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POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA PARA O SAARA OCIDENTAL: pragmatismo e ruptura

PRAGMATISM AND BREACH IN BRAZILIAN FOREIGN POLICY FOR WESTERN SAHARA

PRAGMATISME ET INFRACTION DANS LA POLITIQUE ÉTRANGÈRE BRÉSILIENNE POUR LE SAHARA OUEST

Resumo

Este artigo analisa a posição brasileira sobre o conflito entre o Marrocos e o Saara Ocidental. No centro da discussão desse conflito está o direito do Saara Ocidental a sua autodeterminação. O princípio da autodeterminação dos povos está previsto na Constituição brasileira e é parte indissociável das manifestações diplomáticas ao longo da história. No entanto, a atual chancelaria tem emitido declarações que evidenciam uma ruptura da tradição brasileira nesse tema. Este artigo analisa a seguinte questão: o que teria motivado o atual governo a descumprir o princípio da autodeterminação e abandonar uma tradição histórica da diplomacia brasileira? Tendo o método dedutivo e a documentação indireta como técnicas de pesquisa, abordou-se a situação do Saara Ocidental e um ato internacional ilícito cometido pelo Marrocos. Sobre o Brasil, realizou-se pesquisa histórica e documental do posicionamento sobre a autodeterminação dos povos. Ao final, constatou-se que fatores comerciais motivaram a mudança do posicionamento brasileiro sobre o conflito em questão.

Palavras-chave:
Saara Ocidental; Marrocos; Brasil; Ato Ilícito Internacional; Fosfato

Abstract

This article analyzes the Brazilian position on the conflict between Morocco and Western Sahara. Central to the discussion of this conflict is Western Sahara's right to self-determination. The principle of self-determination is provided in the Brazilian Constitution and is an inseparable part of diplomatic demonstrations throughout history. However, the current chancellery has issued statements that show a rupture in the Brazilian tradition on this topic. This article intends to analyze the following question: what would have motivated the current government to breach the principle of self-determination and abandon the Brazilian diplomacy's historical tradition? Through the deductive method and indirect documentation as a research technique, the situation of Western Sahara and the international illegal committed by Morocco were addressed. Historical and documentary research on the positioning of self-determination was carried out from Brazilian perspective. In the end, it was found that commercial factors motivated the change in the Brazilian position on the present conflict.

Keywords:
Western Sahara; Morocco; Brazil; International State Wrongful Act; Phosphate

Resume

Cet article analyse la position brésilienne sur le conflit entre le Maroc et le Sahara occidental. Le droit du Sahara occidental à l'autodétermination est au cœur de la discussion de ce conflit. Le principe de l'autodétermination des peuples est inscrit dans la Constitution brésilienne et fait partie intégrante des manifestations diplomatiques à travers l'histoire. Cependant, la chancellerie actuelle a publié des déclarations qui montrent une rupture dans la tradition brésilienne sur ce sujet. Cet article se propose d'analyser la question suivante: Qu'est-ce qui aurait motivé le gouvernement actuel à violer le principe de l'autodétermination et à abandonner la tradition historique de la diplomatie brésilienne? Par la méthode déductive et la documentation indirecte comme technique de recherche, la situation du Sahara Occidental et l'acte illégal international commis par le Maroc ont été abordés. Sur le Brésil, des recherches historiques et documentaires sur le positionnement de l'autodétermination des peuples ont été menées. Finalement, il a été constaté que des facteurs commerciaux avaient motivé le changement de position du Brésil sur le conflit actuel.

Mots-clés:
Sahara occidental; Maroc; Brésil; Acte Illicite International; Phosphate

Introdução

O posicionamento de um Estado no cenário internacional é construído em décadas de atuação diplomática e possui reflexos de longo alcance em sua economia e em sua importância política perante o mundo. Atualmente, a política externa brasileira tem se caracterizado por um grande número de ações e atitudes contrárias à práxis tradicional adotada pelo Itamaraty e referendada pela Constituição Federal Brasileira (Cardoso et. al., 2020CARDOSO, Fernando Henrique; FERREIRA, Aloysio Nunes; AMORIM, Celso; REZEK, Francisco; SERRA, José; RICUPERO, Rubens & KALOUT, Hussein. (2020), “A reconstrução da política externa brasileira”. Folha de S. Paulo, 8 mai. Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/05/a-reconstrucao-da-politica-externa-brasileira.shtm, acessado em 11/01/2021.
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). O presente artigo analisa a postura do Estado brasileiro em relação ao conflito entre o Marrocos e o Saara Ocidental. Em seu cerne está o direito à autodeterminação do Saara Ocidental, negado pela invasão e ocupação de grande parte do território do país pelo Marrocos. O respeito à autodeterminação dos povos é um dos princípios constitucionais que regem o Brasil em suas relações internacionais, conforme o artigo 4, III da Constituição Federal. A diplomacia brasileira historicamente respeitou esse princípio e nunca aceitou, de forma declarada, a invasão ou a ocupação militar do Marrocos no Saara Ocidental. Conforme se verá no artigo, tal invasão constitui uma catástrofe humanitária, seguida por diversas e graves violações dos direitos humanos cometidas pelo Estado invasor, e agravada pela vergonhosa omissão de nações europeias sobre o fato.

Recentemente, a diplomacia e o Estado brasileiro vêm apresentando sinais ambíguos sobre o respeito do país ao princípio da autodeterminação dos povos. Em comunicado conjunto com o chanceler marroquino, o ex-ministro das Relações Exteriores brasileiro Ernesto Araújo, falou em “abandonar a retórica” em relação a questão do Saara Ocidental. Entrementes, pela primeira vez na história, o país recebeu cargueiros com minérios retirados ilegalmente pelo Marrocos do território invadido do Saara Ocidental, contrapondo-se à tendência internacional de não aceitação, nos portos e aduanas, de recursos naturais espoliados do país invadido. Teria o atual governo brasileiro descumprido a Constituição e abandonado uma tradição secular da diplomacia do país? O “abandonar a retórica” da nota diplomática brasileira significa associar o país ao cometimento de um ato ilícito internacional? Estas são as questões que permeiam este artigo.

Utilizando-se de método dedutivo e da documentação indireta como técnica de pesquisa, o trabalho inicia relatando a situação do Saara Ocidental e a configuração da atuação do Marrocos como um ato ilícito internacional. Sobre o Brasil, realizou-se pesquisa histórica e documental dos posicionamentos do país a respeito do princípio da autodeterminação desde seu reconhecimento pela ONU. Por fim, constatou-se mudança de posicionamento por parte do ex-ministro das Relações Exteriores, relacionando-a às operações econômicas do Marrocos no Brasil, analisadas sob o contexto atual.

O conflito no Saara Ocidental

O território correspondente ao Saara Ocidental é historicamente habitado por tribos berberes que ocupam a região desde o período neolítico (Kormikiari, 2001KORMIKIARI, Maria Cristina Nicolau. (2001). “Grupos indígenas berberes na Antiguidade: a documentação textual e epigráfica”. Revista de História, 145, 1:9-60., p. 15). No entanto, o direito destas tribos ao próprio território foi ignorado na Conferência de Berlim de 1885, que partilhou o continente africano entre alguns países europeus, estabelecendo ali uma relação de domínio territorial alheia à sua composição étnica e sua organização social (Nuzzo, 2012NUZZO, Luigi. (2012), “Colonial Law”. EGO – European History Online. Disponível em http://www.ieg-ego.eu/en/threads/europe-and-the-world/european-overseas-rule/luigi-nuzzo-colonial-law, acessado em 11/01/2021.
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).

Assim, a região do Saara Ocidental foi reconhecida como domínio espanhol, tendo em vista acordos celebrados entre o país e os povos que habitavam a costa da Baía do Río de Oro (McKenna, 2010McKENNA, Amy. (2010), The History of Northern Africa. Nova York, Britannica Educational., p. 167). Os limites da área de influência da Espanha, contudo, só foram consolidados em 1912, com um tratado com a França, então a potência colonial dominante no norte da África (Miguel, 1995MIGUEL, Carlos Ruiz. (1995), El Sahara Occidental y España: Historia, Política y Derecho. Analisis Crítico de La Política Exterior Española. Madri, Dykinson., p. 51). Sob domínio espanhol, iniciou-se a fixação da população nômade saaraui, notadamente após a descoberta de uma imensa reserva de fosfato na região de Bucraa, e do desenvolvimento econômico e comercial da cidade de El Aaiún (Suzin & Daudén, 2011SUZIN, Giovana Moraes & DAUDÉN, Laura. (2011), Nem paz nem guerra. Três décadas de guerra no Saara Ocidental. Rio de Janeiro, Tinta Negra/Bazar Editorial.).

Após a Segunda Guerra Mundial, os impérios coloniais europeus entram em crise diante da emergência de uma nova ordem mundial, que substituiria trezentos anos de preponderância política do continente pela bipolaridade entre Estados Unidos e União Soviética. Aproveitando-se da debilidade econômica e militar dos colonizadores, as colônias do Norte da África insurgem-se, buscando independência. A Líbia torna-se independente em 1951 e a Tunísia, em 1956. No Marrocos, ainda sob domínio francês, nos anos 1940, havia sido criado o Partido Nacionalista Marroquino (ISTIQLAL) pelo escritor Muhammad Allal al-Fassi (1910-1974). Além de independência, Al-Fassi defendia a criação de um “Grande Marrocos” que submetesse a seu domínio todos os povos de origem berbere. Sua ideologia influenciou o movimento que declarou a independência do Marrocos em 1956 e levou à coroação do rei Hassan II, em 1961, e à constituição do Reino, em 1962 (Miguel, 1995MIGUEL, Carlos Ruiz. (1995), El Sahara Occidental y España: Historia, Política y Derecho. Analisis Crítico de La Política Exterior Española. Madri, Dykinson., pp. 85, 89 e 122). A independência do Marrocos instrumentalizada pelo ISTIQLAL teve influência do governo dos Estados Unidos, que temia a proximidade política dos movimentos nacionalistas e anticolonialistas com a União Soviética (Thomas, 2002THOMAS, Martin. (2002), “Defending a Lost Cause? France and the United States Vision of Imperial Rule in French North Africa, 1945–1956”. Diplomatic History, 26, 2:215-247.). Ressalta-se que o Reino do Marrocos possui um relacionamento estreito com os Estados Unidos desde a firma do Tratado de Amizade, em 1787 (Zunes, 1998ZUNES, Stephen. (1998) “The United States and the Western Sahara Peace Process”. Middle East Policy, 5, 4:131-146.).

Em vista da insurgência das colônias contra seus dominadores, em 1960 a 15ª Assembleia Geral da ONU aprovou a Resolução 1514, ou “Declaração sobre a Garantia de Independência dos Países e Povos Coloniais” (Organização das Nações Unidas, 1960ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. (1960), “Declaração sobre a concessão da independência aos países e povos coloniais”. Disponível em http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/spovos/dec60.htm, acessado em 12/01/2021.
http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu...
). A Declaração consagrou o direito de autodeterminação dos povos, considerando qualquer dominação estrangeira uma forma de negação de direitos humanos fundamentais. Em 1963, a Assembleia Geral da ONU declarou o Saara Ocidental território sob tutela, em vias de descolonização (Wrange, 2019WRANGE, Pal. (2019), “Self-Determination, Occupation and The Authority to Exploit Natural Resources: Trajectories from four European Judgements on Western Sahara”. Israel Law Review, 52, 1:3-29. Disponível em https://www.cambridge.org/core/journals/israel-law-review/article/selfdetermination-occupation-and-the-authority-to-exploit-natural-resources-trajectories-from-four-european-judgments-on-western-sahara/25DB600AF2F5E86B30EFFB88F57CF69F, acessado em 12/01/2021.
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, p. 5).

Neste período a Espanha encontrava-se sob um regime ditatorial fascista avesso ao processo de descolonização (Penna Filho, 2010PENNA FILHO, Pio. (2010), “A difícil e esquecida questão do Saara Ocidental”. Boletim Meridiano, 11, 114:3-5. Disponível em: http://seer.bce.unb.br/index.php/MED/article/view/474/294, acessado em 12/01/2021.
http://seer.bce.unb.br/index.php/MED/art...
). Tal postura fez com que o país fosse objeto da Resolução 2229 (XXI) da Assembleia Geral, que determinou a realização de referendo sobre a independência do Saara Ocidental (Organização das Nações Unidas, 1966ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. (1966), “Resolução da Assembleia Geral 2229 (XXI) de 1966”. Disponível em https://undocs.org/es/A/RES/2229(XXI), acessado em 18/01/2021.
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), levando à união da população local que resultou, em 1973, na fundação Frente Popular para a Libertação de Saguia-el-Hamra e Río de Oro (parte setentrional e meridional do atual Saara Ocidental), conhecida como Frente Polisario (Santayana, 1987SANTAYANA, Mauro. (1987), Dossiê da Guerra do Saara. Rio de Janeiro, Paz e Terra., p. 18).

Em 1974, em meio à instabilidade política do final do período ditatorial, a Espanha realiza um recenseamento populacional para o referendo de independência do Saara Ocidental (Suzin e Daudén, 2011SUZIN, Giovana Moraes & DAUDÉN, Laura. (2011), Nem paz nem guerra. Três décadas de guerra no Saara Ocidental. Rio de Janeiro, Tinta Negra/Bazar Editorial., p. 61). Antes disso, contudo, o Marrocos instou a Corte Internacional de Justiça, durante a Assembleia Geral de 1974, através da Resolução 3292 (XXIX), a produzir um parecer consultivo sobre ser ou não o Saara Ocidental terra nullius quando do início da colonização espanhola. Se a resposta fosse negativa, os juízes e conselheiros jurídicos deveriam definir os vínculos jurídicos entre o território do Saara Ocidental e o Reino do Marrocos e a Mauritânia (Organização das Nações Unidas, 1974ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. (1974), “Resolução da Assembleia Geral 3292 (XXIX) de 1974”. Disponível em https://undocs.org/es/A/RES/3292(XXIX), acessado em 17/01/2021.
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). Enquanto isso, aproveitando-se da crise institucional na Espanha, o Marrocos passa a fazer incursões militares ao território do Saara Ocidental, ao mesmo tempo em que pressiona diplomaticamente o antigo colonizador para assumir o governo da possessão (Miguel, 1995MIGUEL, Carlos Ruiz. (1995), El Sahara Occidental y España: Historia, Política y Derecho. Analisis Crítico de La Política Exterior Española. Madri, Dykinson., p. 103, pp. 141-142). Após realizar uma missão ao Saara Ocidental, entretanto, a ONU constata o anseio da população local pela independência e a legitimidade da Frente Polisario como representante do povo saaraui (Suzin e Daudén, 2011SUZIN, Giovana Moraes & DAUDÉN, Laura. (2011), Nem paz nem guerra. Três décadas de guerra no Saara Ocidental. Rio de Janeiro, Tinta Negra/Bazar Editorial., p. 61).

Na análise do mérito do parecer requerido pelo Marrocos à Assembleia Geral da ONU, a Corte observou que a Espanha iniciou seu processo de colonização do Saara Ocidental por meio de acordos com chefes tribais locais que, embora nômades, encontravam-se organizados social e politicamente. Por isso, não se podia afirmar que a região fosse terra nullius, conforme descrito pelo Marrocos (Corte Internacional de Justiça, 1975CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. (1975), Western Sahara. Advisory Opinion. Disponível em https://www.icj-cij.org/public/files/case-related/61/061-19751016-ADV-01-00-EN.pdf, acessado em 18/01/2021.
https://www.icj-cij.org/public/files/cas...
, pontos 80 e 83). Tampouco as teses alternativas foram reconhecidas pelo parecer consultivo. A contiguidade territorial entre estes países e as tribos saarauis foi entendida como algo discutível. Apenas uma minoria tribal na região fronteiriça entre os territórios possuía vínculos com o soberano marroquino, não sendo reconhecida nenhuma prova de soberania ou de administração prévia efetiva do país no território do Saara Ocidental (Corte Internacional de Justiça, 1975CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. (1975), Western Sahara. Advisory Opinion. Disponível em https://www.icj-cij.org/public/files/case-related/61/061-19751016-ADV-01-00-EN.pdf, acessado em 18/01/2021.
https://www.icj-cij.org/public/files/cas...
, pontos 87 a 89, 92 e 128). Por fim, o parecer da Corte não reconheceu quaisquer pretensões de soberania no Saara Ocidental e reiterou o direito à autodeterminação do povo saaraui (Corte Internacional de Justiça, 1975CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA. (1975), Western Sahara. Advisory Opinion. Disponível em https://www.icj-cij.org/public/files/case-related/61/061-19751016-ADV-01-00-EN.pdf, acessado em 18/01/2021.
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, pontos 148 e 161).

Em 16 de outubro de 1975, dia em que o parecer consultivo da Corte Internacional de Justiça foi publicado, o rei Hassan II do Marrocos convocou uma marcha civil para invadir o território do Saara Ocidental (ARSO, s/dARSO. (s/d), “O acordo de Madrid”. Disponível em http://www.arso.org/hist7-p.htm, acessado em 11/01/2021.
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). A chamada “Marcha Verde” reuniu em torno de 350 mil pessoas, entre civis e militares, para invadir o território do Saara Ocidental (Suzin e Daudén, 2011SUZIN, Giovana Moraes & DAUDÉN, Laura. (2011), Nem paz nem guerra. Três décadas de guerra no Saara Ocidental. Rio de Janeiro, Tinta Negra/Bazar Editorial., p. 61). Embora o Conselho de Segurança da ONU tenha determinado a retirada imediata do Marrocos do território invadido, através da Resolução n. 380, de 6 de novembro de 1975 (Organização das Nações Unidas, 1975ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. (1975), “Resolution 380 (1975)”. Disponível em https://undocs.org/es/S/RES/380%20(1975), acessado em 12/01/2021.
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), o Marrocos manteve a ocupação militar de dois terços do território do Saara Ocidental como forma de pressionar por negociações com a Espanha. Em novembro de 1975, o país chamou representantes diplomáticos marroquinos a Madri para discutir a situação (Sántha et. al., 2010SÁNTHA, Hanga; HARTMANN, Ylva Lennartsson & KLAMBERG, Mark. (2010), “Crimes Against Humanity in Western Sahara: The Case Against Morocco”. Juridisk Publikation. 2, 3:175-199. Disponível em http://juridiskpublikation.se/wp-content/uploads/2014/10/22010_Hanga-S%C3%A1ntha-Ylva-Lennartsson-Hartmann-och-Mark-Klamberg.pdf, acessado em 12/01/2021.
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).

A Frente Polisario iniciou uma resistência armada contra a invasão marroquina, lutando por independência contra a potência colonizadora e contra o invasor. A Espanha, contudo, celebrou secretamente, em 14 de novembro de 1975, um tratado que ficou conhecido como Acordo de Madri (Suzin e Daudén, 2011SUZIN, Giovana Moraes & DAUDÉN, Laura. (2011), Nem paz nem guerra. Três décadas de guerra no Saara Ocidental. Rio de Janeiro, Tinta Negra/Bazar Editorial., p 61). Nele, o país anuncia sua retirada do Saara Ocidental, transferindo a administração do território para o Marrocos e a Mauritânia (Miyares, 2013MIYARES, Águeda Mera. (2013), El Sáhara Occidental: ¿Un conflicto olvidado? Disponível em https://www.idhc.org/arxius/recerca/SaharaOccidental_cast.pdf, acessado em 12/01/2021.
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). Em troca, passa a receber 35% dos lucros líquidos obtidos com a exploração local de fosfato e direito de pescar livremente no mar territorial do Saara Ocidental (Sántha et. al., 2010SÁNTHA, Hanga; HARTMANN, Ylva Lennartsson & KLAMBERG, Mark. (2010), “Crimes Against Humanity in Western Sahara: The Case Against Morocco”. Juridisk Publikation. 2, 3:175-199. Disponível em http://juridiskpublikation.se/wp-content/uploads/2014/10/22010_Hanga-S%C3%A1ntha-Ylva-Lennartsson-Hartmann-och-Mark-Klamberg.pdf, acessado em 12/01/2021.
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). O Acordo de Madri contou também com a atuação da diplomacia dos Estados Unidos, que pressionou a Espanha para favorecer as pretensões marroquinas, condicionando ao atendimento dessas reivindicações a renovação do acordo militar entre Espanha e os EUA nos termos solicitados pelo governo espanhol (Zunes, 1998ZUNES, Stephen. (1998) “The United States and the Western Sahara Peace Process”. Middle East Policy, 5, 4:131-146.).

Em 28 de fevereiro de 1976, dia da retirada espanhola do Saara Ocidental nos termos do Acordo de Madri, a Frente Polisario proclama a independência da República Árabe Saaraui Democrática (RASD). A nova república já nasce em guerra com o Marrocos e a Mauritânia, buscando repelir a invasão em seu território (Miguel, 1995MIGUEL, Carlos Ruiz. (1995), El Sahara Occidental y España: Historia, Política y Derecho. Analisis Crítico de La Política Exterior Española. Madri, Dykinson., p. 277). Milhares de pessoas abandonam suas casas e fogem para o deserto; bombardeios da força aérea marroquina os obrigam a atravessar a fronteira com a Argélia (Sántha et. al., 2010SÁNTHA, Hanga; HARTMANN, Ylva Lennartsson & KLAMBERG, Mark. (2010), “Crimes Against Humanity in Western Sahara: The Case Against Morocco”. Juridisk Publikation. 2, 3:175-199. Disponível em http://juridiskpublikation.se/wp-content/uploads/2014/10/22010_Hanga-S%C3%A1ntha-Ylva-Lennartsson-Hartmann-och-Mark-Klamberg.pdf, acessado em 12/01/2021.
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, p. 179). Tais fatos são condenados pelo Conselho de Segurança da ONU que, contudo, não toma medidas efetivas a respeito, devido à ação dos Estados Unidos e da França (Mundy, 2006MUNDY, Jacob. (2006), “Neutrality or Complicity? The United States and the 1975 Moroccan Takeover of Spanish Sahara”. The Journal of North African Studies, 11, 3:275-306.). Para Stephen Zunes (1998)ZUNES, Stephen. (1998) “The United States and the Western Sahara Peace Process”. Middle East Policy, 5, 4:131-146., a identificação da Frente Polisario à esquerda política foi determinante neste aspecto, e teria levado o Secretário de Estado norte-americano Henry Kissinger a declarar que não queria outra Angola no flanco leste do oceano Atlântico.

Mesmo combatendo Marrocos e Mauritânia, em 1979 a Frente Polisario obtém vitórias que forçam a retirada da Mauritânia do conflito (Santayana, 1987SANTAYANA, Mauro. (1987), Dossiê da Guerra do Saara. Rio de Janeiro, Paz e Terra., p.70). Ante a impossibilidade de obter uma vitória definitiva sobre as tropas da Frente Polisario, o Marrocos constrói um muro de 2200 quilômetros de extensão dividindo o território do Saara Ocidental, mantendo as minas de fosfato e as cidades do litoral sob seu controle e isolando a população saaraui no deserto. Utilizando-se de expertise francesa e norte-americana, o muro é flanqueado por campos minados, tem cercas de arame farpado e casamatas de concreto e aço a cada cinco quilômetros, guarnecido por um efetivo de 150 mil soldados (Sántha et. al., 2010SÁNTHA, Hanga; HARTMANN, Ylva Lennartsson & KLAMBERG, Mark. (2010), “Crimes Against Humanity in Western Sahara: The Case Against Morocco”. Juridisk Publikation. 2, 3:175-199. Disponível em http://juridiskpublikation.se/wp-content/uploads/2014/10/22010_Hanga-S%C3%A1ntha-Ylva-Lennartsson-Hartmann-och-Mark-Klamberg.pdf, acessado em 12/01/2021.
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, p. 175).

Em 1984 a República Árabe Saaraui Democrática ingressa na então Organização para Unidade Africana (OUA), mesmo após tentativas de obstrução por parte do Marrocos. O fato propicia uma mediação internacional do conflito, que resulta em solicitação à ONU para intervir no território (Miyares, 2013MIYARES, Águeda Mera. (2013), El Sáhara Occidental: ¿Un conflicto olvidado? Disponível em https://www.idhc.org/arxius/recerca/SaharaOccidental_cast.pdf, acessado em 12/01/2021.
https://www.idhc.org/arxius/recerca/Saha...
). Após vários anos de esforços em prol de uma solução diplomática ao conflito, a Resolução 658/1990 do Conselho de Segurança da ONU instituiu a Missão das Nações Unidas para o Referendo do Saara Ocidental (MINURSO), com o objetivo de estabelecer um plano de paz que incluísse o cessar-fogo e um referendo para consultar o povo do Saara Ocidental sobre sua independência (Organização das Nações Unidas, 1990ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. (1990), “Resolution 658”. Disponível em https://undocs.org/es/S/RES/658%20(1990), acessado em 12/01/2021.
https://undocs.org/es/S/RES/658%20(1990)...
). A MINURSO obteve o cessar-fogo entre as partes, mas não conseguiu efetivar um plano de paz que promovesse a autonomia da região e o referendo sobre independência, cuja realização é obstada desde 1991 (Organização das Nações Unidas, 1991ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. (1991), “The Situation Concerning Western Sahara”. Disponível em https://www.un.org/ga/search/view_doc.asp?symbol=S/RES/690(1991), acessado em 12/01/2021.
https://www.un.org/ga/search/view_doc.as...
).

Assim, nas últimas décadas, a atuação da ONU serviu para garantir ao Marrocos a continuidade de sua política de ocupação militar, colonização e, sobretudo, exploração econômica do território do Saara Ocidental, perpetuando uma crise humanitária de grandes proporções, como será demonstrado no decorrer do artigo.

O estancamento e a manutenção do Marrocos no Saara Ocidental ocupado

Embora o Marrocos exerça poder de fato na maior parte do território do Saara Ocidental, sua situação jurídica em relação ao território ocupado é precária. O documento que teria transferido o mandato internacional ao país foi considerado inválido pela ONU. Assim, nos acordos internacionais que celebra, sua representatividade em relação aos saaraui é contestada, e sua presença na área ocupada só é tolerada como mal necessário ao processo de paz que a MINURSO visa implementar há décadas.

O Acordo de Madri foi declarado ilegal pela ONU no parecer do Subsecretário para Assuntos Jurídicos Hans Corell, encomendado pelo Conselho de Segurança, este declara textualmente que:

[...] o Acordo de Madrid não transferiu soberania sobre o território, nem conferiu a nenhum dos signatários o status de poder administrador, um status que nem mesmo a Espanha poderia ter transferido unilateralmente. A transferência da autoridade administrativa sobre o território para o Marrocos e a Mauritânia em 1975 não afetou o status internacional do Saara Ocidental como Território Não Autônomo. (Organização das Nações Unidas, 2002aORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. (2002a), “Letter dated 29 January 2002 from the Under-Secretary-General for Legal Affairs, the Legal Counsel, addressed to the President of the Security Council”. Disponível em http://www.havc.se/res/SelectedMaterial/20020129legalopinionwesternsahara.pdf, acessado em 12/01/2021.
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)1 1 Tradução dos autores.

Assim, desde 1976, o Saara Ocidental permanece na lista dos territórios sob tutela da ONU. Como é a agência que qualifica estes territórios, nos termos da Carta da ONU, a Espanha não possuía titularidade para transferir um território sob sua tutela, sem mencionar a ilegalidade da assinatura sob coação, na constância do cerco marroquino às tropas espanholas no Saara Ocidental (Wrange, 2019WRANGE, Pal. (2019), “Self-Determination, Occupation and The Authority to Exploit Natural Resources: Trajectories from four European Judgements on Western Sahara”. Israel Law Review, 52, 1:3-29. Disponível em https://www.cambridge.org/core/journals/israel-law-review/article/selfdetermination-occupation-and-the-authority-to-exploit-natural-resources-trajectories-from-four-european-judgments-on-western-sahara/25DB600AF2F5E86B30EFFB88F57CF69F, acessado em 12/01/2021.
https://www.cambridge.org/core/journals/...
, p. 8). O acordo também viola o artigo 73 da Carta da ONU, ao depreender que a Espanha é responsável pelo bem-estar e o desenvolvimento do povo do Saara Ocidental. Hans Haugen (2007HAUGEN, Hans Morten. (2007), “The Right to Self-Determination and Natural Resources: The case of Western Sahara”. Lead – Law, Environment and Development Journal, 3, 1:70-82. Disponível em http://www.lead-journal.org/content/07070.pdf, acessado em 11/01/2021.
http://www.lead-journal.org/content/0707...
, pp. 71-76) observa que, na Carta da ONU, o direito à autodeterminação encontra-se no mesmo patamar que os paradigmas dos direitos humanos e da segurança coletiva. Neste sentido, Tatyana Friedrich (2004FRIEDRICH, Tatyana Scheila. (2004), As normas imperativas de direito internacional público jus cogens. Belo Horizonte, Fórum., p. 35) constata que o artigo 53 da Convenção de Viena, sobre direito dos tratados, estabelece a nulidade daqueles que venham a contrariar jus cogens, e classifica o direito à autodeterminação dos povos nesta categoria. Por fim, Hildebrando Accioly et. al. (2009ACCIOLY, Hildebrando; SILVA, Geraldo Eulálio do Nascimento & CASELLA, Paulo Borba. (2009), Manual de direito internacional público. 17ª edição, São Paulo, Saraiva., p. 234) classificam a presença do Marrocos no Saara Ocidental como “um ilícito internacional”.

Nas últimas quatro décadas, quatro ciclos de negociações entre as partes falharam. A partir de 2011, criou-se um impasse, com a recusa do Marrocos a aceitar o referendo sobre a independência do Saara Ocidental (Human Rights Watch, 2019HUMAN RIGHTS WATCH. (2019), “Morocco/Western Sahara – Events of 2018”. Disponível em https://www.hrw.org/world-report/2019/country-chapters/morocco/western-sahara, acessado em 11/01/2021.
https://www.hrw.org/world-report/2019/co...
). Na última década, a MINURSO tem se limitado a monitorar o cessar-fogo entre as partes, desarmar campos minados no território e exortar as partes à retomada das negociações em prol da independência (Organização das Nações Unidas, 2020ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. (2020), “United Nations Missions for the Referendum in Wester Sahara (MINURSO)”. Disponível em https://minurso.unmissions.org/, acessado em 12/01/2021.
https://minurso.unmissions.org/...
).

Tal situação vem causando repetidas derrotas diplomáticas e judiciais ao Marrocos. Muito embora o lobby marroquino e seus esforços para cultivar a imagem do país no exterior sejam uma realidade (Kalpakian, 2006KALPAKIAN, Jack. (2006), “Managing Morocco’s Image in United States Domestic Politics”. The Journal of North African Studies, 11, 1:56-69.), em 2004 os Estados Unidos denunciaram seu Acordo de Livre Comércio com o país, por entender como ilícitas suas atividades econômicas e comerciais na área ocupada. Da mesma forma, a União Europeia anulou seu Acordo de Livre Comércio com o Marrocos, enquanto a Alta Corte do Reino Unido excluiu de seu Acordo de Pesca com o país produtos pescados no litoral do Saara Ocidental (Wrange, 2019WRANGE, Pal. (2019), “Self-Determination, Occupation and The Authority to Exploit Natural Resources: Trajectories from four European Judgements on Western Sahara”. Israel Law Review, 52, 1:3-29. Disponível em https://www.cambridge.org/core/journals/israel-law-review/article/selfdetermination-occupation-and-the-authority-to-exploit-natural-resources-trajectories-from-four-european-judgments-on-western-sahara/25DB600AF2F5E86B30EFFB88F57CF69F, acessado em 12/01/2021.
https://www.cambridge.org/core/journals/...
, pp. 4, 9 e 25).

Analisando os fundamentos jurídicos dessas decisões, Wrange (2019WRANGE, Pal. (2019), “Self-Determination, Occupation and The Authority to Exploit Natural Resources: Trajectories from four European Judgements on Western Sahara”. Israel Law Review, 52, 1:3-29. Disponível em https://www.cambridge.org/core/journals/israel-law-review/article/selfdetermination-occupation-and-the-authority-to-exploit-natural-resources-trajectories-from-four-european-judgments-on-western-sahara/25DB600AF2F5E86B30EFFB88F57CF69F, acessado em 12/01/2021.
https://www.cambridge.org/core/journals/...
, pp. 2, 3 e 26) afirma que o direito à autodeterminação tem sido a tônica dos argumentos jurisprudenciais; em sua opinião, contudo, já que o Marrocos não possui mandato da ONU sob a região, seria mais correto analisar suas obrigações como ocupante ilegal do território, e não como poder administrativo local. Juridicamente, a ocupação militar de um Estado sob tutela configura uma forma anômala de exercício de autoridade estatal.

Embate similar se verifica no plano do continente africano, tendo em vista que a República Árabe Saaraui Democrática foi aceita em 1984 no quadro de estados-membros da então Organização para a Unidade Africana, ensejando a retirada unilateral do Reino do Marrocos do bloco. Somente em 2017 o Reino retornou à já então União Africana, que manteve o reconhecimento da RASD, opondo países austrais do continente – como Namíbia, África do Sul, Zimbábue – e do norte, como a Argélia (pró RASD), ao Marrocos. Por sua vez, o Marrocos tem empreendido esforços, via articulação político-diplomática, por manifestações anulatórias do reconhecimento internacional alcançado pela RASD ao longo do tempo (Ribeiro, 2017RIBEIRO, Clarissa Correia Neto. (2017). “Marrocos e União Africana: entre integração e desintegração regional”. Observatório de Regionalismo, 27 mar. Disponível em http://observatorio.repri.org/2017/03/27/marrocos-e-uniao-africana-entre-integracao-e-desintegracao-regional/, acessado em 12/01/2021.
http://observatorio.repri.org/2017/03/27...
).

Violações aos direitos humanos cometidos pelo Marrocos no Saara Ocidental ocupado

Além do vício de origem em sua presença no Saara Ocidental, o papel do Marrocos também é contestado pela comunidade internacional devido a graves e contínuas violações aos direitos humanos. A invasão implicou o deslocamento forçado de milhares de saarauis, que deixaram de suas casas e formam um dos mais antigos contingentes refugiados da África. Além disso, aqueles que permaneceram no território ocupado sofrem com a discriminação social e a marginalização econômica imposta pelo poder ocupante, mantido à custa do regime repressivo.

As violações começaram logo no início da invasão, quando a força aérea marroquina bombardeou a população civil saaraui em fuga com artefatos contendo napalm e fósforo branco. Na segunda metade dos anos 1970, as atividades militares incluíam, ainda, o massacre de comunidades inteiras, o bloqueio do acesso aos refugiados a víveres e o envenenamento de poços no deserto, resultando em uma política de extermínio do povo saaraui (Miguel, 1995MIGUEL, Carlos Ruiz. (1995), El Sahara Occidental y España: Historia, Política y Derecho. Analisis Crítico de La Política Exterior Española. Madri, Dykinson., pp. 249-250).

Assim, a população saaraui encontra-se cindida entre aqueles que estão há décadas em campos de refugiados e os que permaneceram no território ocupado pelos marroquinos, especialmente nas cidades litorâneas. Estima-se que 200 mil pessoas vivam há mais de quarenta anos em um complexo de cinco campos de refugiados localizados perto da cidade de Tindouf, na Argélia, em uma das regiões mais áridas do deserto do Saara (Santayana, 1987SANTAYANA, Mauro. (1987), Dossiê da Guerra do Saara. Rio de Janeiro, Paz e Terra.).

Historicamente, a população que permaneceu no território ocupado tem sido alvo de contínuas violações de direitos humanos: tortura, prisões arbitrárias, perseguição política com restrição de mobilidade, associação e expressão, e desaparecimentos (Sántha et. al., 2010SÁNTHA, Hanga; HARTMANN, Ylva Lennartsson & KLAMBERG, Mark. (2010), “Crimes Against Humanity in Western Sahara: The Case Against Morocco”. Juridisk Publikation. 2, 3:175-199. Disponível em http://juridiskpublikation.se/wp-content/uploads/2014/10/22010_Hanga-S%C3%A1ntha-Ylva-Lennartsson-Hartmann-och-Mark-Klamberg.pdf, acessado em 12/01/2021.
http://juridiskpublikation.se/wp-content...
, pp. 183-186). Tais violações se intensificaram após os protestos do campo de Gdeim Izik, em 2010, pouco depois do malogro do quarto ciclo de negociações conduzido pela ONU (Paone, 2010PAONE, Mariangela. “Human Rights Watch confirma la cifra de muertos reconocida por Marruecos”. (2010), El País, 19 nov. Disponível em https://elpais.com/internacional/2010/11/19/actualidad/1290121216_850215.html, acessado em 11/01/2021.
https://elpais.com/internacional/2010/11...
).

Segundo relatórios produzidos pela Human Rights Watch, a tortura é utilizada contra saarauis pelo Marrocos sobretudo no curso de julgamentos militares, após os protestos de Gdeim Izik, como forma de obter confissões. Segundo relatos das vítimas, tais atos incluíam espancamentos, suspensão das vítimas pelos pés ou punhos, estupro e outras formas de violação sexual (Human Rights Watch, 2017HUMAN RIGHTS WATCH. (2017), “Morocco/Western Sahara: Torture Allegations Cast Shadow Over Trial”, 17 jul. Disponível em https://www.hrw.org/news/2017/07/17/morocco/western-sahara-torture-allegations-cast-shadow-over-trial, acessado em 11/01/2021.
https://www.hrw.org/news/2017/07/17/moro...
). Além da tortura, foram denunciadas prisões arbitrárias, repressão violenta de manifestações pelas forças de segurança e desaparecimentos de ativistas pró-independência (Anistia Internacional, 2019ANISTIA INTERNACIONAL. (2019), Morocco and Western Sahara. Disponível em https://www.amnesty.org/en/countries/middle-east-and-north-africa/morocco-and-western-sahara/morocco-and-western-sahara/, acessado em 12/01/2021.
https://www.amnesty.org/en/countries/mid...
).

Analisando o quadro de violações aos direitos humanos cometidas pelo Marrocos contra saarauis, verifica-se que todos os elementos constitutivos estão presentes no Estatuto do Tribunal Penal Internacional para a configuração da prática de crimes contra a humanidade. Contudo, as denúncias à Corte não prosperam por pressão contrária da França, que possui poder de veto no Conselho de Segurança, e pelo fato da ONU não reconhecer o Saara Ocidental como Estado, o que impede seus representantes de apresentarem denúncias diretas ao Tribunal (Sántha et. al., 2010SÁNTHA, Hanga; HARTMANN, Ylva Lennartsson & KLAMBERG, Mark. (2010), “Crimes Against Humanity in Western Sahara: The Case Against Morocco”. Juridisk Publikation. 2, 3:175-199. Disponível em http://juridiskpublikation.se/wp-content/uploads/2014/10/22010_Hanga-S%C3%A1ntha-Ylva-Lennartsson-Hartmann-och-Mark-Klamberg.pdf, acessado em 12/01/2021.
http://juridiskpublikation.se/wp-content...
, pp. 181-183).

A exploração econômica do Saara Ocidental ocupado pelo Marrocos

A economia do Saara Ocidental se baseia na extração de fosfato e na pesca em sua plataforma continental. Fosfatos são sais de fósforo utilizados como fertilizantes na agricultura. Deste mineral, 85% se originam em sedimentos marinhos; encontram-se nos Estados Unidos, no Marrocos, no Saara Ocidental e no Oriente Médio (Souza e Fonseca, s/d).

A associação entre Marrocos e Espanha firmada no Acordo de Madri permitiu ao Marrocos tornar-se o maior exportador mundial de fosfato, explorando pesadamente as reservas do Saara Ocidental (Haugen, 2007HAUGEN, Hans Morten. (2007), “The Right to Self-Determination and Natural Resources: The case of Western Sahara”. Lead – Law, Environment and Development Journal, 3, 1:70-82. Disponível em http://www.lead-journal.org/content/07070.pdf, acessado em 11/01/2021.
http://www.lead-journal.org/content/0707...
, p. 75). Da mesma forma, o peixe da costa do Saara representa 40% de toda a produção pesqueira do Marrocos, que ainda permite a atuação de mais de cem grandes barcos de pesca espanhóis na região (Haugen, 2007HAUGEN, Hans Morten. (2007), “The Right to Self-Determination and Natural Resources: The case of Western Sahara”. Lead – Law, Environment and Development Journal, 3, 1:70-82. Disponível em http://www.lead-journal.org/content/07070.pdf, acessado em 11/01/2021.
http://www.lead-journal.org/content/0707...
, p. 74).

O Marrocos explora o fosfato saaraui na mina de Bou-Cra, embarcando o minério no porto de El-Aaiun, por meio de uma subsidiária de sua companhia estatal, a Officine Chérrifiene des Phosphates (OCP). De acordo com o relatório “P for Plunder”, da Western Sahara Resources Watch (WSRW), a mina de Bou-Cra exportou 1 milhão de toneladas de fosfato em 2019, com uma receita estimada de 200 milhões de dólares (considerado o preço internacional da commodity). Esse lucro foi revertido para o Marrocos, dono da controladora OCP (Western Sahara Resources Watch, 2020WESTERN SAHARA RESOURCES WATCH. (2020), “P for Plunder: Morocco’s exports of phosphates from occupied Western Sahara”. Disponível em https://www.wsrw.org/files/dated/2020-02-24/p_for_plunder_2020-web.pdf, acessado em 12/01/2021.
https://www.wsrw.org/files/dated/2020-02...
, p. 4).

Considerando que a autodeterminação implica a possibilidade de utilizar os próprios recursos naturais, a exploração econômica do Saara Ocidental sem consentimento expresso de seu representante – a Frente Polisario – infringe o artigo 73 da Carta da ONU, bem como o artigo 55 da Convenção de Haia, de 1907, sobre direitos dos povos sob ocupação militar (Haugen, 2007HAUGEN, Hans Morten. (2007), “The Right to Self-Determination and Natural Resources: The case of Western Sahara”. Lead – Law, Environment and Development Journal, 3, 1:70-82. Disponível em http://www.lead-journal.org/content/07070.pdf, acessado em 11/01/2021.
http://www.lead-journal.org/content/0707...
, p. 76). Em vista disso, representantes saarauis têm feito campanha para conscientizar países e empresas a não adquirir fosfato proveniente do Saara Ocidental. Tal campanha resultou em uma diminuição de 80% nos embarques de fosfato no porto de El Aaiun desde 2010 (Western Sahara Resources Watch, 2020WESTERN SAHARA RESOURCES WATCH. (2020), “P for Plunder: Morocco’s exports of phosphates from occupied Western Sahara”. Disponível em https://www.wsrw.org/files/dated/2020-02-24/p_for_plunder_2020-web.pdf, acessado em 12/01/2021.
https://www.wsrw.org/files/dated/2020-02...
, p. 5).

Segundo o relatório, Estados Unidos e Canadá receberam seus últimos embarques de fosfato em 2018, e o número de empresas compradoras caiu de quinze, em 2011, para sete, em 2019. Hoje, os embarques são realizados para apenas quatro países: China, Índia e Nova Zelândia, que mantiveram suas importações, e um novo cliente, que chega na contramão da tendência internacional, o Brasil (Western Sahara Resources Watch, 2020WESTERN SAHARA RESOURCES WATCH. (2020), “P for Plunder: Morocco’s exports of phosphates from occupied Western Sahara”. Disponível em https://www.wsrw.org/files/dated/2020-02-24/p_for_plunder_2020-web.pdf, acessado em 12/01/2021.
https://www.wsrw.org/files/dated/2020-02...
, p. 6).

Para Loureiro, Melamed e Figueiredo Neto (2009LOUREIRO, Francisco Eduardo Lapido; MELAMED, Ricardo Gonçalves & FIGUEIREDO NETO, Jackson. (2009), Fertilizantes, agroindústria e sustentabilidade. Rio de Janeiro, CETEM/MCT., p. 6), o aumento na produção de grãos da agricultura brasileira deve-se a uma maior e melhor aplicação de fertilizantes. A relativa pobreza dos solos brasileiros torna o fosfato um gargalo para o agronegócio do país. Tal necessidade pode ter levado à busca de novos mercados exportadores. Segundo a WSRW, aportaram no Brasil em 2019 dois cargueiros com fosfato extraído em território saaraui e carregado em portos ocupados, num total de 70.400 toneladas, estimado em US$ 6 milhões (Western Sahara Resources Watch, 2020WESTERN SAHARA RESOURCES WATCH. (2020), “P for Plunder: Morocco’s exports of phosphates from occupied Western Sahara”. Disponível em https://www.wsrw.org/files/dated/2020-02-24/p_for_plunder_2020-web.pdf, acessado em 12/01/2021.
https://www.wsrw.org/files/dated/2020-02...
, p. 14).

Dessa maneira, o Brasil passaria a figurar no rol dos países que, mesmo com uma posição diplomática historicamente firmada sobre o tema da autodeterminação, acaba por legitimar o espólio dos recursos naturais de um território não-autônomo e sem um poder administrativo em vigor. Para demonstrar o panorama no qual o Brasil construiu sua posição diplomática sobre o conflito, demonstraremos a forma como o país se vincula ao direito à autodeterminação dos povos e como este direito é aplicado pelo Itamaraty, especialmente no tocante ao Saara Ocidental.

A autodeterminação dos povos na Constituição Federal Brasileira

O que os internacionalistas chamam de governança global, sociedade internacional ou ordem universal constitui – tanto no aspecto diplomático como estratégico –, ao mesmo tempo, um conjunto de regras e de cálculos de interesse e um código de valores (Cervo, 2008CERVO, Amado Luiz. (2008), Inserção internacional: formação dos conceitos brasileiros. São Paulo, Saraiva., p. 8). O código de valores que norteia a inserção internacional dos Estados é, geralmente, um constructo histórico. No caso brasileiro, no entanto, desde a ordem constitucional de 1988, esses valores são dispostos como princípios do país perante as relações internacionais, no artigo 4° da Constituição Federal de 1988.

A única inscrição na história constitucional nacional voltada a regular a atuação internacional do Estado brasileiro, o artigo representa um novo paradigma para a compreensão constitucional da matéria (Pannunzio, 2014PANNUNZIO, Eduardo. (2014), Judicialização das relações internacionais: a força do princípio constitucional da prevalência dos direitos humanos. São Paulo, Saraiva., pp. 89-93). Ele define dez princípios e uma diretriz. A imensa maioria dos princípios constantes são constructos históricos provenientes do direito internacional, representando sua confluência e influência no direito constitucional brasileiro no tema (Lafer, 2005LAFER, Celso. (2005), A internacionalização dos direitos humanos: Constituição, racismo e relações internacionais. Barueri, Manole., p. 14; Pannunzio, 2014PANNUNZIO, Eduardo. (2014), Judicialização das relações internacionais: a força do princípio constitucional da prevalência dos direitos humanos. São Paulo, Saraiva., p. 94).

O artigo estabelece como princípios da atuação do Brasil em suas relações internacionais: a independência nacional; a prevalência dos direitos humanos; a autodeterminação dos povos (inciso III); a não-intervenção; a igualdade entre os Estados; a defesa da paz; a solução pacífica dos conflitos; o repúdio ao terrorismo e ao racismo; a cooperação entre os povos; e a concessão de asilo político. A diretriz estabelecida no parágrafo único trata da busca pela integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando a formação de uma comunidade latino-americana de nações (Brasil, 1988BRASIL, República Federativa do. (1988), Constituição da República Federativa de 1988. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm, acessado em 11/01/2021.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/con...
).

Assim, a Constituição de 1988 definiu, entre os princípios norteadores da inserção internacional, o resguardo ao direito à autodeterminação dos povos. A adoção deste princípio demonstra sua relevância e uma tradição em relação aos paradigmas históricos da política externa brasileira (Dallari, 1994DALLARI, Pedro Bohomoletz de Abreu. (1994), Constituição e relações exteriores. São Paulo, Saraiva., p. 163). Ecoa o entendimento de que os povos devem guiar-se por seus próprios meios, sem intervenção ou tutela estrangeira (Silva, 2005SILVA, Alexandre Pereira da. (2005), “Os princípios da autodeterminação dos povos e da não- -intervenção: análise de um caso prático”, in BRANDÃO, José Maurício & ADEODATO, Claudio. Direito ao extremo: coletânea de estudos, Rio de Janeiro, Forense., p. 34).

A inserção do princípio no texto constitucional derivou da manifestação concreta dos governos brasileiros na execução de nossa política exterior, mesmo no tocante à reconstrução da ordem mundial no Pós-Segunda Guerra, com a instituição da Organização das Nações Unidas, que o ostenta como um de seus pilares, inscritos inclusive no bojo da Carta da ONU.2 2 Artigos 1°, parágrafo 2°; 55; 73; e 76 da Carta da ONU.

A política externa brasileira e a autodeterminação dos povos

Ao longo do tempo, a diplomacia brasileira adquiriu extrema respeitabilidade no cenário internacional pela capacidade de conjugar valores nacionais ao que a sociedade internacional produz, tanto no aspecto multilateral quanto bilateral. Sobre a presença do direito à autodeterminação na prática diplomática nacional, podemos verificar que desde a gênese do ideário, com a Resolução 1514 (XV) da Assembleia Geral de 1960, o governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961), na chancelaria de Horácio Lafer, manifesta-se favoravelmente à adoção daquela que viria a ser conhecida como a “Declaração de independência dos países e povos coloniais”. A declaração inaugurou o período de legitimação do processo de descolonização ocorrido. A partir disso, a autodeterminação se tornou tema dominante daquela Assembleia Geral, e tradicional para a nossa diplomacia, constituindo-se como pilar retórico do Itamaraty (Cervo; Bueno, 2010CERVO, Amado Luiz & BUENO, Clodoaldo. (2010), História da política exterior do Brasil. Brasília, UNB., p. 306).

O governo Jânio Quadros, cuja chancelaria ficou a cargo de Afonso Arinos de Melo Franco, evidenciou que “Os princípios da autodeterminação e da não-intervenção seriam o norte das relações do Brasil no contexto hemisférico e mundial” (Cervo e Bueno, 2010CERVO, Amado Luiz & BUENO, Clodoaldo. (2010), História da política exterior do Brasil. Brasília, UNB., p. 315). Na 17ª Assembleia Geral das Nações Unidas (1962), o chanceler afirmou que:

(...) O papel das Nações Unidas no processo histórico de liquidação do colonialismo decorre da letra e do espírito da Carta [das Nações Unidas]. O Princípio de Autodeterminação dos Povos é um dos alicerces de todo o edifício. O princípio de que as potências administradoras devem conduzir, como um “compromisso sagrado”, os povos dependentes no caminho do governo próprio, estabelecido no capítulo XI da Carta, foi vigorosamente implementado pelas Resoluções 1514, 1541 e 1654 da Assembleia. Não existe expediente ou artifício que o possa obscurecer. O Brasil, por sua formação étnica e histórica, por sua tradição política e cultural é uma nação profundamente impregnada do sentimento anticolonialista. (Melo Franco, 1962MELO FRANCO, Afonso Arinos de. (1962), “Discurso do Representante do Brasil (Sr. Melo Franco), na XVI Assembleia Geral da ONU, em 20 de setembro de 1962”, in TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Repertório da prática brasileira do direito internacional público (período 1961-1981). 2ª edição, Brasília, FUNAG, 2012.)

No governo João Goulart (1961-1964), cuja chancelaria ficou a cargo, entre outros, de San Tiago Dantas, o Brasil manteve a posição de defesa da autodeterminação em relação, por exemplo, ao processo de independência da República de Angola, mesmo colocando em risco a relação com Portugal (Cervo e Bueno, 2010CERVO, Amado Luiz & BUENO, Clodoaldo. (2010), História da política exterior do Brasil. Brasília, UNB., p. 342).

Na Assembleia Geral de 1963, o chanceler João Augusto de Araújo Castro manifestou-se sobre a posição diplomática brasileira a respeito do princípio da autodeterminação dos povos afirmando que “a luta pela descolonização abrange todos os aspectos da luta secular pela liberdade e pelos direitos humanos. O Brasil é contra toda forma de colonialismo, seja político ou econômico” (Araújo Castro, 1963ARAÚJO CASTRO, João Augusto. (1963), “Discurso do Representante do Brasil (Sr. Araújo Castro) na XVIII Assembleia Geral das Nações Unidas, em 19 de setembro de 1963”, in TRINDADE, Antônio Augusto Cançado, Repertório da Prática Brasileira do Direito Internacional Público (Período 1961-1981), 2ª edição, Brasília, FUNAG, 2012.).

Mesmo durante o regime militar mantiveram-se princípios históricos da diplomacia brasileira, como “a autodeterminação dos povos, a não-intervenção em assuntos internos, a solução pacífica das controvérsias, a rejeição da conquista pelo uso da força, o respeito aos tratados [...]”, entre outros (Cervo e Bueno, 2010CERVO, Amado Luiz & BUENO, Clodoaldo. (2010), História da política exterior do Brasil. Brasília, UNB., pp. 398-399). Em 1972, na visita do chanceler Brasileiro Mário Gibson Barbosa ao Senegal, a declaração emitida entre os Estados mencionava que os ministros de ambos “demonstram a vontade de seus governos pela aplicação da Resolução 1514 (XV), de [...] 1960, sobre a outorga da independência aos países e povos coloniais”, aduzindo que “para assegurar o progresso dos povos, é indispensável efetivar o direito soberano que possuem os Estados de proteger seus recursos naturais e deles dispor livremente, no contexto da autodeterminação” (Ministério das Relações Exteriores, 1972MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. (1972), “Declaração conjunta Brasil/Senegal, 21 de novembro de 1972 (Visita do ministro Mário Gibson Barboza ao Senegal)” in TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Repertório da prática brasileira do direito internacional público (período 1961-1981). 2ª edição, Brasília, FUNAG, 2012., p. 337-338).

Durante o governo Geisel (1974-1979), o chanceler Azeredo da Silveira buscou estreitar laços com os países africanos, estabelecendo embaixadas em vinte dos 37 países do continente (Cervo e Bueno, 2010CERVO, Amado Luiz & BUENO, Clodoaldo. (2010), História da política exterior do Brasil. Brasília, UNB., p. 421). No Senegal, em 1974, reafirmou os valores norteadores da política exterior brasileira para a África, a partir de três parâmetros: cooperação na modalidade Sul-Sul, em proveito do desenvolvimento mútuo; respeito aos princípios da soberania, autodeterminação e independência econômica das sociedades; e repulsa ao colonialismo e à discriminação racial (Cervo e Bueno, 2010CERVO, Amado Luiz & BUENO, Clodoaldo. (2010), História da política exterior do Brasil. Brasília, UNB., p. 422).

Após a redemocratização, o Brasil demonstrou grande empenho em posicionar-se frente a questões como a da independência da Namíbia, do Timor-Leste e, com maior expressão, no caso palestino; o presidente Luís Inácio Lula da Silva (2003-2010) reconheceu a existência internacional daquele estado nas fronteiras de 1967 (Ministério das Relações Exteriores, 2010MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. (2010), “Reconhecimento do Estado Palestino nas fronteiras de 1967. Resenha de Política Exterior do Brasil, 37, 107:354. Disponível em http://www.itamaraty.gov.br/images/ed_biblioteca/resenhas_peb/resenha107_2_2010.pdf, acessado em 11/01/2021.
http://www.itamaraty.gov.br/images/ed_bi...
, p. 354). Assim, está demonstrada a vinculação histórica do Estado brasileiro no que tange à autodeterminação dos povos, perpassando o período da experiência democrática anterior ao regime militar e mesmo após a redemocratização.

A política externa brasileira e o Saara Ocidental

Entre os atos internacionais publicados pelo Itamaraty, são raras as menções ao caso do Saara Ocidental. Embora escassas, elas demonstram o posicionamento da diplomacia brasileira no tema. Por meio de comunicados publicados por ocasião do recebimento ou da realização de visitas oficiais, o governo brasileiro evidencia seu apoio, em primeiro lugar, à autodeterminação do Saara Ocidental e, em seguida, à resolução do conflito via entendimentos sob a égide da ONU.

No comunicado emitido quando da visita do chanceler Ramiro Guerreiro a Moçambique, em 1980, ambas as nações declararam, sobre o Saara Ocidental, que “defendem a aplicação dos princípios da autodeterminação dos povos e da independência nacional proclamados pela Resolução 1514 das Nações Unidas” (Ministério das Relações Exteriores, 1980MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. (1980), “Comunicado conjunto entre República Federativa do Brasil e República Popular de Moçambique”. Disponível em https://concordia.itamaraty.gov.br/detalhamento-acordo/2730, acessado em 11/01/2021.
https://concordia.itamaraty.gov.br/detal...
).

Em comunicado durante visita oficial à Nigéria em 1983, o general João Figueiredo afirmou que a crise no Saara Ocidental era motivo de crescente preocupação, e expressou a convicção de que a solução deveria ser buscada por meios pacíficos. A seguir, o presidente nigeriano relatou os esforços da Organização para a Unidade Africana (OUA) pela resolução pacífica do conflito. Figueiredo respondeu afirmando que seu país “apoiaria qualquer solução pacífica que surgisse destes esforços” (Ministério das Relações Exteriores, 1983MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. (1983), “Comunicado conjunto entre o governo da República Federativa do Brasil e o governo da República Federal da Nigéria”. Disponível em https://concordia.itamaraty.gov.br/detalhamento-acordo/3120, acessado em 11/01/2021.
https://concordia.itamaraty.gov.br/detal...
). Ainda sob a chancelaria de Ramiro Guerreiro, em 1984, durante a visita da ministra dos Negócios Estrangeiros de São Tomé e Príncipe, o comunicado oficial entre as nações registra que ambas as autoridades manifestaram convicção de que “a solução da questão deve se basear no princípio de autodeterminação dos povos, conforme as resoluções pertinentes das Nações Unidas” (Ministério das Relações Exteriores, 1984MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. (1984), “Comunicado conjunto entre o governo da República Federativa do Brasil e o governo da República Democrática de São Tomé e Príncipe”. Disponível em https://concordia.itamaraty.gov.br/detalhamento-acordo/3198, acessado em 11/01/2021.
https://concordia.itamaraty.gov.br/detal...
).

Em 1985, o chanceler Olavo Setúbal, em pronunciamento sobre o conflito na Câmara dos Deputados, afirmou que a questão integra “um processo de descolonização não concluído” e que, “embora o Brasil reconheça a Frente Polisario como representante do povo saaraui”, sempre manifestou posição “favorável ao princípio de autodeterminação e independência a ser implementado de forma pacífica e negociada” (Barreto, 2012BARRETO, Fernando de Mello. (2012), A política externa após a redemocratização. Tomo I – 1985-2002. Brasília, FUNAG., p. 38).

No relatório diplomático anual do Itamaraty de 1987 consta a visita do chanceler da República Árabe Saaraui Democrática, Ali Beida Mahfoud; recebido pelo “Ministro de Estado interino”, ele reiterou “o desejo de seu governo de que o Brasil reconheça a RASD” (Ministério das Relações Exteriores, 1987MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. (1987), Relatório 1987. Disponível em http://www.funag.gov.br/chdd/images/Relatorios/Relat%C3%B3rio%201987.pdf, acessado em 11/01/2021.
http://www.funag.gov.br/chdd/images/Rela...
, p. 36). O relatório do ano seguinte menciona o pedido, afirmando que as posições brasileiras – não reconhecer a RASD, mas sim a Frente Polisario como “representante do povo saaraui”, e o apoio à autodeterminação deste – “foram bem apreciadas pelos países do Magreb” (Ministério das Relações Exteriores, 1988MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. (1988), Relatório 1988. Disponível em http://www.funag.gov.br/chdd/images/Relatorios/Relat%C3%B3rio%201988.pdf, acessado em 11/01/2021.
http://www.funag.gov.br/chdd/images/Rela...
, p. 50).

Além disso, embora não componha o rol de países permanentes no Conselho de Segurança da ONU, o Brasil tem um histórico de votações favoráveis ao entendimento entre as partes envolvidas no conflito. No único registro bibliográfico oficial relativo ao biênio 1998-1999 encontrado, o embaixador Gelson Fonseca Júnior resume a posição brasileira sobre o tema afirmando que, embora “nenhum pronunciamento em sessão formal tenha sido feito pela delegação brasileira sobre a situação no Saara Ocidental em 1998-1999”, esta participou de consultas informais, apoiando os esforços e as recomendações do Secretário-Geral e a realização de um referendo livre, justo e transparente sobre a questão. O embaixador lamenta que “nenhum avanço adicional tenha sido observado” e reconhece que os “repetidos atrasos” no processo de definição dos critérios de habilitação para voto no referendo de autodeterminação “afetam a credibilidade do processo” (Barreto, 2012BARRETO, Fernando de Mello. (2012), A política externa após a redemocratização. Tomo I – 1985-2002. Brasília, FUNAG., p. 451).

No compêndio Resenhas da política exterior do Brasil publicado pelo próprio Itamaraty, existem menções interessantes ao tema, como a nota intitulada “Comunicado dos ministros das Relações Exteriores do Brasil, Celso Amorim, e do Marrocos, Mohamed Benaïssa, ocorrido em 12 de março de 2004”, no qual ambos “reiteraram o apoio às decisões do Conselho de Segurança das Nações Unidas, para alcançar uma solução política definitiva, negociada entre as partes” no que se menciona em relação ao conflito (Ministério das Relações Exteriores, 2004aMINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. (2004a), “Comunicado conjunto dos ministros das Relações Exteriores do Brasil e do Marrocos”. Resenha de Política Exterior do Brasil, 31, 94:305. Disponível em http://www.itamaraty.gov.br/images/ed_biblioteca/resenhas_peb/Resenha_N94_1Sem_2004.pdf, acessado em 11/01/2021.
http://www.itamaraty.gov.br/images/ed_bi...
, p. 306).

No mesmo ano, por ocasião da visita ao Brasil do rei do Marrocos Mohamed VI, em novembro de 2004, o comunicado com o presidente Luís Inácio Lula da Silva inclui menção ao Saara Ocidental. A publicação registra que “o Presidente Lula reiterou o apoio brasileiro às decisões do Conselho de Segurança da ONU para alcançar uma solução política negociada, por meio do diálogo entre as partes envolvidas na controvérsia” (Ministério das Relações Exteriores, 2004bMINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. (2004b), “Visita ao Brasil do rei do Marrocos, Mohammed VI - Comunicado conjunto”. Resenha de Política Exterior do Brasil, 31, 95:458. Disponível em http://www.itamaraty.gov.br/images/ed_biblioteca/resenhas_peb/Resenha_N95_2Sem_2004.pdf, acessado em 11/01/2021.
http://www.itamaraty.gov.br/images/ed_bi...
, p. 460).

No ano de 2006, em nova reunião bilateral em Brasília, no “Comunicado da visita do Ministro dos Negócios Estrangeiros e da Cooperação do Marrocos, Mohamed Benaïssa”, o reino marroquino, em ofensiva, direciona pontualmente a declaração para a “questão do Saara” – e não do “Saara Ocidental” – e expõe sua intenção de edificar o “Magreb Árabe Unido”, intuito original do ISTIQLAL. Posteriormente, o Brasil emite opinião oficial alinhada à legalidade internacional, reafirmando o “apoio aos esforços do Secretário-Geral das Nações Unidas e seu enviado pessoal para superar o impasse [...] e “avançar rumo a uma solução política mutuamente aceitável para a questão” (Ministério das Relações Exteriores, 2006MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. (2006), “Comunicado conjunto da visita oficial ao Brasil do ministro dos Negócios Estrangeiros e da Cooperação do Marrocos, Mohamed Benaïssa”. Resenha de Política Exterior do Brasil, 33, 98:230. Disponível em http://www.itamaraty.gov.br/images/ed_biblioteca/resenhas_peb/Resenha_N98_1Sem_2006.pdf, acessado em 11/01/2021.
http://www.itamaraty.gov.br/images/ed_bi...
, p. 232-233).

Em nova visita ao Brasil, em 2007, os mesmos ministros emitiram outro comunicado. Neste, consta que o reino apresentou ao governo brasileiro a “proposta marroquina para a solução pacífica da questão do Saara Ocidental”. O plano tinha como intento a submissão do Saara Ocidental como região autônoma do Marrocos. Posteriormente submetido ao Conselho de Segurança da ONU, foi rechaçado de forma contundente pela Frente Polisario e pela República Árabe Saaraui Democrática (Jensen, 2012JENSEN, Erik. (2012), Western Sahara: Anatamy of a Stalemate? 2ª edição. Londres, Lynne Rienner.). A nota conjunta dá a entender que a visita teve como fim exclusivo a apresentação da “proposta”. O chanceler Celso Amorim demonstrou novamente o apreço brasileiro à solução baseada no princípio da autodeterminação e nos mecanismos da ONU implicados na contenda, conforme se vê:

O Ministro Celso Amorim recebeu hoje, 14 de março, o Ministro das Relações Exteriores do Marrocos, Mohamed Benaïssa, que realiza visita a países sul-americanos, na qualidade de enviado do Rei Mohammed VI, para apresentar as linhas gerais da proposta marroquina para solução definitiva para a questão do Saara Ocidental. O Ministro Celso Amorim reiterou a posição brasileira em favor de solução pacífica e duradoura para a questão, baseada no princípio da autodeterminação e nas resoluções pertinentes das Nações Unidas. Transmitiu ao Ministro Benaïssa sua esperança de que o diálogo e a cooperação entre as partes permitam superar diferenças e alcançar acordo político mutuamente satisfatório. (Ministério das Relações Exteriores, 2007MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. (2007), “Visita ao Brasil do ministro das Relações Exteriores do Marrocos, Mohammed Benaïssa”. Resenha de Política Exterior do Brasil, 34, 100:263. Disponível em http://www.itamaraty.gov.br/images/ed_biblioteca/resenhas_peb/Resenha_N100_1Sem_2007.pdf, acessado em 11/01/2021.
http://www.itamaraty.gov.br/images/ed_bi...
, p. 263)

Após a divulgação da nota, ocorreu inclusive o cancelamento de uma viagem oficial que o presidente Lula faria ao Marrocos em 2007. Oficialmente, o cancelamento abrupto teria partido de Mohammed VI, alegando “questões pessoais e urgentes”. A imprensa questionou aquilo que, “segundo fontes da área diplomática, foi um comunicado genérico e pouco esclarecedor” (Oliveira, 2007OLIVEIRA, Eliane. “Lula cancela viagem ao Marrocos”. (2007), O Globo, 30 mai. Disponível em https://oglobo.globo.com/economia/lula-cancela-viagem-marrocos-4185625, acessado em 12/01/2021.
https://oglobo.globo.com/economia/lula-c...
), e afirmou que o cancelamento se devera à não efetivação de um apoio claro à proposta marroquina de resolução unilateral do conflito no Saara Ocidental. O chanceler Celso Amorim contradisse isso em entrevista, afirmando tratar-se de “um assunto importante e delicado. Reconhecemos sua importância para o Marrocos e outros países amigos, em especial a Argélia. É um assunto complexo” (Diário do Grande ABC, 2008, apudEstrada e Ricci, 2013ESTRADA, Rodrigo Duque & RICCI, Carla. (2013), “A política externa brasileira e a questão do Saara Ocidental: a dinâmica da neutralidade e as possibilidades de engajamento”. Revista Perspectiva. 6, 10:43-61. Disponível em https://seer.ufrgs.br/RevistaPerspectiva/issue/viewIssue/2608/157, acessado em 11/01/2021.
https://seer.ufrgs.br/RevistaPerspectiva...
). É importante acrescentar que, desde o início do governo do presidente Lula, o Marrocos mostrou-se simpático ao anseio brasileiro de tornar-se membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas; em que pesem as referidas declarações, continuou apoiando os esforços brasileiros neste sentido (Ministério das Relações Exteriores, 2016MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. (2016), “Comunicado conjunto Brasil-Marrocos – Rabat 2016”. Disponível em https://www.gov.br/mre/pt-br/canais_atendimento/imprensa/notas-a-imprensa/comunicado-conjunto-adotado-por-ocasiao-da-visita-oficial-do-ministro-das-relacoes-exteriores-da-republica-federativa-do-brasil-a-convite-do-ministro-dos-negocios-estrangeiros-e-da-cooperacao-do-reino-do-marrocos-rabat-10-de-marco-de-2016, acessado em 11/01/2021.
https://www.gov.br/mre/pt-br/canais_aten...
). Nos governos da presidente Dilma Rousseff (2011-2016) e de Michel Temer (2016-2018) não ocorreram fatos relevantes sobre a temática.

No governo do atual presidente, Jair Messias Bolsonaro, entretanto, ocorre um aparente giro copernicano no pragmatismo diplomático brasileiro, no que se refere ao contencioso histórico envolvendo o princípio da autodeterminação, em especial no caso do Saara Ocidental. Em junho de 2019, o ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo recebeu, em visita bilateral, o homólogo marroquino Nasser Bourita. Em declaração conjunta, os dois afirmam, sobre a questão do Saara Ocidental, que esta seria “vital para o Marrocos”, e que:

[...] o Brasil dá as boas-vindas e vê com muitos bons olhos a disposição do Marrocos de trabalhar rumo a soluções realistas para a questão do Saara, que é uma questão que já tem décadas e o Brasil tem todo interesse em contribuir, assim como qualquer outro diferendo que exista ao redor do mundo para soluções que vão além simplesmente da retórica e criem realmente novas bases de cooperação em todos os lugares do mundo na medida em que nós possamos contribuir. (Ministério das Relações Exteriores, 2019MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. (2019), “Ministro Ernesto Araújo recebe chanceler do Marrocos”. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=M9_fSBGj28E, acessado em 11/01/2021.
https://www.youtube.com/watch?v=M9_fSBGj...
)

Assim, em sua manifestação, o ministro brasileiro dá alvíssaras à intenção do Marrocos de buscar “soluções realistas” para o conflito.

Existem evidências de que as relações bilaterais brasileiro-marroquinas se baseiam exclusivamente na compra de fosfato. As taxas médias de comércio no fluxo de importação se situam na casa de US$ 1,4 bilhões, sendo o Brasil o terceiro maior parceiro comercial marroquino. Há potencial de prospecção para impulsionar a relação bilateral no fornecimento de produtos em matéria de defesa, já que, segundo o atual embaixador brasileiro em Rabat, o Marrocos “é um país que tem vizinhos complexos, relações complicadas com alguns deles, e devemos fornecer produtos [de defesa]” (Senado Notícias, 2019).

É evidente, ao longo do já exposto sobre o presente caso, que a conduta marroquina de invasão consiste, por si, em ato ilícito internacional, reprovado veementemente pela comunidade diplomática, e que a espoliação dos recursos naturais sem o consentimento do povo saaraui consiste na perpetuação dessa ilicitude. Diante da paralisia das negociações conduzidas pela ONU, as “soluções realistas” a que o condutor atual da diplomacia brasileira se refere por certo se baseiam no plano unilateral de autonomia e submissão proposto ao Saara Ocidental, rejeitado pela Frente Polisario e não chancelado pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas.

Diante do que vimos, é possível afirmar, sobre a postura do ministro Araújo, que há nela uma ponderação positiva das soluções para o conflito que vão “além da retórica” – uma alusão ao princípio da autodeterminação. Isso sugere uma guinada pró-marroquina do Brasil, no que diz respeito ao conflito e aos interesses estratégicos nacionais, contrariando todo o histórico diplomático e os cânones constitucionais que vêm guiando o país em suas relações internacionais.

A diplomacia do fosfato

A espoliação do fosfato saaraui pelo Marrocos já tem repercussões nas relações econômicas a nível mundial. Em 2016, o Tribunal de Justiça da União Europeia excluiu os produtos originários do Saara Ocidental do Tratado de Livre-Comércio UE-Marrocos, proibindo sua comercialização, e declarou que o território saaraui é dissociado de qualquer outro do planeta, inclusive do Marrocos (Tribunal de Justiça da União Europeia, 2016TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA. (2016), “Sentencia del Tribunal de Justicia”. Disponível em http://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?docid=186489&mode=req&pageIndex=1&dir=&occ=first∂=1&text=&doclang=ES&cid=1021060, acessado em 12/01/2021.
http://curia.europa.eu/juris/document/do...
).

No ano de 2017, o cargueiro marshallino NM Cherry Blossom carregou seus porões com 54 mil toneladas de fosfato saaraui e zarpou com destino à Nova Zelândia. Ao fazer escala em Port Elizabeth, na África do Sul – país que reconhece a RASD –, porém, foi apreendido, graças a uma ação judicial proposta pela Frente Polisario com base na ilegalidade da extração. O tribunal supremo da província de Cabo Oriental afirmou que “o fosfato em litígio pertence ao povo saaraui” e que nenhuma empresa marroquina teria o direito de adjudicá-lo ou mesmo vendê-lo (La Vanguardia, 2018). Este foi o primeiro caso judicial com desfecho contundente relativo à exploração de recursos naturais espoliados do Saara Ocidental. Ele atesta a vinculação real entre a situação jurídica do processo de descolonização, o direito de autodeterminação saaraui e a espoliação de recursos naturais por terceiros. O cargueiro ficou apreendido no porto por 370 dias.

Ainda em 2017, o navio singapuriano Ultra Innovation zarpou rumo ao Canadá carregado com fosfato saaraui, mas foi retido no Panamá por causa de alegações de ilegalidade do produto. O tribunal marítimo panamenho o liberou uma semana depois, mediante pagamento de multa. Desde então, nenhum outro cargueiro proveniente do Saara Ocidental cruzou o Canal do Panamá (Western Sahara Resources Watch, 2020WESTERN SAHARA RESOURCES WATCH. (2020), “P for Plunder: Morocco’s exports of phosphates from occupied Western Sahara”. Disponível em https://www.wsrw.org/files/dated/2020-02-24/p_for_plunder_2020-web.pdf, acessado em 12/01/2021.
https://www.wsrw.org/files/dated/2020-02...
, p. 16).

Para o Brasil, a diplomacia marroquina do fosfato sempre foi uma alternativa viável, uma vez que o país possui demanda estratégica pela importação de fertilizantes. Contudo, a demanda estratégica pelo fosfato marroquino tem sido substituída pela recepção de navios provenientes do Saara Ocidental ocupado desde 2019. De acordo com os dados da Western Sahara Resources Watch (2020WESTERN SAHARA RESOURCES WATCH. (2020), “P for Plunder: Morocco’s exports of phosphates from occupied Western Sahara”. Disponível em https://www.wsrw.org/files/dated/2020-02-24/p_for_plunder_2020-web.pdf, acessado em 12/01/2021.
https://www.wsrw.org/files/dated/2020-02...
, p. 24), dois cargueiros – o Orient Tribune, de bandeira cipriota, e o Wulin, de bandeira hong-konguesa – aportaram no Brasil em julho e outubro de 2019, respectivamente em Salvador (Bahia) e Antonina (Paraná) e em Santos (São Paulo). Ambos estavam carregados de fosfato proveniente do território ocupado do Saara Ocidental, totalizando uma carga estimada em US$ 6 milhões.

Os fluxos comerciais de importação de fosfato, que estavam na casa de US$ 1,4 bilhões em 2019, alcançaram a taxa de US$ 2,2 bilhões em 2010 (Senado Notícias, 2019). Soma-se a isso a instalação no Brasil, em 2010, da estatal marroquina OCP, que possui acordos mercantis com a gigante Yara Fertilizantes, e parte nos ativos financeiros da BUNGE Fertilizantes, além de acesso a diversos terminais portuários brasileiros. A empresa possui filiais em Paranaguá (PR), Rio Grande e Itaqui (RS), Rondonópolis (MT) e Aratu (BA), além de dois escritórios em São Paulo. Também prevê a inauguração, em 2020, de armazéns em Goiás, Minas Gerais, Pará e Santa Catarina (Daniel, 2019DANIEL, Isaura. “Marroquina OCP reforça estrutura no Brasil”. (2019), Agência de Notícias Brasil-Árabe, 14 nov. Disponível em https://anba.com.br/marroquina-ocp-reforca-estrutura-no-brasil/, acessado em 12/01/2021.
https://anba.com.br/marroquina-ocp-refor...
; O Globo, 2011; Ribeiro, 2013RIBEIRO, Luci. “CADE aprova compra de fatia da Bunge pela OCP”. (2013), Exame, 27 nov. Disponível em https://exame.com/negocios/cade-aprova-compra-de-fatia-da-bunge-pela-ocp-2/, acessado em 11/01/2021.
https://exame.com/negocios/cade-aprova-c...
).

O projeto da Convenção sobre a Responsabilidade do Estado sobre Atos Ilícitos Internacionais da ONU dispõe que os Estados são juridicamente responsáveis pelos atos ilícitos de outros Estados quando prestam auxílio para o cometimento destes, mesmo que seja por meio de seus órgãos administrativos, e que essa responsabilidade decorra de atos compostos (Organização das Nações Unidas, 2002bORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. (2002b), “Resolution Adopted by the General Assembly”. Disponível em https://www.un.org/en/ga/search/view_doc.asp?symbol=A/RES/56/83, acessado em 12/01/2021.
https://www.un.org/en/ga/search/view_doc...
).3 3 Conforme artigos 1°; 4°; 8° e 16. Assim, o Brasil passa a integrar o rol de Estados que importam e aceitam o desembaraço de recursos naturais espoliados do Saara Ocidental, em contradição com o histórico guia constitucional para suas relações internacionais, com o posicionamento voltado ao direito de autodeterminação dos povos e com a própria posição que assumiu em relação à questão do Saara Ocidental.

Considerações finais

Conforme demonstrado no artigo, a invasão e a posterior ocupação militar do Saara Ocidental por Marrocos configuram ato ilícito internacional. O Acordo de Madri, que pretensamente o legitimou, não é considerado um instrumento jurídico válido para autorizar o domínio do país árabe sobre tal território. A guerra que se seguiu até 1991 e o imenso número de refugiados que surgiu dela fez com que a ONU interviesse diretamente por meio de uma missão de paz, cujo mandato ainda perdura. À ilegalidade da ocupação marroquina somam-se o cometimento de crimes de guerra e de crimes contra a humanidade, concretizados no território e contra o povo do Saara Ocidental.

Do ponto de vista econômico, destaca-se a espoliação de recursos naturais do povo saraaui pelo Marrocos, em especial o fosfato. A exploração do mineral, controlada por empresa estatal marroquina, corrobora a hipótese do cometimento de ato ilícito internacional, já que tal prática, quando realizada em um território em vias de descolonização, deve ser feita com a concordância dos representantes do seu povo e em benefício do território. É o que dispõem o artigo 73 da Carta da ONU e os artigos 54 e 55 do Protocolos I, adicionados às Convenções de Genebra de 1949, em 10 de junho de 1977, pela Conferência Diplomática sobre a Reafirmação e o Desenvolvimento do Direito Internacional Humanitário aplicável aos Conflitos Armados e internalizados pelo Decreto n. 849, de 25 de junho de 1993 (Brasil, 1993BRASIL, República Federativa do. (1993), “Decreto nº 849, de 25 de junho de 1993”. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D0849.htm, acessado em 11/01/2021.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/dec...
). No caso em questão, os recursos são auferidos por empresa do país invasor e o povo dominado permanece expulso do próprio território por um muro que o divide.

Diversas cortes domésticas e internacionais já se manifestaram a respeito da inalienabilidade do direito de autodeterminação do povo saaraui sobre seu território: a Corte Internacional de Justiça, em 1975; o Tribunal de Justiça da União Europeia, em 2016; a Corte Constitucional Sul-africana, em 2017; e até a Alta Corte do Reino Unido. em 2019. Ainda na Europa, Estados e mesmo empresas manifestam-se de forma evidente para restringir sua efetivação, por considerar ilegais os embarques provenientes dos portos do Saara Ocidental invadido e entender que tais práticas são ilegais.

Histórica e constitucionalmente, a República Federativa do Brasil apoiou a autodeterminação do Saara Ocidental, da mesma maneira que defendeu diversos processos ao redor do globo desde a instituição da Resolução 1514 da 15ª Assembleia Geral da ONU, em 1960. A diplomacia brasileira, pragmática e historicamente comprometida com o processo de governança global, e pela qual tantos grandes nomes da história nacional passaram, esquece o legado de apego à legalidade internacional e constitucional ao chancelar, a partir do governo Bolsonaro, a posição marroquina em total confronto com o direito à autodeterminação do Saara Ocidental. Corrobora este fato o recebimento de fosfato saaraui por dois cargueiros provenientes do Saara Ocidental ocupado em 2019.

Em artigo recente amplamente veiculado na imprensa, o ex-presidente e ex-chanceler Fernando Henrique Cardoso, além dos ex-chanceleres Aloysio Nunes Ferreira, Celso Amorim, Celso Lafer, Francisco Rezek e José Serra, entre outros, afirmam a “preocupação com a sistemática violação, pela atual política externa, dos princípios orientadores das relações internacionais do Brasil definidos no artigo 4º da Constituição de 1988”. O texto afirma que a política externa de hoje traz resultados indesejáveis para o Brasil (Cardoso et. al., 2020CARDOSO, Fernando Henrique; FERREIRA, Aloysio Nunes; AMORIM, Celso; REZEK, Francisco; SERRA, José; RICUPERO, Rubens & KALOUT, Hussein. (2020), “A reconstrução da política externa brasileira”. Folha de S. Paulo, 8 mai. Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/05/a-reconstrucao-da-politica-externa-brasileira.shtm, acessado em 11/01/2021.
https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020...
).

Os fatos demonstram a participação consciente do Estado brasileiro na modalidade omissiva em relação à espoliação dos recursos naturais do território invadido do Saara Ocidental. Considerando que o país passou a receber embarques de fosfato do Saara Ocidental justamente quando grandes potências – como os EUA – reduziam a compra do produto, é possível supor, inclusive, a responsabilização internacional do Estado brasileiro, de acordo com o projeto da Convenção sobre a Responsabilidade do Estado sobre Atos Ilícitos Internacionais.

O posicionamento do Itamaraty sobre a questão demonstra viés ideológico, ao abordar políticas que outrora compunham a raison d’etat, erigida solidamente ao longo da história, como meros quocientes da conjuntura governamental e não do processo de inserção internacional do Brasil, ignorando os pressupostos fundamentais do direito e das relações internacionais. Neste sentido, urge que o Brasil retome sua tradição de respeito à autodeterminação, à prevalência dos direitos humanos e à solução pacífica dos conflitos na esfera internacional, proibindo a entrada no território brasileiro do fosfato falsamente chamado de “marroquino”, extraído ilegalmente do Saara Ocidental.

  • 1
    Tradução dos autores.
  • 2
    Artigos 1°, parágrafo 2°; 55; 73; e 76 da Carta da ONU.
  • 3
    Conforme artigos 1°; 4°; 8° e 16.

Referências bibliográficas

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    07 Jul 2020
  • Aceito
    04 Dez 2020
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