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Milagre italiano: caos, crise e criatividade

Inovação é bem mais que tecnologia

Maria Lucia MACIEL. Milagre italiano: caos, crise e criatividade. Brasília, Paralelo 15/Relume Dumará, 1996. 204 páginas.

Francisco Lima V. Teixeira

A mudança tecnológica, desde os economistas clássicos, é considerada a variável chave para a compreensão do processo de desenvolvimento econômico. No entanto, chega a ser surpreendente o limitado conhecimento que ainda se tem a respeito dos elementos que impulsionam e condicionam o surgimento e a difusão de inovações tecnológicas, principalmente os relacionados às condições sociais que permeiam a utilização do conhecimento em produtos, processos e formas organizacionais diferenciadas. Essa surpresa torna-se ainda maior quando se admite que a relação entre progresso técnico e mudança social está na origem da complexa dinâmica da sociedade capitalista. Nesse caso, o mercado, mesmo com todas as suas possíveis virtudes, não poderia ser considerado a única força propulsora e organizadora das atividades econômicas.

De que forma compreender o mistério do milagre italiano dos anos 80? Como um país pode sair de uma caótica e permanente crise, ao menos do ponto de vista de um observador externo, para uma sociedade que chega aos anos 90 contendo todos os componentes de uma criativa modernidade? O que explicaria esse paradoxal fenômeno do sorpasso italiano?

Para compreender essa rica e multifacetada realidade, Maria Lucia Maciel lança mão, exatamente, dos conceitos originalmente formulados pelos economistas clássicos, que se encontram, contudo, mais evidenciados em Marx: crise e desenvolvimento de sociedades capitalistas só podem ser entendidos a partir da inter-relação entre forças de produção e relações sociais. Nessa direção, a autora vai buscar no conceito de inovação, primeiramente formulado por Schumpeter, a chave para desvendar o mistério. Porém, indo mais longe, esse conceito é utilizado de uma forma até certo ponto inovadora: para Maria Lucia, a inovação é vista como uma síntese entre mudanças tecnológicas e sociais, mas tendo como referência a história cultural da sociedade analisada.

Se essa é a proposta, cumpre desvendar os componentes da cultura e das relações sociais que tiveram influência no fenômeno do sorpasso, cuja gênese não poderia estar circunscrita aos anos 80. Em primeiro lugar, a tradição italiana, anterior ao Renascimento, de fundir arte e técnica na produção dos mais variados bens culturais e de consumo é lembrada. Essa tradição, mesmo atravessando confusos períodos históricos, teria se enfronhado no inconsciente coletivo do povo de Bota, sendo responsável por grande parte da criatividade encontrada na sua produção, marcada pela originalidade do design. A cultura técnica italiana teria, portanto, raízes históricas profundas e estaria estreitamente vinculada à criação artística nos seus períodos áureos.

No campo da organização social, o familismo é destacado como base social e princípio chave para entender a organização do Estado, dos partidos, das empresas e da Máfia. A família, na Itália, seria a principal mediadora entre os interesses particulares e o bem comum. Aqui, o paralelo com o Brasil torna-se inevitável, principalmente quando Sérgio Buarque de Holanda é lembrado. Para ele, a transcendência da ordem familiar patriarcal pelo Estado moderno, não totalmente consolidada no Brasil, traria embutidas crises graves e prolongadas, de conseqüências imprevisíveis. No caso italiano, de acordo com Maria Lucia Maciel, a crise provocada pela oposição entre ordem familiar e Estado, ao invés de impedir a liberação das forças criativas, contribui para, diante da inoperância do Estado, estabelecer as condições de sobrevivência da população em bases sociais e produtivas inovadoras.

Esse é um ponto chave da análise apresentada no livro: as empresas familiares representam uma alternativa de sobrevivência perante a crise econômica e política dos anos 70. A sua organização e gerência são originais, inovadoras, sintonizadas com as mudanças requeridas pelo novo paradigma industrial-tecnológico. Elas têm em comum, além da origem familiar, a ênfase no projeto, o bom gosto do design. Porém, as formas de organizar e gerir a produção são diferenciadas e adaptadas às alternativas tecnológicas e padrões de concorrência vigentes em cada mercado. A microeletrônica é absorvida e reconstruída no processo produtivo, mas a chave do seu sucesso está na utilização intensiva do conhecimento, ou da cultura técnica, dos trabalhadores.

Em face das dificuldades para construir um Estado imune ao patriarcalismo e ao clientelismo, a descentralização administrativa, calcada nas diversidades históricas e geográficas, foi a solução encontrada. Ela é fundamental para o surgimento de iniciativas locais e regionais visando à criação de arranjos institucionais voltados para estimular a difusão de tecnologias e a formação de recursos humanos. Esses arranjos unem empresas, universidades, centros técnicos, entidades da sociedade civil, sindicatos e administrações locais na busca de soluções adequadas para problemas particulares, em oposição aos grandes projetos centralizadores. É importante reconhecer que esses arranjos também favorecem o surgimento de normas inovadoras de relacionamento entre as diversas instituições, estabelecendo as convenções requeridas pelo novo regime técnico-econômico.

Muito embora a autora enfatize mais a dualidade entre empresa familiar e os grandes conglomerados (Fiat, Olivetti etc.), permanece a dúvida se essa relação é de oposição ou de complementaridade, como em outras economias modernas. Assim como não fica muito claro de que forma "[...] a lógica familiar, neste caso, se sobrepõe à lógica do capital" (p. 60). Uma interpretação alternativa poderia entender as particularidades do caso italiano como uma adaptação da lógica capitalista a circunstâncias diferenciadas, sem que, com isso, ela seja sobreposta. Essa capacidade de adaptação não é circunscrita ao contexto italiano: é um elemento essencial para explicar a dinâmica econômica de variadas formações sociais penetradas pelo capitalismo. Por sua vez, inovações organizacionais e na gestão do trabalho, de acordo com uma visão alternativa à da autora, não representariam o estabelecimento de novas relações de produção, no seu sentido mais amplo.

O sorpasso italiano não teve por trás uma política de Ciência e Tecnologia prodigiosa, nem uma universidade forte. Apesar de os gastos com C&T terem aumentado nos anos 80 e 90, eles ainda se encontram em patamares bastante inferiores aos dos principais países europeus, por exemplo. A universidade italiana, conforme relato da autora, padece de problemas tão grandiosos quanto o número dos seus alunos, tanto no que se refere ao ensino como à institucionalização da pesquisa. Fruto da inoperância do regime político e da administração estatal, a política de C & T e a universidade italianas parecem que foram deixadas à margem, exceto quando foram capazes de vencer barreiras para se juntarem aos esforços descentralizados de geração e, principalmente, difusão do conhecimento necessário à recuperação econômica.

Esse é um ponto importante: a recuperação italiana não se baseou na criação de novas tecnologias, em inovações básicas, para utilizar a terminologia schumpeteriana. A difusão de inovações técnicas, facilitada pelo contexto sociocultural, foi o elemento propulsor básico. No entanto, essa difusão não prescindiu da criatividade. Ao contrário, a conquista de mercados internacionais, principalmente por grupos de empresas da Terceira Itália, teve como substrato de competitividade a diferenciação do produto, possibilitada pelas formas organizacionais adotadas, pelo gerenciamento das novas tecnologias e pela excelência do design.

As lições para o Brasil são inúmeras, mesmo considerando a inadequação da transposição de "modelos". Pela impossibilidade de enumerá-las, vale mencionar, talvez, a mais importante: políticas de C&T que proponham aumento de investimentos na área são necessárias mas insuficientes quando o objetivo é transformar conhecimento em inovação e desenvolvimento. Para isso, elementos da cultura e da organização social precisam ser identificados e estimulados. Essa é uma tarefa que não está restrita ao âmbito do Estado nem do governo central, mas envolve todas as formas de organização da sociedade civil. No caso do Brasil, já começamos a colher exemplos, ainda que isolados, de que é possível superar o caos e a crise com inovação e criatividade.

Milagre italiano: caos, crise e criatividade é um livro altamente recomendável para todos aqueles que estão preocupados em encontrar caminhos para o desenvolvimento brasileiro. É leitura essencial para os que estudam as inovações tecnológicas e não estão satisfeitos com os "modelos" parciais e insuficientes disponíveis para se compreender o painel "holográfico" e "multidimensional", como diz a autora, que caracteriza o processo social de inovação. O livro é ainda mandatório para aqueles que lidam com políticas públicas mas que demonstram uma crise de criatividade sem precedentes na nossa história.

FRANCISCO LIMA V. TEIXEIRA

é pesquisador do Núcleo de Pós-Graduação em Administração da Universidade Federal da Bahia.

Atualmente encontra-se em estágio de pós-doutoramento na Universidade do Texas, Austin.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Fev 1999
  • Data do Fascículo
    Out 1997
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