permitia aos representados propor a feitura de novas leis e contestar as leis existentes. Ainda que aprove o esforço de Condorcet de democratizar a representação por meio das Assembleias Primárias, ao fim e ao cabo, Urbinati (2006b, p. 221) rejeita a proposta do filósofo por considerá-la “impraticável”.

O poder da Câmara na Praça para democratizar o governo representativo só não pôde ser melhor apreciado porque, verdade seja dita, os outros representantes não a adotaram. A Câmara na Praça decerto não consegue pôr em marcha uma representação efetivamente democrática quando a esmagadora maioria dos representantes a repudia e quando, nos pouquíssimos casos em que é utilizada, acaba sufocada por uma assembleia que, embora eleita pelo voto do povo, é de fato oligárquica. Nada disso, contudo, nega o poder que a Câmara na Praça tem de fortalecer a representação democrática. No pensamento político de Boal, encontramos um modelo teórico e prático capaz de aliar democracia e representação.

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  • VIEIRA, Mónica Brito (Ed.) (2017). Reclaiming representation: contemporary advances in the theory of political representation London: Taylor & Francis .
  • 3
    Este trabalho foi escrito com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), processo nº 2015/22251-0.
  • 4
    Para um recenseamento dos teóricos contemporâneos da democracia que têm dado ímpeto à virada representativa, vide a introdução de Mónica Brito Vieira (2017)VIEIRA, Mónica Brito (Ed.) (2017). Reclaiming representation: contemporary advances in the theory of political representation. London: Taylor & Francis .. Para um recenseamento historicamente mais denso dos pensadores políticos que reivindicaram a representação em prol da democracia, ver Debora Rezende de Almeida (2015, cap.1)ALMEIDA, Debora Rezende de (2015). Representação além das eleições: repensando as fronteiras entre Estado e sociedade. Jundiaí: Paco Editorial. e Pierre Rosanvallon (2008)ROSANVALLON, Pierre (2008). “L’universalisme démocratique : histoire et problèmes.” Esprit, n. 1, p. 104-120..
  • 5
    Sobre o silêncio em torno da teoria de Boal, ver Frances Babbage (2004, p. 36)BABBAGE, Frances (2004). Augusto Boal. London: Routledge.. O mesmo não se diz dos experimentos teatrais do autor que, como Babbage mostra, foram estudados e aplicados em vários países.
  • 6
    Neste artigo, fazemos uma distinção entre “governo representativo” e “democracia representativa”. Pelo primeiro, entendemos qualquer regime político cujo governo se dá por indivíduos que declaram, quer verdadeiramente ou não, representar o povo. Pelo segundo, denotamos o regime político cujo governo é ocupado por indivíduos que de fato representam o povo. Ou seja: toda democracia representativa é um governo representativo, mas nem todo governo representativo é uma democracia representativa.
  • 7
    Uma versão resumida dos argumentos contidos neste livro foi traduzida para o português (Urbinati, 2006bURBINATI, Nadia (2006b). Representative democracy: principles & genealogy. Chicago: University of Chicago Press.).
  • 8
    Seguindo Urbinati (2014, p. 22URBINATI, Nadia (2014). Democracy disfigured: opinion, truth, and the people. Cambridge, Mass.: Harvard University Press .), não faremos distinção entre “juízo” e “opinião”. Outrossim, empregaremos os termos “vontade” e “decisão” indiscriminadamente.
  • 9
    Sobre a defesa urbinatiana da representação como advocacy, ver Urbinati (2000)URBINATI, Nadia (2000). “Representation as advocacy: a study of democratic deliberation”. Political Theory, v. 28, n. 6, p. 758-786..
  • 10
    Cabe notar que Barber não mais opõe a democracia à representação tout court (cf. a entrevista que ele concedeu a Michael Saward, 2012, p. 35-6SAWARD, Michael (2012). “A conversation with Benjamin Barber”, in Browning, Gary; Prokhovnic, Raia; Dimova-Cookson, Maria (Eds.). Dialogues with contemporary political theorists. Basingstoke, Hampshire: Palgrave .). Cabe notar também que nem todos os participacionistas dos anos setenta e oitenta opunham representação e participação.
  • 11
    Subscreve-se, aqui, a leitura mais consolidada de que Schumpeter seria um minimalista que compreendia a democracia como o regime no qual o papel do povo consiste primordialmente em eleger as elites políticas que os governarão (Miguel, 2014, cap. 1MIGUEL, Luis Felipe (2014). Democracia e representação: territórios em disputa. São Paulo: Unesp.). Para uma interpretação diferente, ver John Medearis (2001)MEDEARIS, John (2001). Joseph Schumpeter’s two theories of democracy. Cambridge, Mass.: Harvard University Press..
  • 12
    Em Democracy Disfigured, Urbinati (2014, p. 4, 53-9, 215)URBINATI, Nadia (2014). Democracy disfigured: opinion, truth, and the people. Cambridge, Mass.: Harvard University Press . reconhece que a concentração do poder midiático atrapalha o funcionamento adequado da soberania diárquica. Ademais, em um de seus últimos escritos sobre representação, Urbinati (2019, p. 64)URBINATI, Nadia (2019). “Judgment alone”, in Castiglione, Dario; Pollak, Johannes (Eds.).Creating political presence: the new politics of democratic representation. Chicago: University of Chicago Press . admite que o uso atual da internet atravanca a efetivação do modelo de democracia representativa que defende. Entretanto, ainda que os reconheça, o modo como Urbinati atenta para os problemas reais que obviam a representação democrática é insuficiente no sentido em que não a levam a revisar sua cisão rígida entre juízo e vontade. Conforme aponta Landemore (2017)LANDEMORE, Hélène (2017). “Deliberative democracy as open, not (just) representative democracy”. Daedalus, v. 146, n. 3, p. 51-63., ao postular que a interação diária dos juízos populares na esfera pública não deve contar com qualquer poder formal para decidir as pautas que serão de fato debatidas pelos representantes na assembleia, a partição urbinatiana entre juízo e vontade aborta a emergência da representação democrática.
  • 13
    Endossamos, neste artigo, a definição de participação oferecida por Luis Felipe Miguel (2018, p. 198)MIGUEL, Luis Felipe (2018). Dominação e resistência: desafios para uma política emancipatória. São Paulo: Boitempo. como ação política que detém de “poder decisório”. É nesse sentido que empregaremos o termo doravante.
  • 14
    Com efeito, mesmo nos momentos em que reconhece a concentração do poder midiático como um problema para a soberania diárquica (cf. supra nota dez), Urbinati hesita em propor a institucionalização de práticas que, concedendo aos representados um poder de impacto político equânime para além do período eleitoral, minorem tal problema. O modo como a autora tergiversa, ao fim da seção sobre o poder da voz na democracia representativa no primeiro capítulo de Democracy Disfigured, é exemplar a esse respeito: “Finalmente, [a concepção diárquica da soberania] sugere que um governo democrático deve sentir a responsabilidade de regular o fórum público das opiniões de modo a reforçar que todos tenham ao menos uma oportunidade igual de exercitar alguma influência no sistema político” (Urbinati, 2014, p. 58, grifo nossoURBINATI, Nadia (2014). Democracy disfigured: opinion, truth, and the people. Cambridge, Mass.: Harvard University Press .). Os itálicos na frase precedente servem para destacar o caráter reticente e tímido da proposta de Urbinati (cf. Miguel, 2014, p. 249MIGUEL, Luis Felipe (2014). Democracia e representação: territórios em disputa. São Paulo: Unesp.). Desnecessário dizer, sugerir a um governo que ele deve sentir a responsabilidade de implementar X é muito diferente do que instá-lo a fazer X.
  • 15
    A representação é incontornável nas comunidades politicas contemporâneas não só porque permite que agentes separados espacial e temporalmente possam coordenar ações políticas, como também porque ela permanece operante mesmo em assembleias políticas presenciais (Dahl, 2000, p. 108DAHL, Robert (2000). On Democracy. New Haven: Yale University Press.). Quando, por exemplo, uma trabalhadora participa de um conselho de saúde para exigir que o posto de saúde do seu bairro funcione aos domingos, ela age como uma representante das trabalhadoras. Nas assembleias presenciais ou arenas digitais em que os cidadãos participam diretamente, a representação permanece em operação sempre que as pautas que se discutem são abordadas sob uma perspectiva coletiva - ou ainda, sob uma perspectiva política - e não meramente idiossincrática.
  • 16
    Nesse sentido, a abordagem de Boal opõe-se a de Jeffrey E. Green (2010)GREEN, Jeffrey Edward (2010). The eyes of the people: democracy in an age of spectatorship. Oxford: Oxford University Press.. Ambos partem da mesma constatação: a de que nos governos representativos atuais os representados constituem uma massa de espectadores cuja principal função é assistir à performance dos representantes. A diferença é que, ao passo que Boal tenta reverter esse quadro por meio da figura do espect-ator, Green (2010, p. 6)GREEN, Jeffrey Edward (2010). The eyes of the people: democracy in an age of spectatorship. Oxford: Oxford University Press. admoesta os teóricos da democracia a respeitar a estrutura atual da experiência política da massa espectadora: “Por que não, em vez disso [i.e., em vez de aceitar a posição de espectador a que os representados foram relegados nos governos representativos], procurar maneiras de transformar os espectadores em atores? Uma razão é que [...] a filosofia política de cunho democrático tem uma obrigação especial de desenvolver princípios políticos de uma maneira que respeite a estrutura habitual da experiência política”. Na esteira de Boal, poder-se-ia redarguir que a obrigação de uma filosofia política de cunho democrático é não a de resignar-se ao existente e desenvolver princípios que mantenham inalterada a estrutura atual da vida política a que estamos habituados, mas sim a de elaborar uma teoria que nos ajude a mudar essa estrutura em prol de outra mais democrática.
  • 17
    Embora a definição do autor possa dar a impressão de que o teatro legislativo deveria restringir-se ao nível municipal, cabe apontar que o próprio Boal (2006, p. 17)BOAL, Augusto (2006). The aesthetics of the oppressed. London: Routledge . Tradução de Adrian Jackson. acabou mais tarde utilizando técnicas do teatro legislativo para democratizar a representação no nível nacional. Recentemente, o teatro legislativo (incluso a Câmara na Praça) tem sido utilizado no âmbito da representação nacional por José Moura Soeiro, deputado, reeleito em 2015, à Assembleia da República de Portugal (cf. Soeiro, 2019SOEIRO, José (2019). “Legislative theatre: can theatre reinvent politics?”, in Howe, Kelly; Boal, Julian; Soeiro, José. The Routledge companion to theatre of the oppressed. Abingdon: Routledge. ). No Brasil, o teatro legislativo é usado atualmente na Câmara Municipal de Belo Horizonte pelas vereadoras do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), Áurea Carolina e Cida Falabella, que criaram a “Gabinetona”, prática que democratiza o mandato dos representantes ao compor os cargos comissionados que lhes são concedidos por meio de chamada pública. Para uma análise das semelhanças entre o teatro legislativo de Boal e a “Gabinetona”, cf. Noeli Turna da Silva (2017)DA SILVA, Noeli Turle (2017). “Teatro legislativo e racismo: arte, política e militância”.Repertório, n. 29, p. 146-162..
  • 18
    Este ponto é ignorado por Baz Kershaw (2001, p. 219)KERSHAW, Baz (2001). “Legislative Theatre. By Augusto Boal. London: Routledge, 1998. Pp. 254. £ 14.99”. Theatre Research International, v. 26, n. 2, p. 218-219. e Tómas Motos (2010)MOTOS, Tomás (2010). “Construyendo ciudadanía creativamente: el teatro legislativo de Augusto Boal”. Ñaque: Teatro, Expresión, Educación, n. 61, p. 18-26., que opõem o teatro legislativo boalino à democracia representativa.
  • 19
    Sobre a caracterização da “politização” como campo do conflito, ver Boal (2004)BOAL, Augusto (2004). “Cultura: entrevista Augusto Boal, por Rose Spina e Walnice Nogueira Galvão”. Teoria e Debate, n. 56.. O papel de destaque que Boal confere ao conflito na política democrática levou Geraldine Pratt e Caleb Johnston (2007, p. 107)PRATT, Geraldine; JOHNSTON, Caleb (2007). “Turning theatre into law, and other spaces of politics”. Cultural Geographies, v. 14, n. 1, p. 92-113., a afirmar que o teatro legislativo “cria uma esfera pública agonística” próxima da vertente agonística da democracia. Com efeito, podemos dizer que o teatro legislativo boalino realiza a arte como intervenção agonística no espaço público que Chantal Mouffe (2013, cap. 5)MOUFFE, Chantal (2013). Agonistics: thinking the world politically. London: Verso Books. considera parte essencial de uma teoria agonística da democracia. Na Estética do oprimido, Boal (2009, p. 71-2)BOAL, Augusto (2009). A estética do oprimido. Rio de Janeiro: Garamond . afirma que sua concepção da política como campo do conflito remonta a Maquiavel. Sobre a recepção de Maquiavel na teoria de Boal, ver Jane Milling and Graham Ley (2000, cap. 6)MILLING, Jane; LEY, Graham (2000).Modern theories of performance: from Stanislavski to Boal. Basingstoke, Hampshire: Palgrave..
  • 20
    Sobre o modo como a dramatização teatral facilita a reflexividade da deliberação democrática, cf. Katherine Goktepe (2018, p. 381)GOKTEPE, Katherine (2018). “‘Sometimes I mean things so much I have to act’: theatrical acting and democracy”. Constellations, v. 25, n. 3, p. 373-387. .
  • 21
    Ademais, o caráter mais solto da conversa pública que se desenrola nas reuniões usuais dos Núcleos a torna menos apropriada para a elaboração de uma proposta de política pública clara e concisa (cf. infra nota vinte e quatro).
  • 22
    A lista de passos que enumeramos a seguir não deve ser vista como uma cartilha inflexível, pois todas as técnicas do teatro legislativo (o que inclui a Câmara na Praça) podem ser contestadas por aqueles que as aplicam na prática. Daí que Boal (1996c)BOAL, Augusto (1996c). Teatro legislativo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira . exorte os leitores, em várias passagens do livro, a lhe mandar cartas relatando suas experiências com o teatro legislativo e sugerindo possíveis mudanças.
  • 23
    Cabe notar, todavia, que durante o mandato de Boal, quase todas convocações da Câmara na Praça ocorreram por iniciativa do povo (Dinneen, 2013, p. 148DINNEEN, Mark (2013). “Teatro legislativo: estimulando a ciudadanía ativa”. Teatro: Revista de Estudios Culturales / A Journal of Cultural Studies, n. 26, p. 141-161.).
  • 24
    A democracia para Boal exige não só isonomia - igualdade perante a lei, visível, por exemplo, na concessão de um voto para cada eleitor - como também isegoria, isto é, a igual capacidade de fala no que tange o mundo da política. “Para mim, na democracia [...] qualquer um pode dizer: ‘Pare, eu quero poder falar’. Isto que é democracia, isto que é liberdade, e é por isso que eu luto” (Boal apudMorelos, 1999, p. 38MORELOS, Ronaldo (1999). Symbols and power in theatre of the oppressed. Dissertação de Mestrado (273ff). Queensland University of Technology, Academy of the Arts.). Repare que a recuperação do antigo ideal democrático da isegoria não significa, reiteremos, que Boal fosse contra a representação. Conforme explica o autor na Estética do oprimido, ao buscar fazer da pólis ateniense um modelo inspirador para as democracias representativas contemporâneas, o propósito é não abolir mas sim “diminui[r] as distâncias entre base [sc. os representados] e vértice [sc. os representantes]” (Boal, 2009, p. 132 e cf. 1996a, p. 51BOAL, Augusto; PEREIRA BEZERRA, Antonia (1999). “Entretien avec Augusto Boal”.Caravelle (1988-), n. 73, p. 241-252.).
  • 25
    Isso é especialmente recomendável nos casos em que os participantes sabem que a súmula que fizeram pode receber forte oposição de alguns representantes. Nesse caso, é provável que, ao verter a súmula em projeto de lei, o representante tenha de alterar um ou outro ponto de modo a angariar votos suficientes para que o projeto seja aprovado e vire lei. Voltaremos a esse ponto adiante quando explicarmos que a Câmara na Praça não nega a prática do compromisso (compromise). Sobre a importância da prática do compromisso em uma democracia representativa, cf. “Essência e valor da democracia” de Hans Kelsen (1993)KELSEN, Hans (1993). A democracia. São Paulo: Martins Fontes . Tradução de Vera Barkow..
  • 26
    O estudo de caso feito por Kelly Howe (2009)HOWE, Kelly (2009). “Embodied think tanks: practicing citizenship through Legislative Theatre”. Text and Performance Quarterly, v. 29, n. 3, p. 239-257. sobre a adoção do Teatro-Fórum pelo Practicing Democracy - projeto de uma companhia teatral apoiado pela Câmara de Vereadores de Vancouver, Canadá - ilustra bem como a ausência de procedimentos deliberativos claros pode fazer com que a sugestão de leis por parte dos representados deixe de gerar resultados concretos. Membros do Practicing Democracy convocaram os cidadãos de Vancouver para uma sessão de Teatro-Fórum que visava discutir os efeitos dos cortes do governo no orçamento da assistência social. Na sessão específica ocorrida em Vancouver, os espect-atores foram instados a propor medidas legislativas após o término da peça. Ocorre que, na ausência de procedimentos deliberativos que estruturassem o debate, a sessão desembocou em propostas dispersas, longas e genéricas. Sem a obrigação de elaborar uma súmula mais ou menos clara e concisa, os participantes do Teatro-Fórum acabaram produzindo um relatório de “vinte e sete páginas com espaçamento simples [...]. As recomendações dizem respeito a uma pletora de preocupações, sendo que nem todas podiam ser endereçadas à Câmara de Vereadores de Vancouver (algo que o próprio relatório reconhece)” (Howe, 2009, p. 251HOWE, Kelly (2009). “Embodied think tanks: practicing citizenship through Legislative Theatre”. Text and Performance Quarterly, v. 29, n. 3, p. 239-257.). Não surpreendentemente, tal dispersão acabou impedindo que as propostas dos representados culminassem em algum projeto de lei por parte dos representantes (Howe, 2009, p. 252HOWE, Kelly (2009). “Embodied think tanks: practicing citizenship through Legislative Theatre”. Text and Performance Quarterly, v. 29, n. 3, p. 239-257.). Em contraste com o Teatro-Fórum, a Câmara na Praça não só visa explicitar o conflito e as diferenças que permeiam as relações entre os representados como impor esquemas deliberativos que de algum modo aglutinem as visões díspares dos cidadãos, de modo a permitir a elaboração de uma súmula capaz de gerar um projeto de lei que valerá para todos.
  • 27
    O fato de a súmula não implicar em um mandato imperativo impede que seus autores subvertam o princípio da maioria (que é constitutivo da democracia). Afinal, acaso resultasse em um mandato imperativo, seria possível que os participantes da Câmara na Praça gerassem uma lei contrária à vontade da população em geral. Ao exigir que a súmula seja aprovada pela maioria dos representantes (eleitos por voto popular), Boal evita que os participantes da Câmara na Praça sequestrem, por assim dizer, a democracia.
  • 28
    Sobre a importância fulcral de tal poder para a democracia, ver Roger Cobb e Charles Elder (1971)COBB, Roger; ELDER, Charles (1971). “The politics of agenda-building: an alternative perspective for modern democratic theory”. The Journal of Politics, v. 33, n. 4, p. 892-915.. Ao conceder ao povo o poder de decidir a pauta de discussões dos representantes, a teoria de Boal se coloca contra a tese que Robert Jackson (2007, p. 92)JACKSON, Robert (2007). Sovereignty: evolution of an idea. Cambridge: Polity Press. apresenta em Sovereignty: “Os cidadãos das democracias representativas não estão em posição de decidir qual lei ou política deverá ser implementada. Eles estão em posição de decidir quem, dentre os partidos e políticos disputando seus votos, deverão ser os representantes. O papel deles é esse”. Na contramão de Jackson, Boal entende que a soberania popular em uma democracia representativa requer o poder de decidir não só quem será eleito como também os termos gerais das leis e políticas públicas que serão implementadas na assembleia representativa.
  • 29
    A lista das leis aprovadas por meio da Câmara na Praça no munícipio do Rio de Janeiro entre 1993 e 1996 consta em Boal (1996c, p. 134-41)BOAL, Augusto (1996c). Teatro legislativo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira . . A Câmara na Praça também foi posta em prática e conseguiu produzir leis em outros lugares (Dinneen, 2013, p. 148-55DINNEEN, Mark (2013). “Teatro legislativo: estimulando a ciudadanía ativa”. Teatro: Revista de Estudios Culturales / A Journal of Cultural Studies, n. 26, p. 141-161.).
  • 30
    Usamos o termo “impraticável” para aludir à rejeição de Urbinati das Assembleias Primárias, sistema desenhado por Condorcet (1793)CONDORCET, Jean-Antoine-Nicolas de Caritat (1793). Plan de constitution présenté à la Convention Nacionale : les 15 et 16 février 1793, l’an II de la République : imprimé par ordre de la Convention Nationale. Paris: Imprimerie Nationale. que, de maneira análoga à Câmara na Praça, permitia aos representados propor a feitura de novas leis e contestar as leis existentes. Ainda que aprove o esforço de Condorcet de democratizar a representação por meio das Assembleias Primárias, ao fim e ao cabo, Urbinati (2006b, p. 221)URBINATI, Nadia (2006b). Representative democracy: principles & genealogy. Chicago: University of Chicago Press. rejeita a proposta do filósofo por considerá-la “impraticável”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Jun 2019
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2019

Histórico

  • Recebido
    08 Fev 2019
  • Aceito
    05 Mar 2019
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