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Nancy Fraser. Fortunes of feminism: from State-Managed Capitalism to neoliberal crisis

Fraser, Nancy. Fortunes of feminism: from State-Managed Capitalism to neoliberal crisis. New York: Verso, 2013

Percebemos hoje, tanto no Brasil como na América Latina, novas dinâmicas e mudanças dos feminismos da região. Observa-se a retomada do movimento feminista, o qual tem sido uma fonte fértil para o desenvolvimento de estudos teóricos, que podem ser situados em termos de sidestreaming (fluxos horizontais), quando se verifica a multiplicação de campos feministas, em especial os feminismos populares (Alvarez, 2014ALVAREZ, Sonia E. (2014). "Para além da sociedade civil: reflexões sobre o campo feminista". Cadernos Pagu, n. 43, p. 13-56.). De uma perspectiva global, da mesma forma, assiste-se ao crescimento de um feminismo revigorado que se une a outras forças de conteúdo emancipatório, na tentativa de reposicionar o mercado sob o controle democrático. O movimento feminista retoma seu espírito de insurreição sem deixar de aprofundar suas críticas ao androcentrismo capitalista, sua análise sistêmica da dominação masculina e sua revisão sobre democracia e justiça sensíveis ao gênero.

Trazendo em questão as remanescentes desigualdades simbólicas e materiais, Nancy Fraser promove uma discussão acerca das incorporações da teorização feminista aos novos imaginários políticos das novas gerações. Fortunes of feminism é composto por uma coletânea de ensaios da autora, todos eles intervenções em debates teóricos dos últimos vinte e cinco anos, os quais documentam as maiores mudanças no imaginário feminista desde os anos de 1970. Fraser opta por centrar suas análises a partir da segunda onda feminista, momento em que surgem a Nova Esquerda e os "movimentos de libertação da mulher" nos Estados Unidos e na Europa, cujos objetivos eram desafiar as sociedades capitalistas organizadas sob a forma de Estado na era do pós-guerra. Suas reflexões e críticas feministas de influência marxista têm o olhar atento aos movimentos do neoliberalismo, levando em consideração os recortes de gênero e classe, mas agregando valor às discussões sobre justiça e democracia ao adicionar às análises as perspectivas de raça, sexualidade e "neocolonialidade".

Ao começar seu livro apontando "três caminhos para um futuro feminista", a autora já está, de antemão, posicionada sobre a temática feminista. No prólogo, constrói seu trabalho desenvolvido num "drama em três atos". Na primeira parte - "O Feminismo Insurgente: Radicalizando a Crítica na Era da Democracia Social" -, a qual chama de primeiro ato, transcorre sobre as críticas do feminismo e da Nova Esquerda feitas ao Estado de bem-estar social. Para esse contexto, são utilizadas as concepções das teorias críticas daquele momento, com relevância para a tese de Habermas sobre a Teoria da Ação Comunicativa (inicialmente publicada em 1984), salientando-se a invisibilidade da categoria gênero - o que leva Fraser a concluir que tal desconsideração compromete, em parte, o escopo teórico do filósofo contemporâneo. Ao trabalhar o "que é fundamental sobre a teoria crítica" (Fraser, 2013, p. 19), a autora analisa os pontos fortes e fracos da obra de Habermas e suas lacunas em relação a gênero, introduzindo no debate a questão do trabalho doméstico não pago realizado pelas mulheres e a responsabilidade pela educação dos filhos como elementos importantes a serem analisados no contexto das sociedades contemporâneas. Esses dois eixos estão intimamente conectados ao desenvolvimento do capitalismo e, ao serem relevados, perde-se de vista o comprometimento dessas tarefas cumpridas e não remuneradas em detrimento da supervalorização da esfera pública. Essa invisibilidade permanece central no ponto de vista da grande teoria nos atuais momentos, incluindo o surgimento global do pensamento e das práticas neoliberais.

Os capítulos do primeiro ato resumem, portanto, as críticas radicais ao Estado de bem-estar social do ponto de vista feminista, indicando que os movimentos feministas poderiam ajudar a dissolver a supremacia das estruturas masculinas de poder e reverter as hierarquias de gênero. Tais críticas buscam expandir a agenda política feminista para além da democracia social, repudiam o paternalismo presente nessa lógica e buscam dar visibilidade ao panorama de estruturas e práticas que impedem as mulheres de participar em paridade com os homens na vida social.

Na segunda parte do drama, o segundo ato, a autora sugere o forte título de "Feminismo Domesticado: da Redistribuição para o Reconhecimento na Era da Identidade". Nessa parte do livro, Fraser retoma diversas correntes teóricas feministas e analisa seu direcionamento para demandas culturais em detrimento de demandas de economia política. Evidencia-se a centralidade do reconhecimento nas pautas do ativismo feminista, a ascensão das políticas de identidade e, coincidentemente, a restauração de um fundamentalismo do livre mercado.

Inicialmente, recoloca suas posições sobre o uso e abuso dos conceitos das correntes simbolistas e do pensamento lacaniano nas políticas feministas. Expõem-se as contribuições de Julia Kristeva para o pensamento feminista, concluindo que oscila entre uma versão regressiva do essencialismo da maternidade e um antiessencialismo pós-feminista, ambos inúteis à teorização feminista.

A autora oportuniza para nós leitoras a resposta a Judith Butler sobre o heterossexismo, o não reconhecimento e sua conexão com o mundo do capital. Butler insistiria na ideia de que a heteronormatividade seria tão fundamental para o capitalismo que as lutas dos movimentos LGBT ameaçariam a existência do sistema. A resposta de Fraser indica que as lutas sociais contra o não reconhecimento heterossexista não ameaçam automaticamente o capitalismo sem antes estarem conectadas a outras lutas (anticapitalistas). Fraser, então, retoma seus conceitos de reconhecimento e uma aproximação bidimensional da possibilidade de uma justiça de gênero. No livro, Escalas de justicia (2008), a autora afirma a importância de uma visão mais ampla dos fenômenos trazidos pela globalização e afirma que vivemos em um mundo "anormal", que precisaria então de uma "justiça anormal" para dar conta do universo complexo de vários acontecimentos ocorrendo ao mesmo tempo e que merecem e devem ser tratados no tocante à redistribuição (de bens), reconhecimento e identidade para reconhecer.

No Escalas de justicia, Nancy Fraser sugere que os paradigmas liberais, agora neoliberais, não satisfazem os desejos, anseios e necessidades das minorias, neste caso minorias referem-se a mulheres, negros e homossexuais. A agenda dessas categorias, alijadas como minorias pela modernidade e seu dogma de igualitarismo, leva a refletir o "que", o "quem" e o "como". Assim, nesse recente livro, Fraser retoma sua posição de um feminismo "domesticado", na medida em que, na segunda onda, permitiu ou jogou água no moinho do neoliberalismo ao se desenvolveram ideários feministas voltados para as questões da identidade.

Em Fortunes of feminism, Fraser dá continuidade à discussão sobre concepções de justiça condizentes com políticas feministas que combatam a subordinação de status das mulheres, adicionando à discussão a necessidade de uma justiça de gênero, não mais se restringindo apenas à distribuição, mas abarcando também a representação, a identidade e a diferença. As injustiças de gênero devem ser compreendidas através de uma concepção dual que abarque distribuição e reconhecimento. Da perspectiva da distribuição, as injustiças de gênero estão atreladas à diferenciação de classe e às estruturas econômicas da sociedade. Por esse espectro, evidencia-se o princípio de organização da divisão do trabalho, o qual distingue o trabalho "produtivo" do "reprodutivo e doméstico", atribuindo às mulheres a responsabilidade primária pelo último. De forma semelhante, distingue o trabalho bem pago e profissionalizado, dominado pelos homens, do mal pago ou não pago doméstico, dominado pelas mulheres.

Da perspectiva do reconhecimento, as injustiças de gênero estão relacionadas ao androcentrismo presente na ordem social. Isso significa dizer que os padrões institucionalizados de valores culturais privilegiam características associadas à masculinidade e desvalorizam códigos de conduta "femininos". Tais padrões estão expressos em diversas áreas do direito (incluindo o direito de família e o criminal), em muitas áreas de políticas públicas (incluindo reprodução, imigração e asilo político) e em práticas profissionais como a medicina e psicoterapia. Por conta dos padrões androcêntricos, as mulheres sofrem diversos tipos de subordinação por status, incluindo assédio sexual, abuso sexual, violência doméstica, objetificação, representações estereotipadas e degradantes na mídia, exclusão e marginalização das esferas públicas e negação de direitos integrais e igual proteção à cidadania (Fraser, 2013, p. 162-63).

Após delimitar ambas as perspectivas, Fraser lança mão do conceito de justiça centrado no princípio de paridade participativa. São necessárias duas condições para que esta seja alcançada. Em primeiro lugar, faz-se necessária a distribuição de recursos materiais que garantam a "independência" e a voz dos "participantes". Tal condição previne a desigualdade econômica que impede a paridade de participação. Em segundo lugar, é preciso que os padrões institucionais de valor cultural expressem igual respeito por todos os participantes e garantam iguais oportunidades para alcançar a estima social. Essa condição de caráter "intersubjetivo" previne que os valores padrão depreciem algumas categorias de pessoas e suas qualidades. Enquanto a primeira condição para a paridade está vinculada ao paradigma distributivo, o segundo está vinculado ao do reconhecimento, e ambos se constituem como necessários à promoção da justiça de gênero pautada pela paridade participativa (Fraser, 2013, p. 165).

Fraser também discute a importância da paridade para evitar a subordinação de status das mulheres. Entretanto, propõe uma definição mais abrangente de paridade e faz algumas ressalvas ao uso do termo de tradição francesa, a parité, justificando o porquê através de quatro pontos principais. Primeiramente, o conceito de paridade na França refere-se a uma lei que exige a ocupação de metade das listas de candidaturas eleitorais por mulheres para os mandatos legislativos. Para Fraser, não se trata de uma questão estritamente numérica; é uma condição qualitativa: a condição de ser um/uma igual. A severa sub-representação das mulheres no Legislativo e em outras instituições políticas formais geralmente reflete disparidades qualitativas de participação na vida social. Mas as cotas numéricas não são necessariamente ou sempre a melhor solução (Fraser, 2013, p. 166).

Em segundo lugar, a concepção francesa de paridade, na avaliação da autora, abarca apenas a dimensão do reconhecimento. Se o obstáculo à paridade participativa é a falta de reconhecimento e de distribuição, a solução não é apenas a desinstitucionalização de padrões androcêntricos, mas também a reestruturação da divisão do trabalho de forma que as mulheres se livrem da dupla jornada de trabalho a fim de poderem ter uma participação plena na vida política.

Em terceiro lugar, a paridade francesa refere-se apenas ao escopo legislativo, enquanto Fraser a vê como necessária em todas as esferas da vida social, embora com significados diferentes em cada uma delas: mercado de trabalho, relações sexuais, vida familiar, esferas públicas e sociedade civil.

O quarto ponto principal de divergência é que a noção de paridade francesa se aplica apenas ao eixo de gênero. As demais categorias de pessoas subordinadas - as minorias étnicas, raciais e religiosas -, não conseguem, através dessa noção de paridade, conquistar representatividade política proporcional. A contribuição de Fraser sobre a paridade, portanto, vai no sentido de propor padrões normativos de justiça acessíveis a todos e todas, tendo por base as dimensões de reconhecimento (status) e de distribuição (classe).

Na terceira e última parte do livro, denominada "Feminismo Ressurgente? Confrontando a Crise Capitalista na Era Neoliberal", o exercício intelectual de Fraser é o de pensar uma nova/outra significação para o conceito de justiça no mundo globalizado. Ao cunhar o termo "the cunning of history" ("a astúcia da história"), permite refletir sobre os conceitos que marcaram até hoje o processo de discussão teórico/prático das feministas e as possíveis ciladas em que volta e meia se deixam cair. Quando nos oferece a reflexão sobre a marquetização e a proteção social, e a solução da "ambivalência" feminista, é possível identificar os enormes desafios ainda presentes em diversos níveis para desmontar as situações de precariedade e as discriminações pelas quais as mulheres do mundo todo ainda passam.

Para o final dessa coletânea de textos, Nancy Fraser retoma a ideia da "astúcia da história" e a unidade dos conceitos de feminismo e capitalismo em contexto histórico que promove o surgimento ou a identificação da ambivalência do feminismo. Para essa tarefa, evoca-nos a reflexão do feminismo como um "novo espírito do capitalismo", quer dizer, "ressignificações neoliberais". Podendo-se olhar melhor para trás, a segunda onda do feminismo coincidiu com o deslocamento no conteúdo do capitalismo, o que não foi mera coincidência. Para justificar tal afirmação, desenvolve dois eixos de análise, como as ressignificações para um feminismo antieconômico e antiandrocêntrico, e também um feminismo antiestatista e um feminismo contra e a favor da ressignificação do viés westfaliano (Fraser, 2013, p. 221-22) no período pós-Segunda Grande Guerra - conceito desenvolvido em Escalas de justicia.

Sugere a adesão, talvez inconsciente, de vertentes do feminismo que, para a autora, não conseguem visualizar o conteúdo mais global das situações que são novas, geradas pelo neoliberalismo. Assim, a autora afirma:

Fosse o foco a jurisprudência ou a filosofia moral, teoria democrática ou criticismo cultural, a pesquisa acadêmica procedeu em relativa desconexão das questões fundamentais da teoria social. A crítica à sociedade capitalista - crucial para as antigas gerações - desapareceu da agenda da teoria feminista. A crítica centrada na crise capitalista tornou-se reduzida, determinista e ultrapassada (Fraser, 2013, p. 227; tradução nossa).

Ao trazer para reflexão a obra The great transformation (lançada em 1944), aproveita o talentoso trabalho de seu autor, Karl Polanyi, e observa, entretanto, que também deve ser estudado com certo distanciamento. Discorre sobre os impasses em que se expressam os movimentos emancipatórios na atualidade ("a grande transformação") e, principalmente, sobre a ideia de ambivalência presente nesses contextos. A autora posiciona-se favoravelmente a todos os movimentos emancipatórios críticos à dimensão opressora da proteção social característica do liberalismo. Adiante, reconhece que, ao negligenciar a ascensão do neoliberalismo, muitas feministas da segunda onda não compreenderam sua situação e avaliaram mal as prováveis consequências de suas ações (Fraser, 2013, p. 238). A falha das feministas em mediar o conflito entre o caráter emancipatório dos movimentos e a proteção social "mercantilizante" reverbera até agora no curso da crise capitalista do século XXI.

Não deixando de ressaltar que o capitalismo atual é em si uma encruzilhada crítica, Fraser fomenta a ideia de divergência entre feminismo e neoliberalismo, pois a ambivalência está presente através das questões levantadas no decorrer do livro. A visão crítica de seu pensamento, todavia, em vez de afastar, sugere ou orienta o debate teórico e prático sobre novas possibilidades para o futuro, de modo que o feminismo possa ter uma atuação mais firme na atual crise neoliberal no mundo todo.

Bibliografia

  • ALVAREZ, Sonia E. (2014). "Para além da sociedade civil: reflexões sobre o campo feminista". Cadernos Pagu, n. 43, p. 13-56.
  • BIROLI, Flávia (2013). Autonomia e desigualdades de gênero: contribuições do feminismo para a crítica democrática. Vinhedo (SP): Horizonte.
  • BUTLER, Judith (2010). Problemas de gênero. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
  • COSTA, Ana Alice Alcântara & SARDENBERG, Cecília Maria B. (2014). "Teoria e práxis feministas na academia: os núcleos de estudos sobre a mulher nas universidades brasileiras". Revista Feminismos, v. 2, n. 2.
  • FLAX, Jane (1990). Psicoanálisis y feminismo: pensamientos fragmentarios. Madrid: Cátedra.
  • FRASER, Nancy (2008). Escalas de justicia. Barcelona: Herder.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2015

Histórico

  • Recebido
    31 Maio 2015
  • Aceito
    29 Jun 2015
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