Open-access NEGRITUDE E PAN-AFRICANISMO NO PENSAMENTO SOCIAL BRASILEIRO: A TRAJETÓRIA DE IRONIDES RODRIGUES (1923-1987) *

NEGRITUDE AND PAN-AFRICANISM IN BRAZILIAN SOCIAL THINKING: THE TRAJECTORY OF IRONIDES RODRIGUES (1923-1987)

NÉGRITUDE ET PANAFRICANISME DANS LA PENSÉE SOCIALE BRÉSILIENNE: LA TRAJECTOIRE D´IRONIDES RODRIGUES (1927-1987)

Resumos

Este artigo tem como objetivo analisar a trajetória e as contribuições do escritor e pedagogo mineiro Ironides Rodrigues aos movimentos negros da diáspora e ao pensamento social brasileiro. Em particular, por sua incorporação da negritude francófona e de certo pensamento pan-africanista em sua luta e reflexão sobre a realidade étnico-racial do negro brasileiro. Para isso, serão examinados escritos diversos (memórias, ensaios, textos analíticos) de sua autoria, que, por não terem sido publicados anteriormente, ainda não foram alvo de pesquisas acadêmicas. A tese deste artigo é que o cerne de sua contribuição prática e teórica à luta negra mundial é sua compreensão da questão negra como direito de autoafirmação, que se consolidou a partir de sua práxis no Teatro Experimental do Negro, nas décadas de 1940-1950.

Teatro Experimental do Negro; Movimento negro; Pensamento social brasileiro; Pan-africanismo; Sociologia das relações raciais


This article analyzes the trajectory and contributions to the black movements of the diaspora and Brazilian social thought made by the writer and pedagogue from Minas Gerais, Ironides Rodrigues. Particularly his incorporation of the francophone negritude and of a certain Pan-Africanist thought in his own social struggle and reflection on the ethnic-racial reality of the Brazilian black people. We will examine different writings (memoirs, essays, analytical texts) of Rodrigues, which were never before the subject of a rigorous academic research, especially because they have not been previously published. The hypothesis we aim to sustain on this article is that the core of his practical and theoretical contribution to the black struggle is his understanding of the black issue as a right of self-assertion, which was consolidated with his praxis in the Black Experimental Theater in the 1940 and 1950s.

Black Experimental Theater; Negritude; Black movement; Brazilian social thought; Pan-africanism; Sociology of race relations


Cet article vise à analyser la trajectoire et les contributions de l’écrivain et pédagogue Ironides Rodrigues aux mouvements noirs de la diaspora et de la pensée sociale brésilienne, en particulier par rapport à son incorporation de la négritude francophone et d’une certaine pensée panafricaniste dans sa lutte et sa réflexion sur la réalité ethnique et raciale du nègre brésilien. Ainsi, nous étudierons plusieurs de ses écrits (mémoires, essais, textes analytiques) qui, inédits, n’ont pas encore fait l’objet de recherches universitaires. La thèse de cet article est que sa principale contribution pratique et théorique à la lutte des Noirs dans le monde repose essentiellement sur sa compréhension de la question des Noirs en tant que droit d’affirmation de soi, ce qui a été confirmé par sa pratique dans le Théâtre Expérimental Noir des années 1940-1950.

Théâtre Expérimental Noir; Mouvement noir; Pensée sociale brésilienne; Panafricanisme; Sociologie des relations raciales


Ironides Rodrigues foi um intelectual e militante conhecido do ativismo negro carioca entre os anos de 1950 e 1970. No entanto, existem poucas referências acadêmicas sobre ele. Salvo melhor juízo, a única pesquisa mais pormenorizada, que inclui sua trajetória, é a dissertação de Gilca R. dos Santos (2013) , acerca do seu pensamento educacional. Não por acaso, fora realizada na Universidade Federal de Uberlândia, cidade natal do autor.

Este artigo visa contribuir para superar tal esquecimento. Não apenas porque Ironides foi, como dito, um personagem relevante do ativismo negro, mas, sobretudo, porque ele foi um pensador pioneiro em sua época, por sua apropriação da negritude francófona1 e do pan-africanismo,2 um tema ainda não tratado com o devido pormenor pela bibliografia especializada sobre a intelectualidade negra no Brasil (entre outros, Guimarães, 2004 ; Domingues, 2007 , 2008 ; Domingues e Gomes, 2011; Alberto, 2011 ; Pereira, 2013 ; Rios, 2014 ).3 Isso, mesmo naquela que tratou especificamente do Teatro Experimental do Negro (TEN) ou, de forma mais ampla, da intelectualidade negra no Brasil no pós-guerra (A. Nascimento, 2004a; A. Nascimento e E. L. Nascimento, 2000; Barbosa, 2004 , 2013 , 2015 ; Bastide, 1961 , 1983 ; Birman, 1991 ; E. L. Nascimento, 1981 , 2003 ; Guimarães, 1999 , 2002 ; Macedo, 2005 ; Maio, 1997 ; Martins, 1989 ; Mauês, 1988 , 1999 ; Muller, 1988 ; Munanga, 1983 ; Pinto, 1998 [1953]; Silva, 2003 ).

Várias são as hipóteses para tal esquecimento. Provavelmente, a mais determinante é que autor deixou pouco material publicado em vida. Esse fato, entretanto, começa a ser superado por conta de um projeto do Instituto de Pesquisas e Estudos Afro Brasileiros (Ipeafro) – coordenado pela socióloga Elisa Larkin Nascimento –, que está digitalizando e tornando públicos diversos textos do autor, escritos entre as décadas de 1950 e 1980. O material empírico básico, que possibilitou a pesquisa referente a este artigo, é parte dessa coletânea, assim como outros textos publicados pela revista Thoth , quais sejam: (a) “Diário de um negro atuante: serões de Bento Ribeiro” (4º, 7º e 8º livros [134 páginas, 1980]: Thoth 3); (b) “Diário de Bento Ribeiro” (1º livro, 1ª parte [236 páginas, 1974-75]: Thoth 4; 2ª parte [306 páginas, 1974-75]: Thoth 5).

Apoiando-se na bibliografia especializada mencionada, em jornais de época e na leitura analítica dos referidos textos, este artigo visa desvelar a relevância dos conceitos de negritude e pan-africanismo no pensamento de Ironides Rodrigues, buscando, sempre que possível, contextualizá-lo no debate da época. Trata-se, portanto, de uma interpretação específica desse material, que também não abarca todas as fontes primárias de sua autoria.4 Sendo assim, este ensaio se coloca, mais modestamente, como uma primeira aproximação analítica do pensamento desse “quase esquecido” intelectual e ativista mineiro. Ao fazê-lo, além de contribuir no sentido apontado acima, da bibliografia sobre os intelectuais negros no Brasil, este ensaio pode, concomitantemente, trazer elementos para outras análises relevantes. Em primeiro lugar, no campo da sociologia dos intelectuais do pensamento social brasileiro, ajuda a problematizar o ofuscamento de intelectuais relevantes do ativismo político negro, que estavam fora dos canais de consagração existentes à época. Neste caso, algo ainda mais relevante por se tratar de um período central para a formação das ciências sociais no país. Em segundo lugar, para o debate internacional dos estudos sobre a diáspora negra, tal qual pensados pioneiramente por autores como G. Shepperson, Joseph Harris, St. Clair Drake, e outros mais recentes, como Stuart Hall e Paul Gilroy.5 Isso porque, como buscaremos documentar e analisar, ao estabelecer um diálogo com autores do movimento da negritude e do pan-africanismo, Ironides foi um dos pensadores que mais contribuiu, entre os anos 1950 e 1970, para inserir o pensamento social brasileiro nos diálogos intelectuais da África com sua diáspora negra ou, como prefere Gilroy (2001) , de forma mais ampla, enquanto “Atlântico negro”, entendido como local de construção de uma identidade negra construída política e historicamente pelas trocas culturais marcadas pelas experiências de desenraizamento, deslocamento e criação cultural.

Ironides antes do TEN

Ironides Rodrigues nasceu em 7 de setembro de 1923, em Uberabinha, atual Uberlândia, Minas Gerais. De família humilde, teve infância difícil e pobre. Maria Rita, sua mãe, trabalhava como empregada doméstica para sustentar sozinha o pequeno Ironides e seu irmão, Almiro. O pai, Augusto, trabalhava como motorista, mas abandonou a família quando Ironides ainda era criança. Tal fato teria causado sérias sequelas na família, afundando Maria Rita na depressão e no alcoolismo (Rodrigues, 1998b, p. 199).

Apesar dessas tragédias familiares, Ironides consolidou seus estudos primários no Grupo Escolar Bueno Brandão, de onde só saiu ao finalizar o ginasial. Provavelmente, para ele, o estudo era uma “válvula de escape” diante das dificuldades econômicas e da discriminação racial que sofreu na infância. É possível também que as relações com a família de “Sinhá Beyle”, para quem Maria Rita trabalhava, possa ter facilitado tal predisposição.6 Em suas memórias, Ironides toca diversas vezes nesse ponto, como no trecho a seguir:

Tenho o preconceito racial na carne. Lembro-me de que certa vez soube, já no fim de meu curso ginasial, que certo professor teve que imiscuir-se na eleição de orador da turma, impedindo-me que fosse eleito, para que a cidade, com minha eleição, não pensasse que só um negro tinha competência para falar em nome da turma. Isso me entristeceu a tal ponto que recusei a participar das festividades bacharelícias, em 1942 (Rodrigues, 1998a, p. 144).

Em Uberlândia, Ironides se uniu com um amigo, Francisco (Chico) Pinto – irmão do finado ator Grande Otelo – e outros, para fundar o jornal A Raça , em que teria sido editor ( Santos, 2013 ; Coelho, 2011 ):

Em Uberlândia, eu e o Chico Pinto, irmão de Grande Otelo, tínhamos um jornalzinho, A Raça , em que debatíamos que a única esperança para tirar o negro da miséria econômica e cultural em que ele está mergulhado é a educação. Um pugilo de homens de cor, com decisão e denodo, se reunia para traçar programas depois que saía cansado da longa atividade diurna. Esses negros admiráveis esqueciam seus problemas domésticos para pensarem na desgraça nacional de seus irmãos de raça. Relembro todos eles com carinho e amor, João Benedito Brasil, Diná, Bené, Alceu Marcelino, Doca sua mulher, oferecia a casa simples e hospitaleira para esses fins (Rodrigues, 1998a, p. 144).

Segundo Ironides, o referido Chico Pinto também tinha ideias de montar um teatro negro. Algo pioneiro no Brasil daquele tempo. Ele inclusive já havia iniciado algo nesse sentido na montagem e encenação de uma peça teatral chamada Kalu , com diversos atores negros em cena. Certamente, um ato incomum no teatro tradicional de Uberlândia. Conta Ironides:

Chico Pinto, lutando contra todas as reações inimagináveis, conseguiu montar Kalu – o príncipe de alma branca , com artistas negros e brancos. Levada ao Cine Teatro Avenida, Chico mostrou, com essa peça musical e belamente plástica, até onde se podia contar com o poder de interpretação espontânea do artista negro. Mais de trinta artistas passando representando pelo palco a história de um príncipe negro que os brancos, com evasivas, retiram de sua ilha e levam para a escravidão da cidade tentacular. O efeito do espetáculo foi de espanto. Uberlândia não estava preparada para tamanho impacto ( Idem , ibidem ).

É a partir dessa bagagem cultural e ativismo inicial, e com objetivo de dar sequência aos seus estudos, que Ironides mudou-se para o Rio de Janeiro em 1944, com 21 anos. Conseguiu então ingressar no prestigioso colégio público Pedro II, após passar nas provas exigidas para tanto. Foi ali que ele desenvolveu proficiência na língua francesa, que marcou sua trajetória intelectual e profissional. Ingressou no curso de Direito da Faculdade Nacional de Filosofia na segunda metade da década de 1940. Foi também nesse período inicial no Rio, entre 1944 e 1945, que o jovem mineiro conheceu seus futuros amigos e companheiros do Teatro Experimental do Negro (TEN), em um contato inicial com o futuro ator Aguinaldo Camargo:

Meu encontro com Aguinaldo Camargo foi casual, pois havia tomado o bonde Praia Vermelha e, de conversa e longo papo, estávamos de camaradagem antiga, como se nos conhecêssemos de há muito. [...] Aguinaldo foi quem quebrou o silêncio respeitoso que havia entre nós. “Sou de Campinas. Minha paixão é o teatro. Precisa conhecer meus companheiros em prol da emancipação negra: Geraldo Campos, Abdias Nascimento, Sebastião Rodrigues Alves e José Pompílio da Hora. Vou levar você para conhecer o Teatro Experimental do Negro. É um grupo que promete quebrar e derrubar muitas muralhas do preconceito racial brasileiro. Você precisa ver e ouvir a aura inflamada do Abdias (Rodrigues, 1998b, pp. 207-208).

À época, era uma visão política e uma amizade que não se fortificava apenas por sua luta antirracista e dedicação à causa negra. Tratava-se também de um companheirismo de viés anticomunista que, no período pós-guerra, era comum e corrente em diversas lideranças negras, como Arlindo Veiga dos Santos (e muitos outros que participaram da Frente Negra Brasileira), João Cândido Felisberto (o “Almirante Negro”), Abdias do Nascimento, Sebastião Rodrigues Alves e Guerreiro Ramos.

Todavia, parece que a consolidação de tais relações pessoais e políticas não trouxeram consequências econômicas diretas na vida do jovem mineiro. Na época da referida graduação, Ironides diz ter dormido na rua por falta de dinheiro para bancar sua hospedagem (Rodrigues, 1998a, p. 127). Trabalhou como garçom, lanterninha e bilheteiro de cinema.7 Foi também faxineiro e ajudante geral na pensão de dona Guiomar, onde residia. Ali iniciou sua carreira como professor, lecionando francês para Teresinha, filha de dona Guiomar, e outros estudantes que por lá passavam. Mais tarde, tornou-se, inclusive, professor do Colégio Pedro II, onde estudara. Foi também escritor, tradutor, teatrólogo, crítico literário e crítico de cinema.

Entre 1940 e 1950, morou no centro do Rio de Janeiro, na rua 2 de dezembro.8 Posteriormente, adquiriu um pequeno apartamento em Bento Ribeiro, subúrbio da cidade, onde residiu pelo resto da vida. Nas décadas de 1950 e 1960, Ironides ganhou certa notoriedade, principalmente como teatrólogo e crítico cinematográfico, sendo citado em diversos jornais do período: A Manhã , Diário de Notícias , Vamos Lêr , Fon-Fon , Correio da Manhã , Jornal do Brasil , Tribuna Popular , Tribuna da Imprensa , Diário Carioca , O Jornal , A Luta Democrática . Três peças suas, que estrearam nos anos 1950 em teatros cariocas, se destacam: Sinfonia da favela , Agonia do Sol e O auto da Constância Lena . É citado como a “revelação negra das letras teatrais do Brasil” no jornal A Manhã de 1952.9 Como crítico cinematográfico, Ironides era mencionado de forma respeitosa nesses periódicos, sobretudo por seu conhecimento (e adoração) pelo cinema francês em voga. Nas décadas de 1950 e 1960, publicou dezenas de notas críticas cinematográficas em jornais, como: Luta Democrática, A Marcha, Vanguarda e Correio da Manhã .

Apesar disso, Ironides passou por dificuldades financeiras o tempo todo. Suas peças eram encenadas com a ajuda de amigos. A crítica literária e cinematográfica lhe rendia pouco dinheiro. Foi um homem erudito, devotado à cultura negra e à cultura francesa, em particular do cinema, da música, do teatro e da literatura. Guardava brochuras volumosas, escritas sobre os mais variados temas,10 mas nunca as publicou. Suas posses se resumiam ao pequeno apartamento e à sua biblioteca pessoal, que chegou a somar 3 mil volumes. Enquanto morou no centro do Rio, foi uma pessoa muito conhecida da militância negra e do cenário carioca dos anos 1950, das rodas de boêmia, dos teatros, das livrarias, dos círculos de cultura e entidades estudantis como a União Nacional dos Estudantes (UNE). Era ainda aluno da Faculdade Nacional de Direito (FND). Mas essa fama parece ter-se passado rápido, como constata um cronista do jornal A Última Hora , de 1957, que assim resume sua impressão do autor:

Seu nome é apenas conhecido de alguns velhos frequentadores do “Vermelhinho”, e das rodas boemias da A.B.I. É Ironides Rodrigues. Tem muitas poucas possibilidades de tornar-se um autor famoso, e ele sabe disto. É um trabalhador humilde do teatro e da cultura negra no Brasil, e está destinado a continuar sendo-o, toda sua vida. Trabalhador desta cultura negra que é muito do Brasil, mas que muito tempo ainda baterá as portas da publicidade.

De fato, parece que Ironides não abandonou a militância negra. Era profundo conhecedor na negritude francófona e da poesia negra estadunidense do Harlem Renaissance ( Santos, 2013 , p. 50; Santos e Quillici Neto, 2015 , p. 217). Além do TEN, participou de várias atividades de promoção e divulgação da cultura negra. Em suas peças, como Sinfonia da favela e Agonia do Sol , trazia o negro como figura central.11 Fez diversas palestras sobre o tema em clubes estudantis e de teatro.12 Ajudou a organizar vários grupos de teatro popular, como o Grupo 60.13 Teve presença destacada no 1º Colóquio América Latina-África, em 1963.14 E, vale lembrar, Ironides foi homossexual assumido, fato raro na militância negra mais antiga. Algo que lhe rendeu, inclusive, uma nota ridicularizadora do colunista D. Ezequiel no jornal A Manhã , de 1952:

A Cinelândia esteve movimentada com uma cena proporcionada por Ironides Rodrigues, Washington Guilherme e um “terceiro homem”. A notícia escandalizou os meios do “Vermelhinho”, que há muito tempo não se escandalizam por pouca coisa...15

Faltam informações sobre a sua vida na década de 1970. Sabe-se que se graduou em Direito pela FND em 1974. Dedicou seu diploma aos negros, aos operários espoliados pela máquina capitalista e burguesa, aos gays marginalizados, às prostitutas perseguidas e ao índio brasileiro ( Santos, 2011 ). Em 1982, participou do 3º Congresso de Cultura Negra das Américas, realizado pelo Ipeafro, o que demonstra seu contínuo interesse pelo assunto.16 Morreu em 1987, aos 64 anos, solteiro e sem filhos. Deixou expresso em testamento a vontade de que seu imóvel se tornasse uma biblioteca comunitária para alunos negros e pobres (Rodrigues, 1998a, p. 138; Santos, 2013 ).

Ironides no TEN

Um dos primeiros participantes do TEN, desde seus primórdios em 1944, Ironides desempenhou várias funções de direção e organização no teatro negro. Foi figura chave em eventos e atividades importantes lá realizados, como a Convenção Política do Negro Brasileiro (1945),17 o Comité Democrático Afro-Brasileiro (1945),18 a Convenção Nacional do Negro Brasileiro (1946) e o I Congresso do Negro Brasileiro (1950). Além da parte organizativa, ele trabalhou na parte cênica e artística do teatro, assim como na edição do jornal Quilombo , órgão de imprensa oficial do grupo entre 1948 e 1950. Ali traduziu textos e publicou outros, que comentaremos adiante. Ademais, foi coordenador e docente dos cursos de alfabetização e cultura geral do TEN, que reuniam dezenas de participantes.

Fundado em 13 de março de 1944, no Rio de Janeiro, o TEN ficou conhecido por ser um polo de movimentações culturais e políticas da época.19 A ideia inicial veio do conhecido ativista negro Abdias do Nascimento. Ao perceber o racismo vigente no mundo artístico, Abdias começou a questionar a ausência quase total de atores negros no teatro convencional, que muitas vezes eram substituídos por brancos utilizando blackface, técnica de maquiagem que consiste no escurecimento da pele, muito difundida nos Estados Unidos desde o século XIX. Os poucos papéis ocupados por negros no teatro eram os de posições subalternas, constantemente interpretando personagens cômicos, exóticos e animalizados.

Opondo-se a tal racismo explícito, o TEN buscou reunir a luta política, social e econômica à luta cultural, como mecanismo de emancipação do povo negro. Por sua atuação diversificada e qualificada, o teatro negro tornou-se rapidamente uma referência na opinião pública contemporânea. Mas sua atuação não dialogava apenas com a classe média carioca. Retomando uma tradição de outros movimentos negros, em particular da Frente Negra Brasileira, o teatro negro ofertava cursos de alfabetização gratuitos para a população negra e pobre, na então sede da UNE. Nas palavras de Ironides:

O TEN tinha por base como um veículo poderoso de educação popular. Tinha sua sede num dos salões da UNE, onde aportavam, dos subúrbios de vários pontos da cidade, operários, domésticas, negros e brancos de várias procedências humildes. Ali, a pedido de Abdias, ministrei por anos a fio, um extenso curso de alfabetização em que, além dos rudimentos de português, história e Evolução do Teatro Universal, tudo entremeado com lições sobre folclore afro-brasileiro e as façanhas e lendas dos maiores vultos de nossa raça (Rodrigues, 1998b, p. 208).

Por atividades como essa, gradualmente o TEN foi-se tornando mais do que um grupo de teatro, concretizando seu real objetivo como uma organização do movimento negro. Nessa empreitada, um dos pilares importantes da atuação do TEN, a partir de 1948, foi incorporar o conceito de negritude , trabalhado a partir das ideias e ensaios do movimento da negritude francófona (A. Nascimento, 1982 [1968]; Guimarães, 2002 ; Barbosa, 2004 ; Macedo, 2005 ). É nesse momento que a figura de Ironides Rodrigues se torna fundamental. Habilidoso com idiomas e dono de vasta erudição literária, conhecia diversos ensaios do movimento da negritude francesa, além de outros relacionados, como o clássico Orfeu negro (1948), do filósofo Jean-Paul Sartre, que traduziu para o Quilombo , em 1950.

A primeira referência à negritude francófona no Brasil ocorreu em dezembro de 1948, no primeiro número do Quilombo . Era uma nota informando o lançamento da revista Présence Africaine . No original:

Não temos notícia de outra publicação negra que iguale em importância cultural a essa “Présence Africaine”, editada em Paris e Dakar. O escritor mundialmente famoso André Gide, – que ao lado de Albert Camus, Richard Wright, Jean-Paul Sartre, e outros – figura como patrono da revista, fez a apresentação num artigo apelando para se ouvisse o que o negro tinha a dizer, desde que há tantos séculos ele vinha sendo explorado sem uma oportunidade. E os negros da Sorbonne, em Paris, ou de Dakar, Cuba, Haiti ou Norte-Americanos estão dizendo coisas graves, seríssimas, decisivas a respeito dos temas mais variados que interessam ao comportamento do homem intelectual, vinculado à marcha perene do espírito e do pensamento em sua inquietude e insatisfação criadora. […] “Présence Africaine” está em seu quarto número de revista mensal significando o primeiro passo numa distância nova, uma etapa histórica na influência do pensamento negro na evolução do mundo (E. L. Nascimento, 2003 , p. 21).

Lideravam o grupo coordenador da Présence Africaine Alioune Diop e sua mulher, Christiane Diop, contando com a colaboração de alguns dos principais nomes da negritude francófona, como Aimé Césaire, Jacques Rabémananjara, Léopold Sédar Senghor, Léon-Gontran Damas. Por essa proximidade com as pessoas que organizaram a negritude francófona, os primeiros números da Présence , entre fins da década de 1940 e início de 1950, foram marcados pelos ideais desse movimento cultural.20

O termo negritude foi cunhado por Aimé Césaire, em 1939, no poema “Cahier d’un retour au pays natal”. Segundo ele – um dos líderes do movimento –, tratava-se de uma “tomada de consciência” da especificidade do ser negro. Em suas palavras: “negro estou, negro permanecerei” ( Césaire, 2005 , p. 28). Entretando, diz o autor, a consciência dessa especificidade não era um enclausuramento, mas uma abertura para o universal e para a valorização do ser humano. Ao mesmo tempo, diz ele, carregava uma dimensão revolucionária ao afirmar a presença de uma parte antes ignorada da humanidade. O próprio termo negritude , aliás, reflete bem esse conteúdo, ao menos conforme utilizado pela primeira vez pelo próprio Césaire:

[...] minha negritude não é nem torre nem catedral

ela mergulha na carne rubra do solo

ela mergulha na ardente carne do céu

rompe a prostração opaca de sua justa paciência [...]

(Césaire apudSenghor, 1948 , pp. 58-59).

Como observa Claude Wauthier (1973 , p. 38), para os autores da negritude, a língua francesa e a expressão de uma “alma africana” (seja da Martinica ou na África) formariam uma junção cultural rica, com apropriação da sintaxe europeia e o ressurgimento de valores e representações socioculturais que expressariam a unidade negra. Em sentido próximo, Kabengele Munanga (1988 , p. 6), por exemplo, defende que a negritude foi formada quando o negro intelectual descobre que uma possível solução a essa situação residiria na retomada de si, na negação do embranquecimento, na aceitação de sua herança sociocultural que, de antemão, deixaria de ser inferior. O próprio Césaire definiu a negritude, posteriormente, como o simples reconhecimento do fato de ser negro, da aceitação do seu destino, de sua história e cultura. Nisto, a negritude abarcaria três aspectos: identidade, fidelidade e solidariedade. A identidade consiste em ter orgulho da condição de ser negro. A fidelidade é a relação de vínculo indelével com a terra-mãe, ou seja, a herança ancestral africana. A solidariedade seria o sentimento que uniria todos os irmãos negros do mundo em uma identidade comum ( Munanga, 1988 , p. 44). Essa é a essência do movimento da negritude francófona de que falamos.

A recepção dessas ideais da negritude francófona no teatro negro se consolidou em fins de 1949, por ocasião da visita do já famoso filósofo e escritor franco-argelino Albert Camus ao Rio de Janeiro. O fato é noticiado no próprio Quilombo: “Roteiro negro de Albert Camus no Rio”. Destaca-se aqui o interesse de Camus em conhecer a vida dos negros cariocas. Diz o artigo que ele teria frequentado diversos terreiros na cidade, assim como boates e clubes em que os frequentadores eram majoritariamente negros. Camus visitou ainda as instalações do TEN, onde assistiu a uma encenação resumida da sua peça Calígula .

Vale dizer que havia à época um intenso diálogo intelectual entre os integrantes do teatro e os colaboradores mais próximos, como Ironides, Guerreiro Ramos, Abdias, Sebastião Rodrigues Alves, Efraín Thomás Bó e Gerardo Mourão. O jovem Ironides foi quem, efetivamente, se apoderou da temática da negritude francófona, tornando-se um divulgador desta no teatro negro e na intelectualidade carioca do período. Daí que tenham lhe atribuído o nome de “Paladino da Negritude” ( Barbosa, 2004 , 2013 ).

Isso fica evidente na quinta edição de Quilombo , em janeiro de 1950, quando aparecem referências explícitas às ideias da negritude francófona. Ambos, com a participação direta de Ironides Rodrigues: (a) uma tradução resumida do ensaio Orfeu negro , de Jean-Paul Sartre; (b) o artigo “Cruz e Souza em outro idioma”, em que o jovem mineiro destaca, com admiração: o “grande coeficiente de alma negra que existe em sua (Cruz e Souza) poesia”. Diz:

Na biografia de Cruz e Souza que tentarei escrever, quero deixar patente uma coisa: é o grande coeficiente de alma negra que há em sua poesia. Só um filho de outra raça poderia exprimir uma dor tão profunda, como a dor do cantor dos “Broqueis” em seus poemas antifônicos. O “Emparedado” é o grito mais doloroso que um poeta já soltou em língua portuguesada. [...]

Joaquim Ribeiro descobriu com inteligência uma certa ressonância em Cruz e Souza, semelhante à da sonoridade do idioma quimbundo. Isto arrasa as pretensões estultas de muitos poetas por aí, que só pelo fato de cantarem um motivo negro, querem ser poeta da raça a todo custo. Não. Até na obsessão pela cor branca em “Antífona”, Cruz e Souza foi negro (Rodrigues, 2003b).

Cabe a pergunta: o que seria exatamente esse “coeficiente de alma negra” a que o autor se refere? Seria uma derivação cultural? Pela argumentação do ensaio, parece sinônimo de “autenticidade”, embora a palavra não seja utilizada.

Vale dizer que as perguntas colocadas acima não são anacrônicas para sua época, tanto no plano nacional, no pensamento social brasileiro, quanto internacional. Evidentemente, existia um amplo debate na intelectualidade da diáspora negra sobre tal assunto desde fins do século XIX, como pode-se observar de pensadores icônicos do pan-africanismo, como W. E. Du Bois e Edward Blyden. Tais autores tentaram construir alternativas conceituais (respectivamente, “dupla consciência” e “personalidade africana”) que pudessem defender a ideia de uma especificidade negra (africana e afrodescendente), sem recorrer para isso ao argumento biológico, consagrado pelo racismo científico do século XIX. Não se tratava apenas de uma questão acadêmica. Era sobretudo política, visto que essa era uma das possibilidades de legitimação da luta negra contra o racismo e o colonialismo europeu e eurodescendente. Daí as ideias básicas que formariam o movimento pan-africanista ainda em fins do século XIX: libertação e integração ( Munanga, 1983 ; Devés-Valdés, 2008 ; Domingues, 2009 ; Barbosa, 2016 ; Esedebe, 1982 ; Edwards, 2001 ). Nesse sentido, como afirma Munanga (2016) , o movimento pan-africanista e o movimento da negritude (década de 1930) caminhavam na mesma direção: de afirmação de uma luta negra comum (África e diáspora) e unida. Mas com uma diferença importante: o primeiro com um posicionamento explicitamente político, enquanto o segundo estaria mais voltado à ação intelectual. Uma distinção que ficou cada vez mais evidente na década de 1950.21

Todavia, essa reflexão era ainda incipiente no Brasil na década de 1940, sobretudo pelo fato de que poucos negros brasileiros à época tinham possibilidade de alcançar uma instrução intelectual ampla, que lhes permitisse acessar e se apropriar desse debate teórico internacional. Provavelmente, a geração do TEN é a primeira a fazê-lo de forma sistemática e organizada ( Guimarães, 2004 ). Por outro lado, pelo visto, essa não era uma questão central para a maioria dos intelectuais “brancos” de então, que dominavam a academia. Certo é que existia nesse período do pós-guerra uma grande ignorância no Brasil quanto a essa temática.

Em verdade, vale lembrar que o próprio livro que lançou o movimento da negritude – Anthologie de la nouvelle poésie nègre et malgache de langue française –, organizado por Léopold Sédar Senghor (1948) , não continha nenhuma explicação conceitual do ideal da negritude ou “alma negra” (mais comum à época), que constava direta ou indiretamente de vários poemas ali reunidos. Tal reflexão não consta, por exemplo, da apresentação de Senghor ao livro. O único texto que busca dar uma explicação do termo e do movimento que estava sendo lançado nesse primeiro momento é Orfeu negro , de Jean-Paul Sartre, escrito como introdução à referida obra. Daí sua importância nesse contexto.

O Orfeu negro é um ensaio que dialoga com vários assuntos correlatos. Para o nosso intento aqui, cabe observar que, muito além de colocar-se como um ensaio interpretativo das poesias ali reunidas, o Orfeu foi uma tentativa de Sartre de situar tal obra dentro de um contexto maior, buscando entendê-la como uma reflexão existencial do negro diante da dominação ocidental, tanto do ponto de vista obje- tivo (colonialismo, subalternização), quanto subjetivo (racismo, europeização, alienação cultural). Nesse quadro, a negritude (ou seja, a alma negra)22 para o autor seria uma espécie de “racismo antirracista”, que ele vê como um passo necessário para a superação positiva da dualidade racial (branco-negro) e a formação de uma luta comum. Em termos dialéticos, tese (branquidade/racismo ocidental), antítese (negritude), síntese (luta humanista). Em suas palavras:

[...] o negro cria para si um racismo antirracista. Ele não deseja de modo algum dominar o mundo: ele quer a abolição dos privilégios étnicos, quaisquer que sejam eles; ele afirma sua solidariedade com os oprimidos de qualquer cor ( Sartre, 1960 ).

Infelizmente, como dito, para além do referido artigo e tradução, não se tem aqui outras fontes primárias para atestar qual a posição exata de Ironides nesse debate. Mas, sem dúvida, esse ensaio de Sartre foi fundamental a toda intelectualidade do TEN do período em análise.23 Entretanto, posteriormente, o intelectual mineiro escreveu diretamente sobre o assunto:

O manifesto desses epígonos da Negritude foi difundido pelo mundo todo. Uma revista que expressava tão bem essa pregação apostólica e doutrinária, Présence Africaine , trouxe até aquele depoimento impressionante de um Jean-Paul Sartre, Orphée noir , que eu fui o primeiro a traduzir, nas páginas de um outro órgão do pensamento mais elevado da negritude brasileira: Quilombo. Nesse jornal tão sério e compenetrado do Teatro Experimental do Negro de Abdias do Nascimento é que foi divulgado todo o pensamento socialista e de união de todos os homens de cor do mundo, apregoado por Léopold Sédar Senghor. Em seu Orfeu negro , analisa com muito tirocínio político e literário, em 1950, a Negritude que aparecerá. Já sentia o romancista do existencialismo francês que os negros que escreviam romances e poesias nesse movimento reivindicatório estavam fazendo a literatura mais avançada e revolucionária do mundo. Que, quando tirassem as mordaças que silenciavam as vozes dos pretos, estes gritariam, impetuosamente, todas as suas aspirações e desesperos de sua alma agrilhoada. Que agora os negros é que expressariam sua própria dor e desassossego interior, sem que os autores brancos, erradamente, falassem dos problemas negros, sem o conhecimento básico e preciso que tais assuntos requerem. Que só o negro, em pleno conhecimento de sua própria causa, pode falar no assunto [...] (Rodrigues, 1997a [1980], pp. 255-256).

Questão difícil para aquele tempo. No caso específico de Ironides, a fonte que resolveria essa dúvida seria sua “estética da negritude”, tese apresentada por ele no I Congresso do Negro Brasileiro, em 1950, e que causou tanta polêmica à época como posteriormente. Infelizmente, esta pesquisa não teve acesso a essa tese específica, já que os escritos de Ironides disponibilizados pelo Ipeafro – embora não estejam todos datados – parecem ser de períodos seguintes. Isso, apesar de um dos nomes dos escritos de Ironides lá encontrados ser justamente Estética da negritude . Sendo assim, teremos que recorrer à única fonte conhecida do período sobre essa tese em particular, qual seja, a descrição trazida pelo sociólogo Luiz Aguiar da Costa Pinto (1998 [1953], p. 257) sobre a citada tese:

Na tese de Ironides Rodrigues, apresentada ao Congresso do Negro, o problema da negritude é abordado do ponto de vista particular da estética. E essa aplicação consiste em afirmar que o negro, em consequência de atributos específicos de raça, tem uma sensibilidade hiperdesenvolvida, que o predestina à música, à poesia, à literatura, ao canto, em suma, às artes.

Ou seja, segundo Costa Pinto, a negritude de Ironides não seria apenas racialista ou essencialista – para usar termos contemporâneos –, mas potencialmente racista, visto que se basearia em princípios aparentemente biológicos para defender a especificidade da “raça negra”.

Contra essa opinião, se colocaram já à época – décadas de 1950-1960 – outros presentes no referido encontro, como Abdias do Nascimento (1982 [1968]) e Alberto Guerreiro Ramos (1952) .24 A única referência direta ao assunto feita por Ironides, encontrada nos arquivos do Ipeafro, é a seguinte:

Costa L. Pinto e seu livro sectário e inexato O Negro no Rio de Janeiro

Falava Guerreiro Ramos que este escritor de assuntos de raça (Costa Pinto), de posse de todo um material cientifico, de um congresso organizado pelo TEN, nunca mais devolveu os ditos documentos. De posse deles, mancomunado pela maquiavelice de um Edson Carneiro, empregou toda sua perfídia, no livro mencionado ( O Negro no Rio de Janeiro ), contra as lutas que eu, Abdias do Nascimento, Aguinaldo Camargo, Sebastião Rodrigues Alves, José Pompélio da Hora e outros negros denodados, que não mediram coragem e decência, ao abraçarem esta causa sagrada. O livro saiu pela Brasiliense e nele tenta pôr em ridículo a minha tese A Estética da Negritude, que tanta celeuma provocou, num congresso negro, querendo trazer em seu favor até opiniões inconsequentes de uma Ivonne Jean, no Correio da Manhã , e de brancos alienados que estavam por hora de todos os anseios de uma raça, indiferentes a que os negros de todas as latitudes convergiam, num ser ideal de congraçamentos e lutas ardorosas. L. Pinto nem percebera, açulado por Edson Carneiro, que o movimento de Abdias iria sacudir a pasmaceira de minha raça, sacudir a petulância dos racistas renitentes. Como a maioria dos antropologistas sociais que militam estes assuntos palpitantes, pensa que o problema do negro é social e econômico, ignorando o fator importante da pigmentação da pele como L. Pinto faz. ( Rodrigues, 1981 , p. 65).

Tais observações de Ironides não resolvem a questão colocada: o conteúdo essencial da tese; porém, dão subsídios para começarmos a documentar e entender a visão da negritude do autor pós-1950. Isso se evidencia no último parágrafo, quando o autor faz referência à questão de “pele” como uma questão relevante para entender a questão do negro, para além do seu aspecto “social’ e “econômico”. Afinal, se ele fosse uma essencialista – potencialmente racista – nessa época (pós-1950), por que ele usaria o termo pigmentação da pele como essencial à compreensão da questão negra, em vez de simplesmente dizer “raça negra”?

Uma curta entrevista de Ironides Rodrigues ao jornal Imprensa Popular , de 1954, traz mais elementos para contestar a hipótese de Costa Pinto de que o autor mineiro estava defendendo uma visão essencialista e potencialmente racista da negritude. Citamos a seguinte passagem:

– “E então, como vão as atividades”? – perguntei ao poeta negro Ironides Rodrigues. [...]

Vou promover um festival de poesia agora em abril na Associação Brasileira de Imprensa a fim de conseguir fundos para publicar meu livro de poemas “Cancioneiro da Imagem Ausente” e lançar o volume “Estética da Negritude” – um estudo da cultura negra no mundo.

– “E no campo do teatro, o que está fazendo”? [...]

Ao Teatro Experimental do Negro, dirigido por Abdias do Nascimento, confiei “Sinfonia da Favela”, original em que me apliquei de corpo e alma no afã de criar algo superior. Minha preocupação foi captar a alma do negro tristonho, sacrificado pela vida, bom e mau ao mesmo tempo, humano, profundamente humano. Pretendi retratar a miséria deste povo sacrificado e melancólico. Procurei focalizar estas vidas com toda a minha alma.25

Ou seja, Ironides fala de uma “especificidade” da alma negra em termos de “sacrifício”, de “melancolia”, de “miséria”, de tristeza” e, portanto, de algo “humano”, “profundamente humano”. É difícil ver aí, em 1954, qualquer traço de essencialismo racial. Pelo contrário, mostra uma percepção mais existencialista da negritude, próxima à de Sartre e da maioria dos autores da negritude francófona.

Ironides, pós-1950: negritude e pan-africanismo

Uma leitura dos cadernos de notas de Ironides, das décadas de 1960 e 1970, mostra que estamos lidando com um intelectual erudito que, além dos autores da negritude francófona, se familiarizou também com o pan-africanismo, dominando com propriedade a trajetória do movimento e os autores envolvidos. Em seu diário, demonstra conhecer obras de Aimé Césaire, Léopold Sédar Senghor, Cheikh Anta Diop, W. E. Du Bois, Marcus Garvey, Booker T. Washington, Malcolm X, entre outros. Dentre os brasileiros, menciona frequentemente os colegas do TEN, sobretudo Abdias do Nascimento e Sebastião Rodrigues Alves. Cita também intelectuais europeus que teriam colaborado para os estudos da temática africana e do negro, em especial Leo Frobenius e Maurice Delafosse.

Esta pesquisa buscou entender quais seriam as contribuições próprias de Ironides nesse contexto. Em diversas passagens de suas notas, o intelectual mineiro faz questão de destacar sua proximidade com uma visão histórico-cultural do africano e do negro. Visão essa que busca consolidar uma reflexão do negro como um ser-em-si-mesmo, para além de sua existência em relação com o branco-europeu (ou eurodescendente). Aí ele segue de perto um autor primordial para suas reflexões: Cheikh Anta Diop.26 Mas há também, nesse sentido, diversas referências aos já citados Leo Frobenius e Maurice Delafosse.27 Sobre o etnólogo alemão Frobenius, Ironides declara em seu oitavo livro:

Um mestre da história científica, que sempre olhou o negro com aquele respeito e seriedade, dos grandes e competentes cientistas do universo, que colocam a verdade dos fatos acima dos preconceitos pessoais, estudando o verdadeiro sentido da história, com imparcialidade e um sincero amor (Rodrigues, 198-, p. 16).28

Cita, em particular, Les civilisations négro-africaines , de Delafosse, publicado em 1925, como grande influenciador de seu pensamento. A obra tinha a intenção declarada de demonstrar unicidade dos povos africanos, com suas supostas hierarquias próprias. Algo que, inclusive, Ironides leva adiante, seguindo o etnólogo francês:

Existe uma cultura negra nitidamente definida, donde os traços principais se encontram mais nos povos negros avançados que propriamente nos povos atrasados e mesmo a islamização mais distante não conseguiu modificar (Rodrigues, [ca. 1950], p. 25).

Ou seja, para o autor, haveria um ser próprio do negro, com suas hierarquias únicas, que teria se construído historicamente.

Dando um passo adiante, Ironides defende que o colonialismo teria sido um ponto de ruptura, criando novas especificidades para o negro do continente e da diáspora. Isso porque, a partir de então, aquele ser do negro teria se alterado profundamente, passando a constituir-se com base em sua relação – objetiva e subjetiva – de alteridade com o “branco” europeu, e, posteriormente, eurodescendente. Assim, a colonização teria roubado do negro seus costumes, religião, cultura, filosofia, em suma, sua metafísica, seu ser, tornando-o um ser vazio de referências, que o teria forçado a assimilar a metafísica do “homem branco” ( Fanon, 2008 [1952], p. 104). O racismo, desse modo, induziria o negro a desejar ser o branco; isso o levaria à procura de métodos para invalidar o seu próprio corpo. A busca por destruir (reconstruir) sua identidade, tendo como orientação o objetivo branco, teria instituído, pois, um imenso abismo entre sua constituição biológica e seus ideais. Situação esta que fragilizaria seu estado emocional e equilíbrio psíquico. Quando o ideal de ego ( Souza, 1983 , p. 4), construído a partir das reminiscências das experiências na vida, não se relaciona com o corpo, ao investimento erótico, dificilmente se estabeleceria uma relação saudável e harmoniosa com o mundo. Sob o racismo, o modelo de identificação não é o de uma existência humana realizável, mas um fetiche: o da brancura.29 Daí a necessidade que o autor coloca de uma “estética da negritude” que redescobrisse o ideal de Belo do negro como um valor próprio, independente do ideal do homem branco. Em suas palavras:

Conceito universal da negritude

O branco conseguiu através de histórias lendárias e de uma pseudociência de Gobineau, Spengle ou Rosemberg, propagar pelo universo inteiro, uma suposta inferioridade do negro. Por sua vez, até a bíblia divulgou o que se conhece por Maldição de Cham, ou melhor: a excomunhão dos descendentes negros de Cham, filho amaldiçoado de Noé, cuja progênie seria para sempre escrava e maldita. Divulgando estas lendas suspeitas, a raça eleita tentava provar que o negro era uma raça inferior. [...]. No entanto, o negro nunca encontrou um escritor que cantasse todo o seu passado de glórias, a evolução da sua estética e a sua indômita para se livrar, libertar de todos os imperialismos. Por muitos séculos o escritor branco explorou o assunto negro, como um motivo exótico e bizarro, sem penetrar na essência do seu sofrimento de raça espoliada e escravizada. Deturpou documentos e fatos, sem pensar que um dia um esteta negro iria destruir todas estas falsas verdades e provar que o negro tem uma estética própria, uma arte e um assunto só seu e que só o próprio negro sente esta dor na carne, para conta-la com fidelidade, em vários poemas, romance e cantos musicais [...]. Chegou o momento de destruir tudo aquilo que os arianos têm como sua verdade. Em resposta a seus escritos ultrapassados, nós responderemos com a nossa verdade negra, que é muito mais antiga e milenar que a verdade ocidental, pois que a África é muito mais antiga e conheceu uma grande civilização, quando a Europa nem pensava em existir ainda. Minha Estética da Negritude vem expressar o grito de milhões de negros, que lutam denodadamente contra o tacão do branco em vários continentes. Ela vem provar que chegou a hora do escritor, do sociólogo e do cientista negro mostrarem ao mundo os seus romances, poemas e seus estudos científicos, pois só o negro e não o branco pode sentir na carne o látego do preconceito, a espoliação, a humilhação do branco e a segregação racial (Rodrigues, [ca. 1950], p. 1).

Ironides deixa elucidado nesse trecho que a subalternidade social do negro se dá pela proliferação de uma pseudociência que o inferioriza biologicamente, porém, existe algo além disso. A estética do negro foi-lhe roubada e deturpada. Em suma, o esvaziamento estético e metafísico do negro retira sua resistência diante do “homem branco”. Logo, a proposta é a reconstrução e a busca contínua pela estética da negritude por meio das artes, do corpo, do afeto e da ciência.

Ironides lança uma séria crítica ao complexo de salvador dos povos europeus. O autor acredita que, por todo o processo de colonização, imperialismo, genocídio e racismo sofrido pelo povo negro, apenas uma luta pan-africana, vinda daqueles que sofreram o látego de todas as frentes da exploração, seria capaz de unificar os oprimidos do mundo todo.

Nesse ponto, o das alternativas, o autor vai diretamente à problemática raça/classe. Em Estética da negritude , ele enfatiza que tais categorias teriam naturezas distintas, que não deveriam ser confundidas. Dessa forma, levanta uma série de críticas aos movimentos marxistas que se aproximariam da causa negra com a intenção de cooptá-la, desviando o foco da questão racial e redirecionando-o exclusivamente para a exploração de classe. Para ele, mesmo o branco e o negro submetidos à mesma situação de espoliação não devem ser considerados iguais, pois o branco pobre pode um dia tornar-se burguês, o negro jamais se tornará branco. Na obra, Ironides ataca, por diversas vezes, o universalismo marxista de sua época, como no trecho a seguir:

Para aqueles comunistas que citam Marx, com a boca cheia, esquecidos que os marxistas não aceitam a luta de Abdias, porque sendo os negros partes imensas do proletariado, dividem, nesta questão, a massa, porque Abdias vê na luta econômica do operário branco, um problema diferente do pleiteado pelos negros, que veem, aí, uma questão de cor da pele também. Nesta divisão em dois grupos, negros e operários brancos está toda a diferença de nossas lutas, além de outras sutilezas, que não vêm ao caso ( Rodrigues, 1983 , pp. 30-31).

Trata-se de uma distinção tão importante para o autor, que ela definiria o próprio conceito de negritude:

Para exprimir a eternidade de nossa luta contemporânea, tivemos que recorrer a um belíssimo neologismo, inexistente em outras línguas: Negritude. Este vocabulário exprime a separação nítida da luta proletária e da luta negra, da diferença que um branco e um negro sentem em face de um tema negro. Melhor, a negritude é o divisor de duas culturas diferentes (Rodrigues, [ca. 1950], p. 3).

Nesse contexto, Ironides, em seus escritos mais recentes, da década de 1980, se mostrava um grande entusiasta da proposta do quilombismo de Abdias do Nascimento.30 Em suas palavras:

O Quilombismo, que é um programa doutrinário, que todos os negros que tiverem vergonha terão que lê-lo, e tomar este depoimento como uma cartilha ou mandamentos a seguir, em nosso itinerário seguro contra a discriminação social e racial ( Rodrigues, 1983 , p. 30).

Novamente:

Cada frase que escreve, nesta obra desconcertante, é uma barra de ferro quente nas costas de milhões de racistas, que povoam este universo disputado por nações discriminatórias, como a Rússia e os Estados Unidos: A fraternidade que nos liga a Portugal é menor que a do sangue nos liga a Angola, Guiné e Moçambique. Na África do Sul, na Rodésia, em Angola, em Moçambique existe o apartheid , existe o tráfico de escravos, existem as reservas, guetos negros na floresta, onde cada homem tem marcada na própria pele, mais do que os judeus nos campos de concentração, a sua condição servil. São vastas senzalas, piores do que as do Brasil escravagista, a sustentar a mais impressionante das injustiças sociais ( Idem , ibidem ).

Nessa passagem em particular, vale ressaltar o paralelismo que o autor faz entre raça, classe e o plano internacional, citando a Guerra Fria. Nele, o autor não hesita em considerar a “Rússia” (de fato, União Soviética) socialista e os Estados Unidos capitalista como nações “igualmente discriminatórias”. Aqui cabe considerar a possível relação do pensamento de Ironides com a visão “terceiro-mundista” adotada pelas doutrinas do não alinhamento e do neutralismo, surgidas das Conferências de Bandung (1955) e Belgrado (1961).

Terceiro-mundismo e movimento negro brasileiro

A visão terceiro-mundista, associada às políticas do não alinhamento e do neutralismo, tem suas origens nas ligas anti-imperialistas e conferências anticolonialistas do entreguerras, quando ainda reinava o colonialismo europeu na África e na Ásia. Em especial, na Conferência Anticolonialista de Bruxelas, em 1927. Não resta dúvida, entretanto, que a Conferência de Bandung, em 1955, foi o marco decisivo de um novo momento histórico e ideológico, em que 29 representantes dos países subdesenvolvidos e/ou colonizados da Ásia e da África de então iniciaram a construção do bloco político do “Terceiro Mundo”, em defesa da autodeterminação dos povos e da paz mundial, assim como da luta contra a fome e o racismo. Gradativamente, as doutrinas do não alinhamento e do neutralismo diante da Guerra Fria, iniciadas em Bandung e desenvolvidas em Belgrado (1961), foram sendo construídas como corolários desses desígnios iniciais; assim como a luta pela Nova Ordem Econômica Mundial, na década de 1970. Tratava-se da política da “Terceira Via”, que buscaria um caminho próprio e supostamente distante tanto do socialismo soviético quanto do capitalismo neocolonial, hegemonizado pelos Estados Unidos ( Prashad, 2007 ).

No Brasil, a tradição terceiro-mundista estaria circunscrita à trajetória do Iseb (Instituto Superior de Estudos Brasileiros) e de intelectuais como Josué de Castro, J. Soares Pereira e Adolpho J. Bezerra de Menezes, por suas tendências nacionalistas e abertura à crítica anticolonialista da época.31 Mas essa herança é mais rica e complexa do que isso e está associada à luta antirracista no Brasil. A partir do que se pode notar da bibliografia crescente sobre a temática do movimento negro brasileiro, em particular aquela que trabalha com as décadas de 1950 a 1970, parece que a política da Terceira Via, criada em Bandung, teria sido conscientemente adotada pelas lideranças do TEN como uma perspectiva própria para a resolução do problema do negro no Brasil. Ou, pelo menos, via-se aí um paralelo. Isso porque, para essas lideranças, assim como feito por Bandung na política internacional, caberia ao movimento negro brasileiro construir o próprio caminho de libertação, para além da polarização partidária-ideológica entre esquerda e direita no país, que inevitavelmente buscaria cooptar as elites desse movimento para as suas fileiras. Às lideranças, nos referimos, em especial, a Abdias do Nascimento ( Moore, 2008 ; Macedo, 2005 ), Guerreiro Ramos ( Barbosa, 2004 , 2013 ), Aguinaldo Camargo e Ironides Rodrigues, com base em passagens e autores citados e em escritos não publicados de Ironides.

Não parece haver aí apenas uma coincidência de trajetórias. Trata-se de uma questão geracional forjada pela participação desses ativistas na luta política, seja no integralismo, seja, posteriormente, como grupo, no ativismo negro do TEN, e na difícil relação de então com a esquerda organizada (no caso, o PCB) e os intelectuais “brancos”. Sobretudo após o evento traumático que marcou essa geração: a polêmica sobre a “estética da negritude” no Congresso de 1950, que iniciou a derrocada do pacto da democracia racial que vinha sendo construído no pós-guerra entre a intelectualidade negra nascente e os intelectuais acadêmicos (todos “brancos”) já consolidados ( Guimarães, 2002 ). Uma tensão que só piorou depois da análise ácida que o sociólogo Costa Pinto fez de tais lideranças negras no livro O negro no Rio de Janeiro , lançado em 1953).

Todavia, cabe especular se a luta política que se estabeleceu entre esses dois grupos na década de 1950 teria sido um dos fatores para que a bibliografia sobre a negritude (Sartre de Orfeu negro aí incluído), o pan-africanismo e o terceiro-mundismo da época fosse silenciada ou menosprezada no pensamento social brasileiro, por ela ter indiretamente ajudado a sustentar a luta política autônoma dos ativistas negros do TEN.

Indo um passo adiante nessa temática, cabe destacar que os escritos de Ironides dão uma pista para observar o nascimento dessa Terceira Via no movimento negro brasileiro do pós-guerra, ainda antes de Bandung, ou seja, antes de 1955. Em diversas passagens em que Ironides cita Sartre ( Orfeu negro ) em seus escritos, ele o faz a fim de assinalar que o filósofo e escritor francês estava mostrando que a luta negra era diferenciada da luta proletária:

E Sartre nos dá essa verdade tão trágica que os marxistas que tentam desviar a nossa luta, fingem ignorar: “Não é necessário, aliás, todo um trabalho de análise para perceber a identidade dos interesses profundos sob a diferença manifesta das condições a despeito dele próprio, o operário branco lucra um pouco com a colonização, por mais baixo seja seu nível de vida, sem a colonização seria ainda mais (Rodrigues, ca, 1950, p. 2).

Essa pista é fecunda. Em diversas oportunidades, observou-se que as lideranças do TEN (Abdias do Nascimento, Aguinaldo Camargo, Guerreiro Ramos, Ironides) denunciavam as tentativas da esquerda organizada (em particular, o PCB) de supostamente desmobilizar ou cooptar a militância negra que eles estavam constituindo. Esse ponto é levantado, por exemplo, nas polêmicas envolvendo o I Congresso do Negro Brasileiro, pois se dizia que as disputas ali colocadas, em última instância, tinham essa finalidade (A. Nascimento, 1982 [1968]).

Uma teoria que pudesse justificar a importância da luta negra por si mesma, portanto, é algo sumamente importante para essa intelligentsia que desejava legitimar sua ação coletiva. É isso o que eles foram buscar no Orfeu negro . Daí que Ironides, em seu resumo do referido ensaio, tenha escolhido publicar os seguintes trechos:32

O negro, como o trabalhador branco é vítima da estrutura capitalista da nossa sociedade. Esta situação o aproxima em estreita solidariedade devido as nuances da pele, com certas classes de europeus oprimidos. Ela o incita a projetar uma sociedade sem privilégio, onde a pigmentação da pele será tomada como simples acidente. Mas se a opressão é uma só, ela varia conforme a história e as condições geográficas. O negro é uma vítima só porque é negro, mesmo sendo indígena colonizado ou africano deportado. E como o oprimem devido a raça e só por causa dela, é então de sua raça que ele precisa ter consciência [...].

Mas este momento consciente difere naturalmente do que o marxismo tende a despertar entre o operariado branco. A consciência de classe do trabalhador europeu é ligada à natureza do proveito e da mais valia sobre as condições atuais da propriedade dos instrumentos de trabalho, logo sobre os caracteres objetivos da situação do proletariado. Mas o desprezo interessado que os brancos se vangloriam de ter pelos negros – e que não tem equivalente na atitude dos burgueses perante o operário – visa tocar o mais fundo do nosso coração. É preciso que os negros lhes opunham uma visão mais justa da subjetividade negra ( Sartre, 1950 ).

Essas passagens são essenciais. Aqui, Sartre tende a teorizar a luta negra – a negritude – como uma particularidade dialética, na medida em que carregaria a totalidade do movimento pela superação da exploração e discriminação provinda da sociedade capitalista. É, portanto, uma parte carregada de essência, de totalidade.33

Tais ponderações do já célebre filósofo francês, por óbvio, não passaram despercebidas pelas lideranças do TEN. Traduzir o Orfeu negro , de forma selecionada, era um ato político. Era a demonstração (pública, inclusive) de que eles buscavam construir uma linha autônoma da luta negra à época, para além da divisão ideológica existente entre direita e esquerda. Daí que Sartre tenha se tornado ali uma figura icônica, assim como foi para grande parte da intelectualidade francófona negra da década de 1950, em todo o mundo.34 Em verdade, uma imagem que só se fortaleceu ao longo das próximas duas décadas (1960 e 1970), pelo compromisso teórico e político que o filósofo francês foi construindo com as lutas dos povos do Terceiro Mundo e a luta antirracista ( Arthur, 2010 ; Kalter, 2016 ).

Considerações finais

Este artigo buscou documentar, de forma sintética, a trajetória intelectual e as contribuições do Ironides Rodrigues ao pensamento social brasileiro e mundial, por sua incorporação da negritude francófona e do ideário pan-africanista. É bastante provável que restem mais estudos a serem feitos sobre tal temática, uma vez que, como dito, ainda há material empírico a ser analisado, que não foi utilizado como fonte primária desta pesquisa específica. Há também possíveis ensaios do autor que ainda não foram digitalizados pelo Ipeafro. No entanto, alguns traços gerais de sua trajetória e contribuições já começam a ser desvelados a partir desta pesquisa e artigo. E tal fato trouxe elementos interessantes que podem contribuir para a bibliografia especializada sobre o pensamento social brasileiro, intelectuais negros e sociologia das relações étnico-raciais no Brasil, assim como para os estudos mais recentes dessa área, relativos à diáspora africana, sociologia dos intelectuais, sociologia da cultura, negritude, pan-africanismo, Sul Global, racialização e formação racial.

Em primeiro lugar, deve-se atentar para a singularidade de Ironides Rodrigues no TEN. Já se citou sua importância central para o teatro negro e seu papel na incorporação da negritude no Brasil ( Barbosa, 2004 , 2013 , 2015 ; Macedo, 2005 ; A. Nascimento, 1982 [1968], 2004a; A. Nascimento e E. L. Nascimento, 2000; E. L. Nascimento, 2003 ). Este artigo confirma tal fato e aponta a necessidade de outros estudos nesse sentido, por exemplo: quanto a experiência anterior de Ironides no movimento negro de Uberlândia teria sido significativa (ou não) para a sua posterior participação no teatro negro (lembremos, nesse caso, de sua parceria de então com o irmão de Grande Otelo, Chico Pinto)?

Em segundo lugar, esperamos que este artigo tenha trazido elementos suficientes para mostrar a relevância do intelectual Ironides Rodrigues em sua busca por um diálogo entre o ativismo negro brasileiro e o existencialismo, o movimento da negritude e o pan-africanismo. Ou seja, o Brasil e o pensamento social brasileiro dentro do diálogo intelectual da África com sua diáspora ou, mais precisamente, do “Atlântico Negro” no século XX. Nesse particular, a análise aqui realizada revela um intelectual e ativista negro de primeira linha, de sólida erudição, apesar de ter-se mantido fora das instituições e dos canais de consagração de sua época. Algo que, de certo, em muito prejudicou sua posterior integração aos cânones do pensamento social brasileiro, pois, sem dúvida, ele faz parte de uma geração de outrora de ativistas negros – quase todos homens –, que alcançaram uma inegável qualificação intelectual (no século XX) antes da década de 1980, mas que também foram esquecidos ou secundarizados nesse campo, como Manuel Querino, Lino Guedes, Abdias do Nascimento, Raymundo Souza Dantas, José Correia Leite, Guerreiro Ramos, Eduardo de Oliveira e Oliveira, Solano Trindade, Oliveira Silveira, Antonieta de Barros, Carolina Maria de Jesus e talvez outros ainda pouco conhecidos, como Jayme Aguiar (editor do Clarim da Alvorada ), Sebastião Rodrigues Alves (TEN), Sofia Campos, Virginia Bicudo, Fernando Góes (escritor e jornalista), Francisco Lucrécio (Frente Negra Brasileira), João Cabral Neves (da União dos Homens de Cor – UHC, Porto Alegre [ Silva, 2003 ]), José Pompílio da Hora (UHC, RJ). É um grupo pequeno, certamente. Algo que exemplifica o atraso educacional (formal) e o racismo institucional a que foi relegada a população negra brasileira, e ainda mais estarrecedor em relação à mulher negra.

Finalmente, a trajetória intelectual de Ironides lança luz sobre um tema ainda pouco explorado na academia brasileira: uma tradição negra terceiro-mundista no país nas décadas de 1940-1970 ( Barbosa, 2004 , 2013 , 2015 ; Alburquerque, 2011 ). Certamente, cabem mais pesquisas com esse foco específico. Mas, pelo que se pôde observar, foi uma herança construída na práxis do TEN, entre as décadas de 1940 e 1950, especialmente nas trajetórias correlacionadas de Abdias, Guerreiro e Ironides. Trata-se de uma aproximação tanto prática (da luta antirracista) quanto teórica. Nesse contexto, conforme aqui delineado a partir da trajetória de Ironides, os conflitos com a intelectualidade “branca”, assim como a presença de Sartre ( Orfeu negro , 1948), com sua teorização da negritude, foram fundamentais.

Outras pesquisas poderão complementar e/ou corrigir essa hipótese. Sua relevância, para além da necessidade de revalorizar o pensamento desse e outros intelectuais negros brasileiros, é fazer reviver uma tradição notável do Sul Global, o “espírito de Bandung”, que vem sendo recuperada internacionalmente ( Prashad, 2007 ; Arrighi e Zhang, 2010 ; Amin, 2015 ), e também seria uma alternativa viável para a construção de um mundo mais policêntrico e antirracista no século XXI.

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Notas

  • 1
    A negritude francófona foi um movimento artístico, estético e político dos anos de 1930-1950, baseado no ativismo de poetas negros de expressão francesa, como Léon-Damas, A. Césaire, L. S. Senghor, É. Léro, A. Diop e outros. Como resumiu Roger Bastide (1961 , p. 84), tratava-se de uma luta contra a aculturação europeia, que dava especial atenção à valorização de suas raízes africanas como contraponto necessário à “cultura ocidental”. Nessa perspectiva crítica da negritude francófona estão contidos os dois sentidos básicos e inter-relacionados do termo negritude , conforme abordados por Kabengele Munanga (1988 , p. 44). O primeiro era a noção que dominava antes da Segunda Guerra Mundial, qual seja, o simples reconhecimento do fato de ser negro, a aceitação de seu destino, história e cultura. O segundo sentido de negritude, segundo Munanga, resultou de um processo que aos poucos alterou seu significado até ganhar uma dimensão política próxima àquela do pan-africanismo e da luta anticolonial.
  • 2
    Definição utilizada: “movimento político e cultural que considera a África, os africanos e os descendentes de africanos de além-fronteiras como um único conjunto, e cujo objetivo consiste em regenerar e unificar a África, assim como incentivar um sentimento de solidariedade entre as populações do mundo africano” ( Esedebe, 1982 , p. 14).
  • 3
    Para uma revisão bibliográfica mais detalhada, ver Gomes e Domingues (2014) .
  • 4
    A saber, por exemplo, os ensaios de crítica cinematográfica escritos pelo autor para o jornal A Marcha , órgão de imprensa oficial do Partido da Representação Popular (PRP), de tendência integralista. O jornal circulou entre 1953 e 1962. Provavelmente existem outros textos ainda não identificados.
  • 5
    O ensaio de Brent H. Edwards traz uma competente análise genealógica do termo e das pesquisas sobre a temática. Vale citar a seguinte passagem: “A more complete genealogy of the uses of diaspora in black critical work after the Second World War would have to turn to the institutionalization of black studies in the U.S. academy in the 1960s and 1970s. That intervention into the Western academy is an epistemological challenge explicitly staked out through a politics of diaspora that rejects Western assumptions about a link between knowledge production and the nation. Invocations of diaspora were central and strategic in almost all of the mission statements of black studies and African American studies departments founded in the late 1960s and early 1970s – though not necessarily in a manner consonant with the earlier work of Harris and Shepperson” ( Edwards, 2001 , p. 56). Sobre o conceito de diáspora, ver, entre outros: Stuart Hall (1980 , 1990 ); Miguel A. Saignes (1976) , Rita L. Segato (1998) , K. Butler (2000) , K. Appiah e L. Gates Jr. (2003).
  • 6
    Hipótese levantada sobre comentários do colunista Bororó em curto ensaio biográfico de Ironides Rodrigues para o Diário Carioca , 25 ago. 1954, p. 6. Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Disponível em: < http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/ . Acesso em: 3 jan. 2019. [N. do R.: Nas próximas notas, essa fonte será citada resumidamente como “Hemeroteca Digital BN”.]
  • 7
    Fonte: Ipeafro. Disponível em: < http://ipeafro.org.br/personalidades/ironides-rodrigues/ . Acesso em: 3 jan. 2019.
  • 8
    Diário Carioca, 25 ago. 1954, p. 6. Fonte: Hemeroteca Digital BN.
  • 9
    A Manhã , 9 maio 1952, p. 5. Fonte: Hemeroteca Digital BN.
  • 10
    Segundo comentários do colunista Bororó, em curto ensaio biográfico de Ironides Rodrigues para o jornal Diário Carioca em 1954 (25 ago., p. 6), o autor teria os seguintes títulos guardados à espera de publicação: Ensaios – “História universal do circo”, “Estética do cinema”, “História do negro na literatura universal”, “Estética da negritude”, “O negro no cinema”, “Tasso da Silveira, o poeta e o espírito”, “Caderno de Armando”; Teatro – Agonia do Sol , Alceste , Fidélio , A morte antes do amanhecer , Noturno do retorno incerto , Angústia na madrugada , Aconteceu numa tarde de outono , O auto da Constância Lena , Sinfonia da favela , Orfeu negro , Crepúsculo da alma , Um bandolim chora ao luar ; Romance – Madrugadas sem estrelas , Evocações da infância perdida . Fonte: Hemeroteca Digital BN.
  • 11
    Imprensa Popular , 11 abr. 1954, p. 4. Fonte: Hemeroteca Digital BN.
  • 12
    Jornal do Brasil , 24 nov. 1960, Caderno B, p. 5. Fonte: Hemeroteca Digital BN.
  • 13
    Jornal do Brasil , 14 nov. 1961, Caderno B, p. 4. Fonte: Hemeroteca Digital BN.
  • 14
    Jornal do Brasil , 6 out. 1963, Caderno Especial, p. 5. Fonte: Hemeroteca Digital BN.
  • 15
    A Manhã , 21 ago. 1952, p. 5. Fonte: Hemeroteca Digital BN.
  • 16
    Fonte: Ipeafro. < http://ipeafro.org.br/personalidades/ironides-rodrigues/ . Acesso em: 3 jan. 2019.
  • 17
    A Manhã , 27 set. 1945, p. 3. Fonte: Hemeroteca Digital BN.
  • 18
    O Jornal , 23 mar. 1945, p. 3. Fonte: Hemeroteca Digital BN.
  • 19
  • 20
  • 21
    Vale citar, entre os clássicos internacionais: P. Decraene, Le Panafricanisme , 1959; A. Adekunle, Pan-africanism: evolution, progress and prospects , 1973; I. Geiss, The Pan-African movement , 1974; Ras Makonnen, Pan-africanism from within , 1973; C. Legum, Pan-africanism: a short political guide , 1962; Hakim Adi e M. Sherwood, Pan-african history: political figures from Africa and the diaspora since 1787, 2003. E entre autores contemporâneos: Marika Sherwood, Hakim Adim, Issa Shivji, Rhoda Reddock, V. Mudimbe, Amina Mama, Timothy Murithi, Toyin Falola, Thandika Mkandawire, Paul Zeleza.
  • 22
    Segundo Sartre (1960): expressão de uma qualidade comum aos pensamentos e às condutas dos negros, conforme poder-se-ia averiguar, segundo ele, da antologia em análise ( Anthologie de la nouvelle poésie nègre et malgaxe... ).
  • 23
    Isso, apesar do fato inegável de ela reforçar uma imagem radical que, por conta do pacto da democracia racial naquele momento, os líderes do TEN estariam conscientemente buscando negar ( Guimarães, 2002) .
  • 24
    Sobre o assunto, ver M. C. Maio (1997) e E. L. Nascimento (2003) .
  • 25
    Imprensa Popular , 11 abr. 1954, p. 4. Fonte: Hemeroteca Digital BN.
  • 26
    Cheikh Anta Diop (1923-1986) nasceu em Thyethyou, no Senegal. Formou-se em Física, mas se consagrou como historiador, egiptólogo e antropólogo. Desenvolveu a tese de que os povos africanos teriam uma unidade civilizacional própria, surgida no Egito faraônico e outras civilizações da Núbia antiga.
  • 27
    Leo Frobenius (1873-1938) nasceu em Berlim, Alemanha. Foi o principal etnólogo e um dos mais importantes arqueólogos de seu país. Atuou como africanista durante grande parte de sua carreira, tendo sido o “descobridor” das terracotas do Benin em uma expedição de 1910. Maurice Delafosse (1870-1926), nascido em Sancegues, França, foi um importante etnólogo, linguista e africanista, que defendeu a tese da unidade cultural dos povos da África “negra” do ponto de vista da etnologia.
  • 28
    Em relação a esse texto específico de Ironides, deixamos a referência original quanto à data (198-), pois sabemos apenas que são anos 1980.
  • 29
    Nesse sentido, parece próximo de Frantz Fanon (1951). Mas não há citação sua no material pesquisado.
  • 30
    O quilombismo foi originalmente apresentado por Abdias do Nascimento em 1980, n , no 2º Congresso de Cultura Negra nas Américas, realizado no Panamá. Consistia, essencialmente, em um projeto para a construção de uma sociedade baseada na estrutura comunitária e nos valores culturais africanos e afro-brasileiros (A. Nascimento, 1980) .
  • 31
    Em particular, pela participação de autores como Guerreiro Ramos, Álvaro Vieira Pinto, Roland Corbisier e Hélio Jaguaribe. Este último, inclusive, publicaria um livro declaradamente “terceiro-mundista”, em 1958: O nacionalismo na atualidade brasileira . Sobre o assunto, ver Alburquerque (2011) .
  • 32
    Em Estética da negritude , Ironides [ca. 1950, p. 13] volta a refletir sobre os escritos de Sartre.
  • 33
    Um tema que o filósofo iria desenvolver na Crítica à razão dialética , cujo primeiro volume é de 1960 ( Arthur, 2010, p , p. 77).
  • 34
    Isso, mesmo para um crítico mordaz perscrutador da teoria sartriana da negritude, como Frantz Fanon, que, em Pele negra, máscaras brancas, de 1951, já havia notado o reducionismo implícito de tal conceitualização. Afinal, nela, a negritude não teria um valor em si mesma. Ela seria importante “apenas” como um elo da verdadeira libertação humana, supostamente pós-racial. Aliás, esse é um bom exemplo de como o ensaio de Sartre ( Orfeu negro , em 1948) podia ser lido e interpretado de formas diferentes do que fora à época pela intelligentsia do TEN.
  • *
    Agradecemos aos pareceristas anônimos da RBCS por suas contribuições relevantes ao aperfeiçoamento deste artigo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Set 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    16 Nov 2017
  • Aceito
    15 Abr 2019
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