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Novo nascimento: os evangélicos em casa, na política e na igreja

Religião e comportamento

Rubem C. FERNANDES, Pierre SANCHIS, Otávio G. VELHO, Leandro PIQUET, Cecília MARIZ e Clara MAFRA. Novo nascimento: os evangélicos em casa, na política e na igreja. Rio de Janeiro, Mauad, 1998. 264 páginas.

Ronaldo de Almeida

Em 1992, o Instituto de Estudos da Religião (Iser) realizou o Censo Institucional Evangélico (CNI) na Região Metropolitana do Rio de Janeiro e colocou em números a abrangência do campo evangélico, que há algumas décadas vinha apresentando transformações em sua relação com a sociedade (como na esfera política e nos meios de comunicação) e em sua prática religiosa (como o culto e algumas crenças). Embora a pesquisa se tenha restringido ao Grande Rio, o cenário fluminense ancorou muitas interpretações de caráter propriamente qualitativo sobre a configuração religiosa no Brasil, além de despertar novas indagações. Como desdobramento desse trabalho, o Iser iniciou, dois anos depois, outra grande investigação quantitativa sobre os evangélicos, em três dimensões da vida social: na família, na comunidade religiosa e na atividade política. O resultado está em Novo nascimento: os evangélicos em casa, na política e na igreja, composto do relatório da pesquisa (Fernandes), dois comentários (Sanchis e Velho) e três artigos (Piquet, Mariz e Mafra).

Diferentemente da análise institucional do CNI, Novo nascimento procurou descrever o padrão comportamental desse segmento religioso que se encontra em plena expansão. O ponto de partida foi o diagnóstico de que 70% dos evangélicos são "convertidos". Logo, se o campo religioso brasileiro caracteriza-se por um trânsito generalizado de fiéis pelos diversos credos, como constatou Prandi (1996), a fé evangélica foi uma das que mais atraiu adeptos de outras instituições. Diga-se, ainda, que parte do trânsito ocorreu entre as próprias denominações, cuja rotatividade de fiéis é da ordem de 25%. Fernandes destaca o ethos "evangélico" que, por ser base de fé comum, perpassa as denominações, facilitando a mudança de filiação religiosa (p. 72). Acrescente-se, contudo, que nesse trânsito interdenominacional há fluxos preferenciais direcionados para o protestantismo carismático e o pentecostalismo, em particular o neopentecostalismo, o que resulta em uma religiosidade mais mística e menos ascética.

Uma das novidades da pesquisa foi a tipologia que reduziu as denominações do campo evangélico do Grande Rio a seis categorias (Históricas, Históricas Renovadas, Batista, Assembléia de Deus, Igreja Universal e Outras Pentecostais). Além de diferenciar a Assembléia de Deus e a Igreja Universal da massa dos pentecostais, a tipologia circunscreveu os pouco estudados batistas e históricos renovados (também chamados de protestantes carismáticos). A importância dos batistas deve-se ao fato de constituírem o único grupo não pentecostalizado que realiza, como as igrejas pentecostais e renovadas, um eficiente proselitismo, além de ser também um difusor do pensamento evangélico-fundamentalista norte-americano, que marcou boa parte do meio evangélico no Brasil (Fernandes, 1979).

A categoria Históricas Renovadas, por sua vez, define um grupo à parte dos históricos e pentecostais, procedimento pouco adotado por outras pesquisas quantitativas. Por se tratar de segmento intermediário entre esses dois grupos, a compreensão dos renovados pode contribuir em muito para a atual discussão sobre a versão carismática do catolicismo. É evidente que as ações da figura mais expoente da Renovação Carismática no momento, o padre Marcelo, assemelham-se em muito às das igrejas neopentecostais, como a Igreja Universal e a Renascer em Cristo, no que diz respeito ao uso da mídia, à criação de um espetáculo de culto e à exploração do setor fonográfico; entretanto, tais católicos, assim como os renovados protestantes, interessam também por seu hibridismo, que cria conexões intra-evangélicos e, no caso católico, intracristãos.

Se ampliarmos ainda os exemplos, veremos que essas conexões extrapolam o espectro cristão. Refiro-me à Igreja Universal, que criou um "sincretismo invertido" no conflito com as religiões afro-brasileiras, ficando, em alguns momentos, como nos cultos de exorcismo, muito distante do protestantismo histórico e mais parecida com a religiosidade a que se propunha combater (Almeida, 1995). Não por acaso, a maior incidência de conversões de religiosos afro-brasileiros ocorre para a Igreja Universal. Esses exemplos mostram um espraiamento dessa religiosidade simultaneamente à absorção de outras práticas e crenças, o que torna o campo simbólico evangélico mais amplo do que o conjunto de suas instituições. Como adverte Sanchis em seu comentário sobre a pesquisa, os evangélicos devem ser analisados segundo uma "matriz católica e uma funda marca afro-brasileira" (p. 150).

No plano demográfico, Novo nascimento demonstra como o fenômeno de conversão ocorreu na classe média e, predominantemente, na classe pobre. As igrejas renovadas e pentecostais encontram-se em maior número nas camadas populares. Entre os pentecostais predominam os menos escolarizados, ao passo que nas históricas renovadas o nível de escolaridade é equivalente ao dos batistas e históricos. Quanto ao gênero, os evangélicos compõem-se, na sua maioria, de mulheres. A relação é de 31% de homens para 69% de mulheres. Os batistas são os que melhor mantêm o equilíbrio entre os sexos, com 64% de mulheres. Mas o número que impressiona é o da Universal: 81% de mulheres para 19% de homens.

Esse contingente feminino foi abordado pelo survey de Novo nascimento a partir da análise das relações familiares e do comportamento reprodutivo. Conforme Fernandes, os evangélicos representam um avanço na modernização da sociedade brasileira. Primeiro, porque, de acordo com a pesquisa, a taxa de fecundidade entre as evangélicas é de 2,74, muito próxima da taxa de 2,58 da população brasileira; a "[a pesquisa] indica que as igrejas evangélicas tendem a influenciar os seus membros a baixar a taxa de natalidade" (p. 103). As famílias evangélicas acompanharam a queda na taxa de fecundidade apresentada pelo país nas últimas décadas. Além disso, exige-se de um homem convertido a mudança de comportamento no que diz respeito à economia doméstica, ao adultério e aos vícios de jogo, álcool e tabaco, entre outras coisas. Logo, conclui Fernandes, "somos inclinados a sugerir que, sim, a pregação evangélica tem propiciado transformações modernizantes das relações entre os gêneros" (p. 94).

Os dados apresentados em Novo nascimento mostram que a pregação evangélica é bem eficaz em normatizar o comportamento do fiel. O discurso oficial católico sobre reprodução, virgindade e aborto pode até ser mais conservador do que o evangélico, mas qual o nível de obediência à Igreja de um grupo que costuma se diferenciar entre "praticantes" e "não-praticantes"? Ou, ainda, qual o comportamento do fiel das afro-brasileiras, já que não professam um discurso moral e normativo. Isto é, se vários fatores contribuíram para a queda da fecundidade no Brasil, que participações tiveram os diferentes credos? Esta não foi a preocupação da pesquisa, até porque o recorte empírico limitou-se ao meio evangélico. No entanto, ao estabelecer o universo feminino e familiar como um dos eixos de investigação, a pesquisa enfocou uma das dimensões da vida social mais atingida pela conversão à fé evangélica.

Como dito, as mudanças de comportamento tendem à modernização. Entretanto, convém destacar que elas ocorrem sob um discurso tradicional e não igualitário, como observa Mafra. É fato que o homem, quando convertido, começa a valorizar a família, mas a relação marido/esposa ocorre numa situação de hierarquia em que a submissão feminina e a providência masculina são doutrinariamente defendidas. Por mais que haja exceções, como algumas denominações que aceitam o pastorado feminino, o espaço da igreja é de predomínio absoluto dos homens, mesmo em face da maioria de mulheres. Se a conversão implica mudanças nas relações de gênero, estas não são equivalentes aos avanços alcançados no comportamento reprodutivo.

Essa dualidade (conservador/moderno), por sinal, marcou boa parte da bibliografia sobre os evangélicos, que se divide entre o elogio às mudanças — sobre o qual Velho adverte quanto aos possíveis excessos — e a condenação do atraso. Isto fica mais claro nos estudos sobre a esfera política. Alguns trabalhos da década de 70 afirmavam ou tinham como a priori que a participação social era incompatível com uma religiosidade mais mística, como o pentecostalismo, por exemplo. Esta mesma interpretação encontra-se no trabalho de Prandi (1992), cujo título, "Perto da magia, longe da política", define sua conclusão. Para sustentar seu argumento, este autor contrapõe o modelo comunitário das CEBs, que envolveriam os fiéis em ações racionais e coletivas, ao individualismo das religiões mágicas, como as afro-brasileiras e pentecostais.

Segundo os dados de Novo nascimento, no entanto, aqueles que mais participam da comunidade religiosa, ocupando cargos, exercendo liderança ou "manifestando os dons do Espírito Santo", são os mais ativos na participação social, seja em eleições, partidos, sindicatos, associações de moradores, obras assistenciais etc. Além dessas participações, os fiéis são ainda envolvidos em fortes redes de solidariedade entre os "domésticos da fé". Assim, a contraposição com as CEBs deve-se antes às diferenças ideológicas do que, propriamente, a uma debilidade das relações comunitárias dos evangélicos. Organizados no modelo "congregacional protestante", esses religiosos agem em favor dos "irmãos" e possuem, assim como as CEBs, um projeto de sociedade; mas, diferentemente delas, pregam a regeneração moral a partir da qual decorreriam as transformações sociais.

Herança do protestantismo histórico, esse caráter associativo da "congregação" foi bastante destacado pela pesquisa para mostrar a participação cívica dos evangélicos. Contudo, pergunto-me qual é a referência de "congregação" quando existem, de um lado, as igrejas históricas e pentecostais clássicas, em que predomina um tipo de organização comunitária estruturada em redes familiares, e, de outro, as neopentecostais, como a Igreja Universal, que realiza até cinco cultos por dia, reveza constantemente seus pastores entre os templos, realiza com freqüência grandes concentrações, utiliza o rádio e a televisão como propagadores do Evangelho ou faz celebrações em grandes salas de cinema e de teatro.

Em que medida essa pregação "no atacado" — que é extensível à Renovação Carismática — afeta a própria prática da religião? Entre inúmeros exemplos, penso nos meios de comunicação, que permitem, no âmbito doméstico, a audiência simultânea de diferentes pregações, que o fiel percorre ecumênica e curiosamente sem que isso resulte em mudança de credo. Não se trata propriamente de um culto doméstico, mas da reformulação do cotidiano com atividades de conteúdo religioso sem a pretensão de gerar uma epifania ou algo equivalente. Os programas de auditório, videoclipes, talk-shows, festivais de música, novelas, todos evangélicos e adequados à linguagem televisiva, desempenham uma função mais de entretenimento do que religiosa. Um estudo de recepção dessa programação pode contribuir muito para o entendimento de como a fé evangélica é vivida no cotidiano da casa, principalmente pelo contingente feminino.

Da mesma forma, o consumo religioso é uma dimensão do cotidiano que precisa ser mais bem investigada, em particular a hipótese de Pierucci (1996) sobre a formação do "consumidor religioso". Não penso propriamente na idéia de um sujeito com direitos de reclamação sobre a eficácia da mensagem religiosa, nem na de um indivíduo que tenha à sua disposição inúmeras possibilidades de escolha de credo, ou de vários simultaneamente. A preocupação é com o consumo de uma série de produtos que atendem às várias demandas da fé na vida cotidiana, como discos, literatura, programação televisiva, educação, saúde etc. Em resumo, mercadorias, atividades sociais e serviços definidos segundo padrões de consumo e estilos de vida, com circuitos particulares e cujo elemento estruturante é a opção religiosa. Essa interface entre hábitos religiosos, audiência televisiva e consumo não foi tema de investigação de Novo nascimento, muito embora o CNI, já em 1992, tenha cadastrado diversos estabelecimentos comerciais com produtos relacionados à fé.

Mas esses são alguns dos possíveis desdobramentos das pesquisas que o Iser vem realizando sobre o meio evangélico contemporâneo, que, se por um lado tornam cada vez mais inteligível este segmento, por outro suscitam novas hipóteses sobre o impacto causado pela conversão no comportamento de uma parcela significativa da população brasileira.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, Ronaldo de. (1995), A universalização do Reino de Deus. Campinas, dissertação de mestrado, IFCH/Unicamp.

FERNANDES, Rubem C. (1979), "As missões protestantes em números". Cadernos do ISER, 10.

PIERUCCI, Antônio F. (1996), "Em defesa do consumidor religioso". Novos Estudos, São Paulo, Cebrap, 44.

PRANDI, Reginaldo. (1992), "Perto da magia, longe da política". Novos Estudos, São Paulo, Cebrap, 34.

¾¾¾¾¾¾¾¾¾¾. (1996), "Religião paga, conversão e serviço". Novos Estudos, São Paulo, Cebrap, 45.

RONALDO DE ALMEIDA

é pesquisador do Cebrap e doutorando em Antropologia Social na USP.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Maio 2000
  • Data do Fascículo
    Jun 1999
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