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WEBER E O ISLÃ: UMA REVISÃO CRÍTICA

WEBER AND ISLAM: A CRITICAL REVIEW

WEBER ET L’ISLAM: UNE RÉVISION CRITIQUE

Resumos

Objetiva-se com este trabalho apresentar algumas críticas a respeito das esparsas e fragmentárias considerações de Max Weber sobre o Islã. Alguns autores afirmam que a análise weberiana, apesar de fragmentária, possui diversas falhas analíticas e metodológicas. Para tanto, trataremos dos pontos sociologicamente mais criticados, a saber: a descrição da comunidade islâmica, levando em conta a sua forma de organização (cidade), sua estrutura objetiva (tipo de dominação) e seu sistema jurídico (lei sagrada) em contraste com o Ocidente; a caracterização do estrato portador em relação à mensagem do profeta Muhammad; a noção de “santo” aplicada por Weber aos religiosamente virtuosos, tais como o dervixe (ou sufi ) e o sheik ; a caracterização sociológica da religião islâmica.

Sociologia; Religião; Islã; Crítica


This paper aims to present some criticism about Weber’s scattered and fragmentary considerations regarding the Islamic religion. Some authors affirm that the Weberian analysis, despite being fragmented, has several analytical and methodological flaws. To do so, we will present only the sociologically most criticized points, namely: the description of the Islamic community, taking into account its form of organization (city), its objective structure (type of domination) and its legal system (sacred law) in contrast to those of the West; the characterization of the carrier stratum in relation to the prophet Muhammad’s message; the notion of “Holy” applied by Weber to the religiously virtuous, such as the dervish (or Sufi ) and the Sheik ; the sociological characterization of the Islamic religion.

Sociology; Religion; Islam; Criticism


L’objectif de ce travail est de présenter quelques critiques sur les considérations clairsemées et fragmentaires de Max Weber à propos de l’Islam. Certains auteurs affirment que l’analyse Wébérienne, bien que fragmentaire, possède de nombreuses failles analytiques et méthodologiques. Ainsi, nous aborderons les points les plus critiqués sur le plan sociologique, à savoir : la description de la communauté islamique, en tenant compte de sa forme d’organisation (ville), de sa structure objective (type de domination) et de son système juridique (loi sacrée) par opposition à l’Occident ; la caractérisation de la couche porteuse par rapport au message du prophète Mohammed ; la notion de « saint » appliquée par Weber aux religieux vertueux, tels que le derviche (ou soufi ) et le cheikh ;la caractérisation sociologique de la religion islamique.

Sociologie; Religion; Islam; Critique


Weber e o Islã 1 1 No texto usaremos, como padrão, o termo “Islã” justamente porque ele diz respeito à religião como um todo, não especificando a sua dimensão política-militante como alude o termo “islamismo”. Essa é uma diferenciação que se faz nos estudos de contextos específicos dessa religião. : um esboço preliminar

Em meados de 1910, Weber teve o seu interesse pelas religiões2 2 A aproximação weberiana do interesse religioso é sempre perspectivista e “neste prisma, a sociologia weberiana das religiões funda-se na orientação de sentido do agir e possui tanto uma dimensão material quanto simbólica”. Dito de outro modo: Weber não responde o que “é” (do ponto de vista metafísico) a “religião”, mas oferece uma plataforma para a análise das “ações mágico/religiosas” (suas precondições, sentido e efeitos) e seus múltiplos desdobramentos sociais (atores, grupos religiosos, comunidades etc.) e culturais (religiões) ( Sell, 2013a , p. 84). Para uma discussão mais aprofundada do perspectivismo usado por Weber, desde sua origem kantiana até o seu refinamento nietzscheniano, ver Nobre (2004) . não cristãs e pelas civilizações por elas influenciadas bastante intensificado3 3 Após a conclusão dos ensaios sobre A psicofísica do trabalho industrial ( {Zur Psychophysik der industriellen Arbeit – GRAFIA CORRETA}) ( Weber, 2009 ) e o encerramento do debate com H. Karl Fischer e Felix Rachfahl sobre a ética protestante com a sua “Última palavra anticrítica” ( Antikritisches Schulusswort ). . Talvez, de acordo com Schluchter (2011)SCHLUCHTER, W. (2011), Paradoxos da modernidade: cultura e conduta na teoria de Max Weber. São Paulo, Editora Unesp. , o interesse por essas religiões tenha nascido com o Círculo de Eranos, “o círculo de Heidelberg sobre religião em que a interdisciplinaridade era levada às últimas consequências” ( Weber, 1926WEBER, M. (1926), Ein Lebesnbild. Tübingen, J. C. B. Mohr.apudSchluchter, 2011SCHLUCHTER, W. (2011), Paradoxos da modernidade: cultura e conduta na teoria de Max Weber. São Paulo, Editora Unesp. , p. 149). O rol de suas análises comparativas e desenvolvimentistas a respeito das principais religiões ampliou-se, o que desencadeou o seu interesse investigativo pelo Islã. A sua atração pela religião islâmica4 4 O que, segundo Schluchter (2011 , p. 148), certamente “teria incluído não só o Islã árabe e persa, mas também, o turco e o indiano”. dirigiu-se aos seus primórdios e ao seu primeiro desenvolvimento, a saber: o nascimento da religião em Meca e Medina ( Yathrib ), sua era heroica durante o controle dos primeiros califas (623-611), dos Omíadas (661-750) e a sua “idade de ouro”5 5 Vale ressaltar que essa “idade de ouro” também reflete o esfriamento da sua proposta inicial que era centrada numa profecia ético-escatológica (diga-se extramundana) e acabou se transformando em uma profecia político-militar com interesses intramundanos. no período dos Abássidas (750-1258). Esta última reflete a canonização das fontes religiosas e a consolidação de movimentos ortodoxos (sunitas) e heterodoxos (xiitas) ( Schluchter, 2011SCHLUCHTER, W. (2011), Paradoxos da modernidade: cultura e conduta na teoria de Max Weber. São Paulo, Editora Unesp. ).

Ao invés de um estudo sistematizado sobre o Islã, Weber deixou apenas algumas notas e considerações breves sobre o tema. Apesar disso, mesmo não tendo deixado um estudo completo e consistente, sua análise não ficou livre de críticas. Por exemplo, Turner, em Weber and Islam: a critical study , fundamenta sua obra com a ideia de que “Weber não conseguiu aderir aos seus próprios princípios metodológicos” (1974, p. 726 6 No original: “Weber was unable to adhere to his own methodological principles”. Todas as citações de autores estrangeiros foram traduzidas pelos autores deste artigo. ). Sua análise da religião muçulmana não foi baseada nos critérios da Verstehende Soziologie (sociologia compreensiva), o que desencadeou uma análise “inconsistente”, bem diferente da sua investigação sobre o protestantismo ascético. Ademais, existem outras críticas mais específicas, como a análise do “Islã alto” e do “Islã baixo” ( Gellner, 1992GELLNER, E. (1992), Postmodernism, reason and religion. London and New York, Taylor & Francis. ); a análise da cidade islâmica ( Zubaida, 2006ZUBAIDA, S. (2006), “Max Weber’s: the city and the islamic city”. Max Weber Studies, 6 (1): 111-118. ); a relação das bases sacras islâmicas com o desenvolvimento econômico ( Rodinson, 1973RODINSON, M. (1973), Islam y capitalismo. Argentina, Siglo Veintiuno. ); e a “fuga do mundo” da confraria sufi ( Pace, 2005PACE, E. (2005), Sociologia do Islã: fenômenos religiosos e lógicas sociais. Rio de Janeiro, Vozes. ). Assim sendo, na próxima seção iremos aprofundar o que foi sucintamente exposto, além de trazer mais alguns elementos que constituem a caracterização do Islã para Weber e a posição dos críticos em relação à mesma.

A cidade islâmica

O interesse de Weber sobre o Islã e suas condições de surgimento é tipológico. O que lhe interessava era saber a peculiaridade do Ocidente e os elementos que possibilitaram o capitalismo, ou seja, o seu caráter distintivo em relação a outras civilizações. Para não cair numa comparação de tipo monocausal, que prioriza apenas um fator de causalidade durante a investigação, Weber trabalhou com a noção de afinidades eletivas7 7 “[…] de sentidos, em uma relação de atração e influência recíprocas, escolha mútua, convergência ativa e reforço mútuo” ( Löwy, 2011 , p. 139). entre ética religiosa e economia ou política. Porém, essa dupla relação não prioriza somente os elementos teóricos das respectivas teologias8 8 A ciência proposta por Weber enquanto um conhecimento “neutralizado” se distingue da teologia justamente porque a primeira entra na dimensão do “saber”, e a segunda, na dimensão do “ter”. […] a teologia supõe que tais pressupostos pertencem a uma esfera que se situa além dos limites da ciência. Não correspondem, por conseguinte, a um “saber”, no sentido comum da palavra, mas a um “ter” (Weber, 2010). , “mas seus elementos pragmáticos e seus resultados práticos” ( Domingues, 2004DOMINGUES, I. (2004), Epistemologia das Ciências Sociais. Tomo 1: positivismo e hermenêutica, Durkheim e Weber. São Paulo, Editora Loyola. , p. 490). Nesse sentido, esses elementos práticos são refletidos na forma como os homens se organizam entre si e, no caso dos seus estudos comparativos das religiões mundiais, Weber, em The city (1958), fez uma comparação entre as cidades ocidentais (medievais e do norte europeu) e as cidades orientais.

O autor observou, especificamente no caso europeu, que as cidades ocidentais, normalmente dominadas pelo cristianismo, possuíam relações sociais baseadas em um culto comum, numa fé universal que substituiu os laços de parentesco por uma associação confessional de indivíduos crentes. Apesar dessa dependência com o culto comum, a cidade ocidental era uma instituição secular. Os cidadãos estavam submetidos a várias jurisdições diferentes e superpostas, além de direitos territoriais na comunidade em troca do pagamento de impostos. Ademais, as cidades ocidentais também contaram, desde os tempos romanos, com um estamento guerreiro contratado livremente por seus governantes, que garantiam aos primeiros, em troca dos seus serviços, alguns direitos feudais (disposições sobre terras e escravos), direito ao porte de armas e à participação em caçadas, saques etc. Contudo, apesar de tal contrato, o senhor dependia, em alto grau, da benevolência dos membros do seu exército, principalmente em momentos de necessidade. Em certos momentos do desenvolvimento das cidades ocidentais, houve a possibilidade desses grupos armados conseguirem se retirar totalmente da tutela dos governantes para defender seus próprios interesses, usurpar o poder dos governantes locais e formar seu próprio estamento de cavaleiros urbanos. Para Weber (1958WEBER, M. (1958), The city. New York, Free Press. , p. 1209 9 No original: “they were also a fundamental component in the origin of urban, corporate and autonomous communities”. ), “eles também foram um componente fundamental na origem das comunidades urbanas, corporativas e autônomas”.

Por sua vez, as cidades orientais, tal como a árabe descrita por Weber, principalmente no período de Muhammad em Meca e Medina, não possuíam os elementos cruciais para o desenvolvimento de uma racionalidade econômica ou de instituições autônomas, tais como as ocidentais. Em vez de relações contratuais livres, os cidadãos estavam presos a laços tribais “dos clãs hassânidas de Ali e outros clãs nobres, ocupados por camponeses, clientes e beduínos protegidos” (Weber, 1958, p. 8610 10 No original: “of the hassanid clans of Ali and other noble clans, occupied by peasants, clients and protected Bedouins”. ). No que tange ao estrato guerreiro, por contraste ao estrato das cidades ocidentais, eles viviam como cavaleiros dependentes da liderança local, sem qualquer acordo de liberdade. O direito de mando é totalmente apropriado pelo senhor. Todavia, mesmo existindo total poder militar por parte do governante, ele nunca é absoluto. O senhor do regime patrimonial dependia tanto dos seus soldados quanto estes dele. O poder do senhor era equivalente ao sucesso do estrato guerreiro durante suas conquistas provindas do saque. Em caso de derrota, a lealdade militar poderia ser exaurida e se tornar uma ameaça política11 11 “Em grau extremo, este era o destino dos senhores na terra clássica dos exércitos patrimoniais: o Oriente Próximo, que ao mesmo tempo era o lugar clássico do ‘sultanismo’” ( Weber, 2014b , p. 246). caso o senhor não tivesse condições de continuar pagando por seus serviços, já que boa parte dos seus lucros vinha das conquistas e dos tributos coletados.

No contexto árabe, portanto, a cidade “tendia mais a obstruir do que favorecer as perspectivas de desenvolvimento do capitalismo racional” ( Schluchter, 2011SCHLUCHTER, W. (2011), Paradoxos da modernidade: cultura e conduta na teoria de Max Weber. São Paulo, Editora Unesp. , p. 2010). Meca era, segundo Weber (1958WEBER, M. (1958), The city. New York, Free Press. , p. 8712 12 No original: “partially autonomous”. ), “parcialmente autônoma”. Essa parcialidade era oriunda da relação da cidade com a tribo que nunca foi superada:

Em contraste com isso [o cristianismo e a cidade medieval], toda a história dos conflitos internos do califado indica que o Islã nunca superou os laços rurais das associações tribais e clãs árabes, mas continuaram sendo uma religião de um braço conquistador estruturado em termos de tribos e clãs ( Weber, 1958WEBER, M. (1958), The city. New York, Free Press. , p. 10013 13 No original: “In contrast to this [Christianity and the medieval city], the whole history of the caliphate’s internal conflicts indicates that Islam never overcame the rural ties of Arab tribal and clan associations, but continued to be a religion of a conquering arm structured in terms of tribes and clans”. ).

Contra tal definição, Zubaida (2006)ZUBAIDA, S. (2006), “Max Weber’s: the city and the islamic city”. Max Weber Studies, 6 (1): 111-118. pensa ser prudente “ir com mais calma”, justamente porque ao longo da história da religião islâmica, principalmente na sua era “não árabe”, incluindo o Império Otomano (século XIV ao XX), a influência tribal variou muito. Na verdade, para o especialista em Oriente Médio, as tribos árabes:

Estavam em declínio tão cedo quanto o Império Abássida trouxe a aristocracia persa aos corredores do poder e adotou modos persas de cultura. Os piedosos urbanos que desenvolveram e instituíram a lei religiosa islâmica, a Shari’a , eram árabes destribalizados que desaprovavam os caminhos beduínos como Jahiliyya – como a barbárie e a ignorância ( Zubaida, 2006ZUBAIDA, S. (2006), “Max Weber’s: the city and the islamic city”. Max Weber Studies, 6 (1): 111-118. , p. 11414 14 No original: “They were in decline as early as the Abbasid empire brought the Persian aristocracy into the corridors of power and adopted Persian modes of culture. The urban pious who developed and instituted Islamic religious law, the Shari’a , were detribalized Arabs who disapproved of the Bedouin paths like Jahiliyya – such as barbarism and ignorance”. ).

Ainda segundo o autor, a análise weberiana da cidade árabe e sua relação com a tribo não foi fiel à sua metodologia compreensiva. Weber teria analisado a relação das duas através de um modelo “a-histórico”. Diferentemente daquele modelo de Ibn Khaldun, que apresenta a relação das duas por um processo cíclico15 15 Sucessivamente novas dinastias surgem pela conquista tribal da cidade que logo se acomodam pelo conforto da vida urbana, para serem ultrapassadas, posteriormente, por outra dinastia que traz consigo a rigidez do deserto e sua solidariedade tribal ( Khaldun, 1958 ). , o sociólogo alemão, segundo Zubaida, teria subestimado a importância da tribo para a constituição da cidade, apresentando-a como um entrave. Na realidade, “as ‘tribos’ (formações diversas) eram importantes atores políticos, em certos momentos e lugares, e sem importância ou inexistente em outros” (Zubaida, loc. cit 16 16 No original: “the ‘tribes’ (diverse formations) were important political players at certain times and places, and unimportant or non-existent in others”. ).

No que tange à questão da ausência de instituições autônomas na conjuntura muçulmana, declaradas por Weber, mais uma vez Zubaida solicita calma em tal afirmação. Durante a maior parte da sua história, as wakfs 17 17 Conforme o Oxford Islamic Studies Online , as wakfs significam: “Literalmente, ‘confinamento’ ou ‘proibição’, a palavra árabe waq f (pl., Awqāf ) é usada no Islã para significar ‘a posse e preservação de certa propriedade para o benefício confinado de uma certa filantropia com a intenção de proibir qualquer uso ou disposição da propriedade fora dessa finalidade específica’. A definição indica a natureza perpétua da waq f ; em outras palavras, o termo se aplica à propriedade não perecível, cujo benefício pode ser extraído sem consumir a propriedade em si. Portanto, a questão está amplamente relacionada a terrenos e edifícios, embora também exista uma grande quantidade de livros, maquinário agrícola, gado, ações e estoques e dinheiro. Na África do Norte e Ocidental, o waq f é chamado hubs , que significa literalmente ‘confinamento’” (tradução nossa). Disponível em: www.oxfordislamicstudies.com/article/opr/t236/e0844 , último acesso em: 9 abr. 2019. ( awqaf ou waqf ) foram as mais influentes instituições. Fundamentando-se religiosamente por doação, normalmente de um prédio ou lote de terra, as wakfs geravam receitas para sua manutenção. Em alguns casos, elas eram privadas, na medida em que geravam receitas especificamente para algumas famílias, com o intuito de “proteger bens e a propriedade do confisco pelas autoridades” ( Zubaida, 2006ZUBAIDA, S. (2006), “Max Weber’s: the city and the islamic city”. Max Weber Studies, 6 (1): 111-118. , p. 11718 18 No original: “to protect property and property of confiscation by the authorities”. ). Essas instituições geraram toda uma indústria, principalmente de pessoal religioso, preocupada com a administração dessas instituições e fundos.

Consoante com a crítica de Zubaida, Turner (1974)TURNER, B. S. (1974), Weber and Islam: a critical study. London and Boston, Routledge & Kegan Paul. afirma que, em relação ao estrato militar das cidades orientais e sua participação no impedimento do capitalismo racional, especificamente no caso árabe, precisa-se de uma periodização mais exata. Segundo o autor, “Weber não classificou a história islâmica em um período tradicional e estagnado, seguido de um modernismo dinâmico” ( Turner, 1974TURNER, B. S. (1974), Weber and Islam: a critical study. London and Boston, Routledge & Kegan Paul. , p. 12419 19 No original: “Weber did not classify Islamic history in a traditional and stagnant period, followed by a dynamic modernism”. ). De acordo com Turner, existiram três estágios do estrato militar no contexto árabe: um exército de armas árabe, um exército semiprofissional de Khorasan (persas) e um exército semisservil de escravos turcos. Os primeiros, conforme Turner, “apresentaram poucos problemas econômicos para o califa, uma vez que foram facilmente compensados pelo saque e permaneceram, em grande parte, ligados às suas organizações tribais” (Turner, 1974, p. 12620 20 No original: “presented few economic problems for the caliph, since they were easily compensated by the sack and remained largely connected to their tribal organizations”. ).

O segundo exército foi incorporado na medida em que os primeiros começaram a conquistar terras cada vez mais distantes do centro árabe e ficaram cada vez mais indisponíveis. Por fim, o terceiro exército foi composto por povos submetidos durante as conquistas: berberes, armênios e escravos turcos (Janízaros, exército dos sultões otomanos). Esses últimos, os escravos turcos, foram tão importantes quanto os dois primeiros nos estágios do estrato militar. Neste ponto, Turner (2010)TURNER, B. S. (2010), “Revisiting Weber and Islam”. The Brithish Journal of Sociology, 61 (1): 161-166. parece concordar21 21 “As contribuições para essa coleção [ aqui Turner está se referindo à obra Weber & Islam organizada por Schluchter e Huff ] foram extremamente críticas a Weber, mas também houve discordância considerável sobre o valor real da abordagem de Weber. Enquanto a descrição de Weber do Islã como ‘uma religião guerreira’ foi criticada, Toby Huff e Patricia Crone apontaram para a importância social dos exércitos escravos (‘os escravos em cavalos’) e da jihad no período de formação da expansão islâmica”. No original: “The contributions to this collection were overwhelmingly critical of Weber, but there was also considerable disagreement over the actual value of Weber’s approach. While Weber’s description of Islam as ‘a warrior religion’ was criticized, Toby Huff and Patricia Crone pointed to the social importance of slave armies (‘the slaves on horses’) and jihad in the formative period of Islamic expansion” ( Turner, 2010, p , p. 162). com Huff (1999)HUFF, T. E. (1999), “Introduction”, in W. Schluchter & T. E. Huff. (Eds.), Max Weber & Islam. New York, Taylor & Francis. sobre a importância dos escravos na formação do exército, o que não foi muito levado a sério por Weber. Para Huff,

[…] durante a Dinastia Omíada (661-750) esses escravos a cavalo eram mantidos em cidades-guarnição em todo o império e foram proibidos de se envolver em agricultura enquanto extraíam impostos da população local. De qualquer forma, o uso sistemático de soldados escravos parece ter persistido do século IX ao século XIX em todo o coração central do mundo muçulmano. O governo mameluco (1250-1517) era apenas o produto desse sistema, já que seus líderes eram escravos que usurpavam o poder político e assumiram o controle no Egito ( Huff, 1999HUFF, T. E. (1999), “Introduction”, in W. Schluchter & T. E. Huff. (Eds.), Max Weber & Islam. New York, Taylor & Francis. , p. 622 22 No original: “[…] during the Umayyad dynasty (661-750) these slaves on horse back were kept in garrison cities around the empire and were prohibited from engaging in agriculture while they extracted taxes from the local population. In any event, the systematic use of slave soldiers appears to have persisted from the ninth to the nineteenth century throughout the central heartlands of the Muslim world. The Mamluk rulership (1250-1517) was but the product of this system, as its leaders were former slaves who usurped political power and took control in Egypt”. ).

Destaca-se, nesta passagem, que o papel dos escravos, de acordo com Huff, persistiu por aproximadamente dez séculos, mais do que os dois primeiros estratos militares, questão que não foi devidamente aprofundada por Weber. Além disso, mais do que o importante papel dos escravos na formação do estrato militar, Turner (2010)TURNER, B. S. (2010), “Revisiting Weber and Islam”. The Brithish Journal of Sociology, 61 (1): 161-166. ressalta que o desenvolvimento histórico do Islã não se deu somente por essa dimensão militar-coercitiva. Existiu, sim, o desenvolvimento pacífico da religião. Em Bengala, por exemplo, foi demonstrado que o apelo do Islã “foi trabalho de indivíduos carismáticos e resultado da evolução pacífica de um ideal piedoso entre os camponeses, enquanto o surgimento do Islã no Sudeste Asiático foi trabalho de comerciantes e pregadores itinerantes” ( Turner, 2010TURNER, B. S. (2010), “Revisiting Weber and Islam”. The Brithish Journal of Sociology, 61 (1): 161-166. , p. 16223 23 No original: “was the work of charismatic individuals and an outcome of the peaceful evolution of a pious ideal among the peasantry, while the emergence of Islam in South-east Asiawas the work of itinerant traders and preachers”. ). Ou seja, Turner procura demonstrar que as críticas indicam não haver exclusividade da camada guerreira como portadora. Há participação de várias outras camadas em diferentes contextos.

A estrutura de dominação islâmica

Sobre a questão do tipo de estrutura (tipo de dominação), Weber apresenta o Islã, em comparação com o Ocidente, de forma ambígua: ora o reconhece como um regime patrimonial, ora o reconhece como um feudalismo de prebendas. Antes de apresentarmos as críticas, é necessário esclarecer tal ambiguidade. Tanto o patrimonialismo quanto o feudalismo são subdivisões (ou modalidades) da sociologia da dominação weberiana, sendo especificamente do tipo tradicional24 24 Weber afirma que: “dominação, no sentido muito geral de poder, isto é, de possibilidade de impor ao comportamento de terceiros a vontade própria, pode apresentar-se nas formas mais diversas” ( Weber, 2014b , p. 188). A modalidade tradicional, por sua vez, é definida “quando sua legitimidade repousa na crença na santidade de ordens e poderes senhoriais tradicionais” ( Weber, 2014a , p. 148). que pode ocorrer sem a existência de um quadro administrativo (gerontocracia e patriarcalismo). No entanto, “com o surgimento de um quadro administrativo, as formas específicas de dominação tradicional se alteram” ( Sell, 2013bSELL, C. E. (2013b), Sociologia clássica. 5. Ed. Rio de Janeiro, Editora Vozes. , p. 138). No caso do patrimonialismo, a alteração do quadro administrativo representa, em relação ao domínio patriarcal, “o poder doméstico descentralizado mediante a cessão de terras e eventualmente de utensílios a filhos ou outros dependentes da comunidade doméstica” ( Weber, 2014bWEBER, M. (2014b), Economia e sociedade (Vol. 2). Brasília, Editora UnB. , p. 238).

Aqui, toda a dominação provém do pleno direito pessoal apropriado pelo senhor, separada dos poderes privados. Ao surgir um quadro administrativo (também militar) puramente pessoal do senhor, a dominação tradicional tende ao patrimonialismo. Em casos extremos, a dominação patrimonial na esfera da arbitrariedade e desvinculada da tradição se torna sultanista.

O feudalismo25 25 Existe a discussão feita por Sell (2016) em “As duas teorias do patrimonialismo em Max Weber: do modelo doméstico ao modelo institucional” que também contempla a mudança do autor sobre a noção de feudalismo nas diferentes fases de Economia e Sociedade. Porém, não temos a pretensão de apresentar aqui tal percurso. , por seu turno, é um caso-limite “da estrutura patrimonial, no sentido da estereotipagem e fixação das relações entre os senhores e os vassalos” ( Weber, 2014bWEBER, M. (2014b), Economia e sociedade (Vol. 2). Brasília, Editora UnB. , p. 288). Ora sendo usado como sinônimo de Estado estamental26 26 Estritamente no sentido político da divisão de poderes e sua fixação por normas legais. , o feudalismo contrasta com a arbitrariedade e com a baixa estabilidade das posições de poder encontradas no “patrimonialismo puro”. No primeiro, temos a desvinculação dos deveres da comunidade doméstica e o desenvolvimento de relações contratuais livres (direitos e deveres), enquanto, no segundo, temos relações de dependência sem qualquer garantia contratual e confusão entre direitos e deveres. O contraste entre os dois modelos é mais claro no nível ideológico, como bem define Bendix (1986)BENDIX, R. (1986), Max Weber: um perfil intelectual. Brasília, UnB.:

A ideologia do patrimonialismo diferia da do feudalismo em todos estes aspectos. O feudalismo é dominação por uns poucos, que não são peritos na guerra; o patrimonialismo é a dominação por uma só pessoa, que requer funcionários para exercer sua autoridade. O governante patrimonial depende, em alguma medida, da boa vontade de seus súditos (a menos que sua dominação tenha por base a ocupação militar); o feudalismo pode passar sem tal boa vontade. O patrimonialismo apela às massas contra os estamentos privilegiados; seus ideais prevalecentes não são o do heroico guerreiro, mas sim o do “bom rei”, o do “pai do povo”. A proteção do bem-estar dos súditos pelo governante patrimonial é a base na qual sua autoridade se legitima, a seus próprios olhos, assim como aos olhos de seus súditos. O Estado social, do tipo “ welfare state ”, é a imagem do patrimonialismo, em contraste com a imagem feudal de uma confraria livre de guerreiros, presos por um compromisso de lealdade a seu chefe ( Bendix, 1986BENDIX, R. (1986), Max Weber: um perfil intelectual. Brasília, UnB. , p. 285).

Entretanto, em nível institucional, o contraste não é tão simples. Os governantes patrimoniais que concedem direitos territoriais em bases hereditárias ou quando tais direitos são apropriados por uma aristocracia rural têm um aspecto feudal; já os regimes feudais têm um aspecto patrimonial quando o sistema de feudo está combinado com algum grau de administração central. Com frequência, a história apresenta graus de combinação entre esses dois tipos de dominação e poderia nos levar a afirmar que não existe distinção entre o patrimonialismo e o feudalismo. Porém, Weber se propôs a estabelecer as discrepâncias entre as duas configurações típico-ideais. No Ocidente, predominou a tendência ao tradicionalismo descentralizado, por meio de benefícios e relações contratuais entre os governantes e seus vassalos, conhecido também como feudalismo de feudo. A noção de feudo, para Weber (2014aWEBER, M. (2014a), Economia e sociedade (Vol. 1). Brasília, Editora UnB. , p. 168), carrega consigo os seguintes elementos:

[…] a apropriação de poderes de mando e direitos senhoriais; originariamente, com caráter pessoal; originariamente, com caráter puramente pessoal, pela vida do senhor e do vassalo; em virtude do contrato, portanto, como um homem livre; tem um modo de vida especificamente estamental (de cavaleiro); o contrato de feudo não é um “negócio” comum, mas uma confraternização, porém com direitos desiguais, que tem como consequências determinados deveres recíprocos de fidelidade […].

Por contraste, o feudalismo, no sentido oriental, sobretudo o feudalismo de prebenda, fiscalmente condicionado e típico do Oriente Próximo islâmico, caracteriza-se pelos seguintes elementos:

[…] apropriação de prebendas, portanto, de rendas estimadas e concedidas segundo o rendimento, e, além disso; quando a apropriação (em princípio, ainda que nem sempre efetivamente) é puramente pessoal, dependendo do desempenho e prometendo, portanto, eventualmente um ascenso; não se cria primariamente uma relação de fidelidade individual, livre e pessoal, por contrato de confraternização, com a pessoa do senhor, cuja consequência é a concessão de um feudo individual, mas quando se trata primariamente de fins fiscais por parte da associação tributária do senhor […] ( Weber, 2014aWEBER, M. (2014a), Economia e sociedade (Vol. 1). Brasília, Editora UnB. , p. 171).

A grande ambiguidade do Islã analisado por Weber, ora reconhecido como patrimonialismo, ora reconhecido como feudalismo de prebenda, é sintetizada por Bendix (1986BENDIX, R. (1986), Max Weber: um perfil intelectual. Brasília, UnB. , p. 290) da seguinte maneira:

O feudalismo islâmico é um caso de direitos territoriais nas mãos de proprietários de terras que não tinham uma ideologia feudal. O caráter especial do feudalismo islâmico está ligado à sua origem a partir de um exército de mercenários e da instituição da coleta delegada de impostos. Os governantes patrimoniais carentes dos recursos necessários viram-se obrigados a remunerar seus mercenários, atribuindo a eles o pagamento de impostos dos súditos políticos.

Com o tempo, os governantes começaram a empobrecer, e o sistema se tornou arbitrário, uma vez que soldados exploravam a população e raramente repassavam aos governantes qualquer excedente dos impostos coletados. Nessa situação, os governantes viram-se obrigados a desistir dos excedentes tributários e fazer concessões de terras com os funcionários em troca de serviços militares que, em consequência, transformou-os em proprietários de terras e credores hipotecários. Mas, como dito anteriormente, Turner (1974)TURNER, B. S. (1974), Weber and Islam: a critical study. London and Boston, Routledge & Kegan Paul. afirma que nem todos os soldados deram prejuízos aos governantes. Por isso o autor apresentou o estrato militar numa tripla periodização.

A questão do patrimonialismo de Weber, conforme a crítica de Turner, faz muito sentido, porém nela existe um problema cronológico. O Islã analisado por Weber nem sempre foi dominado por um governo patrimonial, mesmo durante a ênfase dada pelo autor ao papel político-militar de Muhammad. O problema cronológico, para Turner (1974, p. 7227 27 No original: “Weber was unable to adhere to his own methodological principles”. ), é que “Weber foi incapaz de aderir aos seus próprios princípios metodológicos”. O sociólogo britânico constrói o seu argumento em dois tempos: antes e depois da morte de Muhammad. Em vida, a posição política de Muhammad era totalmente baseada em princípios tribais; isso quer dizer que naquele período o poder político era raramente concentrado na mão de um homem só. As decisões políticas passavam pelo conselho tribal, formada por um sayyid e shayk . Em casos extremos, na presença de resoluções complexas, as decisões eram analisadas por um árbitro externo ( hakam) . Nesse sentido, “seu poder dentro dessa comunidade tinha limitações definitivas” ( Turner, 1974TURNER, B. S. (1974), Weber and Islam: a critical study. London and Boston, Routledge & Kegan Paul. , p. 8328 28 No original: “[…] his power within that community had definite limitations”. ). Além disso, continua o autor, “apesar de ser um Mensageiro de Deus, Muhammad não era superior a outros chefes de clãs” (Turner, loc. cit .29 29 No original: “despite being a Messenger of God, Muhammad was not superior to other clan chiefs”. ).

Muhammad não nomeou um sucessor para liderar a umma ou alguém que fizesse toda a diplomacia intertribal após sua morte, ocorrida em 632. O início da escolha do sucessor pelo conselho tribal foi baseado nos costumes “pré-islâmicos”, ou seja, em arranjos tribais. Note-se que a decisão não foi baseada nem no Alcorão, nem nos hadith (corpo de leis, lendas e histórias sobre a vida do profeta). A escolha, então, para nomear um novo sayyd foi praticamente realizada pelas famílias dominantes que reivindicaram o quesito hereditário (posteriormente em vigor) como critério decisivo. Entretanto, devido ao costume da poligamia, o processo de definição do sucessor não era simples. Não estava claro, biologicamente, quem tinha de fato parentesco com o profeta. O primeiro khalifa (“sucessor do Mensageiro de Deus”) a suceder o profeta foi o seu sogro Abu Bakr (573-634). Com o passar do tempo30 30 Esse salto temporal foi permeado por inúmeros desentendimentos a respeito de quem e quando iria suceder o profeta Muhammad. Para mais esclarecimentos, ver Turner (1974) . , por volta de 660 d.C., Mu’awiya I (602-680), o primeiro califa da Dinastia Omíada, em Damasco, enfrentou o problema, conforme Turner (1974TURNER, B. S. (1974), Weber and Islam: a critical study. London and Boston, Routledge & Kegan Paul. , p. 8531 31 No original: “religious legitimization of military and secular power”. ), da “legitimação religiosa do poder militar e secular”. Em face do novo problema, a sucessão da liderança passaria do preceito democrático (tribal e carismático) para uma dominação de tipo patrimonial (hereditário). Portanto, é somente aqui e pela primeira vez32 32 A questão que permanece sem resposta é: por que Weber não notou esse processo, se ele chegou a analisar parte da Dinastia Omíada? que o Islã vivencia um regime patrimonial.

Outra crítica feita à análise weberiana partiu do historiador marxista Maxime Rodinson em Islam y capitalismo (1973). Na realidade, Rodinson não descarta totalmente a análise de Weber, porém aponta algumas sutilezas. Para o autor, a questão do patrimonialismo ou feudalismo de prebendas (reconhecido pelo autor como um modo de produção que atinge a esfera econômica e política) apresentado por Weber é equivocada, uma vez que:

O sistema econômico no qual a sociedade muçulmana da Idade Média se baseou variou segundo as épocas e lugares. Pode-se dizer que consistia em diferentes modos de produção coordenados. No campo, encontramos comunidades de vilas exploradas desde o interior por indivíduos ou pelo Estado […] Por outra parte, coexistiram, em proporções variáveis segundo as épocas e regiões, com a propriedade ou usufruto de uma parcela muito limitada para o campesino individual […], os direitos respectivos do campesino cultivador e dos direitos exploratórios também foram muito variados […], é evidente que não se pode classificar este sistema simplesmente como “asiático” e tampouco como “feudal” ( Rodinson, 1973RODINSON, M. (1973), Islam y capitalismo. Argentina, Siglo Veintiuno. , p. 83-8433 33 No original: “El sistema económico en el que la sociedad musulmana de la Edad Media se basó varió según las épocas y lugares. Se puede decir que consistía en diferentes modos de producción coordinados. En el campo, encontramos comunidades de villas explotadas desde el interior por individuos o por el Estado […] Por otra parte, coexistieron, en proporciones variables según las épocas y regiones, con la propiedad o usufructo de una parcela muy limitada para el campesino individual […], los derechos respectivos del campesino cultivador y de los derechos exploratorios también fueron muy variados […], es evidente que no se puede clasificar este sistema simplemente como ‘asiático’ y tan poco como ‘feudal’”. ).

Todos esses elementos, em síntese, elencados por Rodinson, teriam pouco efeito para serem considerados como modos de produção ou formas de dominação.

O sistema jurídico do Islã

Por fim, resta apresentar o papel do direito na organização árabe analisada por Weber. Sabe-se que, para Weber, o desenvolvimento do capitalismo não se dá somente por fatores econômicos. Sistemas jurídicos e certos contextos sociopolíticos têm forte influência em tal desenvolvimento. O estudo do direito34 34 A análise comparativa weberiana do desenvolvimento legal suporta três tipos de treinamento jurídico: (i) o empírico-prático, que se ocupa dos problemas práticos; (ii) o teórico-formal, que se ocupa dos problemas em termos doutrinas (sistematizados racionalmente); e (iii) o teocrático, que recorre a normas ético-religiosas em relação aos seres humanos e à ordem legal. Sob o ponto de vista jurídico, esse último ponto possui uma sistematização e aplicação informal. feito por Weber contribui, mais do que para diferenciar “leis arbitrárias, ad hoc e julgamentos legais que são derivados logicamente a partir de leis gerais” ( Turner, 1974TURNER, B. S. (1974), Weber and Islam: a critical study. London and Boston, Routledge & Kegan Paul. , p. 10935 35 No original: “arbitrary, ad hoc laws and legal judgments that are derived logically from general laws”. ), para “o estudo da burocracia patrimonial” ( Turner, 1974TURNER, B. S. (1974), Weber and Islam: a critical study. London and Boston, Routledge & Kegan Paul. , p. 10836 36 No original: “the study of the patrimonial bureaucracy”. ). No caso ocidental, a dominação política (patrimonial) “se volta para o uso de um sistema racional de administração com funcionários tecnicamente especializados” ( Schluchter, 2011SCHLUCHTER, W. (2011), Paradoxos da modernidade: cultura e conduta na teoria de Max Weber. São Paulo, Editora Unesp. , p. 215). No Oriente, e mais especificamente no Islã, isso não aconteceu.

O direito islâmico37 37 Para uma compreensão mais profunda sobre o direito islâmico, ver Ramadan (1999, 20 , 2009 ). é um direito sagrado, portanto, revelado. Ele é empregado pelos juristas com base no Alcorão e na Suna. Tais juristas são especialistas no direito sagrado ( muft ) e emitem opiniões sobre a validez da doutrina ( fetwa ), diferentemente dos juízes que administram a justiça ( kadi ). Com o passar do tempo, a criação de leis foi substituída por um hostil confronto entre os juristas e os kadi sobre a correta interpretação, tornando-se “cada vez mais estereotipado desde a imobilização do direito” ( Weber, 2014bWEBER, M. (2014b), Economia e sociedade (Vol. 2). Brasília, Editora UnB. , p. 108). Em vez de se produzir os objetivos abstratos do direito, os funcionários dos tribunais cumpriam apenas os objetivos políticos do príncipe. Mais uma vez, Weber afirma a arbitrariedade do direito islâmico e dos funcionários que o exercem:

De modo geral falta ao cargo baseado em relações de subordinação puramente pessoais a ideia do dever oficial objetivo. O que existe neste sentido desaparece completamente quando se trata o cargo como prebenda ou bem apropriado. O exercício do poder é em primeiro lugar um direito senhorial pessoal do funcionário; fora dos limites fixos da tradição sagrada decide também ele, como o senhor, de caso a caso, isto é, segundo arbítrio e graça pessoal ( Weber, 2014aWEBER, M. (2014a), Economia e sociedade (Vol. 1). Brasília, Editora UnB. , p. 263).

No Islã, portanto, tanto a dominação patrimonial quanto uma tradição de direito sagrado (inflexibilidade da Shari’a ) e a arbitrariedade dos kadi (instabilidade subjetiva nas decisões) foram fatores desfavoráveis para o surgimento de relações capitalistas de produção. Inclusive, nem o Alcorão, nem a Suna eram bases da lei, como reconheceu Weber. Turner concorda com isso e com a arbitrariedade existente no campo jurídico árabe analisado por Weber. Essa falta de sistematicidade, ou de algum material jurídico racionalmente sistematizado, estabeleceu-se em função da maior credibilidade dada à tradição oral transmitida pelos snad (cadeia de transmissão dos Hadice – falas, ditos e comportamentos sobre a vida do profeta Muhammad) e o resultado foi um “emaranhado razoavelmente não sistemático de conclusões jurídicas” ( Turner, 1974TURNER, B. S. (1974), Weber and Islam: a critical study. London and Boston, Routledge & Kegan Paul. , p. 11438 38 No original: “unsystematic tangle of legal conclusions”. ).

No entanto, duas coisas não foram observadas por Weber, de acordo com Turner: (i) a Shari’a permaneceu como um sistema ético-legal que representava, ao menos, uma ameaça para o poder político. Os governantes nunca poderiam ignorar completamente os deveres impostos tradicionalmente por ela; (ii) Weber não reconheceu a hostilidade que muitas vezes existia entre os juristas e os kadi’s . Essa hostilidade, em certas situações, sublimava os objetivos políticos do príncipe. Em determinadas circunstâncias tais especialistas se digladiavam de tal forma que se esqueciam de servir aos objetivos políticos da liderança. Em termos gerais, Weber estava correto, mas Turner, apesar disso, afirma que a análise de Weber possui uma ambiguidade:

Primeiro, não está claro se Weber desejava enfatizar o conteúdo da lei ou seu contexto político. Em segundo lugar, não está claro se a lei racional é uma pré-condição necessária do capitalismo ou meramente uma pré-condição comum. Em relação à última ambiguidade, Weber admitiu que, no caso da lei feita pelos juízes ingleses, a ausência de um sistema de leis sem falhas não retardou o desenvolvimento do capitalismo racional ( Turner, 1974TURNER, B. S. (1974), Weber and Islam: a critical study. London and Boston, Routledge & Kegan Paul. , p. 12039 39 No original: “First, it is unclear whether Weber wanted to emphasize the content of the law or its political context. Secondly, it is not clear whether rational law is a necessary precondition of capitalism or merely a common precondition. Regarding the latter ambiguity, Weber admitted that in the case of the English judges’ law, the absence of a flawless system of laws did not delay the development of rational capitalism”. ).

No caso inglês, apesar de não ter experimentado uma lei formalmente racional, dois aspectos tradicionais da Commom Law auxiliaram no desenvolvimento capitalista naquele local. Primeiro, a capacitação legal foi monopolizada por advogados que forneceram “recrutas” aos juízes que atuavam em interesses privados. Segundo, os custos dos processos judiciais londrinos eram muito elevados, o que significou a recusa dos serviços legais para as pessoas que não tinham algum poder econômico. Com base em tudo isso, Turner alega que “a lei racional não é necessariamente uma condição prévia do capitalismo se os requisitos dos capitalistas puderem ser satisfeitos por outros meios legais” (Turner, 1974, p. 12040 40 No original: “rational law is not necessarily a precondition of capitalism if capitalist requirements can be satisfied by other legal means”. ). Enfim, a grande questão para Turner, no caso da análise sociológica do direito muçulmano, é que ele deve ser explicado em conjunto com sua dominação patrimonial, e não através de questões isoladas de sua jurisprudência.

A formação e o desenvolvimento do estrato portador islâmico

A religião pregada por Muhammad, em Meca, surgiu em um ambiente urbano que possuía vantagens econômicas, sobretudo uma posição estratégica no cruzamento de grandes rotas comerciais. Tais vantagens também eram somadas à existência do santuário Ka’aba (Caaba) que atraía, desde tempos imemoriais, muitas tribos da Península Ibérica. Desse modo, Meca era um lugar controlado por extensas famílias com enormes aquisições e habilidades para lidar com o dinheiro, sendo o profeta Muhammad membro de uma dessas famílias: os coraixitas. O profeta, portanto, gozava de uma grande distinção social e econômica, mesmo antes de se tornar líder religioso.

A tradição islâmica, com efeito, “situa as primeiras experiências extáticas de Muhammad em torno de seus 35 anos de idade” ( Pace, 2005PACE, E. (2005), Sociologia do Islã: fenômenos religiosos e lógicas sociais. Rio de Janeiro, Vozes. , p. 27), período em que ele, gradualmente, toma consciência da sua missão profética. Essa tomada de consciência foi impulsionada por suas práticas regulares de retiro na montanha de Hira. Finalmente, em 610, o anjo Gabriel (ou Jibril ) interpelou Muhammad com as palavras41 41 Sura Al-Alaq: a sura da aderência (96). “1. Lê, em nome de teu Senhor, que criou, 2. Que criou o ser humano de uma aderência. 3. Lê, e teu Senhor é O mais Generoso, 4. Que ensinou a escrever com o cálamo, 5. Ensinou ao ser humano o que ele não sabia…” (Alcorão, 2005, parte 30, p. 1.044). que se tornaram base da sua doutrina profética. Com a repetição das experiências extáticas, o profeta conseguiu apoio do seu primeiro círculo de seguidores (familiares, amigos e escravos) para desempenhar uma missão particular: anunciar a existência de um só Deus e o seu projeto para toda a humanidade.

Com o crescimento do círculo de seguidores, o profeta e sua mensagem foram considerados radicalmente hostis aos negócios de Meca, o que produziu violentas pressões e intimidações por parte das famílias dominantes. As dificuldades que cercavam o profeta foram encaradas por ele e por seus discípulos como uma prova que deveria ser superada com maior vigor para difundirem a palavra revelada. Nesse sentido, Muhammad acreditou ser “um dos poucos enviados especiais aos seres humanos para anunciar qual é o plano eterno de Deus sobre a história humana” ( Pace, 2005PACE, E. (2005), Sociologia do Islã: fenômenos religiosos e lógicas sociais. Rio de Janeiro, Vozes. , p. 45).

No ano de 622, o profeta e seu séquito decidem emigrar rumo ao oásis de Yathrib e acabam entrando em contato com as tribos locais. É nesse momento que se concretiza a ruptura do profeta com o seu ambiente social de origem (Meca) e a incorporação de um outro papel social: não somente aquele de líder religioso, portador de uma mensagem profética, mas também o de líder político, legislador e chefe militar. O sucesso do profeta foi produto da similitude de interesses prometidos por Muhammad em nome de Allah e desejados pelas tribos e seus senhores da guerra. Ambos tinham interesses possessivos. O combatente de fé desejado pelo profeta e concedido pelos seus novos sequazes, com base no exclusivismo de um único Deus, seria recompensado com o domínio do mundo, prestígio social e desfrute dos prazeres sensíveis, tanto nessa vida quanto na outra. O novo estrato social seria recompensado, segundo Weber (2014aWEBER, M. (2014a), Economia e sociedade (Vol. 1). Brasília, Editora UnB. , p. 324), pela “abjeção moral dos infiéis, como seus inimigos, cuja existência tranquila provoca sua justa cólera”. Porém, apesar desse novo estrato portador ter alguma orientação religiosa, acabou convertendo-se à causa por interesses de rendas feudais durante a conquista de terras.

Se, por conta do novo estrato portador, o Islã desejado por Muhammad foi modificado, aqueles elementos éticos de salvação apresentados por ele durante o seu primeiro período em Meca acabaram recuando fortemente. A ideia de salvação perdeu o seu verdadeiro sentido e foi substituída pela ideia de jihad 42 42 De acordo com Armstrong (2009, p , p. 63), o termo deve se “traduzir por ‘luta’ ou ‘esforço’, não por ‘guerra santa’, como pensam geralmente os ocidentais. […] Organizando a vida inteira de modo que Deus tenha prioridade e seus planos para a humanidade se concretizem plenamente, os fiéis chegarão a uma integração pessoal e social que lhes permitirá vislumbrar a unidade que é Deus”. (normalmente traduzido como “guerra santa”, mas que na verdade diz respeito a duas dimensões: uma maior e uma menor43 43 Essas duas dimensões são: jihad nafs (um esforço individual que visa lidar com o ego da pessoa e torná-la uma pessoa melhor) e jihad num sentido maior ( qital ), quando o muçulmano deve resistir às invasões e às agressões do colonialismo. Para uma compreensão mais profunda do termo, ver Hourani (2006) . ), uma guerra religiosa expansionista, mas não proselitista, como afirma Pierucci (2002)PIERUCCI, A. F. (2002), “Máquina de guerra religiosa: o Islã visto por Weber”. Revista Novos Estudos, 1 (62): 73-96. . O objetivo se tornou a eliminação da descrença e a aquisição de terras. Na verdade, Weber não considerava o Islã, moldado em Yathrib (Medina), uma religião de salvação (abordaremos isso mais adiante).

Sobre a questão do estrato portador, Turner afirma ser totalmente errada a percepção weberiana. Para o autor, Weber apresenta essa conversão (ou apropriação) da mensagem de Muhammad pelo estrato guerreiro de maneira arbitrária. Ele não realiza qualquer conexão entre a “ética guerreira” e a “mensagem profética de Muhammad”. O Islã surgiu em um ambiente urbano, apesar de florescer no oásis de Medina. Pois “grande parte da base teológica do ensino de Muhammad é abordada com os problemas do comercialismo e a própria terminologia do Alcorão é rica em conceitos comerciais” (Turner, 1974, p. 3544 44 No original: “Much of the theological basis of Muhammad’s teaching is taken up with the problems of commercialism and the very terminology of the Qur’an is rich with commercial concepts”. ). Outro islamista que fundamenta tal assertiva é Von Grunebaum (1970)VON GRUNEBAUM. G. E. (1970), Classical islam: a history, 600 A.D to 1258 A.D. New Jersey, Transaction Publischers. . Para ele, toda “a piedade de Muhammad é inteiramente adaptada à vida urbana” (1970, p. 3345 45 No original: “the piety of Muhammad is fully adapted to urban life”. ). O Islã, desde a primeira época de Muhammad, representou o triunfo moral das cidades sobre as tribos do deserto. Além disso, mesmo ocorrendo a fusão, posteriormente, da moral urbana com o poderio militar tribal (nômade), nunca foi total o condicionamento tribal nas cidades.

A análise weberiana do estrato portador sugere o triunfo do deserto sobre a cidade, como se esse triunfo fosse resultado das lutas entre eles, como se fosse algo novo, inédito. Na verdade, isso sempre existiu, conforme Ansary (2010)ANSARY, A. F. (2010), “Political dynamics and religious debates in contemporary Maghreb”. Institut Europeu de la Mediterrània, 14: 81-87. – baseado no argumento da “teoria cíclica” de Ibn Khaldun –, uma vez que sempre:

A tribo ou grupos de tribos tornam-se uma força político-religiosa e subjugam a cidade, ao criar um retorno ao ideal religioso, um novo sistema político, uma nova dinastia. Uma vez que se estabeleceu no ambiente urbano, o último perde gradualmente sua energia e determinação, e sucumbe aos “feitiços” da vida urbana. Seu modo de vida e abrandamento de sede de guerra logo despertam novas mobilizações no meio tribal e, consequentemente, um novo movimento de purificação religiosa, levando a uma renovação de o sistema político ou, em vez disso, uma rotação dos homens que governam isto ( Ansary, 2010ANSARY, A. F. (2010), “Political dynamics and religious debates in contemporary Maghreb”. Institut Europeu de la Mediterrània, 14: 81-87. , p. 8246 46 No original: “The tribe or groups of tribes become a political-religious force and subjugate the city, while creating a return to the religious ideal, a new political system, a new dynasty. Once it has been set in the urban environment, the latter gradually loses its energy and determination, and succumbs to the “spells” of urban life. Its way of life and the relaxation of its thirst for war soon awaken new mobilisations in the tribal medium and, consequently, a new movement of religious purification, leading to a renewal of the political system or, rather, a rotation of the men who govern it”. ).

Nota-se nesse argumento que o “movimento cíclico” sempre existiu conforme as tribos se acomodam à moral urbana. Outro ponto levantado na análise weberiana diz respeito ao engajamento dos beduínos à mensagem profética de Muhammad, bem como à aceitação de Allah como único Deus. Mais uma vez, Turner aponta a falha metodológica da sociologia compreensiva de Weber, pois não parece levantar a questão “de saber se o próprio Islã fez distinções entre compromisso puro e tendencioso” (Turner, 1974, p. 3647 47 No original: “the question of whether Islam itself made distinctions between pure and biased commitment”. ). Isso é totalmente condenável no Alcorão, que faz a distinção entre o crente ( um’min ), o descrente ( kiifir ) e o hipócrita ( munafiq ). Em síntese, Turner acusa Weber de ignorar as autodescrições muçulmanas e apresentar um argumento reducionista no qual o Islã é explicado pela busca de riquezas e bens imobiliários.

A comunidade de virtuosos do Islã: a noção e o papel dos santos

Se, por um lado, o Islã foi moldado, conforme a análise de Weber, por guerreiros com interesses fiscais e intramundanos, por outro lado, o intelectualismo teve um papel importante no desenvolvimento dessa religião. Isso geralmente ocorre, em regra, “de modo mais eficaz quando estas estão desmilitarizadas e excluídas da possibilidade ou do interesse em atividades políticas” ( Weber, 2014aWEBER, M. (2014a), Economia e sociedade (Vol. 1). Brasília, Editora UnB. , p. 342). Nesse caso, esse pequeno grupo48 48 De acordo com a tradição historiográfica, principalmente com a obra Studies in islamic Mysticism (1921), de Raynold A. Nicholson, esse pequeno grupo surge entre Bassora e Kufa (Iraque). não acreditava que o verdadeiro conhecimento de Allah se dava pelo desbravamento do mundo (típico daquele estrato guerreiro) ou pela instituição implantada na época. O verdadeiro saber de Deus se dava pela devoção e por um contato direto com ele. Somente pela dimensão mística da experiência religiosa é que se experimenta o poder de Deus. Esse é o fundamento da via sufista: um pequeno grupo de devotos reunidos em torno de uma liderança, buscando um contato místico com a divindade e submetendo-se a uma disciplina individual e social.

O desejo por um contato direto com Allah pela via sufista está ligado, conforme Vercellin ( apudPace, 2005PACE, E. (2005), Sociologia do Islã: fenômenos religiosos e lógicas sociais. Rio de Janeiro, Vozes. , p. 153), “ao fato de que a sociedade islâmica tal como está configurada pela Shari’a não contempla nenhuma estrutura intermediária entre o fiel e a totalidade da umma , com exceção da família (ou da tribo)”.

Progressivamente, o sufismo foi se estruturando49 49 Com base em três categorias: islam (submissão à lei revelada), iman (fé na shahada , o primeiro pilar da fé islâmica) e o ihsan (virtude ou sinceridade). e estabelecendo códigos internos bastante rígidos, além de aperfeiçoar suas técnicas de “esvaziamento interior” (condição para o contato direto com o sagrado). As técnicas de esvaziamento incluem orações e expressões, tais como poesia ou canto, que traduzem as emoções profundas originadas do contato entre o praticante e a divindade. O contato com a divindade recebe o nome de dhikr (memória, pronunciamento ou lembrança de Deus) que é feita através do tasbih 50 50 Definição de acordo com o site Iqara Islam , que busca difundir conhecimentos sobre o povo islâmico, abordando diversos temas. Disponível em: https://iqaraislam.com/o-uso-do-rosario-tasbih-ou-masbaha , último acesso em 9 abr. 2019. (ou masbaha ) sufi . A prática mística do sufismo se estrutura através de pequenas tariqa (organizações) que são lideradas por um sheik (líder supremo dentro da ordem sufi que conhece as etapas da caminhada mística e distribui a cada um dos seguidores o seu Zhikhr – modo de se lembrar de Deus).

Sociologicamente, Weber afirma que esse tipo de segmento islâmico contém a peculiaridade de toda seita. Essa última, entendida no sentido sociológico do termo, baseia-se “na relação associativa fechada das diversas congregações locais, sendo esse seu verdadeiro fundamento” ( Weber, 2014aWEBER, M. (2014a), Economia e sociedade (Vol. 1). Brasília, Editora UnB. , p. 313), contando somente com indivíduos moralmente qualificados e voluntariamente associados. Tais indivíduos qualificados ou monges mulçumanos são conhecidos como dervixes ou dervixes urrantes, pois, durante os ritos, emitem sons guturais e submetem-se a provas físicas extremas até a confirmação do seu estado de êxtase. As práticas extáticas, como meios de “salvação” ou “autodivinização” daqueles que morrem para o “eu” e vivem como um receptáculo que está apto a receber a divindade, são, conforme Weber (2008WEBER, M. (2008), Ensaios de sociologia. 5. Ed. Rio de Janeiro, LTC. , p. 203), “consideradas como ‘sagradas’”. Sendo assim, tanto o sheik quanto o dervixe, enquanto membros de um estamento religioso (virtuosos), são cultuados como um “santo” ( Weber, 2008WEBER, M. (2008), Ensaios de sociologia. 5. Ed. Rio de Janeiro, LTC. , p. 203) pelo restante da comunidade religiosa devido à aceitação de suas bênçãos e seus poderes mágicos como meios da salvação religiosa.

O conteúdo da santidade apresentada por Weber é oriundo da tradição cristã e carrega consigo os seguintes elementos: sofre durante a sua vida em nome de uma causa de fé (martírio51 51 KEMP, E. W. (1948) , Canonization and authority in the western church . London, Oxford University Press. ); possui humildade, paciência e compaixão; é canonizado após sua morte52 52 HAYNES, R. (1970) , Philosopher king: the humanisty Pope Benedict XIV . London, Weidenfeld & Nicolson. ; e possui uma virtude heroica (critério elaborado pelo Papa Bento XIV). Enfim, na tradição cristã somente existe santo quando ele é canonizado após sua morte, além de ser considerado como um habitante do céu. Porém, mesmo Weber não explicitando tais características de tradição cristã, o autor usa de maneira alternada os termos “santo”, “dervixe”, “ sheik ” ou “ sufi ” como referentes aos religiosamente virtuosos. Esses dois últimos no caso do Islã descrito pelo autor.

Tal noção de “santo” não se vincula ao Islã, muito menos ao sufismo. É o que demonstra Turner. Para o autor, existe um desacordo conceitual sobre a natureza da santidade. Se a noção de santidade apresentada logo acima carrega consigo, semanticamente, a ortodoxia dos valores cristãos e o estabelecimento do controle papal de rotulagem santa, no Islã a noção de marabout reverte toda essa ideia. O marabout islâmico (que abarca o wali 53 53 De acordo com o site Iqara Islam , “Muçulmanos tradicionalmente usam o termo árabe wali (pl: awliya), uma abreviação de wali Allah (amigo de Deus), para descreverem um santo ou pessoa sagrada. O verbo waliya (da mesma raiz trilateral, w-l-y ) significa “estar perto”, “estar próximo”, “seguir” ou “ser amigo”. Em outras palavras, um santo na tradição islâmica é alguém que é próximo (no sentido de ser devoto) a Deus”. Disponível em: https://iqaraislam.com/o-papel-dos-santos-no-islam-muculmanos-acreditam-em-santos , último acesso em 9 abr. 2019. , sufi, agurram e sheik ) não carrega consigo somente uma ideia de ortodoxia, mas sim de ortopraxia54 54 “Ortopraxia quer dizer que o Islã pede a seus fiéis que abracem um conjunto de preceitos práticos, um conjunto de regras divinamente fundamentadas que devem ser concretamente seguidas dia a dia” ( Pace, 2005, p , p. 130). . Um bom muçulmano, para se tornar “santo” ou ser considerado como tal, expressa o seu compromisso com o Alcorão ou com a Suna em termos práticos. O compromisso é expresso com uma comunidade moral e um conjunto de práticas normativas.

No caso do sufismo, misticismo islâmico, a ortopraxia se manifesta numa ideia de transformação do mundo, e não, como pensava Weber, numa fuga do mundo. As confrarias sufis , segundo Enzo Pace:

[…] almejam conceder a seus adeptos igualmente um autêntico conhecimento de Deus e, por reflexo do mundo, não se limitam a fazer com que eles vivam uma experiência religiosa que pode ser repetida durante as performances de grupo, mas visam traduzir em regras de conduta social os preceitos religiosos elaborados dentro de cada confraria. As vias, portanto, representam no Islã a demonstração de como uma intensa ascese espiritual não comporta a fuga do mundo, mas, ao contrário, um renovado engajamento no mundo para transformá-lo ou aperfeiçoá-lo ( Pace, 2005PACE, E. (2005), Sociologia do Islã: fenômenos religiosos e lógicas sociais. Rio de Janeiro, Vozes. , p. 155).

Esses sufis se consideram eleitos de Deus e somente eles podem eleger quem é santo ou quem carrega consigo as qualidades para tal designação. No Islã, o termo “santo” não é somente aplicado a indivíduos, mas também a coletividades (linhagens sagradas ou tribos). O marabout islâmico não é canonizado por realizar qualquer milagre. Suas capacidades são provadas informalmente pelo consentimento local. Além disso, ele não precisa estar morto para se tornar santo. Em vida, eles são reconhecidos como tal. Portanto, esse marabout “não poderia ter papéis sociais correspondentes aos santos cristãos” ( Turner, 1974TURNER, B. S. (1974), Weber and Islam: a critical study. London and Boston, Routledge & Kegan Paul. , p. 7155 55 No original: “could not have social roles corresponding to the Christian saints”. ).

A caracterização (geral) sociológica da religião islâmica

Por fim, resta abordar a caracterização sociológica feita pelo autor a respeito da religião islâmica. Para compreender o Islã com maior precisão, o autor buscou pontos de comparação com as religiões ocidentais, mais especificamente com o calvinismo, notório representante do protestantismo ascético. A ideia de “dever profissional”, característico do “espírito” do capitalismo, para ter a força que teve, tinha que se originar de grupos inteiros, e não de indivíduos isolados. Tinha que ganhar forças para superar o espírito do tradicionalismo. A força brotaria internamente daqueles grupos que se orientavam por uma ética religiosa, contando com indivíduos interessados na salvação oferecida por tal ética doutrinal. O Deus do calvinismo exigia dos seus adeptos não obras isoladas, mas uma série de obras que deveriam se tornar um sistema vital. Os adeptos do calvinismo estavam em constante manutenção do seu ser, considerando-se salvos56 56 “[…] pois afinal de contas ao verdadeiro convertido cumpre provar para si mesmo e para os outros ao menos isto, que o pecado ‘não mais tem poder sobre ele’” ( Weber, 2004, p , p. 128). , confiantes e autodisciplinados para a glória de Deus.

A relação entre a ética e a conduta no calvinismo se deu, por um lado, nos seus fundamentos religiosos e no conteúdo das suas ideias religiosas; e, por outro lado, na certeza da própria salvação em coerência com o dogma da predestinação. A predestinação, enquanto decreto eterno de Deus, diz respeito à decisão de Deus ao selecionar alguns homens (predestinados) à vida eterna e outros à morte eterna. Em nível de comparação, Weber observou que o Islã, embora possuísse similitudes com a doutrina da predestinação, produziu efeitos psicológicos e práticos contrastantes com o calvinismo. O contraste também se manifesta57 57 “Quanto mais radicalmente for concebida a transcendência de Deus, mais o destino salvífico do indivíduo tende a parecer predestinado; quanto mais coerentemente os fiéis seguirem a ideia de predestinação, maiores são as tensões entre Deus e o homem” ( Schluchter, 2011, p , p. 177). na concepção de Deus nos dois segmentos. No calvinismo e no luteranismo, de acordo com Weber (2004WEBER, M. (2004), A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. São Paulo, Companhia das Letras. , p. 205), existia a tensão clara entre um Deus duplo, “o Pai clemente e misericordioso revelado no Novo Testamento […] e, por trás deste, o Deus absconditus [Deus escondido] que põe e dispõe feito um déspota caprichoso”.

No Islã não havia tal tensão. O Deus islâmico ( Allah ) se notabiliza por sua onipotência58 58 Em árabe, íshlam que dizer “submissão à onipotência de Deus”. e, vinculada a ela, sua benevolência. Não havia essa avaliação dupla das características de Deus, somente a crença de uma única característica de Deus. Nessa religião, a doutrina se ocupa de “interpretações metafísicas, cosmológicas e teleológicas da efetividade de Deus, e não interpretações éticas ou soteriológicas” ( Schluchter, 2011SCHLUCHTER, W. (2011), Paradoxos da modernidade: cultura e conduta na teoria de Max Weber. São Paulo, Editora Unesp. , p. 179). A visão de mundo islâmica, em contraste com o calvinismo, ocupa-se mais de elementos cognitivos do que avaliativos.

Sendo assim, no Islã, Allah não era visto como aquele que carregava consigo a capacidade de predestinar (como no calvinismo) algumas pessoas ao inferno e outras à vida eterna (além-mundo); mas, de predeterminar o destino do indivíduo neste mundo: se o guerreiro de fé cairá ou não durante a batalha. Este último tem a certeza de que só passará pelo que Allah predeterminou para ele, focando apenas no aqui-agora, pensando o além-mundo como algo certo, algo que não deve ser temido. Porém, isso não quer dizer que o destino no além-mundo é ignorado pelo islamita. A fé no paraíso é garantida (no sunismo) para o crente ( mu’min 59 59 ATTANTÁWY, A. (1990) , Apresentação geral da religião do Islam . São Paulo, Editora Orgrafic. ) que observa e segue os cinco pilares da prática islâmica ( arkan 60 60 (i) testemunhar que não há outra divindade além de Allah ( shahada ); (ii) orar durante cinco vezes ao dia ( salat ); (iii) distribuir 2,5% dos seus bens, após terem alcançado um certo limite ( zakat ); (iv) jejuar durante o nono mês do calendário islâmico, o mês de Ramadan ( siám ); e (v) pelo menos uma vez na vida peregrinar até Meca, afastando-se de tudo que é material para viver num plano superior ( hajj ). ) em conjunto com os seis pilares da fé.

Outro ponto de contraste entre as duas éticas religiosas é observado nas condutas religiosamente orientadas. No Islã, o zeloso cumprimento das leis de Deus pelo senso de dever contrasta com o cumprimento das leis enquanto fundamento real ou como indicação da graça de Deus, presentes no calvinismo. A certeza do destino no além-mundo (cinco pilares de prática e seis pilares de fé61 61 Os cinco pilares de prática do Islã são: (i) shahada ; (ii) salat ; (iii) zakat ; (iv) jejum no mês de Ramadan ; e (v) hajj – a peregrinação à Meca. Já os seis pilares da fé islâmica são: (i) a crença somente em Allah ; (ii) a crença em seus anjos; (iii) a crença nos seus mensageiros; (iv) a crença nos seus livros; (v) a crença no Dia do Juízo Final; e (vi) a crença em Al-Qadar – predestinação. Disponível em: https://iqaraislam.com/os-6-pilares-da-fe-islamica , último acesso em 9 abr. 2019. ) e a obediência nas leis de Deus transformam o guerreiro da fé num combatente sem medo, voltado para este mundo. Essas são as fontes da sua motivação que lhes dá uma disciplina militar para a conquista do mundo. Essa aristocracia guerreira que possuía aquilo que Weber chamou de “ status cavalheiresco” não tinha sensibilidade para uma visão de mundo marcada pelas noções de pecado, humildade e redenção. Por isso, como dissemos anteriormente, o autor não considerava o Islã como uma religião de salvação. Uma religião é considerada de salvação para Weber, conforme Pierucci, quando ela

[…] desencalha pessoas de rotinas comunitárias estabelecidas e as desenreda das tramas já dadas de comunicação e subordinação somente para, uma vez individualizadas, isto é, liberadas e autonomizadas, engajá-las como indivíduos na constituição de uma comunidade nova, in fieri , que só lhes tem a oferecer laços puramente religiosos, vínculos religiosos verticais e horizontais que em sua depurada especificidade religiosa hão de aparecer exatamente como são, dotados que se tornaram de um sentido subjetivo inteiramente distinto, novo ( Pierucci, 2006PIERUCCI, A. F. (2006), “Religião como solvente: uma aula”. Revista Novos Estudos, 2 (75): 111-127. , p. 122).

Como dito anteriormente, se esse estrato guerreiro tinha algum interesse extrativista, era somente com rendas feudais, e não com fiéis ou novos membros. Eis aí a dificuldade de Weber classificar o Islã como uma religião de salvação universalista: renunciou-se ao universalismo de conversão dos infiéis pelo domínio destes por um grupo de combatentes da fé.

Se, no período inicial, em Meca existia algum resíduo salvífico, no período medinense a noção de salvação recuou fortemente. Em síntese: qual a relação dessa religião com o mundo em comparação com o calvinismo? Como essa religião se portava diante do mundo? Se no calvinismo o ascetismo de dominação do mundo abriu os caminhos para uma racionalização da vida, na qual a ideia de “comprovação” sistematizou a conduta de vida do crente, no Islã, por sua vez, o estamento guerreiro e seus interesses mundanos acomodaram a mensagem profética de Muhammad, o que produziu uma flutuação entre senhorio do mundo (conquistando o mundo) e adaptação ao mundo.

Apesar dessa caracterização sociológica da religião islâmica feita por Weber não ter motivado uma racionalização da vida, ela possui os seus limites. Na verdade, afirmar que a religião islâmica de per si não favoreceu o desenvolvimento do capitalismo racional pode ser equivocado, de acordo com o que pensam Turner (1974TURNER, B. S. (1974), Weber and Islam: a critical study. London and Boston, Routledge & Kegan Paul. , 1992TURNER, B. S. (1992), Max Weber: from history to modernity. London and New York, Taylor & Francis. ), Zubaida (1972)ZUBAIDA, S. (1972), “Economic and political activism in Islam”. Economy and society, 1 (3): 308-338. , Rodinson (1973)RODINSON, M. (1973), Islam y capitalismo. Argentina, Siglo Veintiuno. e Gellner (1992)GELLNER, E. (1992), Postmodernism, reason and religion. London and New York, Taylor & Francis. .

Para Turner, a investigação weberiana acerca da religião islâmica foi norteada pela questão errada. A verdadeira questão seria, em vez de perguntar “por que ali não germinou o capitalismo racional”, explicar “a transição do Islã de uma economia monetária para um regime agrícola, militar” (Turner, 1992, p. 4262 62 No original: “the transition from Islam of a monetary economy to an agricultural, military regime”. ). Tal questão seria corroborada pelos termos “da sua estrutura patrimonial” ( Turner, 1992TURNER, B. S. (1992), Max Weber: from history to modernity. London and New York, Taylor & Francis. , p. 5263 63 No original: “of its patrimonial structure”. ) que não foi aprofundada por Weber, além de ser apresentada de forma cronologicamente incorreta.

Por seu turno, Zubaida afirma que não foram as atitudes e ideologias inerentes ao Islã que inibiram o desenvolvimento de uma economia capitalista, mas a “posição política das classes mercantis em relação às classes militares-burocráticas dominantes nas sociedades islâmicas” (Zubaida, 1972, p. 32464 64 No original: “but the political position of the mercantile classes in relation to the dominant military-bureaucratic classes in Islamic societies”. ).

Para Rodinson, por sua vez, nas bases sacras do Islã (Alcorão e Suna) não existiam quaisquer prescrições que impedissem o desenvolvimento econômico ou do capitalismo racional. A única prática condenável era a riba: a prática da usura e dos juros65 65 Sura Al-Baqarah: a sura da vaca (2). “275. Os que devoram a usura não se levantam senão como se levanta aquele que Satã enfurece com a loucura. Isto porque dizem: ‘A venda é como a usura’. Ao passo que Allah tornou lícita a venda e proibiu a usura. Então, aquele a quem chega extorsão de seu Senhor e se abstém da usura, a ele pertencerá o que se consumou, e sua questão será entregue a Allah ” (Alcorão, 2005, parte 3, p. 76). . Pois, “na Suna, como no Alcorão, nem se pronuncia sobre o capitalismo. Não se questiona a propriedade privada” ( Rodinson, 1973RODINSON, M. (1973), Islam y capitalismo. Argentina, Siglo Veintiuno. , p. 3466 66 No original: “en la Suna, como en el Corán, ni se pronuncia sobre el capitalismo. No se cuestiona la propiedad privada”. ). E continua o autor: “tanto o Alcorão como a tradição consideram favoravelmente a atividade econômica, a busca do lucro, o comércio e, portanto, a produção para o mercado” ( Rodinson, 1973RODINSON, M. (1973), Islam y capitalismo. Argentina, Siglo Veintiuno. , p. 3567 67 No original: “tanto el Corán como la tradición consideran favorablemente la actividad económica, la búsqueda del lucro, el comercio y, por lo tanto, la producción para el mercado”. ).

Por fim, Gellner afirma que a verdadeira interpretação sobre o Islã deve partir pela dicotomia entre o “Islã alto” e o “Islã baixo”. O primeiro estrato é conduzido, fundamentalmente, por estudiosos recrutados pela burguesia comercial (uma vez que esta última financiava os estudos daqueles primeiros) e refletia os gostos e os valores da classe média da época (observância de regras, sobriedade, dedicação ao aprendizado). Esse “Islã alto”, para Gellner (1992, p. 1168 68 No original: “severely monotheistic and monocratic of Islam, is aware of the prohibition of claims of mediation between God and man and generally oriented to puritanism and scripturalism”. ), enfatiza a natureza “severamente monoteísta e monocrática do Islã, é consciente da proibição de reivindicações da mediação entre Deus e o homem e geralmente orientado para o puritanismo e o escrituralismo”.

No caso do “Islã baixo”, em contraste com o “Islã alto”, a dimensão intelectual foca mais a magia (tecnicamente) do que o aprendizado sistematizado, no “êxtase mais do que a observância de regras” (Gellner, loc. cit 69 69 No original: “ecstacy more than rule-observance”. ). Longe de evitar a mediação entre Deus e o homem, como aparecia no primeiro estrato, esse segundo estrato se fundamenta nessa mediação, pois a instituição mais importante aqui é o santo (que tem a sua santidade transmitida de pai para filho) presente em diversas tribos.

Considerações finais

Afirmando que nossa intenção com este artigo é contribuir com o campo de estudos em sociologia da religião e com as reflexões weberianas sobre o Islã, convém tecer algumas considerações em relação às críticas apresentadas. Apesar do valoroso empenho dos autores em analisar o pouco que foi deixado por Weber sobre a religião islâmica, parte das críticas tratadas neste estudo carecem de maior consistência. Por exemplo, para Schluchter (2011SCHLUCHTER, W. (2011), Paradoxos da modernidade: cultura e conduta na teoria de Max Weber. São Paulo, Editora Unesp. , p. 228), as críticas de Turner e de Rodinson são “escritas a partir de uma perspectiva marxista modificada”. Rodinson acusa Weber de apresentar uma explicação essencialmente “ideológica”, justamente por dar às ideias o papel de obstruir o favorecimento do capitalismo no Islã. Parece, ainda segundo Schluchter, que Rodinson não compreende que as investigações comparativas de Weber não fazem distinções (valorativas) de tipos de racionalismos. Essas investigações apenas contribuem para a sociologia que se interessa pelo condicionamento da religião nas outras esferas de valor. Além disso, Rodinson procede como um materialista (como se Weber não o fosse, em certa medida) no que se refere ao método e à teoria ao analisar somente as condições externas (infraestruturais) e não as internas (superestruturais). Sabe-se que Weber rejeitou esse tipo de explicação determinista e quis ir além, como bem mostrou na obra A ética protestante e o “espírito” do capitalismo (2004) . Rodinson aparentou se opor a “um autor que conhece apenas superficialmente” ( Schluchter, 2011SCHLUCHTER, W. (2011), Paradoxos da modernidade: cultura e conduta na teoria de Max Weber. São Paulo, Editora Unesp. , p. 231).

Já a análise de Turner não foi tão “inconsistente” quanto a de Rodinson. Apesar de ser interessante a discussão que o autor faz entre a noção de santo e marabout , não fica claro de que maneira Weber se serviu dessa noção cristã. O autor não apresenta as fontes de que Weber se serviu para o uso da noção de santo. “Lembrar” algo da tradição cristã não é o suficiente. Outra questão que não fica satisfatoriamente esclarecida refere-se à relação entre a ética religiosa e a conduta do portador social. De acordo com Schluchter (2011)SCHLUCHTER, W. (2011), Paradoxos da modernidade: cultura e conduta na teoria de Max Weber. São Paulo, Editora Unesp. , apesar de Turner desconfiar da arbitrária afirmação de Weber, conforme a qual a mensagem profética de Muhammad foi “confiscada” pelos interesses dos guerreiros, a própria crítica de Turner é também arbitrária. Parece que o autor ignorou, como mostram os estudos religiosos-comparativos de Weber, que os interesses materiais e as ideias jamais dependem somente das fontes religiosas (mensagem profética de Muhammad), mas também do seu conteúdo. Este último não foi aprofundado pelo autor.

Por fim, o próprio Zubaida (1995)ZUBAIDA, S. (1995), “Is there a Muslim society? Ernest Gellner’s sociology of Islam”. Economy and Society, 24 (2): 151-188. em Is there a Muslim society? Ernest Gellner’s sociology of Islam coloca em xeque a análise de Gellner sobre a religião islâmica. O modelo apresentado por Gellner – de linhagem antropológica e sob um ponto de vista funcional-estruturalista ( Shankland, 2003SHANKLAND, D. (2003), “Gellner and Islam”. Social Evolution & History, 2 (2): 118-142. ) – para avaliar o Islã carrega generalizações que o tornam problemático. Exibe categorias invariantes, como se fossem modelos estáticos que, inclusive, servissem para pesquisas contemporâneas. Zubaida contesta tal modelo comparando-o à situação moderna, como, por exemplo, a noção de ulama que se desenvolveu diferentemente em diversos contextos sociopolíticos.

Há, sem dúvida, lacunas nas diversas análises (tanto na weberiana quanto nas de seus críticos), porém, mesmo existindo falhas, não se invalida a possibilidade de, de forma crítica, utilizar-se as diferentes abordagens em pesquisas atuais sobre o Islã, especialmente em uma perspectiva típico-ideal. Weber continua sendo um clássico que referencia grande parte dos estudos sociológicos (e, como tal, deve ser constantemente confrontado criticamente), e os críticos continuam, atualmente, pesquisando o Islã com atenção voltada às suas manifestações contemporâneas, observando, ainda, as diversas mudanças que a religião vem sofrendo historicamente nos diferentes contextos políticos e socioculturais. Sendo assim, a nossa intenção não foi defender, tampouco acusar, as diferentes perspectivas, mas tão somente apresentar e problematizar as críticas produzidas visando contribuir com a sociologia da religião e, mais especificamente, com os estudos weberianos sobre sociologia da ação religiosa.

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Notas

  • 1
    No texto usaremos, como padrão, o termo “Islã” justamente porque ele diz respeito à religião como um todo, não especificando a sua dimensão política-militante como alude o termo “islamismo”. Essa é uma diferenciação que se faz nos estudos de contextos específicos dessa religião.
  • 2
    A aproximação weberiana do interesse religioso é sempre perspectivista e “neste prisma, a sociologia weberiana das religiões funda-se na orientação de sentido do agir e possui tanto uma dimensão material quanto simbólica”. Dito de outro modo: Weber não responde o que “é” (do ponto de vista metafísico) a “religião”, mas oferece uma plataforma para a análise das “ações mágico/religiosas” (suas precondições, sentido e efeitos) e seus múltiplos desdobramentos sociais (atores, grupos religiosos, comunidades etc.) e culturais (religiões) ( Sell, 2013aSELL, C. E. (2013a), Max Weber e a racionalização da vida. Rio de Janeiro, Vozes. , p. 84). Para uma discussão mais aprofundada do perspectivismo usado por Weber, desde sua origem kantiana até o seu refinamento nietzscheniano, ver Nobre (2004)NOBRE, R. F. (2004), Perspectivas da razão: Nietzsche, Weber e o conhecimento. Belo Horizonte, Editora Argumentum. .
  • 3
    Após a conclusão dos ensaios sobre A psicofísica do trabalho industrial ( {Zur Psychophysik der industriellen Arbeit – GRAFIA CORRETA}) ( Weber, 2009WEBER, M. (2009), A psicofísica do trabalho industrial. (Série Ciências Sociais na Administração, Departamento de Fundamentos Sociais e Jurídicos da Administração, FGV-EAESP). São Paulo, Editora Alphagraphics. ) e o encerramento do debate com H. Karl Fischer e Felix Rachfahl sobre a ética protestante com a sua “Última palavra anticrítica” ( Antikritisches Schulusswort ).
  • 4
    O que, segundo Schluchter (2011SCHLUCHTER, W. (2011), Paradoxos da modernidade: cultura e conduta na teoria de Max Weber. São Paulo, Editora Unesp. , p. 148), certamente “teria incluído não só o Islã árabe e persa, mas também, o turco e o indiano”.
  • 5
    Vale ressaltar que essa “idade de ouro” também reflete o esfriamento da sua proposta inicial que era centrada numa profecia ético-escatológica (diga-se extramundana) e acabou se transformando em uma profecia político-militar com interesses intramundanos.
  • 6
    No original: “Weber was unable to adhere to his own methodological principles”. Todas as citações de autores estrangeiros foram traduzidas pelos autores deste artigo.
  • 7
    “[…] de sentidos, em uma relação de atração e influência recíprocas, escolha mútua, convergência ativa e reforço mútuo” ( Löwy, 2011LÖWY, M. (2011), “Sobre o conceito de ‘afinidade eletiva’ em Max Weber”. Revista Plural, 17 (2): 129-142. , p. 139).
  • 8
    A ciência proposta por Weber enquanto um conhecimento “neutralizado” se distingue da teologia justamente porque a primeira entra na dimensão do “saber”, e a segunda, na dimensão do “ter”. […] a teologia supõe que tais pressupostos pertencem a uma esfera que se situa além dos limites da ciência. Não correspondem, por conseguinte, a um “saber”, no sentido comum da palavra, mas a um “ter” (Weber, 2010).
  • 9
    No original: “they were also a fundamental component in the origin of urban, corporate and autonomous communities”.
  • 10
    No original: “of the hassanid clans of Ali and other noble clans, occupied by peasants, clients and protected Bedouins”.
  • 11
    “Em grau extremo, este era o destino dos senhores na terra clássica dos exércitos patrimoniais: o Oriente Próximo, que ao mesmo tempo era o lugar clássico do ‘sultanismo’” ( Weber, 2014bWEBER, M. (2014b), Economia e sociedade (Vol. 2). Brasília, Editora UnB. , p. 246).
  • 12
    No original: “partially autonomous”.
  • 13
    No original: “In contrast to this [Christianity and the medieval city], the whole history of the caliphate’s internal conflicts indicates that Islam never overcame the rural ties of Arab tribal and clan associations, but continued to be a religion of a conquering arm structured in terms of tribes and clans”.
  • 14
    No original: “They were in decline as early as the Abbasid empire brought the Persian aristocracy into the corridors of power and adopted Persian modes of culture. The urban pious who developed and instituted Islamic religious law, the Shari’a , were detribalized Arabs who disapproved of the Bedouin paths like Jahiliyya – such as barbarism and ignorance”.
  • 15
    Sucessivamente novas dinastias surgem pela conquista tribal da cidade que logo se acomodam pelo conforto da vida urbana, para serem ultrapassadas, posteriormente, por outra dinastia que traz consigo a rigidez do deserto e sua solidariedade tribal ( Khaldun, 1958KHALDUN, I. (1958), Os Prolegômenos ou Filosofia Social (Vol. 1). São Paulo, Editora Instituto Brasileiro de Filosofia. ).
  • 16
    No original: “the ‘tribes’ (diverse formations) were important political players at certain times and places, and unimportant or non-existent in others”.
  • 17
    Conforme o Oxford Islamic Studies Online , as wakfs significam: “Literalmente, ‘confinamento’ ou ‘proibição’, a palavra árabe waq f (pl., Awqāf ) é usada no Islã para significar ‘a posse e preservação de certa propriedade para o benefício confinado de uma certa filantropia com a intenção de proibir qualquer uso ou disposição da propriedade fora dessa finalidade específica’. A definição indica a natureza perpétua da waq f ; em outras palavras, o termo se aplica à propriedade não perecível, cujo benefício pode ser extraído sem consumir a propriedade em si. Portanto, a questão está amplamente relacionada a terrenos e edifícios, embora também exista uma grande quantidade de livros, maquinário agrícola, gado, ações e estoques e dinheiro. Na África do Norte e Ocidental, o waq f é chamado hubs , que significa literalmente ‘confinamento’” (tradução nossa). Disponível em: www.oxfordislamicstudies.com/article/opr/t236/e0844 , último acesso em: 9 abr. 2019.
  • 18
    No original: “to protect property and property of confiscation by the authorities”.
  • 19
    No original: “Weber did not classify Islamic history in a traditional and stagnant period, followed by a dynamic modernism”.
  • 20
    No original: “presented few economic problems for the caliph, since they were easily compensated by the sack and remained largely connected to their tribal organizations”.
  • 21
    “As contribuições para essa coleção [ aqui Turner está se referindo à obra Weber & Islam organizada por Schluchter e Huff ] foram extremamente críticas a Weber, mas também houve discordância considerável sobre o valor real da abordagem de Weber. Enquanto a descrição de Weber do Islã como ‘uma religião guerreira’ foi criticada, Toby Huff e Patricia Crone apontaram para a importância social dos exércitos escravos (‘os escravos em cavalos’) e da jihad no período de formação da expansão islâmica”. No original: “The contributions to this collection were overwhelmingly critical of Weber, but there was also considerable disagreement over the actual value of Weber’s approach. While Weber’s description of Islam as ‘a warrior religion’ was criticized, Toby Huff and Patricia Crone pointed to the social importance of slave armies (‘the slaves on horses’) and jihad in the formative period of Islamic expansion” ( Turner, 2010, pTURNER, B. S. (2010), “Revisiting Weber and Islam”. The Brithish Journal of Sociology, 61 (1): 161-166. , p. 162).
  • 22
    No original: “[…] during the Umayyad dynasty (661-750) these slaves on horse back were kept in garrison cities around the empire and were prohibited from engaging in agriculture while they extracted taxes from the local population. In any event, the systematic use of slave soldiers appears to have persisted from the ninth to the nineteenth century throughout the central heartlands of the Muslim world. The Mamluk rulership (1250-1517) was but the product of this system, as its leaders were former slaves who usurped political power and took control in Egypt”.
  • 23
    No original: “was the work of charismatic individuals and an outcome of the peaceful evolution of a pious ideal among the peasantry, while the emergence of Islam in South-east Asiawas the work of itinerant traders and preachers”.
  • 24
    Weber afirma que: “dominação, no sentido muito geral de poder, isto é, de possibilidade de impor ao comportamento de terceiros a vontade própria, pode apresentar-se nas formas mais diversas” ( Weber, 2014bWEBER, M. (2014b), Economia e sociedade (Vol. 2). Brasília, Editora UnB. , p. 188). A modalidade tradicional, por sua vez, é definida “quando sua legitimidade repousa na crença na santidade de ordens e poderes senhoriais tradicionais” ( Weber, 2014aWEBER, M. (2014a), Economia e sociedade (Vol. 1). Brasília, Editora UnB. , p. 148).
  • 25
    Existe a discussão feita por Sell (2016)SELL, C. E. (2016), As duas teorias do patrimonialismo em Max Weber: do modelo doméstico ao modelo institucional. X Congresso da ABCP. Anais… Belo Horizonte, ABPC. em “As duas teorias do patrimonialismo em Max Weber: do modelo doméstico ao modelo institucional” que também contempla a mudança do autor sobre a noção de feudalismo nas diferentes fases de Economia e Sociedade. Porém, não temos a pretensão de apresentar aqui tal percurso.
  • 26
    Estritamente no sentido político da divisão de poderes e sua fixação por normas legais.
  • 27
    No original: “Weber was unable to adhere to his own methodological principles”.
  • 28
    No original: “[…] his power within that community had definite limitations”.
  • 29
    No original: “despite being a Messenger of God, Muhammad was not superior to other clan chiefs”.
  • 30
    Esse salto temporal foi permeado por inúmeros desentendimentos a respeito de quem e quando iria suceder o profeta Muhammad. Para mais esclarecimentos, ver Turner (1974)TURNER, B. S. (1974), Weber and Islam: a critical study. London and Boston, Routledge & Kegan Paul. .
  • 31
    No original: “religious legitimization of military and secular power”.
  • 32
    A questão que permanece sem resposta é: por que Weber não notou esse processo, se ele chegou a analisar parte da Dinastia Omíada?
  • 33
    No original: “El sistema económico en el que la sociedad musulmana de la Edad Media se basó varió según las épocas y lugares. Se puede decir que consistía en diferentes modos de producción coordinados. En el campo, encontramos comunidades de villas explotadas desde el interior por individuos o por el Estado […] Por otra parte, coexistieron, en proporciones variables según las épocas y regiones, con la propiedad o usufructo de una parcela muy limitada para el campesino individual […], los derechos respectivos del campesino cultivador y de los derechos exploratorios también fueron muy variados […], es evidente que no se puede clasificar este sistema simplemente como ‘asiático’ y tan poco como ‘feudal’”.
  • 34
    A análise comparativa weberiana do desenvolvimento legal suporta três tipos de treinamento jurídico: (i) o empírico-prático, que se ocupa dos problemas práticos; (ii) o teórico-formal, que se ocupa dos problemas em termos doutrinas (sistematizados racionalmente); e (iii) o teocrático, que recorre a normas ético-religiosas em relação aos seres humanos e à ordem legal. Sob o ponto de vista jurídico, esse último ponto possui uma sistematização e aplicação informal.
  • 35
    No original: “arbitrary, ad hoc laws and legal judgments that are derived logically from general laws”.
  • 36
    No original: “the study of the patrimonial bureaucracy”.
  • 37
    Para uma compreensão mais profunda sobre o direito islâmico, ver Ramadan (1999, 20RAMADAN, T. (1999), To Be a European Muslim: A study of islamic sources in the European context. Leicester, Islamic Foundation; , 2009RAMADAN, T. (2009), Mon intime conviction. Paris, Presses du Châtelet. ).
  • 38
    No original: “unsystematic tangle of legal conclusions”.
  • 39
    No original: “First, it is unclear whether Weber wanted to emphasize the content of the law or its political context. Secondly, it is not clear whether rational law is a necessary precondition of capitalism or merely a common precondition. Regarding the latter ambiguity, Weber admitted that in the case of the English judges’ law, the absence of a flawless system of laws did not delay the development of rational capitalism”.
  • 40
    No original: “rational law is not necessarily a precondition of capitalism if capitalist requirements can be satisfied by other legal means”.
  • 41
    Sura Al-Alaq: a sura da aderência (96). “1. Lê, em nome de teu Senhor, que criou, 2. Que criou o ser humano de uma aderência. 3. Lê, e teu Senhor é O mais Generoso, 4. Que ensinou a escrever com o cálamo, 5. Ensinou ao ser humano o que ele não sabia…” (Alcorão, 2005, parte 30, p. 1.044).
  • 42
    De acordo com Armstrong (2009, pARMSTRONG, K. (2009), Em nome de Deus: o fundamentalismo no judaísmo, no cristianismo e no islamismo. São Paulo, Companhia das Letras. , p. 63), o termo deve se “traduzir por ‘luta’ ou ‘esforço’, não por ‘guerra santa’, como pensam geralmente os ocidentais. […] Organizando a vida inteira de modo que Deus tenha prioridade e seus planos para a humanidade se concretizem plenamente, os fiéis chegarão a uma integração pessoal e social que lhes permitirá vislumbrar a unidade que é Deus”.
  • 43
    Essas duas dimensões são: jihad nafs (um esforço individual que visa lidar com o ego da pessoa e torná-la uma pessoa melhor) e jihad num sentido maior ( qital ), quando o muçulmano deve resistir às invasões e às agressões do colonialismo. Para uma compreensão mais profunda do termo, ver Hourani (2006)HOURANI, A. Uma história dos povos árabes. São Paulo, Companhia das Letras, 2006. .
  • 44
    No original: “Much of the theological basis of Muhammad’s teaching is taken up with the problems of commercialism and the very terminology of the Qur’an is rich with commercial concepts”.
  • 45
    No original: “the piety of Muhammad is fully adapted to urban life”.
  • 46
    No original: “The tribe or groups of tribes become a political-religious force and subjugate the city, while creating a return to the religious ideal, a new political system, a new dynasty. Once it has been set in the urban environment, the latter gradually loses its energy and determination, and succumbs to the “spells” of urban life. Its way of life and the relaxation of its thirst for war soon awaken new mobilisations in the tribal medium and, consequently, a new movement of religious purification, leading to a renewal of the political system or, rather, a rotation of the men who govern it”.
  • 47
    No original: “the question of whether Islam itself made distinctions between pure and biased commitment”.
  • 48
    De acordo com a tradição historiográfica, principalmente com a obra Studies in islamic Mysticism (1921), de Raynold A. Nicholson, esse pequeno grupo surge entre Bassora e Kufa (Iraque).
  • 49
    Com base em três categorias: islam (submissão à lei revelada), iman (fé na shahada , o primeiro pilar da fé islâmica) e o ihsan (virtude ou sinceridade).
  • 50
    Definição de acordo com o site Iqara Islam , que busca difundir conhecimentos sobre o povo islâmico, abordando diversos temas. Disponível em: https://iqaraislam.com/o-uso-do-rosario-tasbih-ou-masbaha , último acesso em 9 abr. 2019.
  • 51
    KEMP, E. W. (1948)KEMP. E. W. (1948), Canonization and authority in the western church. London, Oxford University Press. , Canonization and authority in the western church . London, Oxford University Press.
  • 52
    HAYNES, R. (1970)HAYNES, R. (1970), Philosopher king: the humanisty Pope Benedict XIV. London, Weidenfeld & Nicolson. , Philosopher king: the humanisty Pope Benedict XIV . London, Weidenfeld & Nicolson.
  • 53
    De acordo com o site Iqara Islam , “Muçulmanos tradicionalmente usam o termo árabe wali (pl: awliya), uma abreviação de wali Allah (amigo de Deus), para descreverem um santo ou pessoa sagrada. O verbo waliya (da mesma raiz trilateral, w-l-y ) significa “estar perto”, “estar próximo”, “seguir” ou “ser amigo”. Em outras palavras, um santo na tradição islâmica é alguém que é próximo (no sentido de ser devoto) a Deus”. Disponível em: https://iqaraislam.com/o-papel-dos-santos-no-islam-muculmanos-acreditam-em-santos , último acesso em 9 abr. 2019.
  • 54
    “Ortopraxia quer dizer que o Islã pede a seus fiéis que abracem um conjunto de preceitos práticos, um conjunto de regras divinamente fundamentadas que devem ser concretamente seguidas dia a dia” ( Pace, 2005, pPACE, E. (2005), Sociologia do Islã: fenômenos religiosos e lógicas sociais. Rio de Janeiro, Vozes. , p. 130).
  • 55
    No original: “could not have social roles corresponding to the Christian saints”.
  • 56
    “[…] pois afinal de contas ao verdadeiro convertido cumpre provar para si mesmo e para os outros ao menos isto, que o pecado ‘não mais tem poder sobre ele’” ( Weber, 2004, pWEBER, M. (2004), A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. São Paulo, Companhia das Letras. , p. 128).
  • 57
    “Quanto mais radicalmente for concebida a transcendência de Deus, mais o destino salvífico do indivíduo tende a parecer predestinado; quanto mais coerentemente os fiéis seguirem a ideia de predestinação, maiores são as tensões entre Deus e o homem” ( Schluchter, 2011, pSCHLUCHTER, W. (2011), Paradoxos da modernidade: cultura e conduta na teoria de Max Weber. São Paulo, Editora Unesp. , p. 177).
  • 58
    Em árabe, íshlam que dizer “submissão à onipotência de Deus”.
  • 59
    ATTANTÁWY, A. (1990)ATTANTÁWY, A. (1990), Apresentação geral da religião do Islam. São Paulo, Editora Orgrafic. , Apresentação geral da religião do Islam . São Paulo, Editora Orgrafic.
  • 60
    (i) testemunhar que não há outra divindade além de Allah ( shahada ); (ii) orar durante cinco vezes ao dia ( salat ); (iii) distribuir 2,5% dos seus bens, após terem alcançado um certo limite ( zakat ); (iv) jejuar durante o nono mês do calendário islâmico, o mês de Ramadan ( siám ); e (v) pelo menos uma vez na vida peregrinar até Meca, afastando-se de tudo que é material para viver num plano superior ( hajj ).
  • 61
    Os cinco pilares de prática do Islã são: (i) shahada ; (ii) salat ; (iii) zakat ; (iv) jejum no mês de Ramadan ; e (v) hajj – a peregrinação à Meca. Já os seis pilares da fé islâmica são: (i) a crença somente em Allah ; (ii) a crença em seus anjos; (iii) a crença nos seus mensageiros; (iv) a crença nos seus livros; (v) a crença no Dia do Juízo Final; e (vi) a crença em Al-Qadar – predestinação. Disponível em: https://iqaraislam.com/os-6-pilares-da-fe-islamica , último acesso em 9 abr. 2019.
  • 62
    No original: “the transition from Islam of a monetary economy to an agricultural, military regime”.
  • 63
    No original: “of its patrimonial structure”.
  • 64
    No original: “but the political position of the mercantile classes in relation to the dominant military-bureaucratic classes in Islamic societies”.
  • 65
    Sura Al-Baqarah: a sura da vaca (2). “275. Os que devoram a usura não se levantam senão como se levanta aquele que Satã enfurece com a loucura. Isto porque dizem: ‘A venda é como a usura’. Ao passo que Allah tornou lícita a venda e proibiu a usura. Então, aquele a quem chega extorsão de seu Senhor e se abstém da usura, a ele pertencerá o que se consumou, e sua questão será entregue a Allah ” (Alcorão, 2005, parte 3, p. 76).
  • 66
    No original: “en la Suna, como en el Corán, ni se pronuncia sobre el capitalismo. No se cuestiona la propiedad privada”.
  • 67
    No original: “tanto el Corán como la tradición consideran favorablemente la actividad económica, la búsqueda del lucro, el comercio y, por lo tanto, la producción para el mercado”.
  • 68
    No original: “severely monotheistic and monocratic of Islam, is aware of the prohibition of claims of mediation between God and man and generally oriented to puritanism and scripturalism”.
  • 69
    No original: “ecstacy more than rule-observance”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Fev 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    18 Ago 2018
  • Aceito
    07 Set 2019
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