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Pela retomada do radicalismo: a proposta de um feminismo decolonial

For the return to radicalism: the proposal of a decolonial feminism

Por la reanudación del radicalismo: la propuesta de un feminismo decolonial

VERGÈS, Françoise. . Um feminismo decolonial. Tradução de Dias, Jamille Pinheiro; Camargo, Raquel. . São Paulo: Ubu Editora, 2020.

Françoise Vergès, autora de Um feminismo decolonial, livro publicado em 2020 pela editora Ubu, apesar de ter nascido em Paris no ano de 1952, cresceu na ilha de Reunião, território francês no Oceano Índico. A experiência de ter vivido em um dos chamados departamentos ultramarinos franceses pode ter sido um dos motivos para que desenvolvesse um olhar crítico em relação aos processos de colonização.

A obra é dividida em três partes, além do prefácio à edição brasileira (pela própria autora), da nota da tradução e do texto de apresentação de Flavia Rios, professora da Universidade Federal Fluminense (UFF). Na primeira parte, Vergès contextualiza o tema abordado ao longo do livro, ou seja, o que chama de feminismo decolonial, a partir da perspectiva das mulheres que se encontram à margem do capitalismo neoliberal global. Em seguida, na segunda seção, a autora apresenta e desenvolve uma definição do conceito de feminismo decolonial. Na terceira e última parte, encerra o livro em tom de manifesto, conclamando pela retomada do caráter radical do feminismo.

A proposta de feminismo decolonial apresentada pela cientista política2 2 É importante ressaltar o fato de Fraçoise Vergès ser cientista política, já que, no Brasil, a Ciência Política, entre as Ciências Sociais, ainda é a disciplina mais resistente aos estudos feministas. coloca no centro da análise do capitalismo os corpos das mulheres racializadas, muitas delas trabalhadoras domésticas e funcionárias terceirizadas de empresas de limpeza em condições precárias de trabalho. Esses corpos exaustos seriam responsáveis por abrir as cidades todos os dias de madrugada para que as empresas e seus executivos possam exercer suas funções.

Em oposição aos corpos exaustos, estariam os corpos eficientes de homens e mulheres, majoritariamente brancos, que “[...] na sequência de seus treinos, tomam um banho, comem uma torrada com abacate e bebem um suco detox antes de prosseguirem com suas atividades” (VERGÈS, 2020VERGÈS, Françoise . Um feminismo decolonial. Tradução de Jamille Pinheiro Dias e Raquel Camargo. São Paulo: Ubu Editora, 2020., p. 19). Sem o trabalho das mulheres racializadas, no entanto, nenhuma dessas atividades seria possível e, de um ponto de vista mais ampliado, o capitalismo não teria se desenvolvido. Trata-se de um paradoxo: ao mesmo tempo em que é invisibilizado, o trabalho dessas mulheres está na base de sustentação do capitalismo.

O adjetivo decolonial insurge-se em oposição à ideia de descolonial com “s”. Apesar da diferença de uma letra, esses conceitos remetem a posicionamentos políticos e teóricos bastante distintos. A colonização foi um evento histórico datado e localizado, enquanto o colonialismo é um processo mais amplo ainda em curso. Nesse sentido, a descolonização nunca aconteceu, uma vez que o colonialismo ainda é uma forma central de dominação nas sociedades contemporâneas. A decolonização e, mais especificamente, o feminismo decolonial, ao invés de propor a superação da colonização, como sugere o termo “descolonial”, critica de forma radical as nossas heranças coloniais e defende uma sociedade na qual todos os seres humanos se emancipem de todas as formas de opressão.

É interessante notar as conexões existentes entre o livro de Vergès e o pensamento de algumas autoras brasileiras no que diz respeito à crítica ao eurocentrismo e ao colonialismo. Lélia Gonzalez, no texto seminal “Por um feminismo afro-latino-americano” (1988)GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afrolatinoamericano. Revista Isis Internacional, Santiago, v. 9, p. 133-141, 1988., defende, a partir do conceito de “amefricanidade”, uma outra perspectiva epistemológica possível, uma perspectiva que pretende romper radicalmente com o colonialismo, o racismo, a dominação de classe e com o patriarcado. Ela propõe que a “Améfrica Ladina” substitua a América Latina como forma de evidenciar a participação das populações indígenas e africanas na construção do nosso continente. Assim como Vergès, Gonzalez também questiona a suposta neutralidade do conhecimento produzido por homens brancos europeus, defendendo, desse modo, a tese de que todo conhecimento é situado.

Outro ponto central da crítica desenvolvida por Françoise Vergès está no que chama de “feminismo civilizatório”. Trata-se do feminismo branco e burguês que se alia ao capitalismo racial ao não apresentar uma alternativa estrutural às diversas formas de dominação, tais quais o colonialismo, o patriarcado e o racismo. Pelo contrário, ele pretende se inserir nessa lógica, em pautas como a demanda por mais mulheres nos cargos de alto comando das grandes empresas. O feminismo civilizatório valoriza as histórias individuais de ascensão econômica em uma chave de leitura que flerta com a meritocracia. É um feminismo que tem como missão civilizar as mulheres do sul global, supostamente exploradas por seus maridos e pelas sociedades patriarcais onde vivem. A partir da caracterização feita pela autora, é possível encontrar semelhanças fundamentais entre o que ela define como “feminismo civilizatório” e correntes do feminismo liberal, as quais têm ganhado cada vez mais visibilidade ao redor do mundo.

A oposição ao uso do véu na França, na visão de Vergès, é um exemplo emblemático desse tipo de feminismo civilizatório. As feministas civilizatórias francesas, sob o argumento de estarem salvando as mulheres muçulmanas do obscurantismo, acabaram defendendo posições xenófobas e islamofóbicas. O feminismo civilizatório, ao se pretender universal, ignora toda produção de conhecimento e formas de ativismo originadas nos lugares geográfica e simbolicamente periféricos e nas comunidades racializadas dos países do norte. É sintomático de nossos tempos que também possamos encontrar esse tipo de “feminismo” no Brasil.

Como caracteriza Vergès, o feminismo decolonial, por sua vez, tem origem no sul global e, a partir da reativação das lutas ancestrais, tanto das mulheres negras quanto de mulheres indígenas, questiona o capitalismo, o patriarcado, o racismo e o imperialismo. É possível concluir, a partir do livro, que não se trata de uma análise baseada na somatória de opressões, como algumas interpretações contemporâneas equivocadas do conceito de interseccionalidade pretendem afirmar. Não se trata tampouco de uma “nova onda” do feminismo, já que, como afirma Vergès, as lutas das mulheres do sul global não começaram agora. O feminismo decolonial apresenta uma forma complexa, estrutural e totalizante de entender as opressões, sem que haja uma separação rígida entre sociedade e natureza. Nas palavras da autora, a feminista decolonial sabe que “[...] na luta há dificuldades, tensões, frustrações, mas também alegria, diversão, descobertas e ampliação de mundo” (VERGÈS, 2020VERGÈS, Françoise . Um feminismo decolonial. Tradução de Jamille Pinheiro Dias e Raquel Camargo. São Paulo: Ubu Editora, 2020., p. 46).

O conceito de feminismo decolonial utilizado por Vergès não é novo. Ele advém de uma tradição de teóricas e ativistas latino-americanas, como Gloria Anzaldúa e María Lugones, que se dedicaram a analisar os efeitos da colonização sobre a opressão das mulheres. Nas palavras de Anzaldúa (2005)ANZALDÚA, Gloria. La conciencia de la mestiza: Rumo a uma nova consciência. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 13, n. 3, p. 704-719, set./dez. 2005., as mulheres que se encontram em países periféricos do sul global, caracterizadas por ela como “mestizas”, esgarçam as fronteiras rígidas estabelecidas pelo conhecimento europeu e desmascaram a insuficiência dos dualismos impostos pela racionalidade do Ocidente. Trata-se de um pensamento divergente, caracterizado pela crítica aos padrões de objetividade e pela proposição de uma abordagem mais ampla e inclusiva. Como alternativa, ela propõe uma visão feminista que, resgatando a tradição dos povos indígenas, coloque a vida, a natureza e a comunidade acima do individualismo e do lucro.

Apesar de não citar essas autoras, as formulações apresentadas por Vergès deixam evidentes as aproximações entre o feminismo decolonial por ela proposto e a produção teórica das feministas decoloniais do sul global. A novidade trazida no livro, além da localização geográfica de sua autora, está na atualização do debate sobre o feminismo decolonial em um contexto de avanço do capitalismo neoliberal e racial e de ascensão de governos conservadores e autoritários, o que deixa as mulheres indígenas, negras, camponesas e periféricas em uma situação ainda mais vulnerável.

Outro argumento apresentado no livro postula que as feministas civilizatórias que ignoram a existência do capitalismo racial acabam sendo cúmplices dele. A ausência de uma crítica estrutural da sociedade abriu caminho para que governos autoritários de extrema direita ganhassem força ao redor do mundo. No caso brasileiro, a cientista política defende que esta é uma das lições a serem tiradas das eleições de 2018, que tiveram como resultado a eleição de

[...] um homem branco apoiado por grandes proprietários de terra, pelo mundo dos negócios e por Igrejas evangélicas; um homem que declarou abertamente sua misoginia, sua homofobia, sua negrofobia, seu desprezo pelos povos indígenas, sua vontade de vender o Brasil ao melhor pagador, de violar as leis sociais voltadas às classes mais pobres e as leis de proteção à natureza, de voltar atrás nos acordos assinados com povos indígenas, e tudo isso alguns meses após o assassinato da vereadora queer e negra Marielle Franco. (VERGÈS, 2020VERGÈS, Françoise . Um feminismo decolonial. Tradução de Jamille Pinheiro Dias e Raquel Camargo. São Paulo: Ubu Editora, 2020., p. 38).

O conflito entre o feminismo civilizatório e o feminismo decolonial está expresso nas diferenças de interpretação que cada um deles apresenta sobre a realidade social. Enquanto o primeiro defende uma abordagem antidiscriminatória, o segundo vai além e propõe uma postura revolucionária. A abordagem revolucionária, de acordo com a autora, não rejeita a luta por reformas, mas questiona a reivindicação tanto por oportunidades iguais no mercado de trabalho quanto por políticas de microcrédito em uma perspectiva individualista, na chave do “empoderamento”. Esse “objetivo modesto”, nas palavras de Vergès, pretende promover a entrada das mulheres (algumas delas) na ordem liberal, o que tem como consequência (nem sempre intencional) a perpetuação das desigualdades de classe, raça e gênero.

A autora também é bastante crítica à institucionalização dos movimentos feministas, ocorrida com maior intensidade a partir da década de 1970, tanto na Europa quanto na América Latina, tendo como marco a criação da “década da mulher” pela Organização das Nações Unidas (ONU)3 3 No caso dos países latino-americanos, essa institucionalização dos movimentos feministas ocorreu tardiamente porque por aqui vivíamos em regimes políticos ditatoriais. No Brasil, por exemplo, a criação do então Conselho Nacional da Mulher (CNM) ocorreu apenas em 1985. . Ela defende que esse processo teve como consequência o esvaziamento do alcance político dos movimentos. Esse posicionamento de Vergès, contudo, não é um ponto pacífico entre as feministas. Há quem defenda que foi justamente a institucionalização dos feminismos que permitiu que esses movimentos tivessem maior alcance político, assegurando políticas públicas de combate à violência contra às mulheres, direitos trabalhistas, de participação política, entre outros (ALVAREZ, 2014ALVAREZ, Sonia E. Para além da sociedade civil: reflexões sobre o campo feminista. Cadernos Pagu, Campinas, n. 43 (Dossiê o gênero da política: feminismos, estado e eleições), p. 13-56, jan./jun. 2014.; BIROLI; 2018BIROLI, Flávia. Gênero e desigualdades: limites da democracia no Brasil. São Paulo: Editora Boitempo, 2018.).

Françoise Vergès também apresenta duras críticas ao livro Sejamos todos feministas, de autoria de Chimamanda Adichie, publicado em 2014ADICHIE, Chimamanda. Sejamos todos feministas. Tradução de Christina Baum. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. no Brasil. Essa obra obteve reconhecimento mundial, foi traduzida para diversos idiomas e teve o seu título estampado em camisetas de lojas de marca. Para a autora francesa, o feminismo inclusivo defendido no livro é, na verdade, inatingível. Além disso, o posicionamento da escritora nigeriana oculta a crítica feita pelos feminismos negros e decolonial ao universalismo e aos limites existentes para determinadas alianças políticas. O argumento de Adichie, na visão de Vergès, acaba psicologizando as demandas feministas, transformando o combate às opressões estruturais em uma questão de mudança de mentalidade, válida para todas as mulheres e todos os homens em todos os contextos e temporalidades.

A cientista social finaliza esse pequeno e potente livro - são apenas cento e quarenta páginas - com um chamado à recuperação da narrativa militante radical. A história oficial escrita pelo feminismo civilizatório pacificou figuras de ativistas como Rosa Parks e Angela Davis. Essa pacificação levou à construção de um feminismo bem comportado e palatável. Nessa perspectiva, e trazendo a análise para o caso brasileiro, não é de se espantar o fato de parte da fala (aquela que convinha) de Angela Davis, teórica e ativista feminista marxista, ter sido transmitida em rede nacional no Jornal Nacional da Rede Globo4 4 Em 21/10/2019, a teórica e ativista Angela Davis conferiu uma palestra intitulada “A liberdade é uma luta constante”, no Auditório do Parque do Ibirapuera, em São Paulo, para uma audiência lotada de milhares de pessoas. No mesmo dia, o Jornal Nacional noticiou o evento, retirando as partes mais radicais da fala de Davis. . No lugar de adotar essa narrativa pacificadora, deveríamos resgatar as trajetórias de luta de mulheres escravizadas, quilombolas e indígenas, que revelam a existência de feminismos antirracistas e anticoloniais desde pelo menos o século XVI. No Brasil, não faltam exemplos de autoras e ativistas que cumpriram esta tarefa de resgate: Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro e Beatriz Nascimento são algumas delas.

Por fim, como faz a autora na última página do livro, esta resenha se encerra com a citação de um trecho de um manifesto escrito coletivamente em junho de 2017, por artistas feministas, militantes e pela própria cientista política, que assim resume os anseios de um feminismo decolonial:

Queremos pôr em prática um pensamento utópico, entendido como energia e força de insurreição, como presença e como convite para sonhos emancipatórios, como gesto de ruptura: ousar pensar para além do que se apresenta como “natural”, “pragmático”, “razoável”. Não queremos construir uma comunidade utópica, mas restaurar toda a sua força criativa em sonhos de insubmissão e resistência, justiça e liberdade, felicidade e bondade, amizade e encantamento. (VERGÈS, 2020VERGÈS, Françoise . Um feminismo decolonial. Tradução de Jamille Pinheiro Dias e Raquel Camargo. São Paulo: Ubu Editora, 2020., p. 136).

É pela retomada desses ideais e do radicalismo, os quais historicamente caracterizaram a luta das mulheres, que o feminismo decolonial proposto por Françoise Vergès se apresenta.

Referências

  • VERGÈS, Françoise . Um feminismo decolonial. Tradução de Jamille Pinheiro Dias e Raquel Camargo. São Paulo: Ubu Editora, 2020.
  • ADICHIE, Chimamanda. Sejamos todos feministas. Tradução de Christina Baum. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
  • ALVAREZ, Sonia E. Para além da sociedade civil: reflexões sobre o campo feminista. Cadernos Pagu, Campinas, n. 43 (Dossiê o gênero da política: feminismos, estado e eleições), p. 13-56, jan./jun. 2014.
  • ANZALDÚA, Gloria. La conciencia de la mestiza: Rumo a uma nova consciência. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 13, n. 3, p. 704-719, set./dez. 2005.
  • BIROLI, Flávia. Gênero e desigualdades: limites da democracia no Brasil. São Paulo: Editora Boitempo, 2018.
  • GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afrolatinoamericano. Revista Isis Internacional, Santiago, v. 9, p. 133-141, 1988.
  • 2
    É importante ressaltar o fato de Fraçoise Vergès ser cientista política, já que, no Brasil, a Ciência Política, entre as Ciências Sociais, ainda é a disciplina mais resistente aos estudos feministas.
  • 3
    No caso dos países latino-americanos, essa institucionalização dos movimentos feministas ocorreu tardiamente porque por aqui vivíamos em regimes políticos ditatoriais. No Brasil, por exemplo, a criação do então Conselho Nacional da Mulher (CNM) ocorreu apenas em 1985.
  • 4
    Em 21/10/2019, a teórica e ativista Angela Davis conferiu uma palestra intitulada “A liberdade é uma luta constante”, no Auditório do Parque do Ibirapuera, em São Paulo, para uma audiência lotada de milhares de pessoas. No mesmo dia, o Jornal Nacional noticiou o evento, retirando as partes mais radicais da fala de Davis.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Abr 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    03 Set 2020
  • Aceito
    18 Set 2020
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