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Trabalho, alienação e fetichismo: categorias para a compreensão marxiana do Estado e do político

Work, alienation and fetishism: categories for the Marxian understanding of the State and the Political

Resumos

O artigo propõe uma chave de leitura categorial para a compreensão do pensamento de Marx sobre o Estado e a política. Trabalho, alienação e fetichismo são apresentados como categorias que permitem desvendar o sentido imanente das considerações do autor sobre o assunto. O texto argumenta que tanto a concepção de trabalho como práxis quanto a crítica à forma específica do trabalho no capitalismo comparecem na formulação da crítica marxiana às formas sociais modernas do Estado e da política.

Estado; política; trabalho; alienação; fetichismo; valor


The article offers conceptual coordinates to understand Marx's thought about the State and the political sphere. Labor, alienation and fetishism are presented as categories that allow grasping the immanent meaning of the author's considerations on the subject. The text argues that the general conception of work as praxis and the critique of the specific form of work in capitalism are present in the construction of the Marxian critique of the modern social forms of State and politics.

State; politics; labor; alienation; fetishism; value


Investigar a contribuição deixada por Marx para a compreensão do Estado capitalista e da moderna esfera política implica invariavelmente partir da observação de que o autor jamais sistematizou uma teoria a respeito. Constatação banal, pode-se dizer, mas que constitui a questão preliminar para toda pesquisa interessada em entender o Estado moderno a partir de suas relações com o conjunto de determinações da vida social. Afinal, seja criticando ou sustentando o legado de Marx, uma tal pesquisa não pode se furtar à seguinte pergunta: por quais meios o pensamento marxiano sobre o Estado e a política deve ser reconstituído e apreciado? A pertinência de todo o esforço crítico de Marx, não apenas com relação ao Estado, está ligada a esse conjunto de problemas.

Coerente ou contraditória, implícita ou declarada, positiva ou crítica, todo autor dedicado ao campo das ciências sociais carrega uma visão sobre a dimensão política da sociedade, ainda que não tenha escrito especificamente sobre o tema. Qualquer descrição minimamente abrangente do mundo social contém, mesmo que apenas in nuce, elementos de uma concepção sobre a forma do ser em comunidade ou, mais especificamente, sobre a constituição da politicidade. Por isso, o melhor modo de acessar a razão e a pertinência das concepções de Marx sobre o Estado e a política é desvendar o alcance de seu projeto crítico. Pode-se dizer então que o estudo da teoria de Marx sobre o Estado deve ser conduzido à luz da investigação sobre o sentido amplo da teoria social deixada pelo autor. Uma pesquisa assim conduzida implica identificar o núcleo gerador da crítica marxiana e pressupõe, portanto, uma unidade da crítica de Marx às formas do ser por ele descritas.

Diante disso, e de volta à indagação formulada acima, tem-se que a reconstituição da concepção marxiana da política e do Estado não deve se limitar à coleta de elementos textuais ligados diretamente ao tema. A unidade do pensamento político marxiano, caso exista, não virá à tona somente a partir dos escritos em que o autor versa especificamente sobre o Estado: ela deverá ser tributária da unidade de seu pensamento. Por isso - e dado o caráter fragmentário e não sistemático dos escritos marxianos a respeito - a coerência buscada textualmente para a teoria de Marx sobre a esfera político-estatal só pode ser confirmada se for, ao mesmo tempo, teoricamente justificada no quadro amplo de sua teoria social. Não há teoria política sem teoria social. Se for possível demonstrar que há uma direção unitária e coerente na ampla crítica de Marx às formas sociais capitalistas, será possível perceber em que consiste sua teoria do Estado - e assim revelar que ambas as questões são apenas ângulos distintos do mesmo problema. O argumento deve, portanto, esclarecer a relação entre as categorias que compõem o núcleo da crítica social de Marx.

O objetivo deste artigo é propor uma chave de leitura categorial para a compreensão do pensamento de Marx sobre o Estado e a política juntamente com a identificação do núcleo de sua teoria social. Para isso, é preciso mais uma vez reexaminar alguns dos textos seminais do autor. Como a análise a seguir indica, tanto a concepção de trabalho como práxis quanto a crítica à forma específica do trabalho no capitalismo comparecem na formulação da crítica marxiana às formas sociais modernas, Estado e política inclusos.

Alienação, fetichismo e a unidade da crítica marxiana

Muitos se dedicaram à tarefa de desenvolver aquilo que em Marx permaneceu fragmentário. Inventariando o tratamento dispensado pelo autor ao Estado e à política, buscou-se geralmente dar conta da unidade entre crítica ao capitalismo e teoria do Estado. Esforços pertinentes se debruçaram sobre a interação entre base e superestrutura, a efetividade da instância estatal, a especificidade da esfera política no capitalismo e suas manifestações particulares. De forma geral, essas considerações caminharam no sentido de identificar (ou refutar) uma unidade do pensamento político de Marx no interior de sua crítica ao capitalismo. Nesse veio, a teoria do capitalismo aparece como produtora de uma teoria do Estado (ou ligada à ausência desta). Método convincente, tanto mais quando se tem em mente aquilo que se costuma entender como o sentido de determinabilidade da abordagem materialista, isto é, o que se supõe em geral como a primazia do econômico sobre o político. A grande dificuldade, contudo, aparece quando se trata de explicar como a crítica ao Estado antecede, na trajetória pessoal de Marx, a crítica específica às engrenagens econômicas do capital. Assim, muitas das abordagens que investigam a unidade do pensamento político do autor permanecem, em vários matizes, presas entre a suposição de uma ruptura epistemológica e a afirmação de uma inconsistência entre os "muitos Marx".

Diante disso, pouco foi elucidado a respeito de outra unidade, esta sim ampla e decisiva: aquela existente entre a compreensão marxiana da esfera política e o movimento global oferecido pela crítica do autor às formas de sociabilidade modernas - ou seja, a unidade entre a teoria política de Marx e o núcleo gerador de sua crítica ao capitalismo. Um dos motivos da irresolução da teoria marxista do Estado está ligada ao fato de que a busca por uma unidade da teoria política marxiana (ou sua refutação) fracassa sempre que se deixa de lado a unidade maior do pensamento do autor. Dito de outro modo, é impossível estabelecer a unidade do pensamento político de Marx (assim como a própria unidade de sua crítica ao capitalismo) sem que se estabeleça aunidade crítica do pensamento marxiano.

Nessa perspectiva, contempla-se não mais uma teoria do capitalismo passível de engendrar uma correspondente teoria do Estado, mas uma teoria social que toma a forma da crítica às engrenagens econômicas do capitalismo e que transborda, ainda que num grau textualmente menos desenvolvido, numa crítica à dimensão política da sociedade mercantil. Na elaboração marxiana, o sentido da crítica econômica e o sentido da crítica política residem ambos na unidade de sua crítica à sociabilidade moderna.

Na busca pela unidade crítica da teoria de Marx, pode-se recolher do próprio autor a indicação de um dos momentos decisivos de sua trajetória intelectual. Depois de confessar que os estudos realizados até o período em que trabalhou na Gazeta Renana não lhe permitiam emitir um juízo claro sobre os "interesses materiais", (Marx 1982 [1859]______ (1982 [1859]). Para a crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural., p. 24-5) comenta:

O primeiro trabalho que empreendi para resolver as dúvidas que me assaltavam foi uma revisão crítica da Filosofia do direito de Hegel, trabalho cuja introdução apareceu nos Anais Franco-alemães, publicados em Paris em 1844. Minhas investigações me conduziram ao seguinte resultado: as relações jurídicas, bem como as formas do Estado, não podem ser explicadas por si mesmas, nem pela chamada evolução geral do espírito humano; essas relações têm, ao contrário, suas raízes nas condições materiais de existência, em suas totalidades, condições estas que Hegel, a exemplo dos ingleses e dos franceses do século XVIII, compreendia sob o nome de "sociedade civil". Cheguei também à conclusão de que a anatomia da sociedade burguesa deve ser procurada na economia política.

O trecho permite entrever claramente o ponto em que o próprio autor situa o momento decisivo de sua evolução teórica: a Crítica da filosofia do direito de Hegel é descrito como o "primeiro trabalho" empreendido para resolver as dúvidas que o assediavam. De fato, essa etapa configura um salto qualitativo no pensamento marxiano: a partir daí, como se pode ver no decorrer da citação, forja-se o núcleo de sua compreensão crítica sobre o mundo.

Como será exposto, aquilo que desponta como o aspecto mais persistente da produção marxiana reside na crítica ao estranhamento. Muitas vezes, porém, o caráter central dessa crítica se torna invisível diante da dificuldade de compreender a relação entre duas categorias utilizadas por Marx em sua obra: alienação e fetichismo. O problema se instala pelo fato de que a alienação é geralmente referida nos chamados textos de juventude, enquanto o fetichismo marca indiscutivelmente sua obra-prima,O capital. Isso faz supor uma modificação importante que, na trajetória marxiana, parece implicar a descaracterização do problema da alienação e a configuração, com base em outro feixe de determinações, da questão do fetichismo1 1 É o caso de Jessop 1982, (p. 25), que caracteriza os anos 1843-1844 como aqueles da "juventude hegeliano-jacobina" de Marx. Artous (1999) também enxerga uma superação da categoria alienação com o tratamento marxiano do fetichismo. . Interpretação corrente que encontra contraponto em autores como Althusser, que colapsa ambos os termos e relega tanto um quanto outro ao obscuro universo do idealismo hegeliano, pecado de origem que perseguiria Marx mesmo em sua obra madura2 2 Althusser 2013 [1969], (p. 85) chega a recomendar que a consideração de toda a seção I do primeiro livro de O capital seja deixada de lado em uma primeira leitura da obra, técnica de análise que se justificaria, segundo ele, pelo fato de a referida seção conter o "último vestígio da influência hegeliana, e dessa vez flagrante e extremamente prejudicial (já que todos os teóricos da 'reificação' e da 'alienação' encontraram nele com o que 'fundar' suas interpretações idealistas do pensamento de Marx): a teoria do fetichismo" (Althusser, 2013 [1969], p. 88). .

A visão aqui defendida sustenta a unidade positiva entre alienação e fetichismo, isto é: nem modificação que descaracteriza a unidade, nem coincidência que invalida ambas as categorias. Porém, mesmo assumindo uma ligação positiva entre alienação e fetichismo, não se pode considerar que toda a teoria social de Marx esteja contida ali onde aparece a primeira crítica à alienação, ou seja, nos textos de 1843-1844. Sabendo-se, por exemplo, que uma elaboração adequada sobre o Estado não pode se afirmar sem uma compreensão ampla da sociabilidade moderna, a teoria da alienação, tal como consta nos escritos de juventude, pode designar apenas um dos momentos da compreensão do autor sobre a política.

Mas também seria imprudente ignorar que a análise dessas obras de juventude é capaz de iluminar sob um ângulo particular elementos que participam da camada mais profunda do pensamento marxiano: justamente aquela que (como indicou a citação) contém o núcleo gerador da subsequente crítica à economia política e ao capitalismo. Por isso, quando se desconhece, na obra madura de Marx, a presença de determinações ligadas à categoria alienação, corre-se o risco de desconhecer a própria pertinência de sua crítica radical ao capitalismo. Para não incorrer no problema, no entanto, é preciso captar corretamente o sentido da alienação a que se refere Marx nos chamados textos de juventude.

No que se refere à relação entre fetichismo e alienação, sustenta-se aqui que O capital, através da problemática do fetichismo, configura, no interior da análise das engrenagens capitalistas, a mesma dimensão crítica estabelecida nos textos de juventude, mas de modo específico e aprofundado. Em outras palavras, defende-se que tanto a alienação quanto o fetichismo são vertentes de uma mesma crítica: aquela dirigida contra o estranhamento, contra estruturas sociais autonomizadas que aprisionam o agir humano no interior de seus procedimentos reprodutivos autocentrados. Aqui, o estranhamento é tomado como unidade que reúne as categorias da alienação e do fetichismo, e é essa unidade que confere o sentido amplo do movimento crítico marxiano.

O argumento que sustenta essa tese é construído a partir de três momentos diferentes da produção marxiana: os textos de 1843-1844, que antecedem o estudo da economia política; a posição do problema em O capital; e a evolução da temática em alguns dos escritos posteriores a sua obra-prima. Este artigo não pretende (nem poderia) ser uma exegese completa do assunto na obra de Marx. Optou-se por favorecer a análise das obras em que é possível capturar melhor os elementos categoriais em questão. Textos como o Manifesto do Partido Comunista (1848) e O 18 de brumário de Louis Bonaparte (1852), bem como a numerosa quantidade de artigos publicados na Nova Gazeta Renana, se preciosos para a compreensão detalhada da crítica de Marx, oferecem análises menos significativas no que se refere ao desenvolvimento conceitual que se quer explorar aqui3 3 É importante notar que os Manuscritos econômico-filosóficos (1844) também oferecem elementos importantes para a compreensão das categorias marxianas aqui discutidas. Por limitação de espaço, no entanto, a obra não será abordada. . É a necessidade de compreender o caráter da categoria estranhamento, condição primeira para a articulação do conjunto da produção marxiana em torno do Estado e da política, que justifica a ausência da análise de textos que, numa exposição mais extensa, seriam efetivamente incontornáveis.

O sentido da categoria alienação nas críticas de 1843-1844

O percurso efetivamente marxiano de Marx inicia-se a partir do rompimento com os jovens hegelianos. Após um período como editor-chefe da Gazeta Renana, jornal que ecoava a voz da burguesia liberal na queda de braço contra o absolutismo prussiano, Marx se recolhe ao gabinete de estudos e formula, através do manuscrito conhecido como Critica da filosofia do direito de Hegel (2010a [1843]), a primeira das críticas globais ao sistema hegeliano, sob cuja influência ele se encontrava até então. A conquista teórica dessa etapa, como argumentam autores como Lukács (2009)LUKÁCS, György (2009). "O jovem Marx", em O jovem Marx e outros escritos de filosofia. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ., Artous (1999)ARTOUS, Antoine (1999). Marx, l'État et la politique. Paris: Syllepse., (Chasin 2000CHASIN, José (2000). "Marx: a determinação ontonegativa da politicidade". Ensaios Ad Hominem, n. 1, tomo III ("Política"), p. 129-61.; 2009______ (2009). Marx: estatuto ontológico e resolução metodológica. São Paulo, Boitempo.) e (Kurz 2002KURZ, Robert (2002). O fim da política: teses sobre a crise do sistema de regulação da forma da mercadoria. Disponível em: http://obeco.planetaclix.pt/rkurz105.htm. Acesso em: 6 mar. 2014.
http://obeco.planetaclix.pt/rkurz105.htm...
; 2011______ (2011). Não há Leviatã que salve: teses para uma teoria crítica do Estado. Primeira parte. Disponível em: http://o-beco.planetaclix.pt/rkurz390.htm. Acesso em: 6 mar. 2014.
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), é decisiva. Marx questiona o sistema hegeliano demonstrando o caráter artificialmente lógico das resoluções ali contidas. O combate nesse manuscrito é especificamente contra a racionalidade atribuída por Hegel ao sistema da monarquia constitucional. Opondo-se à proposição de que o ser da sociedade civil encontra sua verdade racional no ser do Estado, o autor atinge os fundamentos do idealismo hegeliano. "A Ideia é subjetivada e a relação real da família e da sociedade civil com o Estado é apreendida como sua atividade interna imaginária. Família e sociedade civil são os pressupostos do Estado; elas são os elementos propriamente ativos; mas, na especulação, isso se inverte" (Marx, 2010a______ (2010a [1843]). Crítica da filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo., p. 30).

Marx reconhece o mérito de Hegel em superar a compreensão do desenvolvimento humano como uma ordem natural ou cósmica. Afinal, o direito e a política hegelianos inscrevem o evolver do homem no desdobrar-se de um Espírito laico. Isso faz do mestre de Iena o primeiro a incorporar conscientemente a história como elemento ativo de um sistema filosófico totalizante. A grandeza dessa percepção, todavia, deixa-se enredar num voluntarismo lógico de lastro histórico evidente: o da modernidade que segue a Revolução Francesa. Como diz o provérbio, tanto o vinho quanto a lógica perdem seus efeitos benéficos quando usados em excesso. Assim, constatando o aspecto problemático fundamental do construto em questão, (Marx 2010a______ (2010a [1843]). Crítica da filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo., p. 39) sentencia: em Hegel, "o momento filosófico não é a lógica da coisa, mas a coisa da lógica. A lógica não serve à demonstração do Estado, mas o Estado serve à demonstração da lógica".

Marx, no entanto, não critica apenas o aspecto logicista da resolução hegeliana: ainda que não constitua seu objeto de estudo particular, ele descortina, através dessa crítica teórica, aspectos importantes da configuração real da sociedade moderna.

O atomismo, em que a sociedade civil se precipita no seu ato político, resulta necessariamente de que a comunidade, o ser em comum no qual existe o indivíduo, é a sociedade civil separada do Estado, ou que "o Estado político é uma abstraçãoda sociedade civil" (Marx, 2010a______ (2010a [1843]). Crítica da filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo., p. 96, grifos meus).

Onde seria possível enxergar equivocadamente um argumento em favor da definição do Estado como um ser abstrato (ou seja, não efetivo), Marx não faz mais que ressaltar o caráter abstrato da universalidade típica da estaticidade moderna. O fundamental é que a existência dos homens na forma do Estado político implica uma abstração de sua existência na sociedade civil.

O Estado configura objetivamente não apenas uma universalidade abstrata, mas uma objetividade estranhada, alienada. "O mais profundo em Hegel é que ele percebe a separação da sociedade civil e da sociedade política como uma contradição. Mas o que há de falso é que ele se contenta com a aparência dessa solução", afirma Marx (Marx, 2010a______ (2010a [1843]). Crítica da filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo., p. 95). E continua:

A sociedade civil - o estamento privado - nãoexiste como organização estatal, e, a fim de que ela, em tal condição, chegue à existência, sua organização real - sua vida social real - deve ser posta como não existente, pois o elemento estamental do poder legislativo tem precisamente a determinação de pôr como não existente o estamento privado, a sociedade civil. A separação da sociedade civil e do Estado político aparece necessariamente como uma separação entre o cidadão político, o cidadão do Estado, e a sociedade civil, a sua própria realidade empírica, efetiva (Marx, 2010a______ (2010a [1843]). Crítica da filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo., p. 95).

A partir disso, o autor pode afirmar que "a vida política é a vida aérea, a região etérea da sociedade civil" (Marx, 2010a______ (2010a [1843]). Crítica da filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo., p. 97). O que aparece mais vivamente nesse ponto da crítica marxiana, portanto, é a noção da especificidade da sociedade moderna tendo em vista a existência de uma esfera política autonomizada. Pois a comunidade política moderna não reproduz as determinações da vida empírica (prático-efetiva) dos indivíduos. No feudalismo, "o princípio orgânico da sociedade civil era o princípio do Estado" (Marx, 2010a______ (2010a [1843]). Crítica da filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo., p. 89); a desigualdade na terra era a desigualdade no céu da política porque a sociedade civil coincidia com a sociedade política - ou seja, "a sociedade civil era a sociedade política" (Marx, 2010a______ (2010a [1843]). Crítica da filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo., p. 89). Alternativamente, quando passa da esfera civil para a esfera política, o homem da sociedade burguesa precisa se despir de sua efetividade prática para assumir a forma do cidadão comunitário. A política existe na sociedade moderna como uma real abstração, uma existência alienada que não corresponde de modo direto ao conjunto de determinações efetivas (prático-materiais) do indivíduo.

Marx, de fato, critica a cisão do homem moderno, mas não pretende com isso restaurar o Estado à sociedade civil ou defender a sociedade civil contra o Estado. O autor parte de Hegel e, por isso, reúne-se a este na oposição tanto à tradição liberal quanto ao contratualismo - mas, claro, vai além, ao recusar a conciliação artificial proposta por Hegel. Em suma, "a referência à abstração para caracterizar a política moderna não designa somente o caráter abstrato desta última com relação à sociedade-civil burguesa, mas o movimento através do qual se estrutura essa esfera política" (Artous, 1999ARTOUS, Antoine (1999). Marx, l'État et la politique. Paris: Syllepse., p. 44).

Em Marx, o caráter alienado que se imputa ao homem da comunidade política (e ao Estado) não tem como referência o homem burguês da sociedade civil, mas aquele o que é chamado de homem genérico. Colocando a questão em outros termos, vê-se que Marx não propõe que o indivíduo da sociedade civil recupere sua essência alienada no Estado. O autor insiste, na verdade, para que o homem possa recuperar seu caráter genérico que foi alienado e transformado em abstração na instância estatal. O homem genérico nada mais é que o ser definindo por meio da comunidade ativa com seu gênero, aquele no qual a comunidade real está presente não de forma acidental, mas consciente e prática. Na sociedade moderna, sustenta Marx em sua crítica à filosofia hegeliana, a comunidade autêntica do homem é desfeita na comunidade ilusória da política. Como consequência, o homem real resta simultaneamente isolado em sua vida efetiva (prático-material) e artificialmente reunido na vida política.

A crítica de Marx, portanto, dirige-se não contra o Estado, mas contra uma sociedade que se organiza por meio de um dispositivo abstrato e estranhado (o Estado). O homem moderno cria na forma política uma instância na qual sua existência e comunidade práticas não são validadas, mas substituídas por uma existência autônoma e ilusória. Marx se posiciona então a favor de uma sociabilidade em que a representação não deixe de lado a existência prática do homem; ou seja, a favor de uma sociedade que não precise da abstração política, apartada da esfera dos interesses efetivos materiais, para afirmar artificialmente seu caráter comunitário. A autêntica democracia aparece como a unidade entre a vivência do homem em sua atividade prática, efetiva, e em sua representação comunitária. Essa democracia é distinta tanto da sociedade antiga quanto da medieval, mas tem em comum com ambas o fato de não se projetar em instâncias essencialmente distintas, como ocorre no capitalismo: "Na democracia nenhum momento recebe uma significação diferente daquela que lhe cabe. Cada momento é, realmente, apenas momento do demos inteiro [...] Na democracia, o princípio formal é, ao mesmo tempo, o princípio material. Por isso ela é, primeiramente, a verdadeira unidade do universal e do particular" (Marx, 2010a______ (2010a [1843]). Crítica da filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo., p. 49-50).

A democracia aparece então como a unidade do universal (o ser em sua existência genérica, comunitária) e do particular (o ser como individualidade prática). Seria correto, a partir disso, supor que Marx se refira a uma essência humana abstrata? Ou, ainda, que ele parta da ideia do homem como ser idilicamente comunitário, um ser para se resgatar ou fazer florescer? Por mais que o percurso marxiano tivesse apenas começado, já é possível observar que sua posição está longe de uma recuperação romântica da verdadeira essência humana perdida. O autor se refere à essência humana como algo alienado, porém, essa essência nada mais é do que a essência comunitária do homem, da qual ele não pode escapar mesmo nas configurações históricas mais contraditórias. "A essência humana não é uma abstração intrínseca ao indivíduo isolado. Em sua realidade, ela é o conjunto das relações sociais" Marx, 2007 [1845]______ (2007 [1845]). "Ad Feurbach", em MARX, K. & ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo., p. 533)4 4 Ao que Marx 2007, (p. 533) prossegue: "Feuerbach, que não penetra na crítica dessa essência real, é forçado, por isso: 1) a fazer abstração do curso da história, fixando o sentimento religioso para si mesmo, e a pressupor um indivíduo humano abstrato - isolado; 2) por isso, a essência só pode ser apreendida como 'gênero', como generalidade interna, muda, que une muitos indivíduos de modo natural". .

O ser do homem é o ser em comunidade, o ser com outros homens: o ser social. É o fato de ser um ser social que confere ao homem a capacidade de ter uma história comum e ativa, e não apenas muda ou acidental. Embora ineliminável, essa dimensão pode ser esvaziada por práticas que a desconhecem, a sobrepõem e a negam. É contra práticas dessa natureza que a crítica de Marx se constitui. Ele vislumbra uma sociabilidade em que se dê a afirmação consciente e prática desse pertencimento genérico.

Na crítica a Hegel, Marx ainda não determina que a chave da alienação política se encontra na anatomia da sociedade civil-burguesa. Essa descoberta marcará, sem dúvida, um momento importante da compreensão teórica de Marx, mas permanecerá sempre ligada aos resultados da ruptura teórica de 1843. Para que isso se torne claro, é preciso prosseguir na análise do desenvolvimento marxiano.

Os dois trabalhos publicados por Marx nos Anais fraco-alemães(1844) indicam o aprofundamento das questões e a emergência de novas determinações teóricas. Sem pretender uma análise longa e exaustiva desses textos, basta mencionar o prosseguimento da temática analisada na crítica precedente. No texto "Sobre a questão judaica", Marx se detém principalmente sobre o aspecto individual do problema abordado na crítica a Hegel, ressaltando agora os efeitos da cisão do homem entre o burguês e o cidadão.

A emancipação humana só estará plenamente realizada quando o homem individual real tiver recuperado para si o cidadão abstrato e se tornado ente genérico na qualidade de homem individual na sua vida empírica, no seu trabalho individual, nas suas relações individuais, quando o homem tiver reconhecido e organizado suas forces propres como forças sociais e, em consequência, não mais separar de si mesmo a força social na forma da força política (Marx, 2010b______ (2010b [1844]). Sobre a questão judaica. São Paulo: Boitempo., p. 54).

Além de confirmar o caráter intrinsecamente disruptivo da sociabilidade moderna, a reflexão ganha densidade e indica mais claramente os caminhos que serão percorridos pela crítica marxiana. A existência alienada, já descrita no campo político, passa a ser identificada no campo econômico, no seio da sociedade civil; ou seja, no campo que já fora assinalado como o universo de existência efetiva (prático-material) dos indivíduos. "O dinheiro é o valor universal de todas as coisas, constituído em função de si mesmo. Em consequência, ele despojou o mundo inteiro, tanto o mundo humano quanto a natureza, de seu valor singular e próprio. O dinheiro é a essência do trabalho e da existência humanos alienada do homem; essa essência estranha o domina e ele a cultua" (Marx, 2010b______ (2010b [1844]). Sobre a questão judaica. São Paulo: Boitempo., p. 58).

No segundo texto dos Anais, planejado como uma introdução à crítica da filosofia política hegeliana, Marx estabelece com mais clareza que o aspecto contraditório da realidade moderna encontra sua raiz no interior da própria sociedade civil. Definitivamente, a crítica da alienação religiosa, da inversão da consciência, cede lugar à crítica do próprio ser da consciência: "o homem não é um ser abstrato, acocorado fora do mundo. O homem é o mundo do homem, o Estado, a sociedade. Esse Estado e essa sociedade produzem a religião, uma consciência invertida do mundo, porque eles são um mundo invertido" (Marx, 2010c______ (2010c [1844]). "Crítica da filosofia do direito de Hegel: introdução". Crítica da filosofia do Direito de Hegel. São Paulo: Boitempo., p. 145, grifos no original). Note-se que não se trata apenas de uma crítica à consciência invertida do mundo, mas de uma crítica a um mundo que, por sua configuração particular, pode ser descrito em si como objetivamente invertido. Pela primeira vez, o processo de emancipação é entendido como uma revolução social através de uma força material: entra em cena o proletariado.

Para o argumento apresentado, no entanto, convém deixar de lado a determinação, nesse momento ainda pouco rigorosa, do proletariado como classe revolucionária. Cabe, sim, observar o texto em que Marx descortina com mais amplitude sua crítica à alienação política. Trata-se das Glosas críticas ao artigo "O rei da Prússia e a reforma social. De um prussiano" (2010d [1844]______ (2010d [1844]). "Glosas críticas ao artigo 'O rei da Prússia e a reforma social'. De um prussiano", em MARX, K & ENGELS, F. Lutas de classes na Alemanha. São Paulo: Boitempo.). Publicado na revista Vorwärts![Avante!], o texto marca o rompimento de Marx com seu antigo companheiro de críticas, Arnold Ruge, o mesmo com quem havia editado em Paris os Anais Franco-alemães.

Em texto anônimo assinado "por um prussiano", Ruge criticou uma matéria publicada pelo jornal conservador francês La Réforme que noticiara o levante de tecelões silesianos como o prenúncio de profundas reformas sociais no reino da Prússia. Discordando da leitura apresentada pelo periódico, Ruge argumentou que a manifestação dos trabalhadores não deveria ser vista senão como um fato isolado, posto que um país "apolítico" como a Alemanha não poderia compreender a revolta como uma contestação de ordem universal.

Marx reage às ideias do "prussiano" (ou seja, de Ruge) e, distinguindo entre luta política e luta social, critica a proposição de que falta à Alemanha uma "alma política". Com isso, Marx retoma e aprofunda as análises anteriores, notadamente aquelas do manuscrito da Crítica da filosofia do direito de Hegel.

A comunidade, em relação à qual o trabalhador está isolado, possui uma realidade e uma dimensão bem diferentes daquelas que são próprias da comunidade política. Essa comunidade, da qual o seu próprio trabalho o separa, é a vida mesma, a vida física e espiritual, a moralidade humana, a atividade humana, o usufruto humano, a condição humana. A condição humana[menschliches Wesen] é a verdadeira comunidade dos humanos [Gemeinwesen der Menschen] (Marx, 2010d______ (2010d [1844]). "Glosas críticas ao artigo 'O rei da Prússia e a reforma social'. De um prussiano", em MARX, K & ENGELS, F. Lutas de classes na Alemanha. São Paulo: Boitempo., p. 50, grifos no original)5 5 A tradução citada propõe "condição humana" para a expressão alemã menschliches Wesen, deixando de lado a tradução usual de Wesen por "essência". Do ponto de vista filosófico, a escolha é interessante. De fato, Marx está falando do caráter basilar do ente humano, de seu ser próprio - nesse sentido, portanto, de sua condição de ser. .

Marx, ciente da dimensão social da revolta na Silésia, qualifica o clamor de Ruge em favor de uma "alma política" como um desvio espiritualista que isola toda resolução social na esfera abstrata da comunidade imaginária da política, destacada da comunidade prática dos homens. Marx elabora então o que se pode chamar de crítica da razão política. "O entendimento político é um entendimento espiritualista", afirma o autor (Marx, 2010d [1844]______ (2010d [1844]). "Glosas críticas ao artigo 'O rei da Prússia e a reforma social'. De um prussiano", em MARX, K & ENGELS, F. Lutas de classes na Alemanha. São Paulo: Boitempo., p. 48), para em seguida completar:

Quanto mais poderoso for o Estado, ou seja, quanto mais políticofor um país, tanto menos estará inclinado a buscar no princípio do Estado, ou seja, na atual organização da sociedade, da qual o Estado é expressão ativa, autoconsciente e oficial, a razão das mazelas sociais e a compreender seu princípio universal. O entendimento político é entendimento político justamente porque pensa dentro dos limites da política. Quanto mais aguçado, quanto mais ativo ele for, tanto menos capaz será de compreender mazelas sociais. O período clássico do entendimento político é a Revolução Francesa (Marx, 2010d [1844]______ (2010d [1844]). "Glosas críticas ao artigo 'O rei da Prússia e a reforma social'. De um prussiano", em MARX, K & ENGELS, F. Lutas de classes na Alemanha. São Paulo: Boitempo., p. 40-1)6 6 "A Convenção era o suprassumo da energia política, do poder político e do senso político", aponta Marx em outra passagem (Marx, 2010d, p. 37). .

A antítese entre Estado e sociedade afirmada por Marx é a forma da unidade que engloba ambas as instâncias, pois "se quisesse eliminar a impotência de sua administração, o Estado moderno teria de eliminar a atual vida privada. Se ele quisesse eliminar a vida privada, teria de eliminar a si mesmo, porque ele existe tão somente como antítese a ela" (Marx, 2010d [1844]______ (2010d [1844]). "Glosas críticas ao artigo 'O rei da Prússia e a reforma social'. De um prussiano", em MARX, K & ENGELS, F. Lutas de classes na Alemanha. São Paulo: Boitempo., p. 40). A contradição se estabelece, na verdade, entre a vida privada e o Estado. Efetivamente, a instância estatal moderna, o domínio do público, só se afirma através de sua antítese, o domínio do privado. A tensão entre vida pública e a vida privada é a mesma existente entre os interesses gerais e os interesses particulares: os últimos determinam o caráter dos primeiros. "Em consequência, a administração deve restringir-se a uma atividade formal e negativa" (Marx, 2010d [1844]______ (2010d [1844]). "Glosas críticas ao artigo 'O rei da Prússia e a reforma social'. De um prussiano", em MARX, K & ENGELS, F. Lutas de classes na Alemanha. São Paulo: Boitempo., p. 39).

Na negatividade estabelecida por Marx para a "politicidade", as lutas políticas têm como limite prático a tomada do poder de Estado e sua substituição por outro poder. "Consequentemente uma revolução de alma política também organiza, em conformidade com a natureza restrita e contraditória dessa alma, um círculo dominante na sociedade, à custa da sociedade" (Marx, 2010d [1844]______ (2010d [1844]). "Glosas críticas ao artigo 'O rei da Prússia e a reforma social'. De um prussiano", em MARX, K & ENGELS, F. Lutas de classes na Alemanha. São Paulo: Boitempo., p. 51). Ora, se Marx se coloca a favor de uma comunidade efetivada positivamente do ponto de vista prático (e não apenas de forma abstrata, restrita e contraditória), como reduzir uma tal transformação ao domínio do político? O político assim autonomizado justamente é um dos efeitos da sociabilidade moderna que se quer combater. Afinal, "o ser humano é infinitamente maior do que o cidadão e a vida humana é infinitamente maior do que a vida política" (Marx, 2010d [1844]______ (2010d [1844]). "Glosas críticas ao artigo 'O rei da Prússia e a reforma social'. De um prussiano", em MARX, K & ENGELS, F. Lutas de classes na Alemanha. São Paulo: Boitempo., p. 50).

Somente uma revolução social pode, portanto, superar os problemas ligados à prática dos homens em sociedade. A miséria social, seja ela material ou espiritual, não pode ser solucionada através da política, esfera que está em intrínseca condição de estranhamento com relação aos aspectos determinantes do ser prático-objetivo.

A crítica à razão política, ao entendimento amputado das dimensões fundamentais do ser social, implica a ruptura marxiana com uma longa tradição do pensamento ocidental. Nas palavras de (Chasin 2000CHASIN, José (2000). "Marx: a determinação ontonegativa da politicidade". Ensaios Ad Hominem, n. 1, tomo III ("Política"), p. 129-61., p. 132), Marx se afasta claramente de uma concepção que confunde Estado e liberdade, que trata ambos como "determinações recíprocas, de tal forma que a politicidade é tomada como predicado intrínseco ao ser social". Com isso, a desaparece da reflexão do autor a "politicidade como atributo perene, positivamente indissociável da autêntica entificação humana, portanto constitutiva do gênero, de sorte que orgânica e essencial em todas as suas atualizações" (Chasin, 2000CHASIN, José (2000). "Marx: a determinação ontonegativa da politicidade". Ensaios Ad Hominem, n. 1, tomo III ("Política"), p. 129-61., p. 132).

A postura criticada por Marx, que pode ser traduzida como uma ontologização indevida da politicidade, estava presente no círculo de jovens hegelianos com que o autor viera de romper. Essa ontopositividade do Estado e da política - que implica a abordagem dos problemas sociais buscando resolvê-los diante da universalidade racional do Estado absoluto - é superada por Marx em nome da compreensão radicalmente nova de que o estudo do funcionamento da sociedade civil permite explicar os determinantes principais da sociabilidade moderna, suas estruturas e reflexos. No modelo ultrapassado pelo autor, o Estado moderno aparecia como a mais perfeita representação dessa politicidade, pois centralizava e reivindicava para si toda a esfera política. Tal posição conduzia à ideia de uma completa indissolubilidade entre Estado e sociedade, "a ponto de tornar quase impossível, até mesmo para a simples imaginação, um formato social que independa de qualquer forma de poder político" (Chasin, 2009______ (2009). Marx: estatuto ontológico e resolução metodológica. São Paulo, Boitempo., p. 64). O fato de Marx propor a superação do Estado de forma indissociável da superação da própria sociedade civil burguesa deriva, portanto, de duas posições: da compreensão ontonegativa da política e da percepção de que o Estado burguês é parte constituinte das relações sociais que conformam as práticas da sociedade mercantil.

Já se percebe que a contradição examinada pelo autor diz respeito ao tipo de elo social estabelecido abstratamente na esfera política e desfeito pela efetividade prática das relações econômicas capitalistas. Isto é, para Marx, a autêntica comunidade humana não se efetiva praticamente na sociedade burguesa: o ser social, particípe ativo e consciente de um gênero, não é senão uma abstração na esfera moderna da política - esta que é constituída negativamente com relação à vivência prática dos homens modernos. Mas a crítica marxiana da alienação política, nessa fase, ainda não inclui os fundamentos teóricos que lhe permitem ligar adequadamente o Estado à sociedade civil-burguesa. A correspondência necessária entre os dois campos só aparece a partir do momento em que Marx passa a examinar as características principais da reprodução material.

Trabalho alienado, fetichismo e capital

O desafio de entender um mundo no qual o homem não age praticamente como um ser genérico - ou seja, no qual seu pertencimento ao gênero se aliena na esfera política e é negado na vida prática - impulsiona a pesquisa de Marx para o campo dos interesses materiais. Armado dos pressupostos básicos de uma ontologia materialista do ser social, o autor investe longos anos de estudo para compreender os limites da economia política clássica. Depurada dos aspectos idealistas da filosofia hegeliana, a categoria trabalho passa a desempenhar um papel central na reflexão marxiana. O autor já sabia que o homem moderno se cinde numa dupla existência: é diferente na terra dos interesses materiais e igual no céu da política. Agora, a compreensão do trabalho como forma de objetivação da vida humana permite a Marx capturar progressivamente as razões pelas quais o homem moderno nega sua dimensão comunitária através de sua existência prático-material.

Mas atenção: o trabalho a que se refere neste ponto não deve ser colapsado à sua forma especificamente moderna, isto é, ao trabalho como produtor de valor. Não é, portanto, o trabalho em seu recorte capitalista que é ontologizado por Marx. Essa categoria ampla de trabalho que está presente na teoria marxiana traduz, em verdade, o processo de objetivação da práxis dos sujeitos. O trabalho comparece, assim, como atividade prática dos indivíduos na reprodução social a partir de sua ideação sobre o mundo, como construção e adaptação do mundo social diante das condições historicamente herdadas. O trabalho, adaptação ativa e programada do mundo, é o que distingue o ser social do ser animal; o que supera a espontaneidade da casualidade natural e insere, no universo propriamente humano, o elemento teleológico7 7 Ver Lukács 2013, (capítulo "O trabalho"). . É essa compreensão ampla do trabalho como práxis que permite a Marx elaborar a crítica da forma capitalista de trabalho.

Depois do período de 1844 a 1845, em que se debruçara pela primeira vez sobre o campo da economia política, Marx voltou a estudar minuciosamente os fenômenos econômicos na metade da década de 1850. Foi então que passou a vislumbrar os primeiros planos do que viria a ser sua obra máxima. A análise desse novo momento teórico marxiano mostra que, a despeito da nova temática e da complexação do tratamento teórico dispensado, persistem as questões relativas à alienação.

Convém deter-se, pois, em alguns desenvolvimentos contidos nos Grundrisse. Marx, mergulhado na tarefa de compreender o modo específico da sociabilidade capitalista, dedicou grande parte de suas notas manuscritas ao estudo do dinheiro. Entre as muitas observações a respeito da peculiaridade dessa categoria, chamam a atenção os apontamentos reservados ao tratamento do dinheiro como vínculo social. No capitalismo, constata o autor, por não controlarem os meios de produção como força social, os indivíduos só adquirem seus meios de vida através da troca mercantil. Com isso, "a dependência recíproca e multilateral dos indivíduos mutuamente indiferentes forma sua conexão social" (Marx, 2011 [1857-1858]______ (2011 [1857-1858]). Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858. Esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo., p. 107). Essa indiferença entre produtores que, ainda assim, são mutuamente dependentes já configura a característica específica de uma sociabilidade que se põe apenas de forma indireta, mediada.

Desponta então a crítica de Marx ao aspecto estranhado dessa mediação, que, produto do próprio trabalho humano, torna-se sujeito diante de seus criadores. Imersos nas relações mercantis, os homens passam a ser governados pela autonomia adquirida pelos produtos de seus trabalhos. A relação entre indivíduos não é direta, mas fixada numa coisa externa, no meio de troca, ou seja, no dinheiro. Como forma de manifestação do valor autonomizado, o dinheiro é uma forma necessária ao capital.

Seu poder social, assim como seu nexo com a sociedade, [o indivíduo] traz consigo no bolso. [...] O caráter social da atividade, assim como a forma social do produto e a participação do indivíduo na produção, aparecem aqui diante dos indivíduos como algo estranho, como coisa; não como sua conduta recíproca, mas como sua subordinação a relações que existem independentemente deles e que nascem do entrechoque de indivíduos indiferentes entre si (Marx, 2011 [1857-1858]______ (2011 [1857-1858]). Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858. Esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo., p. 107).

Em vez de disporem de suas forças comuns como uma comunidade de produtores, como partícipes conscientes do mesmo gênero, os indivíduos se dividem como proprietários mercantis e se deixam subsumir pela produção social, "que existe fora deles como uma fatalidade" (Marx, 2011 [1857-1858]______ (2011 [1857-1858]). Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858. Esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo., p. 108). A produção se configura como produção para o mercado, pelo que a socialização da vida prática dos indivíduos é feita através da esfera mercantil.

O mercado funciona com base na troca, e esta pressupõe a equivalência entre os valores mercantis. Tal equivalência só pode ser obtida por meio da abstração das diferenças que existem entre as mercadorias trocadas, isto é, por meio da abstração de suas diferentes características. A equivalência só é possível, por outro lado, porque a troca retém um elemento comum a todas mercadorias: todas elas são produtos do trabalho humano. O elo entre os produtores inseridos na troca depende, assim, da abstração de seus trabalhos específicos, privados e concretos em prol do elemento comum presente em seus produtos. O trabalho que importa para a troca não é, portanto, o trabalho como objetivação criadora do homem, mas seu reflexo pálido: o trabalho produtor de mercadorias como substância comum a todos os valores de troca8 8 Nos Grundrisse, Marx não distingue claramente entre as categorias de valor e valor de troca. Com base em seus desenvolvimentos posteriores, no entanto, é possível realizar uma leitura retroativa e perceber que, mesmo não aparecendo de forma acabada, o conceito de valor já faz parte da análise marxiana. .

Nesse quadro, a natureza comunitária - social - da vida humana não comparece de forma direta, mas apenas de forma indireta e mediada pela referida abstração. O reconhecimento dos produtores entre si e o reconhecimento mútuo de suas necessidades se dão somente por intermédio da igualação dos produtos de seus trabalhos. Com a generalização da troca mercantil, a existência humana torna-se dependente de uma forma de produção que não se orienta diretamente pelas necessidades dos produtores. A satisfação das necessidades passa a ser intermediada pela produção de mercadorias. E a produção de mercadorias, como meio necessário, torna-se fim.

A própria necessidade de primeiro transformar o produto ou a atividade dos indivíduos na forma de valor de troca, no dinheiro, e o fato de que só nessa forma coisal adquirem e comprovam seu poder social demonstram duas coisas: 1) que os indivíduos produzem tão somente para a sociedade e na sociedade; 2) que sua produção não é imediatamente social, não é o resultado de associação que reparte o trabalho entre si. [...] [A] produção social não está subsumida aos indivíduos que a utilizam como seu poder comum. Logo, não pode haver nada mais falso e insípido do que pressupor, sobre a base do valor de troca, do dinheiro, o controle dos indivíduos reunidos sobre sua produção total (Marx, 2011 [1857-1858]______ (2011 [1857-1858]). Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858. Esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo., p. 108).

A confirmação da condição genérica (comunitária) do homem se torna assim, no campo prático-material, meramente acidental. O elo social é uma abstração da sociabilidade direta em nome da igualdade dos trabalhos individualizados, não imediatamente sociais. Com isso, a articulação dos membros desse gênero na forma de uma comunidade só aflora por meio de uma outra esfera, separada e negativa com relação à primeira: a esfera da política.

"Na comunidade burguesa, o trabalhador, por exemplo, está presente de modo puramente não objetivo, subjetivo", afirma (Marx 2011 [1857-1858]______ (2011 [1857-1858]). Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858. Esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo., p. 398). A "comunidade burguesa" a que o autor se refere não é a comunidade objetivamente prática da esfera material, mas a comunidade oficial, a única que se reivindica propriamente como comunidade: a comunidade política. Isso quer dizer que o ser comunitário reconhecido pela sociedade burguesa é um ser não objetivo, mas subjetivo - é um ser da vontade, da política. Por outro lado, a comunidade verdadeira é posta fora do homem: "a coisa que se defronta com ele deveio a comunidade verdadeira que ele procura devorar e pela qual ele é devorado" (Marx, 2011 [1857-1858]______ (2011 [1857-1858]). Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858. Esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo., p. 398).

Quando o Estado moderno se consolida, historicamente assentado no domínio da burguesia e na produção mercantil, a vida objetiva, prático-material, dos indivíduos permanece fora da relação comunitária "oficial". O capitalismo produz simultaneamente a negação da comunidade imediata e ativa e a criação de uma segunda comunidade, subjetiva e ilusória. Da anulação da comunidade imediata e do caráter ilusório da subjetiva, resta como única comunidade verdadeira a comunidade indireta posta pela abstração mercantil - esta que confronta os próprios indivíduos como coisa estranha. O sujeito humano se anula, uma vez que sua ação só se confirma pela ação da abstração que ele põe em prática, ou seja, por meio do dinheiro e do valor mercantil - tornado o verdadeiro sujeito. A obtenção do valor passa a guiar efetivamente as ações humanas, e o valor passa a presidir as relações sociais.

Tendo em vista que, nesse processo, o trabalho objetivado é simultaneamente posto como não objetividade do trabalhador, como objetividade de uma subjetividade contraposta ao trabalhador, como propriedade de uma vontade que lhe é estranha, o capital é ao mesmo tempo necessariamente capitalista, e a ideia de alguns socialistas, segundo a qual precisamos do capital, mas não dos capitalistas, é inteiramente falsa. No conceito do capital está posto que as condições objetivas do trabalho - e estas são produto dele mesmo - assumem uma personalidadediante do trabalho ou, o que significa a mesma coisa, que elas são postas como propriedade de uma personalidade estranha ao trabalhador (Marx, 2011 [1857-1858]______ (2011 [1857-1858]). Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858. Esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo., p. 412).

Vale frisar os termos escolhidos pelo próprio autor para definir o segredo da relação capitalista:

A produção baseada no valor de troca, sobre cuja superfície acontece aquela troca livre e igual de equivalentes, é no fundo troca de trabalho objetivado como valor de troca pelo trabalho vivo como valor de uso, ou, como também pode ser expresso, comportamento do trabalho em relação às suas condições objetivas - e, por essa razão, com a objetividade criada pelo próprio trabalho - como propriedade alheia: alienação [Entäußerung] do trabalho (Marx, 2011 [1857-1858]______ (2011 [1857-1858]). Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858. Esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo., p. 414).

Esse trecho pode ser interpretado de duas formas. Em primeiro lugar, considerando a relação jurídica de propriedade, tem-se que o trabalhador individual se encontra alienado da objetivação de suas próprias forças individuais. Sem prejuízo da constatação anterior, tem-se também, em segundo lugar, que o trabalho social governado pela produção de valor é intrinsecamente alienado do controle dos indivíduos em conjunto. Como conclui (Duayer 2011DUAYER, Mario (2011). "Apresentação", em MARX, K. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858. Esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo., p. 21): "O mais-valor [...] além de desvendar o mecanismo de acumulação de capital, isto é, a expropriação do trabalhador, expressa um processo ainda mais fundamental: mais do que significar a exploração do trabalho, como de fato o faz, o mais-valor representa a objetivação, estranhada dos sujeitos, do potencial que possui o trabalho (social) de reproduzir de forma ampliada as suas condições antecedentes".

Em O capital, obra que consolida as pesquisas anteriores, Marx lapida as categorias encontradas ao longo dos Grundrisse. O valor (não mais o dinheiro ou o valor de troca) aparece claramente como o elemento que confere o caráter social da atividade produtiva dos indivíduos. É nesse quadro que será exposta a teoria do fetichismo. Note-se que o tratamento conferido ao tema, embora concentrado sobre os efeitos da produção material, não deixa de incidir sobre a forma de individualização dos produtores. "Como os produtores só travam contato social mediante a troca de seus produtos do trabalho, os caracteres especificamente sociais de seus trabalhos privados aparecem apenas no âmbito dessa troca" (Marx, 2013 [1867]______ (2013 [1867]). O capital: crítica da economia política. Livro I. São Paulo: Boitempo., p. 177). A objetividade do pertencimento a um corpo social, a uma comunidade, só aparece, portanto, indiretamente, através da troca. Impelidos a orientar sua atividade não pelos resultados de seu próprio desenvolvimento material e de sua consciência, mas pelos pressupostos da troca de mercadorias, os indivíduos põem em marcha uma dinâmica que assume a forma de um movimento de coisas que controlam os produtores, em vez de estes as controlarem.

A teoria do fetichismo estava formulada em suas determinações principais já nos Grundrisse, mas somente em O capitalganhou a sistematicidade e o nome pelo qual se tornou conhecida. O próprio termo fetiche, derivado do vocabulário ligado às crenças religiosas ditas primitivas, indica o fato de que o homem transfere seus próprios poderes a uma objetivação de suas relações. O fato de o estranhamento se materializar agora especificamente no interior da esfera produtiva não nega o caráter alienado e irracional das práticas em questão. Esse estranhamento permeia a constelação de formas do ser postas pela sociabilidade moderna. Por isso, não pode deixar de se refletir em outros movimentos da vida social.

Mesmo não se referindo diretamente ao Estado, a análise marxiana do fetichismo da mercadoria se estende ao tipo de elo social estabelecido entre os indivíduos da sociedade moderna. O fetichismo, portanto, transborda a análise da mercadoria e tem implicações para a forma político-estatal, a forma comunitária oficial. Marx passa a conhecer a razão pela qual os indivíduos da sociedade civil-burguesa não vivem numa comunidade prática, mas precisam criar uma outra comunidade, subjetiva e ilusória, a fim de organizar os assuntos comuns que não podem ser reduzidos esfera mercantil. Em resumo, pode-se dizer que o autor reconhece a existência de três momentos de ratificação do caráter social da vida humana na modernidade: 1) uma comunidade imediata e objetiva que, no entanto, é obliterada pelas práticas vigentes; 2) uma segunda comunidade também objetiva, que se sobrepõe à primeira e, por isso, aparece como a única comunidade verdadeira vigente na sociabilidade moderna - a comunidade indireta e estranhada posta pelo valor; 3) uma comunidade ilusória e subjetiva, pois atributo da vontade - a comunidade política, complemento necessário à esfera mercantil.

Praticamente, a comunidade humana se concretiza na forma da comunidade estranhada e da comunidade ilusória. A comunidade efetiva dos homens permanece como potência, como plano a ser construído historicamente. Marx descreve em O capital os pressupostos do funcionamento da comunidade estranhada, cuja existência implica que também exista a comunidade ilusória - qualquer que seja a forma especificamente concreta que ela assuma. Afinal, como afirma o autor, "as mercadorias não podem ir por si mesmas ao mercado e trocar-se umas pelas outras" (Marx, 2011 [1857-1858]______ (2011 [1857-1858]). Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858. Esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo., p. 184). Os indivíduos que se reconhecem por meio de mercadorias são indivíduos imersos em práticas socialmente determinadas. Como afirma Marx no texto destinado a compor o Livro III de O capital:

A forma econômica específica em que se suga mais-trabalho não pago dos produtores diretos determina a relação de dominação e servidão, tal como esta surge diretamente da própria produção e, por sua vez, retroage de forma determinante sobre ela. [...] É sempre na relação direta dos proprietários das condições de produção com os produtores diretos [...] que encontramos o segredo mais íntimo, o fundamento oculto de toda a construção social e, por conseguinte, da forma política das relações de soberania e de dependência, em suma, de cada forma específica de Estado (Marx, 1986 [1894]______ (1986 [1894]). O capital: crítica da economia política. Livro III. Tomo 2. São Paulo: Abril Cultural., p. 251).

É por conta das relações sociais de produção geradoras da abstração-valor (abstração prática da natureza concreta do trabalho em favor de seu caráter indiferenciado) que se configura uma sociabilidade mediada pelos produtos do trabalho e que, paralelamente, abre-se um campo de vivência comunitária que não pode ser imediata e objetiva, mas que assume, por conta da comunidade verdadeira estranhada, a forma de uma comunidade ilusória baseada na união subjetiva entre os seres. Ou seja, ao negar a comunidade imediata e consciente, a comunidade estranhada significa uma coordenação dos sujeitos que só pode ser, ela também, alienada: eis o fundamento da esfera política autonomizada.

O caráter estranhado, alienado ou fetichista do Estado capitalista é distinto do estranhamento, da alienação ou do fetiche inerentes à troca de mercadorias, mas ambas as formas constituem aspectos da mesma forma de ser em sociedade. É o que afirma (Kurz 2002KURZ, Robert (2002). O fim da política: teses sobre a crise do sistema de regulação da forma da mercadoria. Disponível em: http://obeco.planetaclix.pt/rkurz105.htm. Acesso em: 6 mar. 2014.
http://obeco.planetaclix.pt/rkurz105.htm...
, p. 3): "Como as mercadorias não podem por si ser 'sujeitos' e como portanto na relação das mercadorias os indivíduos dessa 'socialização associal' (em si absurda) têm, no entanto, de relacionar-se entre si secundariamente de modo direto, teve de formar-se o subsistema da 'política' onde são tratadas tais relações diretas secundárias".

Do ponto de vista histórico, a comunidade política moderna evolui adquirindo a consistência formal das leis e do direito. A regulação jurídica das vidas passa a pressupor cada vez mais a regulação jurídica das trocas. Instauram-se os domínios do público e do privado. De modo paralelo, mas intimamente correlato, ocorre uma reorganização institucional dos Estados. Os modelos anteriores de organização do poder social, baseados em outras práticas sociais, se convertem, violentamente ou não, às formas modernas. Os comandos senhoriais do passado não resistem aos abalos da modernidade. As lutas históricas destronam os reis e instauram os regimes representativos, que, no entanto, nunca são infalíveis. O controle sobre as vontades assume formas impessoais e uma roupagem técnica. O Estado agora é público, mas sua existência como expressão de uma comunidade restrita e negativa implica um campo livre para o poder depositado na propriedade; poder este que se converte continuamente em poder político e vice-versa. Todos esses processos se entrelaçam, e embora seja impossível estabelecer uma ordem de aparição cronológica, o complexo que formam tem como fundamento o surgimento e a expansão da economia mercantil, ela mesma influenciada por eles.

Em primeiro lugar, o campo do reconhecimento político mútuo dos indivíduos se restringe ao polo dominante da sociedade, ou seja, entre os proprietários da massa dos meios de produção, que são homens relativamente ricos. Quando o terreno da produção capitalista se estende para regiões mais amplas, esse reconhecimento adquire pouco a pouco um estatuto mais geral. O Estado se liberta da propriedade e passa a pressupô-la. Inicialmente restrita aos proprietários, a participação oficial na comunidade política passa a incluir todos os homens. Em seguida, engloba homens e mulheres. No mesmo movimento, religião, etnias, nacionalidades, tudo é potencialmente relevado pela comunidade política. A igualdade política consolida-se como o pendente da abstração mercantil. Mas mesmo a igualdade formal-política não é dada; ela só se constitui como resultado do processo histórico de embate dos indivíduos por reconhecimento jurídico como meio de reconhecimento social. Ela responde, em boa medida, às pressões sociais oriundas das contradições postas pelo sistema mercantil. A comunidade política codifica os anseios sociais como anseios políticos e interpela os homens como cidadãos - interpelação que já os pressupõe como produtores de valor.

Por sua vez, a igualdade política estrutura as relações sociais no interior da politicidade posta em conjunto com a sociedade mercantil. Essa ligação entre política e economia conduz a análise novamente para o estudo da relação categorial entre alienação e fetichismo. Pode-se dizer que a evolução teórica entre os textos de 1843 a 1844 e O capital não se explica através de uma descontinuidade entre as categorias em questão. Na verdade, a passagem entre os dois momentos inclui a descoberta dos traços específicos do estranhamento que vigora na sociedade capitalista. Como constata corretamente (Artous 1999ARTOUS, Antoine (1999). Marx, l'État et la politique. Paris: Syllepse., p. 72), a teoria do fetichismo "não trata apenas dos problemas econômicos, mas da natureza do elo social existente sob o capitalismo".

Assim, sem referir o fetichismo ao estranhamento, isto é, ao fato de que o homem transfere propriedades sociais aos produtos de sua atividade, a própria análise do fetiche da mercadoria permanece indeterminada. Da mesma forma que a alienação, nos textos de juventude, o fetichismo dá conta de uma relação real de exteriorização - confirmada cotidianamente na prática dos indivíduos - através da qual os sujeitos negam suas próprias forças sociais ao depositá-las em um processo autorreferente - e por isso mesmo, indiferente aos próprios agentes que o colocam em marcha -, que é a valorização do valor. Tanto na alienação quanto no fetichismo, constata-se uma defasagem entre sujeito e predicado. Na alienação política, isso acontece porque o homem se encontra cindido e porque a comunidade ilusória não corresponde à sua vivência prática. O homem atribui à esfera política - mesmo negativa e estranhada com relação à vivência prático-mercantil - o caráter de efetivação possível de sua dimensão comunitária. O predicado (a política) é incapaz de refletir a condição autêntica do sujeito. Na esfera econômica, a vivência prática se configura como uma abstração da comunidade entre homens em nome de uma comunidade entre coisas, isto é, mercadorias, tornadas sujeitos. Nesse caso, observa-se uma inversão entre sujeito e predicado.

No primeiro momento, o homem só se reconhece (abstratamente) no céu ilusório da política. No segundo, o reconhecimento se efetiva apenas no mundo fantasmagórico das mercadorias. Se a alienação do Estado e o fetichismo da mercadoria não são idênticos, o fundamental é notar que, além de descreverem processos correlatos, são frutos correspondentes da mesma sociabilidade estranhada. Na passagem de uma categoria para a outra, a grande aquisição teórica é a compreensão de que a regulação social pelo valor configura a submissão da vontade humana a uma potência animada pelas próprias objetivações sociais. Em outras palavras, com o termo fetichismo está dada a compreensão da dominação impessoal pela economia do valor, pelo trabalho abstrato - o que não aparecia especificamente com a temática da alienação. Já em A ideologia alemã é possível ler:

Esse fixar-se da atividade social, essa consolidação de nosso próprio produto num poder objetivo situado acima de nós, que foge ao nosso controle, que contraria nossas expectativas e aniquila nossas conjeturas, é um dos principais momentos no desenvolvimento histórico até aqui realizado. O poder social, isto é, a força de produção multiplicada que nasce da cooperação dos diversos indivíduos condicionada pela divisão do trabalho, aparece a esses indivíduos, porque a própria cooperação não é voluntária mas natural, não como seu próprio poder unificado, mas sim como uma potência estranha, situada fora deles, sobre a qual não sabem de onde veio nem para onde vai, uma potência, portanto, que não podem mais controlar e que, pelo contrário, percorre agora uma sequência particular de fases e etapas de desenvolvimento, independente do querer e do agir dos homens e que até mesmo dirige esse querer e esse agir (Marx e Engels, 2007 [1845]MARX, K. & ENGELS, F. (2007 [1845]). A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo., p. 38).

A alienação se refere, no jovem Marx, a um momento real daquilo que ele abordaria mais tarde com a categoria fetichismo. Sem o fetichismo da mercadoria (com tudo o que essa análise pressupõe), não se compreenderia completamente a alienação do Estado moderno. Através do fetichismo, por outro lado, desemboca-se diretamente na forma alienada da existência política. Isso porque a política, em sua forma moderna autonomizada, é estruturalmente incapaz de sanar os problemas postos pelo sujeito autônomo que é o valor. De forma sucinta e precisa, Kurz observa a amplitude do conceito de fetichismo:

Enquanto a sociedade não toma consciência de si mesma, o processo de apropriação da natureza, enquanto processo humano e social, tem de passar por um sistema cegamente pressuposto de codificação simbólica. Na situação de inconsciência de si mesmo, o homem, em grande parte desligado das codificações genéticas, necessita de uma forma social de universalidade abstrata para poder agir como sujeito. A constituição inconsciente de tal universalidade abstrata pode (com Marx) ser chamada de fetichismo (Kurz, 2011______ (2011). Não há Leviatã que salve: teses para uma teoria crítica do Estado. Primeira parte. Disponível em: http://o-beco.planetaclix.pt/rkurz390.htm. Acesso em: 6 mar. 2014.
http://o-beco.planetaclix.pt/rkurz390.ht...
, p. 1).

Ora, o que Marx chamou em toda sua obra anterior a O capital de alienação ou estranhamento (Entäußerung ouEntfremdung) corresponde exatamente ao que aparece como traço constituinte do fetichismo: a perda de controle humano sobre a própria atividade, o depósito das forças próprias (as tais "forces propres") em instâncias estranhas9 9 Na margem do manuscrito de A ideologia alemã, Marx acrescenta uma nota de especial interesse teórico-filológico. O autor inicia o comentário da seguinte forma: "essa 'alienação' [Entfremdung] para usarmos um termo compreensível aos filósofos..." (Marx e Engels, 2007, p. 38). Não é preciso continuar a citação para perceber que Marx identifica o termo alienação com o idealismo alemão ("os filósofos"). Essa pode ser uma pista sobre o porquê da opção feita, na redação de O capital, pelo termo "fetichismo". A partir daí, pode-se imaginar que a palavra, vista por Marx como isenta da carga idealista que pesava sobre alienação [Entfremdung], foi escolhida por ele precisamente por isso. . Como afirma (Duayer 2011DUAYER, Mario (2011). "Apresentação", em MARX, K. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858. Esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo., p. 21) "essa concepção de vida social estranhada [...] é central para a dimensão crítica do pensamento marxiano". Conclui-se assim que a teoria do fetichismo não substitui, antes desenvolve, a crítica do Estado como entidade alienada, e que ambos os desenvolvimentos encerram o teor amplo e unitário da crítica social marxiana: a crítica às formas estranhadas e às suas consequências.

O Estado como negatividade no Marx dos anos 1870

Defendida a relação categorial presente nas críticas formuladas por Marx à economia e à política, convém não ignorar que a compreensão do Estado como negatividade não desaparece da pena do autor. Tal constatação não apenas reforça a percepção do elo positivo entre alienação e fetichismo, mas também demonstra claramente como é possível - ainda que numa clave de leitura menos categorial e mais factual - ligar a determinação alienada do Estado e da política à sociabilidade fetichista do capital. Para prosseguir nessa análise, é útil observar de que maneira o autor desenvolve sua crítica na fase mais madura de sua produção, isto é, em textos produzidos após a publicação de O capital.

Um exemplo paradigmático da visão de Marx sobre o assunto pode ser encontrado nos textos em que ele discorre sobre a Comuna de Paris. Nas mensagens redigidas em nome da Associação Internacional de Trabalhadores (AIT), Marx descreveu os acontecimentos da guerra civil desencadeada com o fim da guerra franco-prussiana e buscou esclarecer o sentido particular do intento revolucionário parisiense. Após a capitulação de Napoleão III às tropas da Prússia em Sedan, um governo provisório de salvação nacional proclama a República na capital francesa10 10 O governo provisório, posteriormente instalado em Versalhes, evitava mencionar o termo "república" em comunicados oficiais. Em suma, como observa Marx, a república era tratada por muitos dos versalheses como um meio provisório para o restabelecimento da monarquia na França. . Antes da formação da Comuna, Marx reconheceu a dificuldade na qual se encontravam os trabalhadores franceses com a França derrotada e a Prússia às portas de Paris. O autor conclamou então os trabalhadores a unirem forças frente aos desafios que se apresentam: "Os trabalhadores franceses devem assumir seu dever de cidadãos, mas ao mesmo tempo eles não devem se deixar conduzir por reminiscências nacionais de 1792 [...]. Eles não devem recomeçar o passado, mas construir o futuro. Que calma e resolutamente eles aproveitem a liberdade republicana para proceder metodicamente por sua própria organização de classe" (Marx, 2008a [1870]______ (2008a [1870]). "Seconde adresse du conseil general de l'AIT". La guerre civile en France. Montreuil-sous-Bois: Éditions Science Marxiste., p. 42-3).

A alusão à Primeira República francesa e ao regime jacobino é clara ao apontar os limites que precisam ser ultrapassados pelo movimento revolucionário. A república não é o objetivo dos trabalhadores, mas uma forma política em que sua organização pode avançar com mais facilidade. A verdadeira "tarefa comum [é] a emancipação do trabalho" (Marx, 2008a [1870]______ (2008a [1870]). "Seconde adresse du conseil general de l'AIT". La guerre civile en France. Montreuil-sous-Bois: Éditions Science Marxiste., p. 43).

Com a formação da Comuna em meio à política traiçoeira do governo de Versalhes - que aceitou os termos de paz impostos por Bismarck negociando a liberação das tropas francesas para a repressão daqueles que se dispunham a resistir contra os invasores prussianos -, Marx reconheceu a dimensão do evento histórico e não hesitou em apoiar firmemente o prosseguimento da revolução. Mais tarde, já sob os escombros da Comuna, Marx recapitulou os eventos mais importantes do período e deu novos indícios de que a forma estatal efetivamente não poderia convir a uma organização que pretenda suplantar o capitalismo: "a classe trabalhadora não pode se limitar a tomar a máquina já construída do Estado para fazê-la funcionar segundo seus interesses" (Marx, 2008b [1871]______ (2008b [1871]). La guerre civile en France. Montreuil-sous-Bois: Éditions Science Marxiste., p. 66).

Nos comunicados da AIT, Marx demonstra entender que a Comuna iniciara o processo de transformação das instituições do Estado burguês, de superação do seu caráter político. Afinal, a "verdadeira República" não constituía o objetivo do movimento, mas apenas seu corolário. A Comuna aparece como "a forma política enfim descoberta graças a qual chegar-se-á à emancipação do trabalho" (Marx, 2008b [1871]______ (2008b [1871]). La guerre civile en France. Montreuil-sous-Bois: Éditions Science Marxiste., p. 73). Mas o mérito da Comuna consistia não em ser uma forma política do governo da classe trabalhadora, mas em ser a forma política que tornava possível solapar os fundamentos econômicos sobre os quais repousam a existência de classes e seu governo. A Comuna criava condições, como forma política, para o verdadeiro objetivo da revolução, isto é, a libertação do trabalho.

Esses breves extratos, tendo em mente os desenvolvimentos assinalados, já confirmariam o sentido indubitável da análise marxiana: na luta pela superação do regime burguês, não se trata de constituir uma nova forma política, de tomar o poder do Estado, mas de efetivar o caráter comunitário que o sistema mercantil efetivamente nega. Isso só pode ser completado dando-se lugar a uma nova forma de organização comunitária, que não pode ser chamada de Estado pois se configura a partir de outras premissas sociais.

Se a produção cooperativa não deve permanecer uma quimera e uma armadilha, se ela deve substituir o sistema capitalista, se as sociedades cooperativas reunidas devem organizar a produção nacional sobre um plano comum, colocando-a sobre seu próprio controle, e pôr um fim à anarquia constante e às convulsões periódicas, consequências fatais da produção capitalista, o que seria isso, senhores, senão o comunismo, o comunismo "possível"? (Marx, 2008b [1871]______ (2008b [1871]). La guerre civile en France. Montreuil-sous-Bois: Éditions Science Marxiste., p. 74)

A contraposição desenhada por Marx entre a Comuna e o Estado é evidente: "não apenas a administração municipal, mas ainda toda a iniciativa que havia pertencido até agora ao Estado, retornou às mãos da Comuna" (Marx, 2008b [1871]______ (2008b [1871]). La guerre civile en France. Montreuil-sous-Bois: Éditions Science Marxiste., p. 69). Tal perspectiva se torna ainda mais clara quando são observados os materiais preparatórios para o texto de A guerra civil na França. No primeiro esboço, por exemplo, lê-se:

Todas as revoluções anteriores só haviam transferido o poder organizado - essa forma organizada da escravidão do trabalho - de uma mão para outra. [...] [A Comuna] não foi uma revolução contra esta ou aquela forma de poder de Estado, legitimista, constitucional, republicana ou imperial. Foi uma revolução contra o próprio Estado, esse aborto sobrenatural da sociedade; foi a retomada pelo povo, para o povo, de sua própria vida social (Marx, 1972a [1871]MARX, Karl (1972a [1871]). "Premier essai de rédaction de La guerre civile en France", em La guerre civile en France. Paris: Éditions Sociales., p. 212)

Nesse trecho, ouve-se nitidamente o eco das formulações presentes no artigo crítico ao "prussiano", no qual se podia ler: "nem mesmo os políticos radicais e revolucionários procuram a razão do mal na essência do Estado, mas em uma determinada forma de Estado, que querem substituir por outra forma de Estado" (Marx, 2010d [1844]______ (2010b [1844]). Sobre a questão judaica. São Paulo: Boitempo., p. 38). O mesmo espírito crítico leva o autor a afirmar, novamente no primeiro esboço para A guerra civil na França, que "a Comuna é a retomada do poder de Estado pela sociedade, poder que se torna sua força viva, em vez de ser a força que a domina e subjuga" (Marx, 1972a [1871]MARX, Karl (1972a [1871]). "Premier essai de rédaction de La guerre civile en France", em La guerre civile en France. Paris: Éditions Sociales., p. 213). Todas essas indicações são resumidas no trecho a seguir, definitivo quanto ao teor desse primeiro rascunho:

Isso é a Comuna - forma política da emancipação social, da libertação do trabalho [...] Assim como o aparelho de Estado e o parlamentarismo não constituem a vida verdadeira das classes dominantes, mas somente seus organismos gerais de dominação, somente garantias políticas, as formas e expressões da velha ordem das coisas; do mesmo modo, a Comuna não constitui o movimento social da classe trabalhadora e o movimento regenerador de toda a humanidade, mas somente o meio orgânico de sua ação. A Comuna não suprime as lutas de classes [...], mas produz o meio racional em que a luta de classes pode atravessar suas diversas fases da maneira mais racional e mais humana. [...] Ela começa a emancipação do trabalho - sua grande meta [...] (Marx, 1972a [1871]MARX, Karl (1972a [1871]). "Premier essai de rédaction de La guerre civile en France", em La guerre civile en France. Paris: Éditions Sociales., p. 215-6).

É importante notar que Marx não considera a Comuna, ou seja, o governo da classe trabalhadora, como o fim último da revolução ou o seu estabelecimento pleno. Ela é "somente o meio orgânico de sua ação", ou ainda "o meio racional" para que a luta de classes transcorra de modo mais humano. A Comuna, "forma política da emancipação social" só será esse meio se não abandonar o fim que ela apenas "começa": "a emancipação do trabalho - sua grande meta".

No segundo esboço de redação de A guerra civil na França, Marx reafirma sua preocupação de que a Comuna não seja entendida como um Estado. Para o autor, a classe trabalhadora "não pode se contentar de tomar a máquina de Estado como ela é e fazê-la funcionar por sua própria conta. O instrumento político de sua submissão não pode servir de instrumento político de sua emancipação" (Marx, 1972b______ (1972b [1871]). "Deuxième essai de rédaction de 'La guerre civile en France'". La guerre civile en France. Paris: Éditions Sociales., p. 257).

Mesmo ausentes na versão final apresentada pela AIT, tais passagens não constituem acordes dissonantes, antes reforçam o conteúdo do texto definitivo. Sobretudo, deve-se notar que se essa não foi de modo algum a primeira ocasião em que Marx abordou a negatividade do Estado de forma explícita, tampouco seria a última. É o que se vê na célebre Crítica ao programa de Gotha (1875). Nesse texto, o autor detalhou as inconsistências do programa que selou a unificação da Associação Geral dos Trabalhadores Alemães, fundada em 1863 por F. Lassalle, com o Partido Operário Social-Democrata, fundado em 1869 por W. Liebknecht e A. Bebel, próximos a Marx. A nova organização, o Partido Operário Socialista da Alemanha, veio à luz sob duras críticas de Marx a seu estatuto fundador. As severas observações não foram expostas ao público, mas eram conhecidas de Liebknecht, que impulsionara a união partidária11 11 O texto também era conhecido por W. Bracke, a quem Marx enviara uma carta com suas notas em 5 de maio de 1875. . Marx não se opunha à fusão, mas não aceitava que ela fosse celebrada à custa de posições já conquistadas no seio do movimento operário. Ele chega a cogitar uma declaração pública em que se isentaria (com Engels) de toda responsabilidade pelos rumos do novo partido12 12 A declaração não foi feita, segundo Engels, porque todas as debilidades do Programa de Gotha permaneceram surpreendentemente invisíveis ao público. Em carta a Bebel de 12 de outubro de 1875, Engels (2012 [1875], p. 64) escreveu: "os asnos das folhas burguesas tomaram esse programa com toda a seriedade, leram nele o que lá não se encontrava e entenderam-no ao modo comunista. Os trabalhadores parecem fazer o mesmo. Foi apenas essa circunstância que permitiu a Marx e a mim não nos pronunciarmos publicamente sobre tal programa". A Crítica ao Programa de Gotha só foi divulgada por Engels em 1891. .

Dentre os vários apontamentos incisivos feitos pelo autor das glosas, boa parte se refere à relação do socialismo com a instância político-estatal. Marx criticou duramente a corrente inspirada em Lassalle por impor um programa que se submetia ao jogo político e aceitava a total subserviência ao Estado. "Apesar de toda sua estridência democrática, o programa está totalmente infestado da credulidade servil no Estado que caracteriza a seita lassalliana, ou, o que não é melhor, da superstição democrática, ou, antes, consiste num arranjo entre esses dois tipos de superstição, ambos igualmente distantes do socialismo" (Marx, 2012a [1875]______ (2012a [1875]). Crítica do programa de Gotha. São Paulo: Boitempo., p. 46).

Num texto raro pelas indicações fornecidas sobre a organização geral de um sistema social pós-capitalista, Marx não deixou de sustentar a diferença que existe entre o Estado e a nova entidade que tomaria seu lugar. Mas a questão não aparece em abstrato, e sim em correspondência com a nova forma pensada para o metabolismo social. "No interior da sociedade cooperativa, fundada na propriedade comum dos meios de produção, os produtores não trocam seus produtos; do mesmo modo, o trabalho transformado em produtos não aparece aqui como valor desses produtos" (Marx, 2012a [1875]______ (2012a [1875]). Crítica do programa de Gotha. São Paulo: Boitempo., p. 30). Sem a abstração mercantil que iguala todos os produtos do trabalho, resta que a contribuição de cada indivíduo equivale à parcela da produção social que lhe é destinada, descontada a parcela cabível ao fundo coletivo (fundo do qual usufrui em comunidade): "A mesma quantidade de trabalho que ele deu à sociedade em uma forma, agora ele a obtém de volta em outra forma" (Marx, 2012a [1875]______ (2012a [1875]). Crítica do programa de Gotha. São Paulo: Boitempo., p. 31).

A equivalência deixa de existir apenas como média (ou seja, como somatório de todo o trabalho produzido, por um lado, e consumido, por outro) e passa a valer para cada indivíduo. "Aqui, o igual direito é ainda, de acordo com seu princípio, o direito burguês, embora princípio e prática deixem de se engalfinhar" (Marx, 2012a [1875]______ (2012a [1875]). Crítica do programa de Gotha. São Paulo: Boitempo., p. 31). Se "princípio" e "prática" do direito deixam de se contradizer, é porque a cisão entre a comunidade ilusória e a comunidade verdadeira começou a ser superada. Marx entende que a construção do socialismo só pode ser um processo.

Numa fase superior da sociedade comunista, [...] quando o trabalho tiver deixado de ser mero meio de vida e tiver se tornado a primeira necessidade vital; quando, juntamente com o desenvolvimento multifacetado dos indivíduos, suas forças produtivas também tiverem crescido e todas as fontes da riqueza coletiva jorrarem em abundância, apenas então o estreito horizonte jurídico burguês poderá ser plenamente superado e a sociedade poderá escrever em sua bandeira: "De cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades!" (Marx, 2012a [1875]______ (2012a [1875]). Crítica do programa de Gotha. São Paulo: Boitempo., p. 33)

Somente nesse processo o direito burguês pode ser convertido no seu contrário, um efetivo "direito" desigual para indivíduos desiguais13 13 Como observa Marx 2012a, (p. 32): "O direito, por sua natureza, só pode consistir na aplicação de um padrão igual de medida; mas os indivíduos desiguais (e eles não seriam indivíduos diferentes se não fossem desiguais) só podem ser medidos segundo um padrão igual de medida quando observados do mesmo ponto de vista, quando tomados apenas por um aspecto determinado, por exemplo, quando, no caso em questão, são considerados apenas como trabalhadores e neles não se vê nada além disso, todos os outros aspectos são desconsiderados". . Desaparece a redução de todos os indivíduos à tacanha condição de trabalhadores, ao passo que se abre a possibilidade do "desenvolvimento multifacetado dos indivíduos". O céu desvanece em suas próprias nuvens, afirma-se a comunidade real e consciente dos homens, que nada tem de idílica e abstrata. É a comunidade baseada em um novo padrão de metabolismo social que dispensa a esfera abstrata da igualdade formal entre os homens. É então que Marx pergunta: "por que transformações passará o ordenamento estatal numa sociedade comunista? Em outras palavras, quais funções sociais, análogas às atuais funções estatais, nela permanecerão?" (Marx, 2012a [1875]______ (2012a [1875]). Crítica do programa de Gotha. São Paulo: Boitempo., p. 43).

Não cabe aqui arriscar respostas para essa questão. O que deve permanecer é a certeza de que só se superará realmente a sociabilidade do capital quando for estabelecida uma comunidade consciente e direta entre os homens. Nesse momento, o Estado já deverá ter perdido a sua base real - a comunidade estranhada - e sua existência como comunidade ilusória deixará de se impor como necessidade correspondente.

Por isso, é importante reiterar que a crítica marxiana à politicidade não vislumbra um devir abstratamente apolítico ou idealisticamente "social". A superação da política e do Estado está determinada pela produção de novas formas de interação social alheias à socialização pelo valor. No que concerne às instâncias concretas de organização social, cabe reter a observação marxiana ao programa de Gotha: "não é associando de mil maneiras diferentes a palavra povo à palavra Estado que se avançará um pulo de pulga na solução do problema" (Marx, 2012a [1875]______ (2012a [1875]). Crítica do programa de Gotha. São Paulo: Boitempo., p 43).

Marx não prega simplesmente uma política de boa-vontade, na qual o desaparecimento do Estado é fruto do desprendimento pessoal dos líderes revolucionários. Ainda que tudo dependa efetivamente das direções assumidas durante o processo de mudança (e, por conseguinte, em alguma medida, da personalidade dos envolvidos), a autodissolução estatal proposta por Marx ele vem de par com a superação da forma de sociabilidade baseada no valor. Não por acaso, nas glosas em que rebate as acusações feitas por Bakunin (escritas na mesma época em que Crítica do programa de Gotha) (Marx 2012b [1875]______ (2012b [1875]). "Resumo crítico de Estatismo e anarquia, de Mikhail Bakunin" (excertos), em MARX, K. Crítica do Programa de Gotha. São Paulo: Boitempo., p. 117) afirma que "a dominação de classe dos trabalhadores sobre as camadas sociais do velho mundo que lutam contra ela só pode existir enquanto não for eliminada a base econômica da existência das classes"14 14 O que não deve ser tomado em sentido economicista. Marx sublinha apenas que a revolução, tanto como pressuposto quanto como resultado, implica organizações econômicas particulares. .

Isso não implica ausência de contradições, mas a presença de contradições de ordem diferente das que são impostas pela abstração econômica capitalista. Sem o intermediário abstrato que é o valor, sem a instância de socialização abstrata que é a política, pode emergir um governo que, ao mesmo tempo, não é governo. Afinal, como pondera (Marx 2012b [1875]______ (2012b [1875]). "Resumo crítico de Estatismo e anarquia, de Mikhail Bakunin" (excertos), em MARX, K. Crítica do Programa de Gotha. São Paulo: Boitempo., p. 114), "quando um homem governa a si mesmo, segundo esse princípio ele não governa a si mesmo, pois ele é ele mesmo e não outro". Desfaz-se a separação, a cisão geradora da comunidade ilusória e externa à vivência prática dos homens. O sentido atual da política desaparece e o que se constrói em seu lugar não se apoia sobre abstrações estranhas às forças sociais - forças que, até então tolhidas sob a forma política, podem se afirmar de forma não alienada. Eleições, parlamento, repartição de poderes, nada disso está fadado a desaparecer, mas seu caráter renovado não permite que sejam compreendidas por meio das mesmas categorias criticadas. "O caráter da eleição não depende desse nome, mas das bases econômicas, dos contextos econômicos dos eleitores; e assim que as funções deixarem de ser políticas: 1) não haverá mais nenhuma função governamental; 2) a repartição das funções gerais se tornará uma questão técnico-administrativa [Geschäftssache], que não outorga nenhum domínio; 3) a eleição não terá nada do seu atual caráter político" (Marx 2012b [1875]______ (2012b [1875]). "Resumo crítico de Estatismo e anarquia, de Mikhail Bakunin" (excertos), em MARX, K. Crítica do Programa de Gotha. São Paulo: Boitempo., p. 115)15 15 Ou, como Marx (1972a [1875], p. 214) escrevera num dos esboços de A Guerra Civil na França: "este sufrágio universal é adaptado a seu fim verdadeiro, eleger pelas comunas seus próprios funcionários administrativos e legislativos". .

A teoria revolucionária de Marx está longe de ser plenamente equacionada. O papel do proletariado, a forma de atuar na política para sair da política, todas são questões candentes que não poderiam ser tratadas aqui. Em todo caso, percebe-se que a visão do autor sobre a superação do capitalismo está indiscutivelmente ligada à transformação radical da esfera produtiva, e não apenas à mudança na forma de distribuição16 16 "[...] o socialismo vulgar (e a partir dele, por sua vez, uma parte da democracia) herdou da economia burguesa o procedimento de considerar e tratar a distribuição como algo independente do modo de produção e, por conseguinte, de expor o socialismo como uma doutrina que gira principalmente em torno da distribuição" (Marx, 2012a [1875], p. 34). . Ou seja, está vinculada à transformação da essência do metabolismo social, ao fim da abstração-valor. Por isso Marx pode afirmar a necessidade de desaparecimento do Estado sem sustentar uma perspectiva simplista do comunismo como administração técnica das forças produtivas, convertidas em matéria neutra e cuja mera socialização (ou estatização) garantiria automaticamente a superação do capitalismo. Fetichismo da mercadoria e alienação do Estado se revelam mais uma vez como ângulos distintos de uma mesma mirada crítica, que tem como base uma compreensão positiva do trabalho como práxis e um juízo radical contra sua forma especificamente capitalista.

Notas conclusivas

Conforme exposto, um dos méritos da crítica marxiana à política é a capacidade de reforçar o sentido de sua crítica ao capitalismo: entre o homem e as coisas, assim como entre os próprios homens, não há necessidade de intermediários abstratos e alienados, nos quais em que o homem deposite seu caráter subjetivo em troca de relações reificadas. A politicidade, claro, é uma das figuras concretas da sociabilidade humana, mas em condição extrínseca e contingente, ou seja, historicamente circunstancial. Ela é o modo de efetivação moderno em que esse ser se aliena da possibilidade de autodeterminação, mesmo que tenda a ser considerada como seu atributo mais elevado espiritualmente ou, no mínimo, como o mais indispensável pragmaticamente (Chasin, 2009______ (2009). Marx: estatuto ontológico e resolução metodológica. São Paulo, Boitempo., p. 64).

Mas criticar a alienação imanente ao campo da política não significa atribuir um valor superior à esfera econômica; esta, quando bem observada, encontra-se submetida ao mesmo aparato crítico que desqualifica a politicidade como dimensão imperativamente constituinte do ser social desenvolvido. O fato é que a economia do valor impregna a política de um caráter negativo. Política e economia, campos que só surgem historicamente como tais na era moderna, aparecem igualmente para Marx como esferas a ultrapassar. Tal superação, pela complementaridade entre os dois momentos, só pode ser feita em conjunto. Não há ponto de apoio neutro de onde as transformações possam ser operadas - por isso o caráter necessariamente processual da construção do novo. Numa sociedade pós-capitalista, os sujeitos concretos passariam a controlar de forma consciente os determinantes centrais da sociabilidade humana, isto é, a natureza do elo comunitário existente entre os indivíduos de uma formação social.

Com a superação da economia, desapareceria a vontade intrinsecamente expansiva de objetivação guiada pelo valor e pelo lucro. Essa máquina de sugar trabalho que é o capital seria então desligada e substituída pela produção do necessário socialmente acordado, realizando-se a tendência ao mínimo de esforço e ao máximo de sentido consciente da produção. O homem deixaria para trás, enfim, a obrigação mesquinha de lutar contra seus pares pela sobrevivência, a necessidade tacanha de reduzir-se à condição elementar de trabalhador apenas para sobreviver materialmente. Uma vez equacionada de forma direta e racional a existência material da espécie, o ser social subiria o degrau que lhe permitiria desenvolver seus atributos paraeconômicos sem amarras desnecessárias: o campo da necessidade rasteira seria um pressuposto conquistado; estaria aberto, para o gênero, o campo do entendimento e da criação sem limites estranhos à natureza própria desse entendimento e dessa criação.

A compreensão de que a construção de uma sociedade livre dos determinantes do capital só pode ser o resultado de uma longa marcha - isto é, de um processo de mudanças equilibradas e de construção de novas formas de sociabilidade - indica que tanto o plano da produção quanto o plano da organização comunitária devem ser redefinidos e integrados sob o controle efetivo dos sujeitos. A partir disso, pode-se visualizar a fusão entre política e economia: o Estado como condensação das práticas políticas desaparece sob as novas formas de regulação que tomam o lugar da economia do valor. A política recua em favor da dimensão prático-concreta da existência individual, tornada fundamento e resultado de uma dimensão coletiva consciente. Aflora a união reelaborada das esferas antes autonomizadas e estranhadas do ser. Afirma-se, sobre a base de uma genericidade ativa, um campo de encontro (e desencontro) das vontades humanas, nutridas apenas por seus pressupostos indispensáveis: o grau objetivo de desenvolvimento de suas faculdades produtivas (isto é, do poder gerador do trabalho) e o estágio subjetivo de seu desenvolvimento espiritual. Sem recuperação de nenhuma essência perdida, sem teleologia, sem infalibilidade, apenas a confirmação do momento mais rico, para si mesmo, desse ser objetivo que é o ser social.

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  • ______ (2008b [1871]). La guerre civile en France. Montreuil-sous-Bois: Éditions Science Marxiste.
  • ______ (2010a [1843]). Crítica da filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo.
  • ______ (2010b [1844]). Sobre a questão judaica. São Paulo: Boitempo.
  • ______ (2010c [1844]). "Crítica da filosofia do direito de Hegel: introdução". Crítica da filosofia do Direito de Hegel. São Paulo: Boitempo.
  • ______ (2010d [1844]). "Glosas críticas ao artigo 'O rei da Prússia e a reforma social'. De um prussiano", em MARX, K & ENGELS, F. Lutas de classes na Alemanha. São Paulo: Boitempo.
  • ______ (2011 [1857-1858]). Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858. Esboços da crítica da economia política. São Paulo: Boitempo.
  • ______ (2012a [1875]). Crítica do programa de Gotha. São Paulo: Boitempo.
  • ______ (2012b [1875]). "Resumo crítico de Estatismo e anarquia, de Mikhail Bakunin" (excertos), em MARX, K. Crítica do Programa de Gotha. São Paulo: Boitempo.
  • ______ (2013 [1867]). O capital: crítica da economia política. Livro I. São Paulo: Boitempo.
  • MARX, K. & ENGELS, F. (2007 [1845]). A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo.
  • 1
    É o caso de Jessop 1982JESSOP, Bob (1982). The capitalist State: Marxist theories and methods. New York: New York University Press., (p. 25), que caracteriza os anos 1843-1844 como aqueles da "juventude hegeliano-jacobina" de Marx. Artous (1999)ARTOUS, Antoine (1999). Marx, l'État et la politique. Paris: Syllepse. também enxerga uma superação da categoria alienação com o tratamento marxiano do fetichismo.
  • 2
    Althusser 2013 [1969]ALTHUSSER, Louis (2013 [1969]). "Advertência aos leitores do Livro I d'O capital", em MARX, K. O capital: crítica da economia política. Livro I. São Paulo: Boitempo., (p. 85) chega a recomendar que a consideração de toda a seção I do primeiro livro de O capital seja deixada de lado em uma primeira leitura da obra, técnica de análise que se justificaria, segundo ele, pelo fato de a referida seção conter o "último vestígio da influência hegeliana, e dessa vez flagrante e extremamente prejudicial (já que todos os teóricos da 'reificação' e da 'alienação' encontraram nele com o que 'fundar' suas interpretações idealistas do pensamento de Marx): a teoria do fetichismo" (Althusser, 2013 [1969]ALTHUSSER, Louis (2013 [1969]). "Advertência aos leitores do Livro I d'O capital", em MARX, K. O capital: crítica da economia política. Livro I. São Paulo: Boitempo., p. 88).
  • 3
    É importante notar que os Manuscritos econômico-filosóficos (1844) também oferecem elementos importantes para a compreensão das categorias marxianas aqui discutidas. Por limitação de espaço, no entanto, a obra não será abordada.
  • 4
    Ao que Marx 2007______ (2007 [1845]). "Ad Feurbach", em MARX, K. & ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo., (p. 533) prossegue: "Feuerbach, que não penetra na crítica dessa essência real, é forçado, por isso: 1) a fazer abstração do curso da história, fixando o sentimento religioso para si mesmo, e a pressupor um indivíduo humano abstrato - isolado; 2) por isso, a essência só pode ser apreendida como 'gênero', como generalidade interna, muda, que une muitos indivíduos de modo natural".
  • 5
    A tradução citada propõe "condição humana" para a expressão alemã menschliches Wesen, deixando de lado a tradução usual de Wesen por "essência". Do ponto de vista filosófico, a escolha é interessante. De fato, Marx está falando do caráter basilar do ente humano, de seu ser próprio - nesse sentido, portanto, de sua condição de ser.
  • 6
    "A Convenção era o suprassumo da energia política, do poder político e do senso político", aponta Marx em outra passagem (Marx, 2010d______ (2010d [1844]). "Glosas críticas ao artigo 'O rei da Prússia e a reforma social'. De um prussiano", em MARX, K & ENGELS, F. Lutas de classes na Alemanha. São Paulo: Boitempo., p. 37).
  • 7
    Ver Lukács 2013______ (2013). Para uma ontologia do ser social. Parte 2. São Paulo: Boitempo., (capítulo "O trabalho").
  • 8
    Nos Grundrisse, Marx não distingue claramente entre as categorias de valor e valor de troca. Com base em seus desenvolvimentos posteriores, no entanto, é possível realizar uma leitura retroativa e perceber que, mesmo não aparecendo de forma acabada, o conceito de valor já faz parte da análise marxiana.
  • 9
    Na margem do manuscrito de A ideologia alemã, Marx acrescenta uma nota de especial interesse teórico-filológico. O autor inicia o comentário da seguinte forma: "essa 'alienação' [Entfremdung] para usarmos um termo compreensível aos filósofos..." (Marx e Engels, 2007MARX, K. & ENGELS, F. (2007 [1845]). A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo., p. 38). Não é preciso continuar a citação para perceber que Marx identifica o termo alienação com o idealismo alemão ("os filósofos"). Essa pode ser uma pista sobre o porquê da opção feita, na redação de O capital, pelo termo "fetichismo". A partir daí, pode-se imaginar que a palavra, vista por Marx como isenta da carga idealista que pesava sobre alienação [Entfremdung], foi escolhida por ele precisamente por isso.
  • 10
    O governo provisório, posteriormente instalado em Versalhes, evitava mencionar o termo "república" em comunicados oficiais. Em suma, como observa Marx, a república era tratada por muitos dos versalheses como um meio provisório para o restabelecimento da monarquia na França.
  • 11
    O texto também era conhecido por W. Bracke, a quem Marx enviara uma carta com suas notas em 5 de maio de 1875.
  • 12
    A declaração não foi feita, segundo Engels, porque todas as debilidades do Programa de Gotha permaneceram surpreendentemente invisíveis ao público. Em carta a Bebel de 12 de outubro de 1875, Engels (2012 [1875], p. 64) escreveu: "os asnos das folhas burguesas tomaram esse programa com toda a seriedade, leram nele o que lá não se encontrava e entenderam-no ao modo comunista. Os trabalhadores parecem fazer o mesmo. Foi apenas essa circunstância que permitiu a Marx e a mim não nos pronunciarmos publicamente sobre tal programa". A Crítica ao Programa de Gotha só foi divulgada por Engels em 1891.
  • 13
    Como observa Marx 2012a______ (2012a [1875]). Crítica do programa de Gotha. São Paulo: Boitempo., (p. 32): "O direito, por sua natureza, só pode consistir na aplicação de um padrão igual de medida; mas os indivíduos desiguais (e eles não seriam indivíduos diferentes se não fossem desiguais) só podem ser medidos segundo um padrão igual de medida quando observados do mesmo ponto de vista, quando tomados apenas por um aspecto determinado, por exemplo, quando, no caso em questão, são considerados apenas como trabalhadores e neles não se vê nada além disso, todos os outros aspectos são desconsiderados".
  • 14
    O que não deve ser tomado em sentido economicista. Marx sublinha apenas que a revolução, tanto como pressuposto quanto como resultado, implica organizações econômicas particulares.
  • 15
    Ou, como Marx (1972a [1875], p. 214) escrevera num dos esboços de A Guerra Civil na França: "este sufrágio universal é adaptado a seu fim verdadeiro, eleger pelas comunas seus próprios funcionários administrativos e legislativos".
  • 16
    "[...] o socialismo vulgar (e a partir dele, por sua vez, uma parte da democracia) herdou da economia burguesa o procedimento de considerar e tratar a distribuição como algo independente do modo de produção e, por conseguinte, de expor o socialismo como uma doutrina que gira principalmente em torno da distribuição" (Marx, 2012a [1875]______ (2012a [1875]). Crítica do programa de Gotha. São Paulo: Boitempo., p. 34).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2015

Histórico

  • Recebido
    09 Ago 2014
  • Aceito
    27 Abr 2015
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