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Democracia política e justiça social são ideais incompatíveis? 1 1 Agradeço os comentários dos professores Álvaro de Vita, Lucas Petroni, Núnzio Ali e Ana Claudia Lopes e do Grupo de Estudos de Teoria Política (Getepol). Agradeço também os comentários e as sugestões dos pareceristas anônimos da RBCP. A pesquisa que originou este artigo foi financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

Are political democracy and social justice incompatible ideals?

Resumo:

O aprofundamento democrático, a universalização do sufrágio e a extensão do direito à participação, embora sejam conquistas históricas extremamente valiosas, não fizeram desaparecer injustiças como o racismo, misoginia e outras formas degradantes de tratamento que caracterizam não apenas as oligarquias e as ditaduras persistentes no mundo, mas também a maioria das democracias atuais. A dificuldade de regimes democráticos produzirem sociedades mais justas, somada à convivência interna com injustiças severas, vem fazendo com que teóricos e autoridades públicas em todo o mundo questionem: Democracia política e justiça social são ideais incompatíveis? Partindo da teoria rawlsiana, o artigo procura argumentar que justiça social e democracia política são ideais distintos, mas compatíveis, sendo a relação entre eles de mútua influência.

Palavras-chave:
democracia; justiça social; desigualdades; John Rawls

Abstract:

The deepening of democracy, the universalization of suffrage and the extension of the right to participation, despite being extremely valuable historical achievements, did not eliminate injustices such as racism, misogyny and other degrading forms of treatment that characterize not only the world´s persistent oligarchies and dictatorships, but also most of today’s democracies. The difficulty of democratic regimes in producing fairer societies, as well as their coexistence with severe injustice, has led theorists and public authorities around the world to ask the question: Are political democracy and social justice incompatible ideals? From the standpoint of Rawlsian theory, this article seeks to argue that social justice and political democracy are two distinct ideals that mutually influence one another.

Keywords:
democracy; social justice; inequalities; John Rawls

Introdução

A despeito do incremento da participação política e da universalização do sufrágio, as desigualdades de renda e riqueza têm atingido níveis alarmantes na maioria dos Estados que adotam algum tipo de regime democrático.3 3 Para um mapeamento da trajetória das desigualdades socioeconômicas em sociedades democráticas, conferir: PIKETTY, 2020. O crescimento desenfreado das desigualdades econômicas é, hoje, um problema urgente e uma ameaça à ideia de igualdade política dos cidadãos, de modo que nem mesmo o sufrágio universal e a regra da maioria, tradicionalmente interpretados como freios ao aumento da desigualdade, têm se mostrado mecanismos eficazes ou contrapesos suficientes para salvaguardar as fundações democráticas.

O termo democracia tem sido usado indiscriminadamente no debate contemporâneo para designar tanto uma forma de governo4 4 Em referência à ideia de democracia como uma forma de governo, os termos “regime democrático” e “democracia política” serão utilizados como intercambiáveis. assentada sobre regra da maioria e sufrágio universal, quanto para descrever um tipo de sociedade caracterizada, entre outras coisas, por algum grau de igualdade de condições entre os seus cidadãos. Ainda que aceitemos que a descentralização da renda e da riqueza socialmente produzida constitui um elemento importante para uma concepção de justiça social, permanece em aberto saber se podemos esperar que um regime democrático nos conduza a resultados socialmente mais justos, ou mesmo analisar a compatibilidade entre ideais de justiça social e de democracia política: o artigo se dedica a esse problema.

Nas últimas décadas, a convivência entre desigualdades sociais profundas e regimes democráticos tem levado teóricos e autoridades políticas em todo o mundo a questionar se há compatibilidade entre ideais de justiça social e democracia. Em linhas gerais, essa suposta incongruência nos conduziria a uma escolha forçada entre liberdades políticas ou justiça social, de modo que precisaríamos questionar: O que deve ter precedência, eliminar a pobreza e a miséria ou garantir liberdade política e direitos civis? Seria a democracia um luxo do qual os mais pobres devem prescindir em nome de uma sociedade economicamente mais desenvolvida e igualitária? Qual o valor das liberdades políticas para os mais destituídos? Ou, ainda: A desigualdade e a pobreza são ameaças iguais aos ideais de justiça e democracia?

De maneira esquemática, o argumento deste artigo pode ser desdobrado em duas partes. Em primeiro lugar, buscaremos responder ao problema do porquê uma concepção de justiça social deve levar em conta as liberdades políticas: quando imaginamos uma sociedade idealmente justa, é difícil argumentar que não seria uma sociedade democrática, isto é, uma sociedade que concebe os seus cidadãos como livres e iguais também quando deliberam sobre o destino comum de sua própria comunidade política. Dito de outro modo: uma sociedade perfeitamente justa deve ser também uma sociedade que adota alguma forma de regime democrático, sendo a justiça social incompatível com autocracias e oligarquias, mesmo que distributivamente mais igualitárias.

A outra face do argumento se dedica a responder por que o valor da democracia, pensada como uma sociedade de iguais, pode ser maculado quando não levamos em conta uma concepção de justiça social igualitária. Isto é: a igualdade política dos cidadãos de um regime democrático impõe limites às desigualdades socioeconômicas que o regime pode tolerar. O que se espera com esse desdobramento é argumentar na direção de uma concepção de justiça social e de democracia política como ideais distintos, mas compatíveis e com implicações mútuas. Trata-se de uma concepção democrática de justiça social.

Para isso, a primeira seção é dedicada a apresentar algumas objeções que vêm sendo mobilizadas, no debate público e filosófico, à ideia de compatibilidade entre justiça social e democracia política. Na seção seguinte, buscar-se-á apresentar, com base na concepção de justiça como equidade, como é possível conceber uma teoria democrática da justiça. Na terceira seção objetiva-se discutir mais detalhadamente uma condição fundamental para inclinar a democracia política à produção de resultados socialmente mais justos, isto é, a ideia de valor equitativo das liberdades políticas. Por fim, a última seção será dedicada a explorar alguns “mecanismos” pelos quais as desigualdades econômicas podem corromper a ideia de igualdade política dos cidadãos, mesmo em sociedades economicamente mais abastadas.

Democracia política ou justiça social?

A relação positiva entre democracia e justiça social é, segundo Philippe Van Parijs (2011, p. 1995)VAN PARIJS, Philippe. Just democracy: The Rawls and Machiavelli programme. Colchester: ECPR Press, 2011., uma ideia intuitiva bastante difundida entre os filósofos da democracia. Contudo, para o autor, bastaria um olhar mais desapaixonado para as democracias modernas para percebermos que entre elas e a justiça há uma relação menos imediata e mais conflituosa do que a maioria dos teóricos parecem supor, ou estão mesmo dispostos a admitir. Isso leva Van Parijs (2011; 1995)VAN PARIJS, Philippe. Just democracy: The Rawls and Machiavelli programme. Colchester: ECPR Press, 2011. a questionar: Democracia e Justiça são incompatíveis?

Partindo de uma definição minimalista, Van Parijs (2011, p. 7)VAN PARIJS, Philippe. Just democracy: The Rawls and Machiavelli programme. Colchester: ECPR Press, 2011. entende democracia como a combinação de regra da maioria, sufrágio universal e voto livre. Embora reconheça que cada um desses elementos mereceria especial atenção, o que o autor procura enfatizar é que sua concepção se limita aos procedimentos democráticos, sem reservar qualquer expectativa ou comprometimento com os resultados que esse método de escolha política pode produzir: “Uma sociedade é democrática porque suas decisões políticas são (fundamentalmente) tomadas segundo um procedimento que satisfaz às três condições mencionadas, e não porque essas decisões produzem um determinado resultado substantivo” (VAN PARIJS, 1995VAN PARIJS, Philippe. A democracia e a justiça são incompatíveis? Revista Estudos Avançados, v. 9, n. 23, São Paulo, p. 109-128, 1995., p. 110).

Igualmente exígua é a sua concepção de justiça5 5 Uma concepção de justiça é, segundo Rawls (2008, p. 7), um conjunto de valores políticos e/ou um modo de arbitrar a relação entre eles. , definida como a maximinização das condições materiais, combinada com uma exigência por respeito às liberdades individuais. Van Parijs (1995, p. 110)VAN PARIJS, Philippe. A democracia e a justiça são incompatíveis? Revista Estudos Avançados, v. 9, n. 23, São Paulo, p. 109-128, 1995. diz, na verdade, que sua concepção de justiça deve respeitar as liberdades fundamentais, e não individuais como interpretado aqui. A passagem conta com uma breve nota de rodapé, em que o autor diz acompanhar a ideia de liberdades fundamentais de Rawls (2008)RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2008. em Uma Teoria da Justiça. Contudo, como será mostrado adiante, o primeiro princípio de justiça de Rawls, que versa sobre as liberdades fundamentais, inclui liberdades políticas, associadas a tradições de pensamento democrático. Assim, a ideia de liberdades fundamentais que compõe a justiça como equidade é mais robusta, tornando a democracia política uma exigência: essa é justamente a incompatibilidade que Van Parijs (1995)VAN PARIJS, Philippe. A democracia e a justiça são incompatíveis? Revista Estudos Avançados, v. 9, n. 23, São Paulo, p. 109-128, 1995. parece acusar. Nas palavras do filósofo belga, “o que torna uma sociedade justa é o fato de que, graças às suas instituições, as condições materiais dos mais destituídos é (de forma duradoura) melhor do que seria se outras instituições tivessem sido escolhidas” (VAN PARIJS, 1995VAN PARIJS, Philippe. A democracia e a justiça são incompatíveis? Revista Estudos Avançados, v. 9, n. 23, São Paulo, p. 109-128, 1995., p. 110). Portanto, trata-se de uma concepção de justiça que enfatiza a dimensão econômica da vida: aplicado à dimensão distributiva, o ideal maximin constitui o seu critério de justiça.6 6 Nesta seção, aceitaremos essa definição de justiça a fim de mostrar suas próprias tensões internas e os limites de uma concepção de justiça social, que assume como fundamental simplesmente a promoção de sociedades economicamente mais igualitárias. Adiante apresentaremos uma concepção alternativa, que assume a relação positiva entre democracia e justiça social.

Poderíamos agora imaginar uma democracia política na qual os cidadãos fossem convidados a optar por uma taxação entre 0 e 100% sobre a renda individual, com o propósito de subsidiar uma renda universal igual para todos. A hipótese aventada por Van Parijs (2011, p. 9)VAN PARIJS, Philippe. Just democracy: The Rawls and Machiavelli programme. Colchester: ECPR Press, 2011. assume as mesmas premissas das chamadas teorias do eleitor mediano7 7 Simplificadamente, o eleitor mediano é aquele cujo apoio é indispensável para ultrapassar a barreira dos 50% de votos em favor de uma entre duas propostas ou plataformas políticas. Isso faz desse grupo o mais decisivo e que, portanto, tenderia a desequilibrar as eleições quando adotada a regra da maioria. Tais pressupostos se inserem no conjunto mais amplo das chamadas teorias da escolha racional, que partem das premissas comuns à teoria econômica. A ideia precípua é a de que as decisões tomadas no âmbito político, seja pelos governantes ou pelos eleitores, refletem um comportamento racional, em busca da maximização de seus interesses pessoais (Ver VAN PARIJS, 2011, p. 9). : a alíquota preferida dependeria da relação entre renda média e a renda do eleitor mediano. A suposição é que, caso a renda média esteja acima da renda mediana, qualquer regra de votação que converta em eleitores aqueles indivíduos concentrados abaixo da renda média incentivaria fortemente a adoção de políticas redistributivas, financiadas por impostos sobre os rendimentos de cada um.

A princípio, continua o exemplo, poderíamos imaginar uma sociedade extremamente desigual, na qual uma pequena parcela da população concentra uma grande quantidade da renda e da riqueza socialmente produzida. A vontade da maioria, valendo-se dos métodos democráticos, inclinar-se-ia para uma taxação de 100% das rendas brutas individuais. Esse seria o índice que mais elevaria as rendas líquidas mais baixas e que, portanto, melhor satisfaria o critério maximin de justiça adotado por Van Parijs (2011, p. 14)VAN PARIJS, Philippe. Just democracy: The Rawls and Machiavelli programme. Colchester: ECPR Press, 2011.. Contudo, quando levamos em conta os efeitos dinâmicos da distribuição e da produção, uma alíquota tão elevada esbarra em dificuldades, pois, embora a renda mínima e a renda mediana fossem igualadas ao nível da renda média, é possível que a produção sofresse significativo decréscimo ao longo do tempo. Isto é, passadas algumas gerações, a renda média não seria a mesma, ou não estaria muito próxima a um caso em que nenhuma taxação tivesse sido adotada. Embora pudéssemos supor que essa seria uma sociedade mais igualitária, a prescrição de uma alíquota tão elevada pode encontrar obstáculos do ponto de vista da eficiência, podendo não ser o modo de elevar tanto quanto possível a renda absoluta dos mais destituídos de maneira duradoura, outra exigência da concepção de justiça de Van Parijs.

É provável que uma tributação percentualmente menor e que produzisse menores impactos na geração de renda e riquezas (embora comporte algum grau de desigualdade material) seria capaz de beneficiar com uma quota absoluta maior e mais duradoura os mais destituídos. Dito de outra maneira: uma alíquota muito elevada poderia ser ineficiente com o passar do tempo, visto que recompensa todos igualmente, independentemente de suas contribuições individuais na produção da riqueza. Assim, “nem a preocupação de conquistar os favores do eleitor mediano, nem a preocupação de servir aos interesses dos mais destituídos, levar-nos-iam a defender uma taxação de 100%” (VAN PARIJS, 1995VAN PARIJS, Philippe. A democracia e a justiça são incompatíveis? Revista Estudos Avançados, v. 9, n. 23, São Paulo, p. 109-128, 1995., p. 114).

Uma segunda e mais importante objeção é feita por Van Parijs: a preocupação com uma redistribuição que atenda às necessidades dos mais pobres e a preocupação com a renda do eleitor mediano não conduz à expectativa de adoção de uma mesma alíquota. Se a tendência em um regime democrático é de busca pela elevação da renda do eleitor mediano, outros percentuais podem ser preferidos, mesmo que os resultados não sejam a promoção de maior igualdade entre as diferentes faixas de renda, ou aqueles que mais beneficiem o grupo mais pobre.

Concepções de justiça social que adotam um critério maximin para distribuição das rendas e riquezas socialmente produzidas, como é o caso de Van Parijs e John Rawls, recomendam a adoção de uma alíquota que beneficie sobretudo os mais destituídos, às custas dos grupos mais opulentos e, por vezes, majoritários de uma tal sociedade. Contudo, não há nada no processo democrático, na regra da maioria em particular, que faça com que os membros de um grupo majoritário sejam obrigados a aceitar, ainda que de forma modesta, a redução do seu nível de bem-estar, mesmo que isso seja necessário para que o bem-estar de um grupo minoritário mais desfavorecido seja elevado (VITA, 2008VITA, Álvaro de. O liberalismo igualitário: sociedade democrática e justiça internacional. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2008., p. 129). Por mais que a extensão da participação democrática seja de fato uma conquista histórica valiosa, ela não oferece auxílio para a resolução do debate que ora se apresenta.

Em suma, o que Van Parijs acusa é um desacordo entre um critério maximin de justiça, que promoveria o máximo benefício ao grupo menos favorecido, e um critério que o autor chama maximed, que visa à maximização das vantagens do grupo mediano. Ecoando as proposições da chamada teoria do eleitor mediano, o segundo grupo tenderia a obter maior sucesso num processo decisório de tipo majoritário, característico dos regimes democráticos. Assim, o filósofo belga é enfático:

Se não podemos supor uma harmonia preestabelecida entre justiça e democracia - se, ao contrário, há razões profundas para esperar conflitos agudos entre elas -, então temos que perguntar qual delas é preferível sacrificar. Minha resposta a essa questão é clara: vamos aderir à justiça e sacrificar a democracia. Pois, esta última não é um ideal que é importante por si mesmo (VAN PARIJS, 1995VAN PARIJS, Philippe. A democracia e a justiça são incompatíveis? Revista Estudos Avançados, v. 9, n. 23, São Paulo, p. 109-128, 1995., p. 118).

Em tom menos provocativo, Van Parijs (2011, p.15)VAN PARIJS, Philippe. Just democracy: The Rawls and Machiavelli programme. Colchester: ECPR Press, 2011. reconhece que o abandono da democracia também não significa, por si só, um passo na direção da justiça, e até mesmo que não há formas de governo disponíveis em nossa história política, ou em nossa tradição intelectual, que possam nos auxiliar mais nesse fim. Contudo, a questão central que é posta pelo filósofo não diz respeito às formas de aperfeiçoar a democracia para torná-la mais inclusiva ou participativa, ou a busca de uma concepção de democracia que tenha fim em si mesma. O interesse do autor é por um arranjo institucional que permita dispor a democracia a serviço de uma concepção de justiça maximin:

a institucionalidade democrática não deve ser orientada por um ideal democrático autônomo - igualdade de poder entre todos os cidadãos, implementação da vontade geral etc. -, mas por um ideal de justiça em relação ao qual qualquer ideal democrático que se possa desejar formular constitui, na melhor das hipóteses, um puro instrumento (VAN PARIJS, 2011VAN PARIJS, Philippe. Just democracy: The Rawls and Machiavelli programme. Colchester: ECPR Press, 2011., p. 16, tradução própria).

Dizer que algo é intrinsecamente valioso significa afirmar que temos razões para buscar realizá-lo independentemente de qualquer outro motivo que possamos ter para nos preocupar ou desejar qualquer outra coisa (ANDERSON, 2009ANDERSON, Elizabeth. Democracy: instrumental vs. non-instrumental value. In: CHRISTIANO, T.; CHRISTMAN, J. (org.). Contemporary debates in political philosophy. Hoboken: Wiley-Blackwell, 2009. p. 213-228., p. 222). Esse é precisamente o status que a justiça social possui para Van Parijs (2011)VAN PARIJS, Philippe. Just democracy: The Rawls and Machiavelli programme. Colchester: ECPR Press, 2011.. Uma vez estabelecido aquilo que possui valor intrínseco, buscamos justificar ações e instituições com base na sua eficácia causal para auxiliar-nos na promoção desses estados independentemente valiosos. Isto é, buscamos os instrumentos necessários para alcançar aquilo que possui valor intrínseco. A democracia política, para Van Parijs, não é mais do que um instrumento politicamente útil para a realização de uma sociedade mais justa.

Com a ajuda de Sen (2010, p. 196)SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. 8 8 Apesar de Sen auxiliar-nos na formulação de algumas das principais objeções à relação positiva entre democracia e justiça social, Sen não se coloca ao lado daqueles que veem esses termos como incompatíveis ou ainda entre aqueles que submetem a democracia à eficiência econômica. , podemos formular mais duas objeções importantes comumente dirigidas por aqueles que enxergam em lados distintos os ideais de democracia e justiça social. A primeira delas afirma que as liberdades e os direitos políticos tolhem as possibilidades de crescimento econômico, de sorte que aquilo que poderia ser distribuído em uma democracia política seria significativamente menor do que o montante que poderia ser produzido em regimes não democráticos. Resumidamente, a acusação é a de que regimes democráticos não constituem a forma mais eficiente de elevar tanto quanto possível a renda dos mais destituídos em termos absolutos. Por vezes, o argumento é apresentado a partir da ideia de etapas: os regimes não democráticos seriam uma etapa importante para impulsionar o desenvolvimento econômico. Somente quando um certo limiar de desenvolvimento econômico fosse alcançado, poder-se-ia fazer a transição para uma forma democrática de governo. Chamaremos essa tese de argumento da eficiência.9 9 Sen apresenta esse argumento sob a denominação de Tese de Lee, em referência ao ex-primeiro-ministro de Cingapura, Lee Kuan Yew (Ver SEN, 2010).

Uma segunda objeção afirma que, caso fosse facultada aos mais pobres a possibilidade de escolher entre a satisfação de necessidades econômicas ou a garantia de liberdades políticas, eles invariavelmente optariam pela primeira alternativa. Assim, haveria uma contradição entre a justificação e a prática da democracia: “a opinião da maioria tenderia a rejeitar a democracia - dada essa escolha” (SEN, 2010SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2010., p. 196). Os cidadãos teriam melhores razões para desejar eliminar, inicialmente, as privações e necessidades extremas impostas pela pobreza, podendo abdicar das liberdades políticas que pouco parecem auxiliar suas prioridades reais. Em suma, o argumento pode ser assim formulado: os mais pobres têm na superação das privações impostas pela pobreza seu principal desejo; logo, se as liberdades políticas não auxiliam esse fim primeiro10 10 Essa segunda objeção é, em parte, dependente da veracidade do argumento da eficiência. , ela pode ser recusada. Chamaremos essa tese de argumento da dissociação.

A necessidade de uma escolha entre ideais incompatíveis é, para Amartya Sen, um enquadramento equivocado para o tratamento da relação entre a força das necessidades econômicas e a importância das liberdades políticas. A suposta tensão acusada por Van Parijs (2011)VAN PARIJS, Philippe. Just democracy: The Rawls and Machiavelli programme. Colchester: ECPR Press, 2011. e pelos argumentos da eficiência e da dissociação lançaria na penumbra aquilo que Sen (2010, p. 195)SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. considera a questão mais relevante: a forma pela qual as liberdades políticas auxiliam significativamente na compreensão e na superação das necessidades econômicas e na promoção da justiça social, tanto que a intensidade das privações impostas pela pobreza aumenta, ao invés de minorar, a necessidade de se assegurarem as liberdades políticas.

Há poucas evidências empíricas que associam governos não democráticos e a supressão de liberdades políticas como condição ao desenvolvimento econômico. Os defensores do argumento da eficiência têm adotado os países do Leste Asiático como exemplos representativos de sociedades economicamente desenvolvidas e não democráticas. Contudo, essa relação tem se mostrado espúria. Conforme Sen (2010, p. 198)SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2010., já é sabido que as circunstâncias políticas que auxiliam o êxito econômico não estão associadas à supressão de liberdades políticas, mas a um conjunto de políticas públicas que promovam um alto nível de alfabetização e educação formal, abertura à concorrência e ao mercado internacional, industrialização e reformas agrárias bem-sucedidas: “Não existe absolutamente nada que indique que qualquer uma dessas políticas seja inconsistente com a democracia e precise realmente ser sustentada pelos elementos de autoritarismo que estavam presentes na Coreia do Sul, em Cingapura ou na China” (SEN, 2010SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2010., p. 198).

O argumento da dissociação, por sua vez, depende da veracidade de uma afirmação: a democracia política, de modo geral, não auxilia na resolução daquele que é assumido como o principal interesse dos cidadãos mais pobres, a saber, a superação da pobreza. Contudo, essa afirmação é um equívoco como premissa e falsa como conclusão. A garantia de direitos políticos aos cidadãos dá a eles a oportunidade de chamar a atenção para suas demandas prioritárias (que pode incluir a superação da miséria e da fome), eleger aqueles candidatos que estejam alinhados com essa agenda e punir, eleitoralmente, aqueles que defendem interesses alternativos. Em regimes democráticos, os governantes têm maiores incentivos para ouvir os interesses dos cidadãos, sobretudo porque seus mandatos dependem em grande medida da aprovação popular. Assim, argumenta Sen (2010)SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2010., o exercício das liberdades políticas constitui um importante instrumento no combate a algumas tragédias humanitárias, como a fome coletiva11 11 Afirmar que as democracias estabelecidas são menos suscetíveis a tragédias como a fome coletiva é diferente de dizer que países democráticos não convivem com a pobreza e desigualdades, por vezes, severas. :

Nunca uma fome coletiva se materializou em um país que fosse independente, que tivesse eleições regularmente, partidos de oposição para expressar críticas e que permitisse aos jornais noticiar livremente e questionar a sabedoria das políticas governamentais sem ampla censura (SEN, 2010SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2010., p. 201).

Esta seção buscou apresentar uma concepção de justiça social fortemente orientada por parâmetros distributivos e algumas objeções de quem recusa a aliança com regimes democráticos, apontados como dois ideais incompatíveis. Contudo, podemos conceber a relação entre justiça e democracia de forma não puramente instrumental, mas como dois ideais distintos e irredutíveis. O liberalismo rawlsiano assume, enquanto parte de sua concepção de justiça como equidade, a exigência de liberdades políticas e, nesse sentido, não impõe aos cidadãos a questão sobre se é preferível viver em uma sociedade mais justa ou politicamente democrática.

Democracia política e justiça social

John Rawls não é frequentemente lembrado como um teórico da democracia. Apesar de sua proposta de justiça como equidade ser pensada como uma concepção de justiça social para uma sociedade democrática, o autor deixa em aberto questões relativas à mobilização política, detalhes da engenharia institucional, tomada de decisão legislativa e outros aspectos que poderiam ser considerados relevantes para um regime democrático moderno.12 12 Embora Rawls conceba a democracia política como um regime constitucional, isto é, um regime político jurídico baseado em direitos subjetivos e procedimentos representativos, o autor deixa em aberto questões relativas às características principais de uma instituição democrática capaz de realizar a justiça como equidade, em parte, por considerar que muitas dessas questões não dizem respeito a uma teoria da justiça, e devem ser mais bem exploradas pela sociologia política (RAWLS, 2008, p. 280).

A suposta vagueza ou silêncio de Rawls sobre aspectos importantes de um regime democrático não significa que sua obra tenha pouco a dizer sobre o assunto. Contudo, como afirma Gutmann (2003, p. 169)GUTMANN, Amy. Rawls on the relationship between liberalism and democracy. In: FREEMAN, S. (org). The Cambridge companion to Rawls. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. p. 168-199., isso torna a relação entre a justiça como equidade e a democracia política uma tarefa, sobretudo de interpretação, muito mais do que de mera demonstração.13 13 Para uma interpretação acerca do melhor “modelo” de democracia para realizar a justiça como equidade, conferir VITA (2008), em seu capítulo 4: “Sociedade democrática e democracia política”. Dessa forma, poderíamos perguntar: em que sentido a realização da concepção de justiça como equidade exige alguma forma de democracia política? Nas seções que se seguem, argumentar-se-á que a democracia política é, ela própria, um requisito fundamental do ideal de justiça, como fica mais claro na justiça como equidade, principalmente devido à formulação que Rawls oferece em seu primeiro princípio. Nesse sentido, o valor da democracia não é dispensável, tampouco uma questão meramente derivativa ou instrumental, mas parte importante da ideia de justiça social.

Ao formular o seu primeiro princípio de justiça, identificado como princípio de liberdades e direitos fundamentais, Rawls (2011, p. 6)RAWLS, John. O liberalismo político. São Paulo: Martins Fontes, 2011. afirma que cada pessoa deve ter um direito igual a um sistema de liberdades básicas similarmente extensível para todos. Entre as liberdades básicas inclui-se uma família de direitos e compromissos clássicos da tradição liberal, tais como a liberdade de pensamento, consciência e expressão. Rawls inclui, ainda, as liberdades políticas, que, segundo o autor, devem ser iguais e, conforme trataremos adiante, somente elas devem ter o seu valor equitativo assegurado.

O seu ponto de partida é a convicção de que um regime democrático exige a garantia desse conjunto de liberdades como fundamentais. Os valores protegidos pelo primeiro princípio estão profundamente associados a um Estado de direito e às liberdades que estabelecem uma estrutura democrática de autoridade política, isto é, que estabelecem a ideia de uma democracia constitucional sob forma de um regime político jurídico. Assim, não se trata de um jogo de soma zero, de um tudo ou nada em que é preciso escolher entre o abandono dos direitos políticos em nome da liberdade individual, ou vice-versa.

A inovação teórica de Rawls está, então, no modo como o autor amalgama no seu princípio de liberdades fundamentais os ideais liberais clássicos e as reivindicações por direitos políticos. Conforme Gutmann (2003, p. 179)GUTMANN, Amy. Rawls on the relationship between liberalism and democracy. In: FREEMAN, S. (org). The Cambridge companion to Rawls. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. p. 168-199. explica, em uma sociedade, quando é negado a um indivíduo o seu direito político de votar, temos motivos suficientes para pensar que está sendo negado a ele o reconhecimento público do seu status tanto de pessoa quanto de cidadão livre e igual. O reconhecimento público destas liberdades como fundamentais expressa a posição de cada um como plenamente pertencente a uma dada sociedade, um objetivo valioso, quer do ponto de vista democrático, quer do ponto de vista liberal. Nesse sentido, a justiça como equidade é tanto liberal quanto democrática em sua essência.

Contudo, a prioridade das liberdades fundamentais, na teoria de Rawls, não corresponde plenamente à ideia de “direitos como trunfos”, que expressam pretensões que os indivíduos podem fazer valer contra a busca do bem comum da comunidade política. Enquanto esta última ideia expressa uma posição normativa claramente individualista, a prioridade das liberdades fundamentais é parte de uma concepção relacional de igualdade entre os cidadãos. A questão precípua para o liberalismo rawlsiano não é se certos direitos individuais podem ser invocados para “trunfar” decisões políticas ou como algum tipo de restrição indireta [side-constraints] responsável por limitar o escopo em que a busca do bem coletivo pode se dar, mas interpretar as liberdades fundamentais (ou um “sistema plenamente adequado” dessas liberdades) como um componente da relação política entre pessoas, que, como cidadãos, concebem-se livres e iguais.

O segundo princípio de justiça, composto por dois componentes, afirma que as desigualdades sociais e econômicas devem ser organizadas de tal forma que satisfaça duas condições: (i) devem estar vinculadas a cargos e posições abertos a todos os cidadãos sob condições de igualdade equitativa de oportunidades e (ii) devem ainda ser estabelecidas de modo que promovam o maior benefício possível ao menos favorecidos14 14 Essa recomendação se assemelha àquela apresentada como o critério de justiça maximin de Van Parijs (1995). Contudo, como se vê, embora o critério também ocupe um lugar importante na teoria ralwsiana, a concepção de justiça como equidade não se resume a ela e é, em comparação às proposições de Van Parijs, consideravelmente mais robusta. (RAWLS, 2011RAWLS, John. O liberalismo político. São Paulo: Martins Fontes, 2011., p. 6).

A disposição dos princípios de justiça, tal como proposta por Rawls, obedece ao que o autor identificou como um “ordenamento lexical”. Isso significa que a realização do primeiro princípio deve ter prioridade sobre o segundo. Na prática, a prioridade conferida às liberdades básicas significa que elas só podem ser limitadas em nome de uma acomodação melhor das demais liberdades que também são tidas como fundamentais, nunca em nome do provimento maior de bem-estar social ou outros fins coletivos (RAWLS, 2003RAWLS, John. Justiça como equidade. Uma reformulação. São Paulo: Martins Fontes, 2003., p. 156). Diferentemente daquilo que sugere Van Parijs (1995, p. 118)VAN PARIJS, Philippe. A democracia e a justiça são incompatíveis? Revista Estudos Avançados, v. 9, n. 23, São Paulo, p. 109-128, 1995., na justiça como equidade não é aceitável restringir a liberdade política para melhorar as condições materiais dos grupos menos favorecidos:

imaginemos que as pessoas pareçam dispostas a abrir mão de certos direitos políticos quando a compensação econômica for significativa. É esse o tipo de permuta que os dois princípios proíbem: sua disposição em uma ordem serial exclui intercâmbios entre liberdades fundamentais e ganhos econômicos e sociais (RAWLS, 2008RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2008., p. 76).

A concepção de justiça rawlsiana não atribui nenhum valor ao ideal de liberdade entendido de modo geral. As liberdades que são tidas como fundamentais e ganham prioridade, à medida que são incorporadas no primeiro princípio, são definidas em função do papel que desempenham em uma concepção de justiça social e política (RAWLS, 2011RAWLS, John. O liberalismo político. São Paulo: Martins Fontes, 2011., p. 345-346). Dada a prioridade conferida às liberdades básicas frente ao segundo princípio, Rawls argumenta que apenas algumas liberdades tidas como essenciais devem gozar de tal status especial.

A necessidade de restringir esse status a um conjunto relativamente pequeno de liberdades mais fundamentais se deve à dificuldade de combinar de modo coerente um conjunto mais robusto, o que poderia tornar sua garantia e aplicação demasiadamente embaraçosa. Essa dificuldade conduz à necessidade de estabelecer um critério que nos ajude a avaliar a importância de determinados direitos e liberdades, a fim de saber quais devem ou não ser incluídas no primeiro princípio de justiça (RAWLS, 2003RAWLS, John. Justiça como equidade. Uma reformulação. São Paulo: Martins Fontes, 2003., p. 158).

O estabelecimento de um critério tão ambicioso não é uma tarefa simples, e sua justificação guardou embaraços internos em Uma teoria da justiça, que Rawls acredita ter superado em sua reformulação, julgando que a expressão mais bem acabada pode ser assim apresentada:

as liberdades básicas e sua prioridade devem garantir igualmente para todos os cidadãos as condições sociais essenciais para o desenvolvimento adequado e o exercício pleno e informado de suas duas faculdades morais naquilo que referimos como os dois casos fundamentais (RAWLS, 2003RAWLS, John. Justiça como equidade. Uma reformulação. São Paulo: Martins Fontes, 2003., p. 159).

As capacidades envolvidas na concepção de pessoa moral descrita por Rawls buscam adequar-se à ideia mais fundamental de sociedade como um sistema equitativo de cooperação social entre cidadãos livres e iguais. Nesse sentido, o filósofo destaca (i) nossa capacidade moral enquanto seres humanos de elaborar e perseguir uma concepção completa de bem, geralmente associada a alguma doutrina abrangente de natureza religiosa, filosófica ou moral, e o (ii) senso de justiça que, por sua vez, diz respeito à nossa capacidade moral de entender, aplicar e agir segundo uma concepção de justiça publicamente reconhecida.

É em virtude dessas duas capacidades morais básicas, e de poder exercitá-las em uma sociedade democrática, que se pode considerar que os cidadãos são livres. A posse necessária de tais faculdades, ainda que em um grau mínimo necessário para serem membros plenamente cooperativos de uma sociedade, é o que os torna cidadãos iguais. Essa é a forma como Rawls (2011, p. 22)RAWLS, John. O liberalismo político. São Paulo: Martins Fontes, 2011., na esteira da tradição de pensamento democrático, concebe os cidadãos como pessoas livres e iguais.

Esses são os dois atributos essenciais de nossa personalidade moral e de que todos nós, enquanto seres humanos, somos potencialmente dotados. Os atributos que compõem nossa personalidade moral são inatos e não dizem respeito, por exemplo, ao conteúdo substantivo da concepção de bem adotada por cada um. Esse modo de conceber a igualdade assume a forma de um pressuposto que não pode ser resultado de nenhum acordo ou contrato entre os indivíduos, mas que, necessariamente, deve antecedê-lo como condição à sua realização.

O primeiro caso fundamental ao qual Rawls (2003, p. 159)RAWLS, John. Justiça como equidade. Uma reformulação. São Paulo: Martins Fontes, 2003. se refere vincula-se à nossa primeira capacidade moral, a de ter uma concepção de bem. O exercício das faculdades da razão prática dos cidadãos, de busca e revisão livre e informada de uma concepção de bem, só é possível se eles tiverem assegurado o direito à liberdade de consciência e associação. O segundo caso fundamental se relaciona com nossa segunda capacidade moral, a de ter e agir segundo nosso senso de justiça. Nesse caso, é fundamental que os cidadãos tenham a garantia do direito à liberdade de pensamento e às liberdades políticas iguais asseguradas a todos, como condição ao exercício pleno do seu senso de justiça. Isto é, trata-se de oferecer as condições para que os cidadãos possam deliberar, entre si e com seus representantes, sobre o bem comum e buscar a aplicação de princípios de justiça à estrutura básica de sua sociedade.

Ainda restam as liberdades básicas relacionadas à integridade física e psicológica da pessoa. O direito a essas liberdades, e sua inclusão na lista daquelas liberdades que devem gozar de um status especial, deve-se ao modo como elas se relacionam com os dois casos fundamentais apresentados anteriormente. Em suma, elas são essenciais para que as outras liberdades básicas possam ser garantidas.

Não está excluída a possibilidade de que as próprias liberdades fundamentais conflitem entre si na forma como serão aplicadas ao arranjo institucional. Esse conflito é possível, por exemplo, entre liberdades políticas e individuais e, ao contrário do que se poderia supor, não é o resultado de uma falha teórica. Antecedendo-se a essa possibilidade, Rawls (2003, p. 160)RAWLS, John. Justiça como equidade. Uma reformulação. São Paulo: Martins Fontes, 2003. nos oferece um critério pelo qual os eventuais conflitos podem ser avaliados: devemos julgar a importância relativa de determinadas liberdades em toda a família, assim, uma liberdade é considerada importante à medida que traz maiores implicações para o pleno exercício de uma das faculdades morais em pelo menos um dos casos fundamentais, ou segundo ela seja um meio institucional mais necessário para garantir tais exercícios. Nas palavras do filósofo: “as liberdades mais importantes demarcam o âmbito central de aplicação de uma determinada liberdade básica; e, em caso de conflito, procuramos um modo de acomodar as liberdades mais importantes dentro do âmbito central de cada um” (RAWLS, 2003RAWLS, John. Justiça como equidade. Uma reformulação. São Paulo: Martins Fontes, 2003., p. 160). Isso evita um tipo de avaliação sobre o mérito geral das liberdades políticas versus as liberdades pessoais.

Assim, como forma de proteger a liberdade religiosa, é permitido limitar a liberdade política, restringindo o alcance da vontade da maioria e prescrevendo um direito básico à liberdade de consciência. Uma vez mais esse critério é, em sua essência, tão democrático quanto liberal (GUTMANN, 2003GUTMANN, Amy. Rawls on the relationship between liberalism and democracy. In: FREEMAN, S. (org). The Cambridge companion to Rawls. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. p. 168-199., p. 181). Contudo, em condições razoavelmente favoráveis, explica Rawls (2008, p. 249)RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2008., é possível que as liberdades sejam definidas de tal forma que suas principais aplicações possam ser simultaneamente satisfeitas para que os interesses mais fundamentais dos cidadãos estejam protegidos.

Rawls ainda distingue as liberdades fundamentais, asseguradas no primeiro princípio, daquilo que descreve como o “valor” das liberdades: “a liberdade é representada pelo sistema completo das liberdades da cidadania igual, ao passo que o valor da liberdade para indivíduos e grupos depende de sua capacidade de [efetivamente] promover seus objetivos dentro da estrutura definida pelo sistema” (RAWLS, 2008RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2008., p. 251). Mesmo que institucionalmente as liberdades fundamentais possam ser igualmente estendidas a todos os cidadãos, a presença da pobreza e das desigualdades sociais possibilita que alguns grupos e indivíduos mais abastados tenham maiores condições de ver efetivamente realizadas as suas concepções de boa vida, de modo que para eles a liberdade tenha maior valor. Assim, acrescenta Vita (2008, p. 102)VITA, Álvaro de. O liberalismo igualitário: sociedade democrática e justiça internacional. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2008., o fim da justiça social, de modo geral, e da justiça como equidade em particular, “consiste em maximizar a liberdade efetiva dos que se encontram no quintil inferior da distribuição de recursos sociais escassos”.

Uma vez definido o objetivo da justiça social, a estrutura básica15 15 A justiça social tem por objeto as principais instituições sociais. São elas responsáveis por distribuir os direitos e os deveres fundamentais, além do ônus e o bônus da cooperação social. As instituições mais importantes que estruturam uma comunidade política recebem o nome de estrutura básica. da sociedade deve estar organizada de sorte que promova uma distribuição equitativa dos bens primários16 16 A ideia de bens sociais primários guarda alguns embaraços e grandes debates sobre sua clareza e adequação teórica como métrica para a equiparação dos cidadãos. Para uma apresentação geral do debate, ver (VITA, 2008) em seu capítulo 3: “Justiça distributiva: a crítica de Sen à Rawls”. , isto é, o conjunto de bens que podemos presumir que os indivíduos têm boas razões para valorizar, independentemente daquilo que buscam realizar em sua vida. Os bens primários podem ser descritos como um conjunto polivalente de direitos, liberdades, oportunidades, renda e riqueza cuja posse pode favorecer a realização dos planos racionais dos cidadãos.

Juntos, os dois princípios de Rawls expressam a concepção substantiva de justiça como equidade, que, por sua vez, deve ter prioridade lexical sobre princípios de eficiência, entendidos no sentido ótimo de Pareto. Na esteira de Vita (1993, p. 75)VITA, Álvaro de. Justiça liberal: argumentos liberais contra o neoliberalismo. São Paulo: Paz e Terra, 1993., uma distribuição total dos recursos obedece ao critério paretiano de eficiência quando não há possibilidade de alterá-la em benefício de alguns sem que implique, necessariamente, em uma piora no quinhão distributivo de outros. A prioridade da justiça sobre a eficiência significa que os interesses assegurados nos princípios rawlsianos devem ter sua realização satisfeita antes que outros interesses, como os de eficiência, possam ser perseguidos.17 17 O segundo princípio de justiça - que estabelece a igualdade equitativa de oportunidades e o princípio de diferença - tem prioridade sobre os critérios de eficiência. Isso quer dizer que o empenho em atingir o “ótimo paretiano” na estrutura básica da sociedade não pode desconsiderar as exigências de justiça. Isso não significa, porém, que Rawls não leve a eficiência em conta na formulação de seus princípios. Ao contrário, o autor supõe que a satisfação do princípio de diferença já leva em conta razões de eficiência.

Ao incluir no primeiro princípio a garantia de direito igual à participação dos cidadãos, exige-se também alguma forma de processo democrático de escolha coletiva. Desse modo, a justiça como equidade incorpora a democracia como condição para a realização de seus princípios de justiça e não apenas de forma instrumental. O lugar que a democracia ocupa na justiça como equidade, explica Cohen (2003, p. 104, tradução própria)COHEN, Joshua. For a democratic society. In: FREEMAN, S. (org). The Cambridge companion to Rawls. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. p. 86-138., “baseia-se, em parte, diretamente no conteúdo do primeiro princípio, e não simplesmente em um julgamento feito no estágio constitucional sobre a melhor forma de proteger a liberdade pessoal ou promover outros requisitos da justiça”.

Contudo, a relação entre liberdades políticas e sociedades socialmente mais justas e igualitárias exige uma segunda providência, incluída no primeiro princípio: a ideia de valor equitativo das liberdades políticas. Se as desigualdades econômicas maculam o valor da justiça e da democracia, é o próprio apego às liberdades políticas iguais que nos serve de parâmetro para justificar, por exemplo, uma sociedade economicamente mais igualitária.

O valor equitativo das liberdades políticas

A extensão da participação democrática a todos os cidadãos, especialmente através do direito de votar, é hoje um ponto fixo, defendido por toda tradição de pensamento democrático. Entretanto, não basta que todos os cidadãos possam participar das decisões politicamente relevantes, é preciso assegurar que todos possam participar em termos iguais. É isso que a ideia de valor equitativo das liberdades políticas busca assegurar.

A reivindicação de um status político igual entre os cidadãos de uma sociedade democrática exige o reconhecimento da própria sociedade como um empreendimento cooperativo fundado nos termos de um acordo equitativo. A cada um dos membros é devido o reconhecimento público como portador dos mesmos direitos de emitir julgamentos, avaliações e opiniões, tendo seus pontos de vista ouvidos e ponderados pelos demais envolvidos no processo de deliberação sobre questões públicas. Esse direito deve ser assegurado pelas instituições políticas e ecoar nas práticas dos cidadãos.

Ao incluir o ideal de valor equitativo para as liberdades políticas, Rawls (2003, p. 210)RAWLS, John. Justiça como equidade. Uma reformulação. São Paulo: Martins Fontes, 2003. espera oferecer uma resposta satisfatória a uma objeção comumente feita por socialistas e democratas radicais, que acusam as democracias modernas e a tradição liberal de dar tratamento meramente formal à liberdade igual dos cidadãos. De maneira sintética, a acusação poderia ser assim formulada: embora os direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos sejam formalmente iguais, permitindo a todos o direito de votar, de concorrer a cargos políticos e filiar-se a partidos, na prática, as desigualdades de renda e riqueza que marcam as instituições de fundo são tão grandes que aqueles que dispõem de maiores recursos, em geral, convertem as desigualdades econômicas em desigualdades políticas, promovendo legislação e políticas públicas que atendam a seus interesses particulares.

Altos níveis de pobreza e desigualdades socioeconômicas tendem a degradar o valor que as liberdades políticas têm para os mais destituídos, permitindo aos mais ricos gozar substantivamente de maior liberdade (SCANLON, 2018SCANLON, Thomas M. Why does inequality matter? Nova York: Oxford University Press, 2018., p. 75). Além disso, abriga o risco de que tais desigualdades, em princípio restritas ao nível das rendas e riquezas, convertam-se em desigualdades políticas, à medida que possibilitam aos grupos mais abastados exercer um peso desproporcional no processo de deliberação pública e na decisão política (VITA, 2011VITA, Álvaro de. Liberalismo, justiça social e responsabilidade individual. Dados - Revista de Ciências Sociais, v. 54, n. 4, Rio de Janeiro, p.569-608, 2011., p. 583).

Historicamente, esse tem sido um dos problemas mais negligenciados pelos regimes democráticos. As disparidades econômicas que vêm sendo comportadas pelo mercado e toleradas pelo sistema legal têm excedido os níveis que poderiam ser aceitáveis, ou compatíveis, com o ideal de igual liberdade política dos cidadãos de uma sociedade democrática, ferindo o sentido que a justiça como equidade lhe atribui. Diante de um tal diagnóstico, Rawls (2008, p. 279)RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2008. adverte quanto às graves consequências das injustiças perpetradas no sistema político, mais duradouras e perigosas até que as imperfeições do mercado: “O poder político se acumula rapidamente e se torna desigual; e, servindo-se do aparelho coercitivo do Estado e de suas leis, aqueles que conquistam vantagens podem quase sempre garantir para si mesmos uma posição privilegiada” (RAWLS, 2008RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2008., p. 279).

A justiça como equidade trata as liberdades políticas de modo especial, incluindo, no primeiro princípio, uma providência que busca preservar o seu valor equitativo. Isso significa que tais liberdades devem ser estendidas igualmente a todos os cidadãos, independentemente de sua posição econômica ou social. De acordo com Rawls (2011, p. 387)RAWLS, John. O liberalismo político. São Paulo: Martins Fontes, 2011., elas devem ser suficientemente iguais para que todos tenham as mesmas condições de acessar os meios necessários para exercer influência e ocupar cargos políticos.

A garantia do valor equitativo das liberdades políticas busca aumentar as chances de que as decisões democráticas produzam uma legislação justa, e visa impedir que um regime democrático seja mobilizado para reforçar as iniquidades entre os cidadãos. Desse modo, acrescenta Vita (2011, p. 583)VITA, Álvaro de. Liberalismo, justiça social e responsabilidade individual. Dados - Revista de Ciências Sociais, v. 54, n. 4, Rio de Janeiro, p.569-608, 2011., é um critério democrático como a garantia do valor equitativo das liberdades políticas para todos os cidadãos que oferece a fundamentação normativa para a redução das desigualdades econômicas.

O direito à liberdade política equitativa afirma nossa igualdade como juízes soberanos em uma sociedade democrática e contribui para a promoção da autoestima e do respeito entre os cidadãos. A justiça como equidade, portanto, requer uma forma democrática de governo em que a autorização para exercer poder político provenha de processos justos de escolha coletiva. Essa concepção expressa a ideia de uma sociedade democrática, ou o que, para Rawls, vem a ser a mesma coisa, uma sociedade de cidadãos iguais (COHEN, 2003COHEN, Joshua. For a democratic society. In: FREEMAN, S. (org). The Cambridge companion to Rawls. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. p. 86-138., p. 111). Para tanto, é preciso que as instituições sejam arranjadas de forma a assegurar para cada um dos cidadãos o acesso equitativo aos recursos públicos necessários para a participação no processo político e para que possam concorrer em condições de igualdade às posições de autoridade pública (RAWLS, 2003RAWLS, John. Justiça como equidade. Uma reformulação. São Paulo: Martins Fontes, 2003., p. 213).

E por que não assegurar o valor equitativo para todas as liberdades incluídas no primeiro princípio? A extensão do valor equitativo para todas as liberdades fundamentais extrapola os limites que a justiça como equidade prescreve para o ideal de igualdade, e é descrita por Rawls (2003, p. 214)RAWLS, John. Justiça como equidade. Uma reformulação. São Paulo: Martins Fontes, 2003. como irracional ou fonte de conflitos sociais: se tal proposta busca assegurar uma distribuição absolutamente igual de renda e riqueza, então, ela é irracional por não levar em conta o papel que algum grau de desigualdade pode ter, inclusive para beneficiar aqueles mais mal posicionados. Isto é, uma tal recomendação não permite a promoção de uma organização social que seja eficiente, no sentido em que o princípio da diferença objetiva garantir.

Se, por sua vez, a recomendação é por uma distribuição da renda e da riqueza social de forma que atenda aos interesses centrais para a plena realização da concepção particular de bem de cada cidadão, então ela pode ser fonte de profundos conflitos sociais: assegurar o igual valor da liberdade religiosa para cada cidadão nos levaria a reconhecer como legítima a destinação de exorbitantes recursos sociais para aqueles cidadãos cujos deveres religiosos são economicamente onerosos, como a construção de templos ou peregrinações, enquanto as exigências religiosas de outros cidadãos podem não incluir nenhuma dotação econômica, como a prática do jejum. Assim, adverte Rawls (2003, p. 214)RAWLS, John. Justiça como equidade. Uma reformulação. São Paulo: Martins Fontes, 2003., buscar igualar o valor de todas as liberdades incluídas no primeiro princípio poderia gerar grandes conflitos sociais.

De acordo com Rawls (2008, p. 288)RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2008., os argumentos que contam a favor de uma forma de governo democrático não se encerram em razões instrumentais. Sua adoção deve também exercer influência significativa sobre a qualidade moral da vida cívica e no modo como os cidadãos lidam uns com os outros. Essa disposição dos cidadãos em consultar e ponderar as razões, vontades, convicções e interesses de seus concidadãos fortalece os laços de solidariedade e estabelece as bases da amizade cívica, reforça o senso de capacidade política dos cidadãos comuns e eleva seu autorrespeito, ingredientes que, de acordo com Rawls (2008, p. 289)RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2008., constituem o ethos da cultura política democrática:

As liberdades políticas iguais não são apenas um meio. Essas liberdades fortalecem nos cidadãos a noção do próprio valor, ampliam suas sensibilidades morais e intelectuais e estabelecem as bases de uma noção de dever e obrigação da qual depende a estabilidade das instituições justas (RAWLS, 2008RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2008., p. 290).

As desigualdades socioeconômicas têm efeitos perniciosos para a solidariedade social e para o bom funcionamento de um regime democrático. Possibilitar aos mais ricos uma influência desproporcional no processo decisório torna mais difícil inclinar a democracia em favor de resultados socialmente mais justos. Ao contrário, permite que aqueles que detêm maiores recursos econômicos enverguem as instituições em seu favor, impossibilitando, ou tornando deveras mais custoso, as reformas institucionais e a adoção de políticas redistributivas capazes de promover ou manter uma sociedade de iguais no sentido que o liberalismo igualitário lhe atribui.

Desigualdade econômica e liberdades políticas: argumentos democráticos, implicações distributivas

Parte considerável do apoio político e normativo que a democracia goza se deve a sua pretensão de ser uma forma de governo em que todos os cidadãos são convidados a “governar” de maneira igual. Nesse sentido, uma das mais profundas conquistas democráticas foi a consolidação da igualdade política. Na prática, significa que as diferenças, como de renda, riqueza, raça e gênero, não devem constituir critérios relevantes para excluir ou privar os cidadãos de oportunidades e condições de participação política. Essa é uma distinção fundamental entre os regimes democráticos e as oligarquias ou autocracias.

Uma das formas mais óbvias de violação da igualdade política dos cidadãos é a atribuição de peso diferenciado ao voto de cada um, segundo critérios como “inteligência”, como proposto por Stuart Mill (1967, p. 214)MILL, Stuart. O governo representativo. Viseu: Editora Arcádia, 1967.: “o único motivo que pode justificar que se conte a opinião de uma pessoa como equivalente a mais que outra é a superioridade mental do indivíduo, e o que se precisa é de algum meio para averiguá-la”. Enquanto a absoluta negação do direito de participação política a todos os cidadãos é um critério por natureza oligárquico, Mill acreditava que sua tese é compatível com o governo democrático, porque ela não nega a extensão da participação política a todos, apenas recomenda que os votos não sejam pesados igualmente. Esta seria, nas palavras de Beitz (1989, p. 16)BEITZ, Charles R. Political equality. An essay in democratic theory. Princeton: Princeton University Press, 1989., uma forma possível de conceber uma democracia política não-igualitária, ou um regime democrático sem igualdade política.

Essa forma de violação do ideal, “uma pessoa, um voto”, é histórica e filosoficamente caduca, tanto que hoje é difícil encontrar alguém disposto a defendê-la. Contudo, há ainda formas mais sutis, e amplamente aceitas, pelas quais a igualdade política dos cidadãos pode ser corrompida e ter o seu valor substantivamente ferido.

Nas democracias modernas, o dinheiro sempre constituiu um dos principais instrumentos da política, sendo esta tendência intensificada com o custo crescente das campanhas políticas nos últimos cinquenta anos (MANIN, 1997MANIN, Bernad. The principles of representative government. Cambridge: Cambridge University Press, 1997., p. 94; HACKER; PIERSON, 2010HACKER, Jacob S.; PIERSON, Paul. Winner-take-all politics: public policy, political organization, and the precipitous rise of top incomes in the United States. Politics & Society, v. 38, n. 152, p. 152-204, 2010., p. 177). Boa parte daquilo que é decidido nas instâncias deliberativas diz respeito ao modo como se deve gastar e distribuir o dinheiro. Em uma democracia política, igualmente importante é o modo pelo qual o dinheiro migra para o interior do Estado, influenciando, por exemplo, os resultados eleitorais e alterando o modo e o valor da participação política dos cidadãos nos assuntos públicos.

Sociedades democráticas que toleram níveis elevados de desigualdade econômica permitem que alguns poucos exerçam demasiado controle sobre a vida daqueles que têm menos, uma ameaça ao valor da justiça e da própria democracia. Nesta seção, exploraremos algumas das formas pelas quais as desigualdades econômicas operam em uma democracia política, e em que medida isso constitui um risco eminente à ideia de igualdade entre os cidadãos, assim como o valor de suas liberdades políticas, que está na base normativa de qualquer regime democrático.

Valendo-nos do vocabulário apresentado por Thomas Christiano (2012)CHRISTIANO, Thomas. Money in Politics. In: ESTLUND, D. (org.). The Oxford handbook of political philosophy. Nova York: Oxford University Press, 2012. [e-book]., o recurso à ideia de “mecanismos” nos ajuda a ilustrar alguns dos vícios e perniciosidades da relação entre desigualdades materiais profundas e regimes democráticos. Apresentaremos (i) o problema do financiamento de campanhas; (ii) a importância do acesso aos meios de comunicação de massa e, por fim, (iii) o problema do dinheiro como recurso contramajoritário. Uma vez que Christiano não tem pretensões de oferecer uma explicação causal, isso significa que as sociedades reais, por conta de seus diferentes arranjos institucionais, podem estar mais ou menos vulneráveis a um ou outro dos vícios aqui apresentados.

Um dos temas que historicamente vem despertando grande atenção na ciência política, seja de filiação empírica ou normativa, é o financiamento das campanhas eleitorais, que são parte indispensável da vida de qualquer regime democrático competitivo. É por meio das campanhas que os eleitores tomam conhecimento de quem são os candidatos, partidos e plataformas ideológicas em disputa, favorecendo um processo aberto de formação da opinião e da vontade política dos cidadãos.

Fazer com que todos os eleitores tenham acesso às informações e propostas oferecidas por cada partido ou candidato é um processo que exige empenho e grandes montantes de recursos, dentre os quais o dinheiro constitui um dos mais importantes. É justamente desta constatação simples: a necessidade do dinheiro para o financiamento das campanhas eleitorais, que o tema ganha relevância também para os teóricos normativos como Rawls (2011, p. 427)RAWLS, John. O liberalismo político. São Paulo: Martins Fontes, 2011., Christiano (2012)CHRISTIANO, Thomas. Money in Politics. In: ESTLUND, D. (org.). The Oxford handbook of political philosophy. Nova York: Oxford University Press, 2012. [e-book]., Beitz (1989)BEITZ, Charles R. Political equality. An essay in democratic theory. Princeton: Princeton University Press, 1989. e Scanlon (2018)SCANLON, Thomas M. Why does inequality matter? Nova York: Oxford University Press, 2018.. Afinal, sobre quem deve recair a responsabilidade de financiar o processo de disputa partidária, se queremos uma disputa mais justa?

Quando a sociedade não assume coletivamente os custos financeiros de organização da vida política partidária, permitindo que os partidos busquem verbas por meio de contribuições privadas, podemos esperar que encontrem doadores especialmente entre os setores socioeconômicos mais favorecidos. Isso acontece, principalmente, porque são aqueles que possuem mais dinheiro que podem oferecer contribuições maiores, o que torna possível recorrer a um número menor de financiadores.

Um dos principais temores de quem argumenta contra o financiamento privado é a possibilidade de que o apoio econômico enseje uma espécie de mercado corrupto. Assim, a disposição dos grupos mais abastados de oferecer apoio aos partidos e candidatos poderia estar condicionada à exigência de uma contrapartida previamente acordada (CHRISTIANO, 2012CHRISTIANO, Thomas. Money in Politics. In: ESTLUND, D. (org.). The Oxford handbook of political philosophy. Nova York: Oxford University Press, 2012. [e-book].).

As desigualdades econômicas também podem distorcer a possibilidade de que cada cidadão participe igualmente do processo democrático, mesmo quando não há qualquer indício de corrupção no financiamento privado. Uma vez que as plataformas que obtêm maiores recursos se tornam eleitoralmente mais viáveis, o apoio dos grupos mais abastados pode gerar desigualdades na competição. Dito de outro modo, aquelas plataformas que não gozam de apoio dos grupos mais ricos podem obter menores aportes financeiros, tornando sua eleição mais difícil (RAWLS, 2011RAWLS, John. O liberalismo político. São Paulo: Martins Fontes, 2011., p. 427).

Se, no primeiro exemplo, poder-se-ia acusar de escusa a acomodação de interesses entre candidatos e financiadores, no segundo exemplo, a adesão genuína a uma dada agenda não representa qualquer distorção dos interesses. Contudo, dada a importância do dinheiro para viabilizar uma candidatura, plataformas políticas que “espontaneamente” estiverem alinhadas com os interesses dos grupos mais abastados terão maior probabilidade de vencerem as eleições, fazendo com que as ideias e interesses dos grupos mais ricos sempre triunfem na arena eleitoral e pautem a agenda política. Em ambos os casos, as desigualdades econômicas se convertem em desigualdades políticas, distorcendo o ideal democrático de que todos os cidadãos devem ter iguais condições de participar das decisões públicas que submeterão a todos em uma sociedade.

O dinheiro não é em si um problema. Entretanto, como o caso do financiamento de campanhas ilustra, as desigualdades de renda e riqueza presentes em uma sociedade podem dificultar que os grupos menos favorecidos exerçam um grau equitativo de participação no processo político, por conta de sua escassez de recursos. Assim, acabam-se negligenciando as recomendações necessárias a um governo ou a uma legislação justa, condenando os grupos menos favorecidos à apatia ou ao ressentimento, o que constitui uma grave injustiça e uma ameaça ao valor da democracia (RAWLS, 2008RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2008., p. 280).

Ao questionar o lugar dos mais destituídos em uma democracia extremamente desigual, Rawls não está chamando a atenção para o fato de esses cidadãos estarem impedidos de votar ou de exercer formalmente suas liberdades políticas. De acordo com Scanlon (2018, p. 75)SCANLON, Thomas M. Why does inequality matter? Nova York: Oxford University Press, 2018., a objeção rawlsiana se dirige a que, em uma tal sociedade, as desigualdades abissais minam o “valor” dessas liberdades políticas para os mais pobres.

Embora a defesa do financiamento público das campanhas eleitorais encontre respaldo entre teóricos como Rawls (2011)RAWLS, John. O liberalismo político. São Paulo: Martins Fontes, 2011., Scanlon (2018)SCANLON, Thomas M. Why does inequality matter? Nova York: Oxford University Press, 2018. e Christiano (2012)CHRISTIANO, Thomas. Money in Politics. In: ESTLUND, D. (org.). The Oxford handbook of political philosophy. Nova York: Oxford University Press, 2012. [e-book]., os autores reconhecem que não basta combater as desigualdades econômicas apenas no âmbito da competição partidária. Mesmo quando dissociado dos processos de seleção das elites políticas, as desigualdades socioeconômicas ainda podem promover, indiretamente, efeitos nefastos no valor da democracia e na promoção da justiça.

Aqueles que possuem melhores condições econômicas podem mobilizar seus recursos para difundir ideias e influenciar a opinião pública através da posse ou financiamento de canais de comunicação, think tanks, campanhas e propagandas que façam ecoar suas reivindicações em toda a sociedade. Se o acesso a esses canais implica o aporte de dispendiosos montantes de dinheiro, os grupos mais pobres podem não ter as mesmas condições de participar do debate público, fazendo com que suas reivindicações ecoem como um grito no vácuo. Essa distorção na capacidade de disseminar ideias pode criar oportunidades radicalmente distintas para a participação efetiva dos cidadãos, à medida que não encontram as mesmas oportunidades e espaços para falarem e serem ouvidos (CHRISTIANO, 2012CHRISTIANO, Thomas. Money in Politics. In: ESTLUND, D. (org.). The Oxford handbook of political philosophy. Nova York: Oxford University Press, 2012. [e-book].).

Os juízos políticos dos cidadãos dependem, em grande medida, do acesso às informações necessárias para tomar decisões bem-informadas. Em uma sociedade grande e complexa, os indivíduos não podem ficar responsáveis por coletar sozinhos esse tipo de informação. Sua disponibilidade depende de instituições como universidades e grupos de reflexão que estejam comprometidos em coletar e divulgar essas informações. Nesse sentido, Scanlon (2018, p. 89)SCANLON, Thomas M. Why does inequality matter? Nova York: Oxford University Press, 2018. atribui especial importância a uma imprensa livre e a outros meios de comunicação públicos, ou ao menos plurais e abertos.

Por fim, mesmo quando um governo eleito busca perseguir objetivos democraticamente escolhidos, os grupos mais abastados podem se valer de recursos economicamente disponíveis para dissuadir ou perverter as intenções do governante, tornando o dinheiro um recurso contramajoritário. Thomas Christiano (2012)CHRISTIANO, Thomas. Money in Politics. In: ESTLUND, D. (org.). The Oxford handbook of political philosophy. Nova York: Oxford University Press, 2012. [e-book]. recorre a um exemplo hipotético: suponhamos o caso de um representante eleito tendo com uma de suas principais bandeiras a imposição de custosas medidas empresariais em prol da preservação ambiental. Como resposta, os industriais afetados pela nova regulamentação podem ameaçar retirar seus investimentos na região, o que, possivelmente, promoveria impactos como o recolhimento econômico e desemprego, ferindo, assim, outros objetivos populares e pressionando o governo a atender aos interesses do setor.

Em uma sociedade em que os níveis de desigualdade econômica são abissais, ainda que a parcela mais mal posicionada na escala distributiva possua recursos suficientes para viver livre de privações impostas pela pobreza, essa desigualdade econômica existente que, a princípio, poderia não ser objetável, pode se converter em desigualdade política. Os mecanismos apresentados por Christiano (2012)CHRISTIANO, Thomas. Money in Politics. In: ESTLUND, D. (org.). The Oxford handbook of political philosophy. Nova York: Oxford University Press, 2012. [e-book]., embora não esgotem o tema, ajudam a ilustrar algumas possibilidades que as desigualdades abrem para que poucos assumam o controle da máquina estatal e possam perpetuar as suas vantagens econômicas e sociais sob um arranjo jurídico, sob a forma da lei e de instituições.

Do ponto de vista da relação entre justiça social e democracia, o argumento teórico pode ser assim formulado: as desigualdades econômicas colocam em risco as liberdades políticas efetivas dos cidadãos mais destituídos em uma sociedade democrática, isto é, a capacidade de que todos participem igualmente do processo de autodeterminação política. Embora esses cidadãos encontrem-se livres das privações que a pobreza possa provocar, eles não são efetivamente livres se o destino da sua comunidade política não passa também pelas suas mãos. Portanto, todos os membros de uma comunidade política democrática devem compartilhar um status de cidadania igual: “é do ponto de vista de cidadãos iguais que a justificação de outras desigualdades deve ser entendida” (RAWLS, 2003RAWLS, John. Justiça como equidade. Uma reformulação. São Paulo: Martins Fontes, 2003., p. 186).

Considerações finais

O avanço das desigualdades de renda e riqueza nos Estados que adotam algum tipo de regime democrático é hoje um dado da realidade e não mera hipótese de trabalho útil à teoria. O argumento principal que o artigo buscou sustentar é que o debate entre uma sociedade mais justa e igualitária, ou uma economia mais eficiente, por vez, lança na penumbra os efeitos tóxicos que as desigualdades podem ter não apenas para uma concepção de justiça social, mas também para a solidariedade social e para o próprio valor da democracia. Quando adequadamente compreendidas, justiça social e democracia são não só ideais compatíveis como necessários, se nosso desejo suposto é por uma sociedade de cidadãos livres e iguais.

Não pretendemos sugerir que a justiça como equidade restringe-se a uma interpretação mais robusta do primeiro princípio de justiça. De maneira geral, o princípio de diferença é aquele que foi forjado para regular as desigualdades de renda e riqueza em uma sociedade democrática bem-ordenada, tal como pensada por Rawls (2011, p. 334-335)RAWLS, John. O liberalismo político. São Paulo: Martins Fontes, 2011.. Contudo, as prescrições do primeiro princípio, especialmente o valor equitativo das liberdades políticas, também desempenham um papel importante na regulação das desigualdades econômicas como um dos componentes igualitários da justiça rawlsiana, especialmente mitigando seus efeitos para um regime que se alicerça na igualdade política dos seus cidadãos. Quando interpretado dessa maneira, podemos dizer que são os próprios argumentos em favor de uma democracia política que exigem uma sociedade economicamente mais justa e igualitária (VITA, 2011VITA, Álvaro de. Liberalismo, justiça social e responsabilidade individual. Dados - Revista de Ciências Sociais, v. 54, n. 4, Rio de Janeiro, p.569-608, 2011., p. 583).

Embora não haja incompatibilidade teórica entre democracia e justiça social, é preciso reconhecer uma tensão prática entre a necessidade de aprovação de eleitores não pobres para a promoção das reformas que permitam a elevação dos quinhões de recursos sociais escassos para aqueles mais mal posicionados. Para que isso ocorra, Vita (2008, p. 153)VITA, Álvaro de. O liberalismo igualitário: sociedade democrática e justiça internacional. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2008. alerta: não há atalhos. O único caminho possível é o convencimento da maioria dos eleitores e de seus representantes, por considerações de natureza moral, de que essa é a coisa certa a ser feita. Apresentar as possibilidades e oferecer boas razões em seu favor é precisamente o que se pode esperar de uma teoria normativa e foi, em grande medida, o que buscamos fazer.

Referências

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  • RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
  • RAWLS, John. O liberalismo político. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
  • SCANLON, Thomas M. Why does inequality matter? Nova York: Oxford University Press, 2018.
  • SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
  • VAN PARIJS, Philippe. A democracia e a justiça são incompatíveis? Revista Estudos Avançados, v. 9, n. 23, São Paulo, p. 109-128, 1995.
  • VAN PARIJS, Philippe. Just democracy: The Rawls and Machiavelli programme. Colchester: ECPR Press, 2011.
  • VITA, Álvaro de. Justiça liberal: argumentos liberais contra o neoliberalismo. São Paulo: Paz e Terra, 1993.
  • VITA, Álvaro de. Liberalismo, justiça social e responsabilidade individual. Dados - Revista de Ciências Sociais, v. 54, n. 4, Rio de Janeiro, p.569-608, 2011.
  • VITA, Álvaro de. O liberalismo igualitário: sociedade democrática e justiça internacional. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2008.
  • 1
    Agradeço os comentários dos professores Álvaro de Vita, Lucas Petroni, Núnzio Ali e Ana Claudia Lopes e do Grupo de Estudos de Teoria Política (Getepol). Agradeço também os comentários e as sugestões dos pareceristas anônimos da RBCP. A pesquisa que originou este artigo foi financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
  • 3
    Para um mapeamento da trajetória das desigualdades socioeconômicas em sociedades democráticas, conferir: PIKETTY, 2020PIKETTY, Thomas. Capital e ideologia. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020..
  • 4
    Em referência à ideia de democracia como uma forma de governo, os termos “regime democrático” e “democracia política” serão utilizados como intercambiáveis.
  • 5
    Uma concepção de justiça é, segundo Rawls (2008, p. 7)RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2008., um conjunto de valores políticos e/ou um modo de arbitrar a relação entre eles.
  • 6
    Nesta seção, aceitaremos essa definição de justiça a fim de mostrar suas próprias tensões internas e os limites de uma concepção de justiça social, que assume como fundamental simplesmente a promoção de sociedades economicamente mais igualitárias. Adiante apresentaremos uma concepção alternativa, que assume a relação positiva entre democracia e justiça social.
  • 7
    Simplificadamente, o eleitor mediano é aquele cujo apoio é indispensável para ultrapassar a barreira dos 50% de votos em favor de uma entre duas propostas ou plataformas políticas. Isso faz desse grupo o mais decisivo e que, portanto, tenderia a desequilibrar as eleições quando adotada a regra da maioria. Tais pressupostos se inserem no conjunto mais amplo das chamadas teorias da escolha racional, que partem das premissas comuns à teoria econômica. A ideia precípua é a de que as decisões tomadas no âmbito político, seja pelos governantes ou pelos eleitores, refletem um comportamento racional, em busca da maximização de seus interesses pessoais (Ver VAN PARIJS, 2011VAN PARIJS, Philippe. Just democracy: The Rawls and Machiavelli programme. Colchester: ECPR Press, 2011., p. 9).
  • 8
    Apesar de Sen auxiliar-nos na formulação de algumas das principais objeções à relação positiva entre democracia e justiça social, Sen não se coloca ao lado daqueles que veem esses termos como incompatíveis ou ainda entre aqueles que submetem a democracia à eficiência econômica.
  • 9
    Sen apresenta esse argumento sob a denominação de Tese de Lee, em referência ao ex-primeiro-ministro de Cingapura, Lee Kuan Yew (Ver SEN, 2010SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.).
  • 10
    Essa segunda objeção é, em parte, dependente da veracidade do argumento da eficiência.
  • 11
    Afirmar que as democracias estabelecidas são menos suscetíveis a tragédias como a fome coletiva é diferente de dizer que países democráticos não convivem com a pobreza e desigualdades, por vezes, severas.
  • 12
    Embora Rawls conceba a democracia política como um regime constitucional, isto é, um regime político jurídico baseado em direitos subjetivos e procedimentos representativos, o autor deixa em aberto questões relativas às características principais de uma instituição democrática capaz de realizar a justiça como equidade, em parte, por considerar que muitas dessas questões não dizem respeito a uma teoria da justiça, e devem ser mais bem exploradas pela sociologia política (RAWLS, 2008, p. 280)RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2008..
  • 13
    Para uma interpretação acerca do melhor “modelo” de democracia para realizar a justiça como equidade, conferir VITA (2008)VITA, Álvaro de. O liberalismo igualitário: sociedade democrática e justiça internacional. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2008., em seu capítulo 4: “Sociedade democrática e democracia política”.
  • 14
    Essa recomendação se assemelha àquela apresentada como o critério de justiça maximin de Van Parijs (1995)VAN PARIJS, Philippe. A democracia e a justiça são incompatíveis? Revista Estudos Avançados, v. 9, n. 23, São Paulo, p. 109-128, 1995.. Contudo, como se vê, embora o critério também ocupe um lugar importante na teoria ralwsiana, a concepção de justiça como equidade não se resume a ela e é, em comparação às proposições de Van Parijs, consideravelmente mais robusta.
  • 15
    A justiça social tem por objeto as principais instituições sociais. São elas responsáveis por distribuir os direitos e os deveres fundamentais, além do ônus e o bônus da cooperação social. As instituições mais importantes que estruturam uma comunidade política recebem o nome de estrutura básica.
  • 16
    A ideia de bens sociais primários guarda alguns embaraços e grandes debates sobre sua clareza e adequação teórica como métrica para a equiparação dos cidadãos. Para uma apresentação geral do debate, ver (VITA, 2008VITA, Álvaro de. O liberalismo igualitário: sociedade democrática e justiça internacional. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2008.) em seu capítulo 3: “Justiça distributiva: a crítica de Sen à Rawls”.
  • 17
    O segundo princípio de justiça - que estabelece a igualdade equitativa de oportunidades e o princípio de diferença - tem prioridade sobre os critérios de eficiência. Isso quer dizer que o empenho em atingir o “ótimo paretiano” na estrutura básica da sociedade não pode desconsiderar as exigências de justiça. Isso não significa, porém, que Rawls não leve a eficiência em conta na formulação de seus princípios. Ao contrário, o autor supõe que a satisfação do princípio de diferença já leva em conta razões de eficiência.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    21 Mar 2022
  • Aceito
    23 Jan 2023
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