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Sobre a Liberdade:o paternalismo libertário concilia deontologismo e consequencialismo?

On Freedom: is libertarian paternalism the middle ground between deontologism and consequentialism?

RESENHA: SUNSTEIN, Cass.. On Freedom. Princeton: Princeton University Press, 2019

Resumo

Esta resenha do livro “Sobre a Liberdade” (On Freedom), de Cass Sunstein, tem como objetivo principal analisar e contextualizar o paternalismo libertário dentre as duas principais correntes que disputam respostas acerca da teoria da justiça, o deontologismo e o consequencialismo. Minha afirmação principal é que, embora Sunstein tente posicionar o paternalismo libertário como uma ruptura com a dicotomia estabelecida entre as duas correntes, atribuindo valor tanto às consequências das decisões quanto à liberdade de escolha das pessoas, em casos difíceis esta filosofia política se torna claramente consequencialista, minimizando o valor da liberdade de escolha. Sendo assim, a contribuição original do paternalismo libertário talvez esteja aquém do que ela ambiciona, que é criar respostas originais a perguntas sobre o que significa fazer a coisa certa em questões factual e moralmente controvertidas.

Palavras-chave:
Paternalismo Libertário; Nudge; Deontologismo, Consequencialismo; Liberdade de Escolha

Abstract

This book review aims at analyzing Cass Sunstein’s “On Freedom”, relating libertarian paternalism to the two dominant families of theories of justice, consequentialism and deontologism. My main argument is that libertarian paternalism does not constitute a middle ground between consequentialism and deontologism. Although Sunstein argues that this approach gives equal weight to both the maximization of well-being and the value of freedom of choice, in hard cases libertarian paternalism clearly tilts towards consequentialism, minimizing the value of free choice. I suggest, therefore, that this political philosophy does not propose original answers to questions about justice and about what it means to do the right thing when it comes to factual and moral controversies.

Keywords:
Libertarian Paternalism; Nudge; Deontologism; Consequencialism; Freedom of Choice

As teorias da justiça podem ser divididas em duas grandes linhas de pensamento. A primeira é utilitarista ou consequencialista,2 2 Sunstein (2019b) afirma ser possível fazer uma distinção entre consequencialismo e utilitarismo. O consequencialismo sem utilitarismo, chamado pelo autor de consequencialismo fraco, é uma proposta de avaliar ações por meio das consequências, porém incluindo neste cálculo o valor intrínseco de direitos. A ideia é que violações de direitos devem ser levadas em consideração para fins de cálculo e avaliação de consequências. O consequencialismo sem utilitarismo, portanto, afirma que o Estado deve maximizar bem-estar, afirmando porém que o valor intrínseco de direitos deve fazer parte deste cálculo: os consequencialistas fracos “concordam que violações de direito, quaisquer que sejam seus efeitos na utilidade final, devem ser contabilizados entre as consequências que importam, e portanto essas violações devem desempenhar um papel na avaliação do que deve ser feito” (SUNSTEIN, 2019b, p. 222). que avalia as ações humanas a partir dos resultados. De acordo com esta corrente, são corretas as ações que maximizam o bem-estar geral de um determinado grupo de pessoas. Em outras palavras, “a coisa certa a fazer é aquela que produzirá os melhores resultados, considerando-se todos os aspectos” (SANDEL, 2012SANDEL, Michael. Justiça: o que é fazer a coisa certa? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012., p. 47). A segunda corrente é a deontológica. Para ela, a defesa de direitos está relacionada aos motivos ou ao valor intrínseco de uma ação, independentemente de suas consequências. Essa corrente teórica “argumenta que a moral não diz respeito ao aumento da felicidade ou a qualquer outra finalidade, afirmando, ao contrário, que ela está fundamentada no respeito às pessoas como fins em si mesmas” (SANDEL, 2012SANDEL, Michael. Justiça: o que é fazer a coisa certa? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012., p. 137). Ou seja, para os deontologistas, algumas ações podem ser ruins mesmo que acarretem consequências positivas: nesse sentido, o desrespeito a direitos fundamentais das pessoas jamais deve ser tolerado, independentemente de uma avaliação a respeito de consequências.

Desde Bentham e Kant (os principais idealizadores do utilitarismo e do deontologismo, respectivamente), alguns autores tentaram conciliar estas duas correntes aparentemente contraditórias. John Stuart Mill é talvez o melhor exemplo. Em suas obras On Liberty (1859) e Utilitarianism (1861), Mill argumenta que as ações humanas devem buscar maximizar o bem-estar no longo prazo, o que incluiria a possibilidade de atribuir valor a ações desprovidas de um efeito imediato sobre a maximização de bem-estar. Mais recentemente, Amartya Sen (2011)SEN, Amartya. A ideia de Justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. tem se destacado pelas tentativas de conciliar deontologistmo e utilitarismo. É conhecida sua afirmação de que “não há nada que impeça uma abordagem deontológica geral de se interessar, de forma considerável, pelas consequências, mesmo que essa abordagem parta da importância dos deveres identificados de forma independente (SEN, 2011SEN, Amartya. A ideia de Justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2011., p. 250). Sen afirma que é possível avaliar consequências também a partir do valor das ações das pessoas: “o estado de coisas, ou o resultado no contexto da escolha sob exame, pode incorporar os processos de escolha, e não apenas o resultado final estritamente definido. O conteúdo dos resultados também pode ser visto como incluindo todas as informações concernentes à agência que possam ser relevantes” (SEN, 2011SEN, Amartya. A ideia de Justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2011., p. 249).

Em seu livro On Freedom, Cass Sunstein (2019a)SUNSTEIN, Cass. How Change Happens. Cambridge: MIT Press, 2019. realiza o mais novo esforço teórico para conciliar consequencialismo com deontologismo. Ele realiza esta tentativa por meio do “paternalismo libertário”, criado por ele e seu coautor Richard Thaler (SUNSTEIN; THALER, 2008SUNSTEIN, Cass, & Thaler, Richard. Nudge: Improving Decisions About Health, Wealth and Hapiness. New York: Penguin Books, 2008.). O paternalismo libertário defende que o Estado pode e deve se utilizar de intervenções que direcionam as atitudes das pessoas em prol de um resultado melhor (em inglês, estas intervenções são chamadas de nudges, ou, numa tradução literal, “empurrõezinhos”), desde que em última instância estas intervenções preservem a liberdade de escolha das pessoas. Ou seja, os paternalistas libertários afirmam que é legítimo que arquitetos de escolhas (tanto no setor privado quanto no público) “tentem influenciar o comportamento das pessoas com a finalidade de tornar suas vidas mais longas, saudáveis e melhores” (SUNSTEIN; THALER, 2008SUNSTEIN, Cass, & Thaler, Richard. Nudge: Improving Decisions About Health, Wealth and Hapiness. New York: Penguin Books, 2008., p. 5). Estas intervenções são legítimas porque acarretam melhoria objetiva de seu bem-estar, segundo o próprio ponto de vista da pessoa. A proposta de Sunstein, portanto, tem como objetivo respeitar o valor intrínseco da liberdade de escolha e ao mesmo tempo legitimar ações estatais (e, eventualmente, não estatais) que interferem no processo de escolha das pessoas para maximizar seu bem-estar.

Exemplos destas “intervenções direcionadas” ou nudges se manifestam em diversas ações estatais, como o estabelecimento de rótulos em alimentos com informações nutricionais ou a advertência visual e escrita em maços de cigarros. Os nudges tentam induzir as pessoas a não fumar e a não consumir alimentos gordurosos, mas preserva-lhes a liberdade de escolha para fazê-lo, se assim desejarem. Estas intervenções partem do pressuposto de que as pessoas sabem qual é a decisão que querem adotar - consumir alimentos saudáveis, realizar os investimentos corretos, dentre outros -, mas por algum motivo têm dificuldades para chegar nela. É uma ideia que associa liberdade à navegabilidade da vida. Seguindo a metáfora do próprio Sunstein, é como se a função do Estado fosse dar às pessoas um aparelho de GPS: as pessoas que utilizam esse aparelho sabem onde querem chegar, mas precisam de ajuda externa que lhes mostre os caminhos e ajude a contornar as dificuldades. A função do Estado é dar este empurrão em direção à escolha certa. O pressuposto teórico por trás da ideia de navegabilidade é que, quando a vida é complexa, e quando os caminhos estatais são labirínticos, há menos liberdade. Liberdade significa chegar onde se quer e da forma como se quer. Assim, os obstáculos à navegabilidade são um importante obstáculo à liberdade, pois “a liberdade de escolha é importante, até mesmo crítica, mas é minada ou até mesmo destruída se a vida não for navegável” (SUNSTEIN, 2019aSUNSTEIN, Cass. How Change Happens. Cambridge: MIT Press, 2019., p. 2).

Até aí, o paternalismo libertário parece propor uma solução inovadora para problemas referentes à liberdade de escolha humana. Desde que sempre deixe margem para a agência e discricionariedade das pessoas, ele parece fornecer uma resposta genuinamente nova e que balanceia a importância de sopesar consequências e liberdade de escolha. Nas palavras de Sunstein e Thaler, “o paternalismo libertário é uma forma relativamente fraca, branda e não intrusiva de paternalismo, porque não bloqueia ou oprime a liberdade de escolha” (SUNSTEIN; THALER, 2008SUNSTEIN, Cass, & Thaler, Richard. Nudge: Improving Decisions About Health, Wealth and Hapiness. New York: Penguin Books, 2008., p. 5). Esses incentivos suaves do paternalismo libertário são necessários porque as pessoas cometem erros previsíveis com relação às suas próprias vidas - elas comem demais, se exercitam pouco, gastam dinheiro de maneira desproporcional aos seus ganhos - e por isso os elaboradores ou arquitetos das decisões podem incentivá-las a fazer escolhas que maximizem o seu bem-estar, segundo o seu próprio ponto de vista.

Entretanto, a conciliação entre maximização de bem-estar e liberdade de escolha se sustenta apenas quando cumprido o pressuposto de que as pessoas sabem onde desejam chegar. Quando este pressuposto é afastado, ou seja, quando as preferências das pessoas se tornam instáveis ou são alteradas devido à intervenção estatal direcionadora, a proposta do paternalismo libertário deixa de propor respostas inovadoras para a pergunta sobre o que significa fazer a coisa certa, tornando-se claramente consequencialista. Ou seja, em casos difíceis, Sunstein parece abandonar a própria máxima de sua teoria, segundo a qual a liberdade das pessoas deve ser preservada, aproximando o paternalismo libertário de uma forma mais dura de paternalismo ou de consequencialismo. Há ao menos três grupos de “casos difíceis” que apresentam, conforme afirma o próprio Sunstein, desafios importantes para a sua teoria, e que, conforme argumento neste breve texto, o impedem de levar sua proposta conciliadora às últimas consequências.

O primeiro grupo de casos difíceis são aqueles em que as preferências das pessoas são transformadas pelas intervenções estatais. Os exemplos de Sunstein são os seguintes: suponhamos que uma pessoa gosta de usar o celular enquanto dirige e é feliz e consciente com esta atitude; no entanto, depois de uma campanha estatal de conscientização, esta pessoa muda de ideia e decide que seu real desejo é parar de mandar mensagens enquanto dirige. Em outro caso, uma pessoa consome energia não renovável (porque mais barata), mas depois de uma campanha do Estado decide que o melhor seria consumir apenas energia renovável, mesmo que um pouco mais cara. Nestes casos, é possível afirmar que a liberdade de escolha das pessoas cuja preferência foi modificada pela ação estatal foi preservada? Quando há conflitos entre as preferências das pessoas em momentos distintos, o que significa fazer prevalecer sua liberdade de escolha?

O segundo grupo de casos difíceis analisados por Sunstein diz respeito aos problemas de autocontrole. Quando as pessoas querem em um momento 1 fazer algo de que provavelmente se arrependerão em um momento 2, o critério de “preservar a liberdade de escolha” deve se aplicar a que momento? Neste ponto, Sunstein observa não ser óbvia (ainda que recorrente) a afirmação de que a decisão tomada no momento 2 é intrinsecamente mais valiosa do que a decisão tomada no momento anterior. O terceiro grupo é formado por casos em que as pessoas têm preferências indiferentes, ou seja, para elas tanto faz uma decisão A ou B, e elas ficarão igualmente felizes (ou infelizes) com qualquer das opções. Neste caso, é legítima a intervenção estatal que induza as pessoas a tomarem a decisão B sobre a A? Estas perguntas são importantes porque revelam situações em que pode haver uma linha tênue entre intervenções estatais legítimas, voltadas a melhorar o bem-estar das próprias pessoas, e manipulações estatais voltadas a exercer poder e dominação sobre pessoas vulneráveis.

Para estes três grupos de casos difíceis, Sunstein apresenta soluções consequencialistas. Segundo ele, “não há como escapar de avaliar resultados perguntando-se sobre o que promove o bem-estar das pessoas” (SUNSTEIN, 2019aSUNSTEIN, Cass. How Change Happens. Cambridge: MIT Press, 2019., p. 6). Com relação aos problemas de autocontrole, ele afirma não haver como tomar decisões que estejam fundamentadas na escolha das pessoas: estes são casos em que “a liberdade de escolha falha” (SUNSTEIN, 2019aSUNSTEIN, Cass. How Change Happens. Cambridge: MIT Press, 2019., p. 109). Para o autor, estas são situações em que “a única alternativa é recorrer a algum tipo de parâmetro externo que envolva um julgamento acerca do que melhorará a vida daquela pessoa, considerando todas as variáveis” (SUNSTEIN, 2019aSUNSTEIN, Cass. How Change Happens. Cambridge: MIT Press, 2019., p. 79). Em casos como estes, “valorizar a liberdade de escolha não nos diz tudo o que precisamos saber” (SUNSTEIN, 2019aSUNSTEIN, Cass. How Change Happens. Cambridge: MIT Press, 2019., p. 80).

A respeito das intervenções que transformam as preferências das pessoas, ele rejeita a objeção de que o Estado não deve promover intervenções que estabeleçam direcionamentos inconsistentes com as preferências atuais das pessoas: “se o afetado não rejeitar o empurrãozinho e, depois da intervenção, ficar satisfeito ou feliz com a situação em que se encontra, então não há motivos para rejeitar [o empurrãozinho], ao menos sob uma perspectiva de bem-estar” (SUNSTEIN, 2019aSUNSTEIN, Cass. How Change Happens. Cambridge: MIT Press, 2019., p. 87). Assim, ele faz um deslocamento epistemológico da questão que importa para a reflexão acerca da importância das intervenções estatais direcionadoras: o que importa não é a questão “como devemos escolher entre o status quo e o resultado de uma intervenção”, mas sim a questão: “como devemos avaliar as intervenções que provocam transformações nas preferências das pessoas?” (SUNSTEIN, 2019aSUNSTEIN, Cass. How Change Happens. Cambridge: MIT Press, 2019., p. 90). Assim, ainda que Sunstein pareça sugerir que o paternalismo libertário supere a dicotomia entre liberdade de escolha e promoção do bem-estar, na prática ele aceita a dicotomia e toma partido em favor deste último. O autor chega a defender o uso de mecanismos coercitivos nas hipóteses em que a liberdade de escolha falha ao promover a maximização de bem-estar: “se as pessoas sofrem de otimismo irrealista, atenção limitada, ou um problema de autocontrole, e se o resultado for um gravoso prejuízo ao bem-estar, então há um argumento para algum tipo de imposição” (SUNSTEIN, 2019aSUNSTEIN, Cass. How Change Happens. Cambridge: MIT Press, 2019., p. 106).

Para fundamentar seus posicionamentos consequencialistas, Sunstein se baseia nos achados desenvolvidos nas últimas décadas pela psicologia comportamental acerca dos vieses cognitivos de que os humanos padecem. Estes achados indicam que os seres humanos não são tão coerentes e calculistas quanto se supôs por décadas. Na verdade, o comportamento humano segue dois padrões ou sistemas distintos: por meio do sistema 1, tomamos decisões de forma rápida, irrefletida, emocional e automática; enquanto que, por meio do sistema 2, conseguimos tomar decisões de maneira mais lenta, racional, coerente e reflexiva (KAHNEMANN, 2012KAHNEMANN, Daniel. Rápido e Devagar: Duas Formas de Pensar. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.). O sistema 1 é parte da biologia humana e cumpre funções importantes quando precisamos de respostas rápidas a problemas emergenciais, mas entramos em perigo quando ele assume o controle do sistema 2, fazendo com que pulemos a conclusões precipitadas e irrefletidas acerca de questões complexas. Quando isso ocorre, corremos o risco de nos deixarmos levar mais por emoções do que por fatos, e, assim, em incorrer em erros relacionados a estes vieses cognitivos, como o viés do presente, o efeito halo, a negligência sistêmica, o viés de disponibilidade, o viés de confirmação, a assimilação enviesada de informações, dentre outros.

O argumento de Sunstein é que estes vieses cognitivos nos impedem de tomar decisões corretas, definidas por ele como aquelas que maximizam o nosso próprio bem-estar. E, para Sunstein, quando nosso sistema 1 nos leva a erros por causa destes vieses cognitivos, é legítimo que o Estado intervenha, de forma a corrigir a situação. Uma primeira intervenção - e a que deve ser priorizada, segundo o autor - é a educativa, em que o afetado é munido de informações relevantes acerca de qual é a melhor decisão a ser tomada. Esta abordagem preserva a liberdade de escolha das pessoas, constituindo assim uma solução consequencialista temperada; entretanto, talvez haja uma inconsistência na teoria de Sunstein quando ele vai adiante para afirmar que, caso as intervenções educativas não funcionem, o Estado pode partir para ações mais agressivas do ponto de vista do paternalismo, desde que “os benefícios da imposição excedam em muito os custos, e desde que não haja perdas significativas de bem-estar aos consumidores” (SUNSTEIN, 2019aSUNSTEIN, Cass. How Change Happens. Cambridge: MIT Press, 2019., p. 109). Sunstein afirma que uma decisão que imponha comportamentos (e não meramente os direcione) deve ser precedida de todas as cautelas possíveis. Ou seja, a presença de um viés cognitivo que desvie as pessoas das atitudes corretas deve ser comprovada, e não meramente presumida. Optar pela imposição de comportamentos é uma decisão que só deve ser tomada com relutância, afirma o autor. Mesmo assim, ao admitir imposições, Sunstein parece se desviar da ideia original de preservar, a qualquer custo, a liberdade de escolha das pessoas.

A tendência consequencialista do autor fica ainda mais clara em um livro recente (SUNSTEIN, 2019bSUNSTEIN, Cass. On Freedom. Princeton: Princeton University Press, 2019.), em que o autor chega a realizar uma associação entre o deontologismo e o sistema 1, de um lado, e entre consequencialismo e sistema 2, de outro. Ao afirmar que a filosofia deontologista está associada a uma forma rápida, automática e irrefletida de raciocínio, Sunstein está novamente fazendo uma defesa do consequencialismo, que ele associa a uma forma de raciocínio lenta, cautelosa, deliberativa e racional. Sua postura não poderia ser mais clara: “a deontologia é uma heurística moral para o que realmente importa, e consequências são o que realmente importam” (SUNSTEIN, 2019bSUNSTEIN, Cass. On Freedom. Princeton: Princeton University Press, 2019., p. 244). Ainda que admita que intuições provenientes do sistema 1 possam eventualmente se revelarem corretas, Sunstein parece afirmar uma preferência pelo consequencialismo mesmo em casos em que a controvérsia subjacente a uma determinada questão não seja meramente factual, mas moral. Nesses casos, sugere o autor, “a reflexão crítica (...) pode levar as pessoas a pensar que alguns de seus julgamentos intuitivos acerca da justiça estão incorretos porque acarretam consequências negativas” (SUNSTEIN, 2019bSUNSTEIN, Cass. On Freedom. Princeton: Princeton University Press, 2019., p. 254). Sunstein admite, contudo, que a resposta correta para questões morais requer a adoção de uma teoria moral correta, e não apenas de uma análise de consequências.

Ainda que Sunstein proponha uma teoria inovadora e original para tentar avaliar os processos de tomada de decisões, sua teoria não consegue avançar, em casos difíceis, para além do consequencialismo. Devem-se privilegiar as consequências quando as preferências das pessoas são instáveis, quando elas têm problemas de autocontrole e quando elas são indiferentes a respeito de qual decisão adotar. Em outras palavras, a liberdade de escolha deve prevalecer se ela permitir optar pela decisão correta. É uma defesa fraca da ideia de liberdade de escolha, mais paternalista do que libertária, especialmente porque permite a delegação de decisões sobre o bem-estar para agentes externos. Ao vincular a legitimidade de decisões aos resultados que elas produzem, Sunstein deixa de analisar situações em que não é possível avaliar com clareza e objetividade os resultados de uma ação ou de intervenções indutoras de comportamentos. Nesses casos, a legitimação da delegação de decisões sobre o bem-estar das pessoas não poderia servir como pretexto para ações que violem direitos em nome de consequências sociais positivas ou benéficas? Permitir uma forma mais rigorosa de paternalismo pode eventualmente servir de justificativa para minar a liberdade individual em prol de finalidades estabelecidas de formas não democráticas.

Sunstein (2019b)SUNSTEIN, Cass. On Freedom. Princeton: Princeton University Press, 2019. afirma ser possível fazer uma distinção entre consequencialismo e utilitarismo. O consequencialismo sem utilitarismo, chamado pelo autor de consequencialismo fraco, é uma proposta de avaliar ações por meio das consequências, porém incluindo neste cálculo o valor intrínseco de direitos. A ideia é que violações de direitos devem ser levadas em consideração para fins de cálculo e avaliação de consequências. O consequencialismo sem utilitarismo, portanto, afirma que o Estado deve maximizar bem-estar, afirmando porém que o valor intrínseco de direitos deve fazer parte deste cálculo: os consequencialistas fracos “concordam que violações de direito, quaisquer que sejam seus efeitos na utilidade final, devem ser contabilizados entre as consequências que importam, e portanto essas violações devem desempenhar um papel na avaliação do que deve ser feito” (SUNSTEIN, 2019bSUNSTEIN, Cass. On Freedom. Princeton: Princeton University Press, 2019., p. 222).

Referências Bibliográficas

  • KAHNEMANN, Daniel. Rápido e Devagar: Duas Formas de Pensar. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.
  • SANDEL, Michael. Justiça: o que é fazer a coisa certa? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.
  • SEN, Amartya. A ideia de Justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
  • SUNSTEIN, Cass. How Change Happens. Cambridge: MIT Press, 2019.
  • SUNSTEIN, Cass. On Freedom. Princeton: Princeton University Press, 2019.
  • SUNSTEIN, Cass, & Thaler, Richard. Nudge: Improving Decisions About Health, Wealth and Hapiness. New York: Penguin Books, 2008.
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    Sunstein (2019b)SUNSTEIN, Cass. On Freedom. Princeton: Princeton University Press, 2019. afirma ser possível fazer uma distinção entre consequencialismo e utilitarismo. O consequencialismo sem utilitarismo, chamado pelo autor de consequencialismo fraco, é uma proposta de avaliar ações por meio das consequências, porém incluindo neste cálculo o valor intrínseco de direitos. A ideia é que violações de direitos devem ser levadas em consideração para fins de cálculo e avaliação de consequências. O consequencialismo sem utilitarismo, portanto, afirma que o Estado deve maximizar bem-estar, afirmando porém que o valor intrínseco de direitos deve fazer parte deste cálculo: os consequencialistas fracos “concordam que violações de direito, quaisquer que sejam seus efeitos na utilidade final, devem ser contabilizados entre as consequências que importam, e portanto essas violações devem desempenhar um papel na avaliação do que deve ser feito” (SUNSTEIN, 2019bSUNSTEIN, Cass. On Freedom. Princeton: Princeton University Press, 2019., p. 222).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Maio 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2020

Histórico

  • Recebido
    16 Jun 2019
  • Aceito
    24 Ago 2019
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