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Animais domesticados e desastres: entre a preocupação sanitária e humanitária

RESUMO:

Os últimos anos no Brasil foram marcados pela existência de desastres de ordem natural e tecnológica. Além dos impactos socioambientais, existe outra tensão, de ordem moral, envolvendo o lugar ocupado por animais domesticados. O objetivo do artigo é compreender as complexidades em jogo na virada humanitária em relação a esses animais. A partir de consulta bibliográfica e de fontes jornalísticas, observei o questionamento do modo como esses animais eram governados sob a perspectiva de riscos sanitários e, em segundo lugar, a reivindicação de que sejam incorporados nas respostas aos desastres como vítimas humanitárias. Com base na discussão sobre “empreendedorismo moral” (Becker, 2008) e sobre a “desculpa” (Werneck, 2012), foi possível compreender que a crítica de ineficiência do aparato estatal pode ser pensada como a reivindicação de um novo enquadramento moral dos animais com implicações éticas e estruturais sobre o papel de instituições públicas e privadas no governo das vidas animais.

Palavras-chave:
relação humano e animal; desastres; sociologia e antropologia da moral; governamentalidade; humanismo

ABSTRACT:

The last years in Brazil were marked by the existence of natural and technological disasters. In addition to the social and environmental impacts, there is another tension, of a moral order, involving the place occupied by domesticated animals. The aim of the article is to understand the complexities at play in the humanitarian turn towards these animals. From bibliographic consultation and journalistic sources, I observed the questioning of the way these animals were governed from the perspective of health risks, and secondly, the demand that they be incorporated in the responses to disasters as humanitarian victims. Based on the discussion on “moral entrepreneurship” (Becker, 2008) and on the “excuse” (Werneck, 2012) it was possible to understand that the criticism of the inefficiency of the state apparatus can be thought of as a claim for a new moral framework for animals with ethical and structural implications on the role of public and private institutions in the governance of animal lives.

Keywords:
human and animal relationship; disasters; sociology and anthropology of morals; governmentality; humanism

Introdução

Na tarde do dia 25 de janeiro de 2019, quando houve o rompimento da barragem de Brumadinho (MG), as primeiras imagens veiculadas nas mídias televisivas demonstraram o mar de lama que avançou pela área rural do município. Quando ainda não havia informações precisas sobre o ocorrido e sobre o número de pessoas atingidas, as imagens aéreas, além da lama de resíduos, focalizaram repetidamente um bovino praticamente coberto em meio a esse material. A imagem se tornou uma das cenas emblemáticas de mais esse “evento ambiental extremo” (Taddei, 2014TADDEI, Renzo. (2014), Sobre a invisibilidade dos desastres na antropologia brasileira. “Water-related disasters: from trans-scale challenges to interpretative multivocality”. Working Paper, 1, 1.), promovido pela Cia Vale do Rio Doce. Em novembro de 2015, houve o rompimento de outra barragem ligada à mesma empresa, no município de Mariana, também no estado de Minas Gerais.

Para além de todo o pesar sentido pelas consequências desse evento, o protagonismo adquirido pelo bovino captou minha atenção, tendo em vista o interesse de pesquisa sobre as relações humanos e animais. Nos dias que se seguiram, passei a acompanhar a cobertura midiática sobre as questões envolvendo o salvamento desse e de outros animais. As reportagens veiculadas relataram os esforços de médicos veterinários e protetores que chegaram a Brumadinho para atuar de forma voluntária. E chamou minha atenção que a cobertura jornalística e o conteúdo das reportagens, caracterizados pela preocupação moral com a vida dos animais, não foram divulgados por portais organizados por ativistas. Mas foi realizada pela imprensa em geral, em conjunto com a cobertura mais ampla do desastre.

Nesse sentido, observa-se que os noticiários publicados diariamente sobre a situação dos animais afetados pelo rompimento da barragem trouxeram informações sobre a contabilização diária de espécies resgatadas, o tratamento médico veterinário destinado às vítimas e seu estado de saúde, a descrição das diferentes espécies atendidas, os conflitos e os desafios ligados aos processos de resgate, bem como informações sobre a atuação das equipes voluntárias envolvidas. Essas reportagens demonstravam preocupação com as condições de vida dos animais, ao relatar, por exemplo, que “estavam presos sem água e comida”; que havia “animais vivos em condições degradantes”; falavam da “enorme quantidade de animais presos no lamaçal, entre vacas, cães e capivaras”, e que também havia “muitos animais que ainda estavam vivos nos escombros do desastre”. De maneira geral, as reportagens pontuavam que os “animais também são vítimas do rastro de lama que destruiu instalações da Vale e casas em Brumadinho, após o rompimento de barragens”, e ressaltaram que “o sofrimento é também de animais que agonizam presos na lama”.

Até meados dos anos 2010, o tema dos desastres nas ciências sociais brasileiras, e mais especificamente na antropologia, é discutido por Renzo Taddei (2014)TADDEI, Renzo. (2014), Sobre a invisibilidade dos desastres na antropologia brasileira. “Water-related disasters: from trans-scale challenges to interpretative multivocality”. Working Paper, 1, 1. como inexistente. O antropólogo atribui esse aspecto à ideia difundida no século XX, de que não haveria desastres no país. Entretanto, ele aponta que as notícias evidenciam a ocorrência cíclica de acontecimentos como secas, cheias, inundações, e de ordem tecnológica. Consequentemente, o autor tem importância na formação desse campo de pesquisa, tanto no sentido de dar visibilidade ao tema, quanto no esforço de desenvolver linhas epistemológicas e metodológicas para fazer de eventos críticos objeto de estudo da antropologia. Ele chama atenção de que é preciso levar em consideração a reação coletiva e o esforço de reorganização daqueles que foram vítimas, não só em termos materiais, mas também relacionados aos padrões de organização social e cultural: “em todas as coletividades humanas há valores e preceitos culturais a respeito de como se deve entender e relacionar-se com a vida, a morte, o corpo, a dor, o lar, o trabalho; de si e dos outros, em suas complexas redes e hierarquias de relações familiares, sociais e políticas” (Taddei, 2015TADDEI, Renzo. (2015), “O lugar do saber local (sobre ambiente e desastres)”, in A. Siqueira; N. Valencio; M. Siena; M.A. Malagoli. (orgs.). Riscos de desastres relacionados à água: aplicabilidade de bases conceituais das ciências humanas e sociais para a análise de casos concretos, São Carlos, Rima Editora., p. 313). A partir dessas considerações, será discutido, aqui, como esses aspectos dizem respeito também às relações entre humanos e animais.

Assim, para além do impacto relacionado à morte de centenas de pessoas, à destruição de infraestrutura ligada à moradia e à produção econômica, ao impacto sobre ecossistemas e à morte de animais silvestres1 1 Os animais silvestres são considerados propriedade do Estado e protegidos pela Lei Federal 5.197, de 03 de Janeiro de 1967. A proteção dessa categoria de animais relaciona-se à preocupação com o equilíbrio do ecossistema e o problema da biodiversidade. Trata-se, portanto, de um enquadramento distinto da problemática relacionada aos animais domesticados, que será discutida nesse trabalho e se vincula à proteção moral de suas vidas individuais. , existe uma tensão a mais nestes desastres, envolvendo o lugar ocupado pelos animais domesticados, e que está relacionado às transformações colocadas pela chamada ética animalista. Essa corrente, desenvolvida e acionada pelos defensores dos animais, visa habilitá-los enquanto pertencentes à mesma comunidade moral que os humanos, tornando suas vidas sacralizadas (Perrota, 2015PERROTA, Ana Paula. (2015), Humanidade estendida: a construção dos animais como sujeitos de direito. Tese de Doutorado. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.). Desse modo, a ética animalista consiste em um trabalho tanto intelectual quanto político, contra o “sofrimento” e os “maus tratos” dos animais, e vincula-se também aos Estudos Críticos Animais (Taylor e Twine, 2014TAYLOR, Nik; TWINE, Richard. (2014), The Rise of Critical Animal Studies, from the margins to the centre, Londres, Routledge.). Esse campo de pesquisa e ação tem em filósofos como Peter Singer (2010)SINGER, Peter. (2010), Libertação animal, São Paulo, Editora WMF Martins Fontes., Tom Regan (2006)REGAN, Tom. (2006), Jaulas Vazias, Porto Alegre, Lugano. e Gary Francione (2013)FRANCIONE, Gary. (2013), Introdução aos Direitos dos Animais, Campinas, SP, Editora Unicamp. os seus principais expoentes, igualmente considerados fundadores do moderno movimento de direito dos animais.

O esforço de tornar os animais “sujeitos de uma vida” (Regan, 2006REGAN, Tom. (2006), Jaulas Vazias, Porto Alegre, Lugano.) ocorre através da busca pela identificação de continuidades entre humanos e não humanos, em áreas como a senciência, a experiência emocional, a vida social e a inteligência. Esses estudos pretendem fundamentar tais simetrias, e então constituir as bases para respaldar uma transformação moral sobre o status dos animais e as ações políticas a seu favor (Perrota, 2015PERROTA, Ana Paula. (2015), Humanidade estendida: a construção dos animais como sujeitos de direito. Tese de Doutorado. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.). Esta problemática também é alvo de análise entre cientistas sociais, que buscam analisar os novos modos de relação multiespécie que emergem do questionamento da fronteira moral entre humanos e animais (Perrota, 2015PERROTA, Ana Paula. (2015), Humanidade estendida: a construção dos animais como sujeitos de direito. Tese de Doutorado. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.; Osório, 2013OSÓRIO, Andréa. (2013), “A cidade e os animais: da modernização à posse responsável”. Teoria e Sociedade, 21, 1, janeiro-junho.; Farage, 2013FARAGE, Nadia. (2013), No collar, no master: workers and animals in the modernization of Rio de Janeiro 1903-04, in Transcultural Modernisms, models house research Group. (orgs.), AMIR et al., Sternberg Press, Berlim.; Lima e Brito, 2016LIMA, Maria Helena Costa Carvalho de A.; BRITO, Simone Magalhães. (2016), “Civilidade e empatia em disputa: o problema do controle de animais no espaço público”. Iluminuras, Porto Alegre, 17, 42: 316-349, ago/dez.; Segata, 2012SEGATA, Jean. (2012), Nós e os outros humanos, os animais de estimação. Tese de Doutorado em Antropologia Social – Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catarina, Santa Catarina.). Tais pesquisas apontam que os arranjos nessas relações se multiplicam, assim como os conflitos decorrentes de perspectivas discrepantes a respeito dos animais (Lima, 2016LIMA, Maria Helena Costa Carvalho de A. (2016), Animais de estimação e civilidade. A sensibilidade de empatia interespécie nas relações com cães e gatos. Tese de Doutorado em Sociologia - Programa de Pós Gradução em Sociologia, Universidade Federal de Pernambuco, Pernambuco.). Esse debate abrange os processos sociais em torno da negociação da humanidade dos animais de estimação (Segata, 2012SEGATA, Jean. (2012), Nós e os outros humanos, os animais de estimação. Tese de Doutorado em Antropologia Social – Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catarina, Santa Catarina.), bem como de um número maior de espécies reivindicadas como portadoras de direitos análogos aos humanos (Perrota, 2015PERROTA, Ana Paula. (2015), Humanidade estendida: a construção dos animais como sujeitos de direito. Tese de Doutorado. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.).

Conforme estes novos arranjos produzem distintas implicações socioantropológicas, pretendo abordá-los, considerando o lugar ocupado pelos animais nos chamados eventos ambientais extremos. Como será discutido, desde a passagem do Furacão Katrina, em Nova Orleans (EUA), em 2005, esta tensão vem se colocando como incontornável, inclusive no Brasil. Como veremos, os chamados animais de companhia, notadamente cães e gatos, possuem protagonismo, no entanto, a partir do que aconteceu em Brumadinho, outras categorias, como os animais de produção, também adquirem relevância. Portanto, é sobre o lugar ocupado pelos animais domesticados, em situações de desastres, bem como o engajamento de pessoas e grupos voluntários para o seu resgate, que esse trabalho irá se deter.

Considera-se ainda como interesse desse trabalho refletir em particular sobre como as instituições públicas são pressionadas a acomodar o salvamento de vidas animais ao lado das vidas humanas. A esse respeito, cabe ressaltar que a governamentalidade dos animais será discutida nos termos da biopolítica (Foucault, 1988FOUCAULT, Michel. (1988), A história da sexualidade. A vontade de saber, Rio de Janeiro, Edições Graal.). Trata-se de seguir a interpretação de Cary Wolfe (2009)WOLFE, Cary. (2009/8), “Devant la loi. Les animaux dans le contexte de la biopolitique”. Critique, 747-748: 702-715. , que aponta que as práticas de sujeição e administração do vivo desdobram-se para além das fronteiras entre as espécies. Portanto, as medidas destinadas aos animais serão pensadas não meramente como uma forma de manejo técnico, mas como uma ação política e moral. Assim, espera-se compreender as transformações em jogo, a partir do enquadramento dos animais como vítimas humanitárias dos desastres.

Para tratar destes temas, contarei inicialmente com uma pesquisa bibliográfica sobre o resgate dos animais, no Brasil e em outros países, como Estados Unidos e Austrália. Na primeira e segunda sessão deste artigo, analisarei a produção de um conjunto de autores, a fim de compreender os desafios, as tensões, as justificativas e as mudanças preconizadas para que animais sejam incluídos nos planos de resgate. Tendo essa bibliografia como material referencial privilegiado, buscarei também apontar sínteses, de modo que em algumas ocasiões os autores analisados não serão citados individualmente, mas tratados em conjunto, conforme os temas se repetem nas obras analisadas.

Na última sessão, utilizarei fontes jornalísticas e de outras mídias virtuais, a respeito do rompimento da barragem da Vale, em Brumadinho, em 2019. O objetivo será discutir uma situação específica, envolvendo dois conflitos em torno do resgate de bovinos que ficaram atolados ou ilhados em meio à lama de rejeitos. Tal contexto será analisado a fim de avançar na compreensão sobre as dificuldades e complexidades que permeiam a transformação dos animais em vítimas humanitárias dos desastres; até mesmo porque, nesse caso, o que estava em jogo não era a vida de animas de companhia, mas de produção. E então veremos que a questão animal se impõe nessa situação para além do vínculo existente entre tutores e cães e gatos, e se coloca alinhada às perspectivas da ética animalista, que trata a questão animal, independentemente da espécie, como uma questão de justiça e não como uma problemática ligada às sensibilidades individuais (Perrota, 2015PERROTA, Ana Paula. (2015), Humanidade estendida: a construção dos animais como sujeitos de direito. Tese de Doutorado. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.).

Cabe ressaltar, por fim, que a bibliografia consultada para as discussões das primeiras sessões deste artigo aborda a questão do resgate de animais de forma crítica e propositiva, apontando o que seriam faltas, negligências ou ineficiências do aparelho estatal, ao mesmo tempo que busca apontar caminhos para a superação desses problemas. Diversamente, pretendo tratar do tema a partir de um debate sobre a moral, pensando de maneira geral na discussão de Howard Becker (2008)BECKER, Howard Saul. (2008), Outsiders: estudos de sociologia do desvio, Rio de Janeiro, Zahar. sobre empreendedorismo moral, de que regras são criações e, portanto, os grupos sociais criam regras e tentam, em algumas circunstâncias, impô-las. A ideia é então pensar como a ética animalista, considerada como uma regra moral, se impõe, provoca tensões e pressiona o aparato estatal a lidar a partir do viés humanitário com animais em situações de desastre.

Nesse sentido, o trabalho de Alexandre Werneck (2012)WERNECK, Alexandre. (2012), A Desculpa: As Circunstâncias e a Moral das Relações Sociais, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira., sobre a desculpa como um dispositivo, será também um instrumento de análise importante, a fim de discutirmos como a ética animalista, elaborada e reivindicada pelos defensores dos animais, passa a ser incorporada pelos diferentes agentes estatais. Em diálogo com o autor, serão analisadas entrevistas e notas oficiais emitidas pelos agentes envolvidos com o resgate de não humanos, em Brumadinho, em razão de procedimentos realizados que foram alvos de críticas e contestações.

O entrelaçamento de vidas animais e humanas em situações de desastres

Desde o momento em que comecei a acompanhar a cobertura midiática sobre a situação dos animais em Brumadinho, imaginei que estaria diante de um fato novo. No entanto, as pesquisas bibliográficas iniciais indicaram que a situação não era uma novidade, tal como eu imaginava. O primeiro texto encontrado foi uma dissertação de mestrado brasileira, defendida em 2016. O trabalho de Layla Stassun Antonio aborda o tema, focando a partir de uma situação específica: os desastres ocorridos na Região Serrana, no estado do Rio de Janeiro, em 2011. A partir dessa dissertação, encontrei uma bibliografia produzida por autores vinculados às ciências humanas e naturais, dos Estados Unidos e da Austrália, que abordam essa problemática de forma interdisciplinar.

Tais autores (White, 2012WHITE, Steven. (2012), “Companion Animals, Natural Disasters and the law: An Australian Perspective”. Animals, 2: 380-394.; Thompson, 2013THOMPSON, Kirrilly. (2013), “Save me, save my dog. Increasing natural disaster preparedness and survival by addressing human-animal relationships”. Australian Journal of Communication, 40, 1.; Irvine, 2006IRVINE, Leslie. (2006), “Animals in Disasters: Issues for Animal Liberation Activism and Policy”. Animal Liberation Philosophy and Policy Journal, IV, 1.; Hesterberg et al., 2012HESTERBERG, Uta; HERTAS, Gerardo; APPLEBY, Michael. (2012), “Perceptions of pet owners in urban Latin America on Protection of their animals during disasters”. Disaster Prevention and Management, 21, 1.; Heath e Linnabary, 2015HEATH, Sebastian; LINNABARY, Robert. (2015), “Challenges of managing animals in disasters in the U.S”. Animals 2015, 5, 173-192. Rev. Sri Tech. Off. Int. Epiz, 37,1: 223-230.; Darroch e Adamson, 2016DARROCH, John; ADAMSON, Carole. (2016), Companion animals and disasters: the role of human services organizations. Aotearoa New Zealand Social Work, 28, 4.) desenvolvem o tema a partir de três eventos principais: o Furacão Katrina, ocorrido nos EUA, em 2005; os incêndios que acometeram a Austrália, em Victoria, no ano de 2009; e as inundações também ocorridas no território australiano, em Queensland, na passagem de 2010 para 2011. De maneira geral, os trabalhos enfocam problemas técnicos, políticos, jurídicos, e os dilemas morais que envolvem o resgate de animais em desastres. Além disso, trazem uma perspectiva crítica em razão da percepção de que não haveria o esforço e nem o apoio adequados, por parte das instâncias governamentais, para que animais fossem resgatados.

Portanto, um primeiro aspecto observado nestes trabalhos é o posicionamento crítico sobre o fato de que seres humanos e animais seriam vistos pelas instâncias governamentais como tendo necessidades diferentes, durante um desastre. Essa perspectiva é justificada por meio da constatação de que as agências estatais não possuiriam engajamento, normas ou diretrizes para o salvamento de animais. Diante desse panorama, os pesquisadores chamam atenção para o que seria a situação de vulnerabilidade de não humanos, lembrando que estes também sofreriam riscos quando um desastre ocorre:

A medida que incorporamos animais nas sociedades humanas, nós também os expusemos aos perigos. Como animais de companhia dividem nossas casas, eles estão expostos aos mesmos riscos de fogo, clima e outros perigos que podem feri-los, ameaçar suas vidas ou requerer evacuação. Somos responsáveis também por seu bem-estar. (Irvine, 2006IRVINE, Leslie. (2006), “Animals in Disasters: Issues for Animal Liberation Activism and Policy”. Animal Liberation Philosophy and Policy Journal, IV, 1., p. 14)

Diante da consideração da falta de ação por parte dos órgãos oficiais, os estudos consultados discutem sobre a iniciativa de grupos sociais, formados por voluntários e ativistas ligados à proteção dos animais, que realizam esforços para o salvamento de vidas não humanas. Estes grupos estariam, segundo os autores analisados, à frente das instâncias governamentais, uma vez que já teriam entendido que animais são igualmente vítimas de desastres. No entanto, conforme a bibliografia indica, os sucessivos eventos ambientais ocorridos desde os anos 2000 teriam contribuído para o aumento da consciência sobre a preocupação com o bem-estar dos animais (Heath e Linnabary, 2015HEATH, Sebastian; LINNABARY, Robert. (2015), “Challenges of managing animals in disasters in the U.S”. Animals 2015, 5, 173-192. Rev. Sri Tech. Off. Int. Epiz, 37,1: 223-230.). E, então, seria possível observar o aumento de ações direcionadas, inclusive pelo Estado, para tais resgates.

No entanto, o reconhecimento acerca da importância do salvamento de animais traz outro problema implícito: quais espécies resgatar? A tensão provocada por esta preocupação não diz respeito apenas ao questionamento se animais devem ou não ser salvos, mas também sobre quais espécies deveriam ser resgatadas. Esta não é uma pergunta simples, na medida em que a resposta envolve o emaranhado de conexões estabelecidas entre humanos e animais e os diferentes enquadramentos morais nos quais as espécies estão inscritas, inclusive por parte dos ativistas ligados à causa animal. Conforme discuti em trabalho anterior, Perrota (2015)PERROTA, Ana Paula. (2015), Humanidade estendida: a construção dos animais como sujeitos de direito. Tese de Doutorado. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro., Marshall Sahlins (2003)SAHLINS, Marshall. (2003), Cultura e Razão Prática, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed. e Edmund Leach (1983)LEACH, Edmund. (1983), Aspectos antropológicos da linguagem: categorias animais e insulto verbal, in Roberto DaMatta (org.), Edmund Leach. Coleção grandes cientistas sociais, São Paulo, Ática. dedicaram-se a compreender a constituição das distintas relações entre humanos e as espécies animais, considerando o tratamento diferente que recebem, no que diz respeito, por exemplo, à classificação da comestibilidade e não comestibilidade, e também sobre a associação entre eles e xingamentos morais. Observamos, então, que o processo de inclusão dos animais no âmbito da proteção moral da vida não é uma questão óbvia e merece ser analisada.

Conforme os trabalhos analisados, observa-se a consideração moral sobre duas categorias de animais domesticados: os animais de companhia e os de trabalho (produção e laboratório). No entanto, os autores ressaltam que tanto os esforços de voluntários e ativistas quanto as medidas oficiais cobrem de maneira mais fundamental os chamados animais de companhia (cães e gatos). Embora mencionem que as necessidades de todas as espécies são igualmente importantes, o foco sobre cães e gatos é compreendido como reflexo do significado afetivo e do vínculo emocional existente entre eles e seus tutores. A desatenção às outras categorias de animais ocorreria, por exemplo, devido ao fato de que os custos para o resgate poderiam ser superiores ao seu próprio valor econômico.

A preocupação com os animais em situações de desastres teve como marco significativo os desdobramentos envolvendo humanos e seus animais de companhia, durante e após a passagem do Furacão Katrina, em Nova Orleans, no ano de 2005. Para esse conjunto de autores analisados, desde então os animais adquiriram um novo contorno político e moral, tornando-se obrigatória a discussão sobre o modo como são convencionalmente tratados por parte de agências governamentais. O Furacão Katrina tornou-se emblemático, devido a uma política de resgate que foi, ou passou a ser, considerada trágica. Durante o processo de retirada dos moradores, estes denunciaram que foram impedidos por socorristas de levar seus animais. Como apresenta Leslie Irvine (2006)IRVINE, Leslie. (2006), “Animals in Disasters: Issues for Animal Liberation Activism and Policy”. Animal Liberation Philosophy and Policy Journal, IV, 1., a partir inclusive de sua experiência como voluntária no local após a passagem do furacão, os moradores relataram que foram forçados a abandonar cães e gatos durante o salvamento, sob a ameaça de serem presos. Essa proibição se deu, pois a legislação impedia o transporte dos animais em qualquer veículo público.

Os animais de estimação foram então deixados para trás, uma vez que não puderam ser levados nos transportes utilizados (barcos, helicópteros, veículos de emergência), nem poderiam ser mantidos nos abrigos em que os moradores removidos foram alojados (pois também não eram ali aceitos). Ao longo de seis dias após a passagem do furacão, como relata Irvine (2006)IRVINE, Leslie. (2006), “Animals in Disasters: Issues for Animal Liberation Activism and Policy”. Animal Liberation Philosophy and Policy Journal, IV, 1., grupos interessados em resgatá-los, incluindo voluntários e tutores, foram proibidos de entrar em Nova Orleans, devido a bloqueios policiais e militares. Em decorrência dessa situação, a autora aponta que cerca de 2000 animais foram mortos, pois não haveria estrutura para acomodá-los, sem contar o risco de propagação de doenças zoonóticas. O que observamos, então, a respeito das medidas que incidem sobre as populações animais em situações de desastre é que a busca por evitar uma crise sanitária fez deles possíveis disseminadores de doenças zoonóticas, de modo a que os animais domésticos, considerados “outros humanos” e “membros da família” (Segata, 2012SEGATA, Jean. (2012), Nós e os outros humanos, os animais de estimação. Tese de Doutorado em Antropologia Social – Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catarina, Santa Catarina.; Lima, 2016LIMA, Maria Helena Costa Carvalho de A. (2016), Animais de estimação e civilidade. A sensibilidade de empatia interespécie nas relações com cães e gatos. Tese de Doutorado em Sociologia - Programa de Pós Gradução em Sociologia, Universidade Federal de Pernambuco, Pernambuco.), fossem vislumbrados pelo Estado como “vilões epidêmicos” (Lynteris, 2019LYNTERIS, Christos. (2019), Framing Animals as Epidemic Villains – Histories of Non-Human Disease Vectors. Medicine and Biomedical Sciences in Modern History, Palgrave Macmillan, Inglaterra.).

A ambivalência acerca do enquadramento moral dos animais produz uma tensão entre o Estado, os moradores-tutores e os chamados protetores dos animais. E, se do ponto de vista do número de animais mortos durante a passagem do furacão Katrina, as diretrizes do plano de emergência resultaram em uma tragédia, tornando o desastre um evento emblemático, as consequências dessa política de resgate se revelaram também um problema humano. Os pesquisadores analisados chamam atenção de que, em razão do laço afetivo entre animais de estimação e seus tutores, a obrigação de deixá-los para trás criou uma série de riscos à saúde física e emocional das pessoas envolvidas. Como explicam Hesterberg et al. (2012)HESTERBERG, Uta; HERTAS, Gerardo; APPLEBY, Michael. (2012), “Perceptions of pet owners in urban Latin America on Protection of their animals during disasters”. Disaster Prevention and Management, 21, 1., se, no passado, a redução de risco, o planejamento e o plano de contingência raramente incluiam animais, a importância de levá-los em consideração tornou-se visível depois do Furacão Katrina, uma vez que “socorristas reportaram inúmeros incidentes em que pessoas recusaram-se a evacuar sem seus animais, o que atrasava severamente a operação e impactava no resgate da população” (p. 38).

A exclusão dos animais nos planos de resgate faz com que os moradores sejam “confrontados com a escolha entre deixar animais que são considerados membros da família e arriscar suas próprias vidas” (Irvine, 2006IRVINE, Leslie. (2006), “Animals in Disasters: Issues for Animal Liberation Activism and Policy”. Animal Liberation Philosophy and Policy Journal, IV, 1., p. 4). A situação identificada em Nova Orleans foi também observada em outros locais. De acordo com Thompson (2018)THOMPSON, Kirrilly. (2018), “Facing disasters together: how keeping animals safe benefits humans before, during and after natural disasters”. Rev Sci Tech. abril, 37, 1: 223-230., a partir da análise dos desastres ocorridos na Austrália, a recusa em aceitar animais em abrigos ou transportá-los resultou em dor, morte e sofrimento humano. Como aponta o autor, tutores de animais afirmaram que colocariam em risco suas vidas para salvá-los, pois consideram que esse gesto não seria diferente do esforço de salvamento de outro ser humano (Thompson, 2013THOMPSON, Kirrilly. (2013), “Save me, save my dog. Increasing natural disaster preparedness and survival by addressing human-animal relationships”. Australian Journal of Communication, 40, 1.). Igualmente, conforme observado no trabalho de Hesterberg et al. (2012)HESTERBERG, Uta; HERTAS, Gerardo; APPLEBY, Michael. (2012), “Perceptions of pet owners in urban Latin America on Protection of their animals during disasters”. Disaster Prevention and Management, 21, 1., muitos tutores gostariam de levar seus animais com eles em um desastre mesmo se isso afetasse sua própria segurança ou se demorassem alguns minutos a mais na evacuação” (p. 46).

A disposição apresentada pelos tutores em relação a seus animais de estimação foi considerada, primeiramente, um fator de risco para a evacuação precoce e a sobrevivência em desastres. No entanto, os autores analisados debatem que “o fracasso em evacuar animais traz riscos subsequentes e complicações para socorristas durante a ação” (Irvine, 2007IRVINE, Leslie. (2007), “Ready or not: Evacuating an animal shelter during a mock emergency”. Anthrozoös, 20, 4., p. 358). O foco no salvamento apenas de humanos contribuiria, assim, para a ocorrência de novos problemas. Desse modo, os riscos evidenciados por tutores e voluntários apontam para que socorristas e agências governamentais deixem de limitar o social aos humanos - questão esta, tratada em termos epistemológicos nas ciências sociais (Ingold, 1994INGOLD, Tim. (1994), Humanity and Animality, in Tim Ingold (ed.), Companion Encyclopedia of Anthropology (org.), London, Routledge: 14-32.; Latour, 2012LATOUR, Bruno. (2012), Reagregando o Social: uma introdução à Teoria do Ator-Rede. Trad. Gilson César Cardoso de Sousa, Salvador/Bauru, Edufba/Edusc.; Tsing, 2019TSING, Anna. (2019), Viver nas ruínas: Paisagens multiespécies no Antropoceno, Brasília, IEB Mil Folhas.), mas que, neste caso, adquire um conteúdo político e moral.

Observa-se, então, que as considerações apontadas desestabilizam a maneira como as vidas humanas e animais são consideradas nos desastres. A “prioridade dada às vidas humanas” passa a ser alvo de questionamento. Tais autores entendem que na medida em que seres humanos são as únicas vidas previstas de serem salvas nos planos de contingência, essa prioridade “criou essencialmente um segundo desastre, na forma do esmagador número de animais desabrigados, precisando de resgate, moradia e cuidados veterinários” (Irvine, 2006IRVINE, Leslie. (2006), “Animals in Disasters: Issues for Animal Liberation Activism and Policy”. Animal Liberation Philosophy and Policy Journal, IV, 1., p. 4). Ainda de acordo com Leslie Irvine (2006)IRVINE, Leslie. (2006), “Animals in Disasters: Issues for Animal Liberation Activism and Policy”. Animal Liberation Philosophy and Policy Journal, IV, 1., tal política desenharia uma linha entre diferentes tipos de vida, assumindo-se que vidas do lado humano são mais valiosas.

A valoração assimétrica entre a vida de humanos e animais é explicada como sustentada também pela legislação. Analisando o caso australiano, Steven White (2012WHITE, Steven. (2012), “Companion Animals, Natural Disasters and the law: An Australian Perspective”. Animals, 2: 380-394., p. 381) afirma que, na jurisdição, “a ênfase está na priorização da vida humana sobre a vida animal, assumindo implicitamente que existe um possível conflito entre os dois”. O autor aponta que a categorização legal estrita dos animais de companhia como propriedade ou coisas, ao invés de pessoa legal, repercute sobre o planejamento em desastre. E, contrariamente a esse enquadramento jurídico e moral, os autores analisados elaboram uma abordagem normativa quanto ao modo como animais deveriam ser entendidos e tratados: independente de opiniões diferentes sobre vida animal, esta deveria importar tanto quanto vidas humanas (Thompson, 2018THOMPSON, Kirrilly. (2018), “Facing disasters together: how keeping animals safe benefits humans before, during and after natural disasters”. Rev Sci Tech. abril, 37, 1: 223-230.).

Tendo em vista esta perspectiva, os trabalhos discutidos apontam para a necessidade do reconhecimento do valor intrínseco da vida dos animais, a fim de que eles sejam incluídos nos planos de emergência. Tal simetria à vida humana, igualmente alinhada à ética animalista, coloca em questão a própria separação entre humanidade e animalidade, que configura o pensamento moderno. Conforme discutido por Tim Ingold (1994)INGOLD, Tim. (1994), Humanity and Animality, in Tim Ingold (ed.), Companion Encyclopedia of Anthropology (org.), London, Routledge: 14-32., humanos e animais são definidos na modernidade enquanto classes de seres opostos, a partir da consideração de que os primeiros seriam portadores de competências exclusivas. Por sua vez, tal questão encontra consonância com a filosofia política e, portanto, com a moral, as quais se tornaram, desde o século XVII, formas de representação restritas aos humanos (Latour, 2004LATOUR, Bruno. (2004), “Por uma antropologia do centro”. Mana, 10, 2: 397-414.). Face a esse panorama, observa-se que o problema do salvamento dos animais desestabiliza um dos principais cânones do pensamento ocidental, e vai de encontro a uma abordagem nas Ciências Sociais que questiona os grandes divisores modernos.

Para além das questões que dizem respeito aos riscos físicos colocados à vida dos animais, tutores, voluntários e socorristas, Thompson (2018)THOMPSON, Kirrilly. (2018), “Facing disasters together: how keeping animals safe benefits humans before, during and after natural disasters”. Rev Sci Tech. abril, 37, 1: 223-230. discute ainda que o salvamento de animais tem impacto sobre o estresse e trauma relacionados aos desastres. A perda ou separação entre tutores e seus animais poderia impactar negativamente na “epidemia de sofrimento” (Taddei, 2014TADDEI, Renzo. (2014), Sobre a invisibilidade dos desastres na antropologia brasileira. “Water-related disasters: from trans-scale challenges to interpretative multivocality”. Working Paper, 1, 1.). Sobre esse assunto, Antonio (2016)ANTONIO, Layla Stassun. (2016), Desafios da (des)proteção de animais em contexto de desastres: o caso de Teresópolis/RJ. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Ciências da Engenharia Ambiental, Universidade de São Paulo. discute que a perda de animais de estimação seria “mais um pilar afetivo, identitário e socioeconômico que desaba em meio ao sofrimento multifacetado que um desastre causa” (p. 17). Nesse sentido, embora o impacto emocional de mortes humanas seja amplamente reconhecido, Antonio (2016)ANTONIO, Layla Stassun. (2016), Desafios da (des)proteção de animais em contexto de desastres: o caso de Teresópolis/RJ. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Ciências da Engenharia Ambiental, Universidade de São Paulo. debate como a perda de vidas animais também pode resultar em tristeza ou trauma psicológico, pois, conforme aponta Taddei (2015)TADDEI, Renzo. (2015), “O lugar do saber local (sobre ambiente e desastres)”, in A. Siqueira; N. Valencio; M. Siena; M.A. Malagoli. (orgs.). Riscos de desastres relacionados à água: aplicabilidade de bases conceituais das ciências humanas e sociais para a análise de casos concretos, São Carlos, Rima Editora., esses eventos “exacerbam a desestabilização das bases existenciais – materiais e simbólicas – da vida, de modo que toda a coletividade (ou grande parte dela) se veja atingida e os padrões ordinários da vida social ficam impossibilitados” (p. 314). Observa-se, então, que as relações entre humanos e animais constituem também uma base significativa no esforço coletivo de reorganização social após o desastre.

Portanto, embora humanos e animais venham sendo tratados nesses eventos críticos como entidades separadas, notamos a existência de um entrelaçamento entre suas vidas e entre os motivos que justificariam o salvamento de ambos os viventes. A preocupação com a vida humana em detrimento da vida animal pressupõe uma oposição entre a socialidade humana e não humana; contudo, conforme questiona Anna Tsing (2019)TSING, Anna. (2019), Viver nas ruínas: Paisagens multiespécies no Antropoceno, Brasília, IEB Mil Folhas., “Como pode ter ocorrido a alguém que outras coisas vivas além dos humanos não são sociais?”. Desse modo, podemos observar que mesmo quando a proposta é tratar do resgate de animais, ainda assim estamos falando de socialidades humana e animal.

Outras governamentalidades de vidas animais

A entrada dos animais como novo ator humanitário a ser levado em conta, nas medidas tomadas antes, durante e após um desastre, coloca um problema jurídico, moral e político inédito. Diante da reivindicação do enquadramento dos animais domesticados como vítimas, ao invés de “vilões epidêmicos”, os autores citados anteriormente identificam a inexistência de protocolos, leis e agências responsáveis pelo seu resgate. Essa “falta” é denunciada como uma negligência por parte das instâncias governamentais. As denúncias são feitas a partir da constatação de que faltaria uma legislação para regular o salvamento de animais; haveria dificuldades quanto ao seu cuidado e sua identificação nos dias e semanas após o desastre; não existiria a discriminação de órgãos governamentais responsáveis por coordenar serviços para os animais; bem como tecnologia apropriada para o resgate das diferentes espécies e a conscientização e informação aos tutores sobre como proceder no momento do desastre; etc.

Entretanto, trata-se de discutir em consonância com a noção de biopoder (Foucault, 1988FOUCAULT, Michel. (1988), A história da sexualidade. A vontade de saber, Rio de Janeiro, Edições Graal.), que, ao invés de faltas, o que se observa é uma mobilização política para que animais se inscrevam em outro regime: não mais o de fazer morrer, mas o de deixar viver. Desse modo, a problemática envolvendo animais evidencia dimensões jurídica, moral e técnica inexistentes no debate público, mas que em razão dessa mudança precisam ser inventadas. Portanto, da exigência de que o governo das populações animais seja feito através do paradigma da preocupação humanitária, e não da preocupação com o controle de doenças zoonóticas, emerge efetivamente um universo de “faltas”: de protocolo, agência governamental responsável, legislação, pessoas treinadas e instrumentos técnicos, etc. Quando se olha para o animal como vítima de desastres, e não como uma ameaça sanitária, as políticas vigentes se tornam insuficientes e ineficazes. Os protocolos técnicos de segurança sanitária e a legislação existente passam a ser considerados um ato de crueldade dos seres humanos e de negligência por parte do Estado.

Diante dessas “faltas”, ou do que é identificado por esses diferentes autores analisados como “incompetência do Governo”, o papel de voluntários, treinados ou não, é considerado fundamental para as ações de resposta aos desastres. Conforme os trabalhos discutidos apontam, esses grupos sociais são responsáveis pelos esforços necessários para as atividades de salvamento e abrigo, bem como para a invenção de técnicas e protocolos. Contudo, independentemente da atuação de voluntários e protetores, os pesquisadores atestam a importância de serem adotadas novas medidas por parte dos aparatos estatais, de modo a garantir e viabilizar o governo considerado adequado das vidas animais. Como será discutido a seguir, as mudanças necessárias vão desde transformações epistemológicas e jurídicas que correspondam à perspectiva moral dos animais como vítimas, como também trata-se de pensar em novas ações práticas que garantiriam o resgate.

Em linhas gerais, os autores analisados tratam da importância de haver equipes treinadas em número suficiente, bem como equipamentos para responder a eventos críticos em larga escala; discutem também que deveria ser garantido que organizações voltadas ao bem-estar dos animais pudessem atuar como primeiros socorristas, tendo o mesmo acesso às áreas de desastre, que policiais e bombeiros; e, por fim, tratam da importância de haver lugares apropriados para o abrigo dos animais resgatados. Entretanto, os pesquisadores reconhecem as dificuldades e complexidades que essa nova forma de governamentalidade assume. De acordo com Thompson (2018)THOMPSON, Kirrilly. (2018), “Facing disasters together: how keeping animals safe benefits humans before, during and after natural disasters”. Rev Sci Tech. abril, 37, 1: 223-230., além dos custos financeiros requeridos e o esforço em horas trabalhadas, existem também as necessidades específicas relacionadas ao salvamento de diferentes espécies animais. As dificuldades envolveriam o tamanho e o temperamento; os perigos relacionados a cada espécie; os requerimentos para evacuar os animais; os preparativos para que permaneçam no local e que podem ser diferentes de acordo com as espécies e até mesmo em relação ao tipo de desastre. Então, como é possível observar, se priorizar o salvamento das vidas humanas deixou de ser óbvio, por outro lado, a inclusão de animais nas respostas aos desastres torna-se um desafio complexo.

No entanto, os autores discutidos refletem que a garantia das necessidades de humanos e animais de companhia não deveria ser percebida como uma tarefa governamental incompatível. A busca pelo melhor resultado para humanos e animais deveria ser o foco dos programas de preparação de desastre: “enquanto socorristas são enviados para salvar vidas humanas acima de todas outras vidas, o objetivo ideal é manter todos os seres vivos seguros dos impactos negativos dos desastres naturais” (Thompson, 2018THOMPSON, Kirrilly. (2018), “Facing disasters together: how keeping animals safe benefits humans before, during and after natural disasters”. Rev Sci Tech. abril, 37, 1: 223-230., p. 217). Esta questão é discutida também por Irvine (2006)IRVINE, Leslie. (2006), “Animals in Disasters: Issues for Animal Liberation Activism and Policy”. Animal Liberation Philosophy and Policy Journal, IV, 1., que entende que “a política de colocar humanos em primeiro lugar inibe pensar sobre resposta ao desastre fora da caixa” (p. 6). Mas, o que seria entendido como um pensamento fora da caixa? Como resposta, Irvine (2006)IRVINE, Leslie. (2006), “Animals in Disasters: Issues for Animal Liberation Activism and Policy”. Animal Liberation Philosophy and Policy Journal, IV, 1. argumenta que um tipo de política capaz de valorizar todas as vidas “desafia o pensamento dualista por trás de categorias simplistas de “humanos” e “animais” (p. 14). Neste sentido, as mudanças na legislação não deveriam dizer respeito apenas a questões de ordem prática, mas também às transformações do status jurídico e moral dos animais.

De acordo com Steven White (2012)WHITE, Steven. (2012), “Companion Animals, Natural Disasters and the law: An Australian Perspective”. Animals, 2: 380-394., a legislação deveria ser modificada a fim de reconhecer “o valor inerente dos animais de companhia e a responsabilidade que nós temos por seu bem-estar” (2012, p. 391). A mudança do status legal dos animais seria importante para repensar a sua classificação como propriedade pessoal, e para buscar outro modo de enquadramento moral e jurídico que reflita a preocupação com o valor de sua vida. Nesse mesmo sentido, Leslie Irvine (2006)IRVINE, Leslie. (2006), “Animals in Disasters: Issues for Animal Liberation Activism and Policy”. Animal Liberation Philosophy and Policy Journal, IV, 1. discute que um avanço significativo para alcançar essas transformações envolveria o reconhecimento dos direitos dos animais. Ainda que de forma pontual, os autores analisados dialogam com o repertório crítico da ética animalista, identificando no “especismo” e no “antropocentrismo” as causas que explicariam a negligência com que animais são tratados antes, durante e após os desastres.

Esses termos são acionados pelos defensores dos animais como denúncia ao entendimento de que a espécie humana seria superior às demais (Perrota, 2015PERROTA, Ana Paula. (2015), Humanidade estendida: a construção dos animais como sujeitos de direito. Tese de Doutorado. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.). Ao utilizá-los, Irvine (2006)IRVINE, Leslie. (2006), “Animals in Disasters: Issues for Animal Liberation Activism and Policy”. Animal Liberation Philosophy and Policy Journal, IV, 1. aponta que tal perspectiva nos permite entender por que somente vidas humanas seriam levadas em consideração nas situações de desastres. Ao mesmo tempo, a autora aponta que as mudanças para que vidas animais também sejam tratadas como valiosas deveriam passar por transformações no âmbito da moralidade.

Desse modo, observamos que questões práticas e jurídicas a respeito do resgate de animais caminham lado a lado de questões morais, as quais assumem, aqui, uma dupla face, pois para acionarmos a moral para reivindicar o salvamento dos animais, é preciso também transformá-los em sujeitos a quem devemos esta consideração; ou seja, é preciso um “empreendedorismo moral” (Becker, 2008BECKER, Howard Saul. (2008), Outsiders: estudos de sociologia do desvio, Rio de Janeiro, Zahar.). Neste sentido, as duas operações pontuadas exigem engajamentos distintos, mas interligados. As manifestações para que as instâncias governamentais assumam o dever de resgatar os animais tornam imprescindível que estes sejam tidos como sujeitos morais. Um engajamento é direcionado à elaboração de novas políticas e meios técnicos de intervenção sobre as vidas animais, enquanto o outro consiste em dar provas de que devemos nos responsabilizar igualmente pelas vidas humanas e não humanas.

O questionamento moral a respeito de como se dá o controle do Estado sobre a vida de animais domésticos, como cães e gatos, já foi observado em outros momentos. Levando em conta o caso brasileiro, Nádia Farage (2013)FARAGE, Nadia. (2013), No collar, no master: workers and animals in the modernization of Rio de Janeiro 1903-04, in Transcultural Modernisms, models house research Group. (orgs.), AMIR et al., Sternberg Press, Berlim. e Andrea Osório (2013)OSÓRIO, Andréa. (2013), “A cidade e os animais: da modernização à posse responsável”. Teoria e Sociedade, 21, 1, janeiro-junho. discutem, através de uma abordagem histórica, os projetos políticos, arenas de debate e conflitos que envolvem as decisões intervencionistas do Estado referente aos animais de rua, principalmente os cães. As autoras promovem uma análise sobre um mesmo período, a passagem do século XIX para o século XX, que é marcado pelas reformas urbanas e sanitárias. E discutem o sentido dado pelo Estado à presença dos animais nas cidades: obstáculo à modernização e ameaça de propagação de doenças. E a política que regia suas vidas: extermínio e expulsão das áreas urbanas.

O trabalho de Andrea Osório (2013)OSÓRIO, Andréa. (2013), “A cidade e os animais: da modernização à posse responsável”. Teoria e Sociedade, 21, 1, janeiro-junho. chega até os dias atuais e aborda como essas políticas governamentais se tornaram alvo de contestação social. Depois de um século de associação entre animais soltos e perigos, como também chamam a atenção Lima e Brito (2016)LIMA, Maria Helena Costa Carvalho de A.; BRITO, Simone Magalhães. (2016), “Civilidade e empatia em disputa: o problema do controle de animais no espaço público”. Iluminuras, Porto Alegre, 17, 42: 316-349, ago/dez., essa perspectiva moral é confrontada. A posição contra o extermínio dos animais de rua ganha maior expressividade nos anos 2000, quando algumas cidades, como São Paulo, aboliram a prática de eutanásia para animais saudáveis. Essa mudança é analisada, por Osório (2013)OSÓRIO, Andréa. (2013), “A cidade e os animais: da modernização à posse responsável”. Teoria e Sociedade, 21, 1, janeiro-junho., como capitaneada pela ação e pressão de grupos sociais, os chamados protetores dos animais, que se responsabilizam pelo cuidado de cães e gatos de rua através de trabalho voluntário, como também pressionam o Estado a adotar políticas públicas em conformidade com os valores da “posse responsável”, isto é, preocupada com o bem-estar animal.

Neste mesmo sentido, de acordo com Lima e Brito (2016)LIMA, Maria Helena Costa Carvalho de A.; BRITO, Simone Magalhães. (2016), “Civilidade e empatia em disputa: o problema do controle de animais no espaço público”. Iluminuras, Porto Alegre, 17, 42: 316-349, ago/dez., as ações em favor de cães e gatos que ocupam os espaços urbanos resultaram em mudanças significativas na forma como são tratados. As ações de extermínio passaram a ser condenadas como gestos cruéis e, em razão “de uma moralidade civilizada, as políticas de captura e morte desde a década de 1970 foram cada vez mais regradas pela busca por um tratamento humanitário”(Lima e Brito, 2016LIMA, Maria Helena Costa Carvalho de A.; BRITO, Simone Magalhães. (2016), “Civilidade e empatia em disputa: o problema do controle de animais no espaço público”. Iluminuras, Porto Alegre, 17, 42: 316-349, ago/dez. p. 317). Essa mudança promove outro aparato de controle. De acordo com Osório (2013)OSÓRIO, Andréa. (2013), “A cidade e os animais: da modernização à posse responsável”. Teoria e Sociedade, 21, 1, janeiro-junho., ao invés do extermínio, os protetores realizam um esquema de manejo complexo, pois o animal capturado in loco, é “levado para lar temporário, despugnizado, vermifugado, vacinado e esterilizado antes de encaminhado para adoção” (p. 154).

A crítica ao governo das populações de animais domesticados em situações de desastres acompanha, então, a contestação realizada por protetores contra a política de apreensão e extermínio que vigorou nas cidades em grande parte do século XX. Ao mesmo tempo, essa crítica se baseia na ética animalista e defende que animais, para além de cães e gatos, também sejam considerados sujeitos de direitos (Perrota, 2015PERROTA, Ana Paula. (2015), Humanidade estendida: a construção dos animais como sujeitos de direito. Tese de Doutorado. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.). Então, assim como protetores, tutores e parcelas da população se posicionam contra as ações governamentais sobre os animais de rua, passa a haver também o repúdio contra a ação do Estado em eventos críticos que os reduziria a “vilões epidêmicos”. Portanto, o que se observa é a reivindicação de que a política de governo dos animais existentes nos espaços urbanos ‒ que muda da política do extermínio, para a política do cuidado ‒ passe a vigorar também quando animais forem acometidos por desastres.

Alguns dos pressupostos morais em torno da posse responsável, bem como da ética animalista já orientam as políticas públicas destinadas aos animais nesses eventos críticos. De acordo com Steven White (2012)WHITE, Steven. (2012), “Companion Animals, Natural Disasters and the law: An Australian Perspective”. Animals, 2: 380-394., acerca do caso australiano, o Governo buscou resolver as deficiências existentes, implementando planos de emergência que visam também ao bem-estar animal. Nos Estados Unidos, o Governo aprovou uma lei chamada “Pets Evacuation Transportations and Standards Act” (PETS Act), em 2006, logo após os efeitos e a repercussão advindos do furacão Katrina. De acordo com informações apresentadas no site do Congresso2 2 Disponível em: https://www.congress.gov/bill/109th-congress/house-bill/3858, consultado em 05/02/2020. norteamericano, essa lei visa garantir que os planos operacionais estaduais e locais de preparação para emergências atendam às necessidades de tutores de animais domésticos e de serviços antes, durante e após os desastres. A lei assegura também que abrigos de emergência deverão acomodar as pessoas e seus animais. Além disso, de acordo com Hesterberg et al. (2012)HESTERBERG, Uta; HERTAS, Gerardo; APPLEBY, Michael. (2012), “Perceptions of pet owners in urban Latin America on Protection of their animals during disasters”. Disaster Prevention and Management, 21, 1., a ONG WSPA, em 2008, desenvolveu programas de redução de riscos para países da América Latina e Ásia, que preveem a formação de unidades veterinárias de respostas a emergências. O objetivo é estabelecer capacidade de respostas também para as necessidades dos animais.

Na medida que as agências de Governos, como os de EUA e Austrália, atuam com base em determinados protocolos e legislações que preconizam a preocupação com as vidas animais, observa-se que o Estado, nesses países, já começa a preencher o cenário de “faltas” com novos dispositivos operacionais, técnicos e jurídicos, seguindo, ao mesmo tempo, a tendência observada nas cidades que substituem a percepção dos animais como problema sanitário, por uma ordem moral em que eles passam a ser vistos como seres que devem ter garantidos a sua vida e bem-estar. No entanto, embora os autores abordem os novos procedimentos técnicos, legais e morais para o salvamento dos animais como um fator positivo, reconhecem que essas mudanças não são tão efetivas, e avaliam que, independentemente da legislação, o trabalho de resgate continua dependente de voluntários e protetores (Irvine, 2006IRVINE, Leslie. (2006), “Animals in Disasters: Issues for Animal Liberation Activism and Policy”. Animal Liberation Philosophy and Policy Journal, IV, 1.).

Feita a discussão geral a respeito das implicações existentes em torno da consideração dos animais como vítimas humanitárias, e frente à perspectiva moral em relação às suas vidas e às formas como elas são governadas, pretendo examinar, na sessão seguinte, uma situação crítica que permite abordar a complexidade e as tensões desse empreendedorismo moral no planejamento e nas respostas aos desastres.

Eutanásia ou animais assassinados a tiros: controvérsias em torno do ´rifle sanitário’

Após o rompimento da barragem da Vale, em Brumadinho, as ações empreendidas para o salvamento de animais começaram no primeiro dia após o desastre. Pessoas vinculadas à organização intitulada Grupo de Resgate de Animais em Desastres (GRAD) estiveram presentes desde o começo no município e nas reuniões com o posto de comando central.3 3 Exatamente uma semana antes do rompimento, no dia 18 de Janeiro de 2019, houve uma reunião entre a Presidenta da Comissão de Bem-estar Animal do CRMV-MG, representantes da Polícia Militar, Coordenadoria Estadual da Defesa Civil, Coordenadoria de Defesa da Fauna do Ministério Público de Minas Gerais, Bombeiros e Defesa Cívil. Na ocasião, buscou-se discutir a integração dos voluntários engajados com o salvamento animal, ao posto de comando central. Além do GRAD, grupos formados por ONGs e outras associações ligadas à proteção animal também atuaram na região, com a mesma finalidade. A chegada simultânea desses grupos, juntamente com os aparatos estatais que deram as primeiras respostas emergenciais, ocorreu em razão do acúmulo de experiência adquirido nos sucessivos desastres no país, desde as enchentes e deslizamentos que assolaram a Região Serrana do Rio de Janeiro em 2011.

Então, se naquela primeira ocasião, o esforço se deu sem que houvesse qualquer estrutura, experiência e organização para o resgate de animais domesticados ‒ tal como discutido por Antonio (2016)ANTONIO, Layla Stassun. (2016), Desafios da (des)proteção de animais em contexto de desastres: o caso de Teresópolis/RJ. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Ciências da Engenharia Ambiental, Universidade de São Paulo. ‒, em Brumadinho, já havia uma organização pautada na experiência acumulada em necessidades estruturais e logísticas para o resgate, tratamento de animais feridos, abrigo e destinação daqueles que não eram recuperados por seus tutores, além do diálogo com as instituições oficiais. Parlamentares e advogados também estiveram próximos a essas equipes para agir nas instâncias jurídicas e políticas. Conforme divulgado em jornais, dois dias após o rompimento foi movida e acatada uma ação judicial, obrigando a Vale a se responsabilizar financeiramente e tecnicamente pelo resgate dos animais, sob pena de multas e incursão no crime de desobediência, caso houvesse o descumprimento.4 4 Disponível em: https://www4.tjmg.jus.br/juridico/sf/proc_peca_movimentacao.jsp?id=44030148&hash=7760dcaed40aee766ffcd631f4de38b7, consultado em 23/06/2020.

Devido a esta pronta resposta dos voluntários e demais agentes implicados na situação dos animais, chamou atenção em Brumadinho a existência de conflitos envolvendo o salvamento de bovinos que ficaram atolados ou ilhados na lama de rejeitos. Como foi discutido anteriormente, os chamados animais de serviço consistem em uma categoria menos reconhecida como importante para o resgate, em comparação a cães e gatos, além de serem espécies de grande porte, o que faz do salvamento uma tarefa complexa. Entretanto, eles ocuparam o centro do debate, pois a tentativa de resgate, o próprio salvamento e a possibilidade de eutanásia – pois, segundo médicos veterinários, eles não sobreviveriam ‒ foram alvo de ações e contestações por parte de diferentes grupos sociais, adquirindo repercussão nacional, e ainda produziram distintas tensões frente aos múltiplos agentes implicados no plano de respostas aos desastres.

Os conflitos ocorreram ainda nas primeiras horas do rompimento da barragem. Policiais e funcionários da Mineradora tentaram impedir que voluntários chegassem até os animais atolados, sob a justificativa de que estariam em áreas com risco de um novo rompimento. Essa situação foi reportada em diferentes portais de notícias na internet, principalmente após sua divulgação por uma pessoa ligada à causa animal, com mais de dois milhões de seguidores nas redes sociais. Para impedir a passagem das pessoas interessadas no resgate, foram colocados tapumes, mas que acabaram sendo arrancados e usados como passarela sob a lama de rejeitos para se chegar até os bovinos.

De maneira geral, conforme noticiado, o discurso da segurança contra o risco de novos acidentes foi contestado sob a justificativa de que haveria moradores locais e pessoas experientes e treinadas, que saberiam atuar naquela situação, e foi, além disso, visto com desconfiança, pois entendeu-se que o objetivo da proibição era o de não trazer mais gastos para a empresa. Entretanto, após o acesso a esses dois bovinos atolados na área, foram levados água e alimentos, além da realização de uma avaliação das condições clínicas dos animais. A partir do diagnóstico de médicos veterinários no local, um dos animais foi sacrificado, pois não iria sobreviver até (ou ao) resgate, e o segundo foi ali mantido por mais alguns dias, até que os voluntários chegassem às melhores condições e estratégia para removê-lo.

Posteriormente a esse conflito, outra tensão se instaurou quanto a esses animais. Essa segunda situação crítica ocorreu devido ao fato de que alguns animais foram sacrificados através do chamado rifle sanitário, disparado por médicos veterinários de um helicóptero da Polícia Rodoviária Federal (PRF). Esta ação ocorreu após um sobrevoo realizado para avaliar o estado dos animais em situação de risco. No sobrevoo, os médicos veterinários indicaram aqueles que não poderiam ser resgatados, e nem haveria meios de chegar até eles para aplicar outra técnica de eutanásia. Tanto o procedimento em si, quanto o método utilizado para a eutanásia tornaram-se objetos de críticas e contestações. A acusação feita era de que as autoridades estavam “assassinando” os animais, ao invés de resgatá-los. Criticaram ainda que se a eutanásia fosse de fato a única opção, ela deveria ser realizada de modo mais adequado, e não através de tiros durante um sobrevoo.

A medida teve reação de pessoas presentes em Brumadinho e também encontrou indignação na esfera nacional. O caso foi reportado pela mesma ativista com milhões de seguidores e seguiu-se de notícias em portais jornalísticos e milhares de comentários em redes sociais. E, neste sentido, o pontapé inicial para que o caso adquirisse repercussão pública pode ser identificado no seguinte relato proferido pela ativista/influenciadora digital:

A hora que eu escutei essa história ontem, eu falei 'não é possível! Não é possível uma coisa dessas'. E é verdade! Olha que lixo, olha que barbaridade, olha que atrocidade. E o pior de tudo: eu quero saber se o CRMV (Conselho Regional de Medicina Veterinária) autorizou essa palhaçada. Porque a gente está cheio de veterinário aqui e tem outras maneiras dignas de sacrificar os animais. E essa não é uma delas.5 5 Disponível em: https://entretenimento.r7.com/famosos-e-tv/brumadinho-luisa-mell-faz-denuncia-sobre-execucao-de-animais-06102019, consultado em: 13/06/2019.

Conforme foi noticiado pelos jornais, e confirmado pelo CRMV, Bombeiros, Defesa Civil e PRF, no dia 28 de janeiro, três dias após o rompimento da barragem, autoridades sobrevoaram a região em um helicóptero, e através do rifle sanitário sacrificaram um bovino e um equino atolados na lama. Apesar de a prática ser legítima, pois é prevista na resolução do Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV) sobre eutanásia, e, portanto, sob certas condições, é tida como um procedimento clínico correto, inclusive sob a ótica da preocupação com o bem-estar animal, houve essa condenação. Portanto, observa-se que ainda que correta do ponto de vista da resolução técnica, em termos morais, a morte dos animais foi vista com indignação e tratada pelos jornais como “mortes polêmicas”.

Recentemente, eram os defensores que tinham que justificar a ideia tida como absurda de que humanos e animais são simétricos do ponto de vista do valor da vida (Perrota, 2015PERROTA, Ana Paula. (2015), Humanidade estendida: a construção dos animais como sujeitos de direito. Tese de Doutorado. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.). Mas, em Brumadinho, a partir dos lemas “nenhuma vida deve ficar para trás”, ou “toda vida importa”, o que vimos foi as autoridades tendo que produzir respostas sobre por que tiraram a vida dos animais, ainda que autorizados pelo corpo de especialistas responsáveis e através de procedimentos técnicos previstos e regulamentados. E por que essa tensão? Por que a morte foi chamada de polêmica? Diante dessas perguntas, a ideia é pensar como os novos pressupostos morais em torno da vida dos animais pressionam procedimentos técnicos e protocolares até então considerados legítimos, assim como foi com o sacrifício dos dois mil animais domésticos, durante a passagem do furacão Katrina. Mas nessa situação, temos como fato relevante que o conflito se deu não em torno do salvamento de animais de companhia, mas em torno dos chamados animais de produção ou de serviço.

Para pensar a respeito dessas “mortes polêmicas”, a partir da perspectiva de uma mudança do enquadramento moral dos animais, considerei interessante me apropriar da discussão teórica do sociólogo Alexandre Werneck (2012WERNECK, Alexandre. (2012), A Desculpa: As Circunstâncias e a Moral das Relações Sociais, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira., 2008WERNECK, Alexandre. (2008), “Moralidade de bolso: A ‘manualização’ do ato de dar uma desculpa como índice da negociação da noção de ´bem´ nas relações sociais”. Revista Dilemas.) sobre o ato de dar uma desculpa, uma vez que os agentes envolvidos produziram notas públicas e deram declarações a jornalistas, visando esclarecer o ocorrido. Como será melhor discutido, e define Alexandre Werneck, a desculpa como um dispositivo surge no momento em que se instaura um mal-estar, e através dessa ação busca-se a reconciliação por meio de uma explicação circunstancialista do ocorrido. Para introduzir melhor essa discussão, trarei uma manchete do jornal O Globo, em reportagem veiculada do dia 29/01/2019, pois considerei que essa manchete sintetiza os diferentes problemas envolvidos:

“PFR abate animais a tiros em Brumadinho (a), provoca revolta (b) e justifica: ‘Eutanásia’ (c)

Nesta chamada, é possível observar, conforme a discussão de Werneck (2012)WERNECK, Alexandre. (2012), A Desculpa: As Circunstâncias e a Moral das Relações Sociais, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.: a ação problemática – (a); o mal-estar – (b); e, por fim, a desculpa: (c). Frente à instauração desse episódio como uma situação crítica, analisarei as respostas dos diferentes agentes envolvidos, como os médicos veterinários, o CRMV, o Corpo de Bombeiros, a Defesa Cível e a PRF.

Seguindo os pressupostos de Werneck (2012)WERNECK, Alexandre. (2012), A Desculpa: As Circunstâncias e a Moral das Relações Sociais, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira., ao emitirem respostas à crítica recebida, ou darem uma desculpa para a eutanásia - como irei considerar aqui -, esses agentes reconhecem a validade das regras morais que fazem das vidas animais um fim em si mesmo. E, deste modo, a tensão em torno das mortes polêmicas pode ser pensada como um conflito moral engendrado pela ética animalista, enquanto produtora de novas normas, e que vem adquirindo legitimidade nos últimos anos. Em sua discussão a respeito da sociologia pragmática de Luc Boltanski, com a qual dialoga em sua teoria sobre a desculpa, Alexandre Werneck (2012)WERNECK, Alexandre. (2012), A Desculpa: As Circunstâncias e a Moral das Relações Sociais, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira. afirma que o que está em jogo no momento crítico “é a tensão entre a moral do crítico e a do criticado, mas é o princípio moral do crítico que guiará o conflito” (2012, p. 109). Conforme a ética animalista coloca em xeque o ato de provocar a morte de animais, independentemente dos motivos e da espécie, podemos pensar então na produção de um conflito moral estabelecido pelo descumprimento do pressuposto de que o valor da vida animal é absoluto. E, então, tratar-se-ia de uma crise moral a respeito do próprio modo como animais domesticados convencionalmente vinham sendo tratados em situações de desastre.

Neste sentido, considerando que a desculpa parte de uma aceitação de um princípio moral, é interessante interpretar estas notas e declarações como tal, porque ao mesmo tempo em que ela nos permite compreender o desenrolar dessa situação crítica, nos permite também observar como a questão animal se impõe como uma regra moral que guia o governo das vidas animais nas situações de desastres. Então, ao analisar esse material com base nos pressupostos acerca da ação de dar uma desculpa, que é também definida pelo sociólogo como uma sociologia do depois do “mas” (2012, p. 113), observamos que este “mas” está presente nas respostas analisadas, tal como pode ser visto a seguir: “Nós queremos retirar os animais, mas, se não conseguirmos, não queremos que eles sofram mais”6 6 Disponível em: http://agroinforme.com.br/2019/02/01/mais-de-70-animais-ja-foram-resgatados-da-lama-em-brumadinho/, consultado em 10/02/2019. (Luiza Gomes, médica veterinária integrante do GRAD).

De maneira geral, o que vem antes do “mas” nas respostas reforça a ética animalista, no que diz respeito à preocupação com a vida e o bem-estar animal. E o que vem depois acentua a peculiaridade da situação, pois explicaria a necessidade de realização da eutanásia através do rifle sanitário. O aspecto referente à circunstancialidade é o elemento fundamental, segundo Werneck (2012)WERNECK, Alexandre. (2012), A Desculpa: As Circunstâncias e a Moral das Relações Sociais, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira., para diferenciar o regime de justificação, de Luc Boltanski e Laurent Thevenot, do modelo proposto em torno do ato de dar uma desculpa.7 7 Como explica Werneck (2012), se na justificação alguém aceita ser responsabilizado pelo ato, mas renega a qualificação pejorativa a ele associado, na desculpa, a pessoa admite que o ato é errado, mas nega que possui responsabilidade sobre ele. Portanto, a vida dos animais presos ou ilhados nos rejeitos em nenhum momento foi tratada como menos valiosa que as vidas humanas, ou que as vidas dos animais de companhia. Ao contrário, as notas e declarações reafirmaram o comprometimento moral com os animais, tratados de maneira geral como vítimas:

Por convicção, inspiração cívica e comprometimento com o bem-estar dos animais envolvidos na catástrofe de Brumadinho (MG), os médicos-veterinários brasileiros em atividade no local, voluntários ou não, estão buscando minimizar os danos à saúde física e mental dos animais presentes na área do acidente.8 8 Nota emitida pela Comissão Nacional de Bem-Estar Animal (Cobea) do CFMV.

Além dos resgates de vítimas presas à lama ou ilhadas, a PRF tem participado do resgate de animais também vítimas do rompimento da barragem. Vários destes animais, em destaque para os bovinos e caninos, encontram-se atolados no grande volume de lama que tomou conta da região.9 9 Nota emitida pelo Polícia Rodoviária Federal.

Frente à concordância acerca do valor da vida animal, os diferentes agentes implicados na ação explicaram o porquê da adoção da eutanásia, evocando as características que tornaram o resgate inviável e a morte inevitável, inclusive a maneira como ela foi realizada. Esse aspecto nos aproxima dos pressupostos elaborados por Werneck (2012)WERNECK, Alexandre. (2012), A Desculpa: As Circunstâncias e a Moral das Relações Sociais, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira., que, como foi dito, preconiza que “a desculpa é justamente a mobilização de circunstâncias – ou seja, daquilo que acontece “só daquela vez”, “apenas ali”, sem possibilidade de previsão ou de controle – para dar conta das diferenças incômodas” (2012, p. 34). As notas e declarações apresentaram, então, os motivos que tornaram impossível seguir a regra moral em questão, tanto no que diz respeito à eutanásia, quanto ao procedimento referente ao rifle sanitário:

Lamentavelmente, durante a triagem dos animais foram encontrados três casos específicos de bovinos atolados na lama, em estado de exaustão e com fraturas de membros. Após análise da equipe veterinária, considerando a impossibilidade de adoção de outras medidas, foi tomada a decisão pela eutanásia daqueles animais. O procedimento foi orientado e supervisionado pela equipe veterinária sob a coordenação do comando da operação de resgate.10 10 Polícia Rodoviária Federal.

Os animais encontravam-se em local sem condições de segurança para serem içados, presos em área que oferecia riscos aos socorristas e sem possibilidade de acesso para intervenção de outra técnica de eutanásia.11 11 Nota emitida pelo Conselho Federal de Medicina Veterinária.

Observamos, então, que a própria prática da eutanásia é colocada em suspeição, conforme a transformação do enquadramento dos animais como vítimas humanitárias do desastre. Esse aspecto que pressionou os aparelhos estatais foi reivindicado não só pelos ativistas da causa animal, mas também pela opinião pública. Neste sentido, observa-se um processo amplo em que se aceita com mais dificuldade que em outros tempos a morte de animais. Então, assim como já existe uma orientação em direção ao banimento das políticas de controle e extermínio dos animais de rua, o mesmo se dá em relação aos animais nos desastres, independentemente da espécie animal. Portanto, temos essas mortes tratadas como “absurdo” ou no mínimo “polêmicas”, pressionando órgãos como a Defesa Civil e o Corpo de Bombeiros a auxiliar no resgate dos animais.

Como indicativo da situação em Brumadinho, verificou-se que, após o conflito envolvendo a eutanásia e o rifle sanitário, houve o resgate aéreo de três bovinos, graças à pressão direta exercida pelo GRAD para que o Corpo de Bombeiros cedesse equipe e aeronave para a ação. Conforme depoimento12 12 Conversa pública, realizada na rede social Instagram, entre os médicos veterinários Arthur Nascimento e Cláudio Zago, no dia 15/04/2020. do médico veterinário Arthur Nascimento, integrante do Grupo e coordenador dessa ação, apesar da impossibilidade do resgate pelo chão, os voluntários não desistiram do salvamento e chegaram à conclusão de que deveria ser feito por transporte aéreo. Este foi o primeiro resgate do tipo no Brasil, em uma situação de desastre, e conforme relata o médico veterinário, foi realizado a partir de incertezas e pressão por parte do Corpo de Bombeiros: primeiramente, foi preciso um dia de negociação com o Comando, que questionava a operação, inquirindo se os voluntários sabiam o que estavam fazendo, pois várias vidas seriam colocadas em risco. Além desse âmbito, era preciso contar com a ajuda de outros médicos veterinários que se dispusessem a atuar de forma voluntária nas especialidades necessárias, como a de anestesiologista, pois o animal deveria ser sedado com precisão para não haver o risco de “voltar” enquanto estivesse sendo içado e ocasionar a queda da aeronave. Todas essas exigências foram conquistadas e o resgate foi realizado com sucesso, juntamente com outros dois salvamentos do mesmo tipo.

Conforme a regra moral de tratar animais como vidas valiosas passa a se impor, vemos então a própria eutanásia sendo considerada uma ação condenável, que mesmo não abolida, começa a ser pensada como uma ação que deve ser estritamente excepcional. E o que se observa é o surgimento de uma controvérsia acerca dessa prática, agora multiespécie, frente ao questionamento se seria legítimo, ou não, tirar a vida de não humanos, para poupar o seu sofrimento, ou em razão da complexidade ou do risco posto em um salvamento. Como forma de resolver a controvérsia, médicos veterinários e demais órgãos envolvidos acionam a técnica como elemento de legitimidade dessa prática:

Seguimos as determinações e normativas. O abate só é feito após uma análise bastante cuidadosa e quando é devidamente autorizado. Via de regra, é feito com injeção letal, mas outras situações específicas devem ser analisadas. O Corpo de Bombeiros tem essa preocupação também.13 13 Declaração proferida pelo Porta Voz do Corpo de Bombeiros, em entrevista ao jornal. Disponível em: https://g1.globo.com/mg/minas-gerais/noticia/2019/01/29/animais-debilitados-sao-sacrificados-apos-rompimento-da-barragem-de-brumadinho.ghtml, consultado em 20/06/2019.

As respostas buscaram esclarecer que se os animais estavam numa situação em que sobreviver não seria mais possível, restava dar-lhes o direito a uma boa morte, e de forma diferente da eutanásia para humanos, em que a permissão parte da capacidade de (auto)determinação, e, portanto, do princípio moral da autonomia, segundo Siqueira-Batista e Schramm (2008)SIQUEIRA-BATISTA, Rodrigo; SCHRAMM, Fermin Roland. (2008), A eutanásia e os paradoxos da autonomia. Ciência & Saúde Coletiva, 13, 1: 95-102. - com a ressalva de que esse pressuposto não é livre de controvérsias, tendo em vista que há um amplo debate e mobilização política a favor e contra. No caso dos animais, e nessa situação mais especificamente, partiu-se da autoridade técnica da medicina veterinária para legitimar esta prática colocada sob suspeição. Portanto, é por meio da técnica e não de princípio ancorado na moral, como se dá no caso dos humanos, que médicos veterinários buscam garantir a manutenção da eutanásia como um instrumento legítimo.

Em diálogo com esse esforço de manter a validade da prática da eutanásia, há ainda um último aspecto que aparece nas notas e declarações e que está de acordo com os pressupostos em torno da desculpa como um dispositivo. De acordo com Werneck (2008)WERNECK, Alexandre. (2008), “Moralidade de bolso: A ‘manualização’ do ato de dar uma desculpa como índice da negociação da noção de ´bem´ nas relações sociais”. Revista Dilemas., o ato de dar uma desculpa desempenha também o papel de garantir a manutenção das relações sociais. E, então, se as ações, quando em desacordo com a regra moral, causam um mal-estar capaz de interromper o fluxo interacional em uma relação, o acionamento da circunstacialização posteriormente ao conflito gerado tem a finalidade de aplacá-lo, arrefecê-lo. E com isso busca-se a continuidade da interação, sem que o mal-estar a afete (2008). Esse esforço de por fim ao mal-estar, com o objetivo de impedir fraturas no desenvolvimento das operações de resgate, pode ser visto abaixo:

[…] Neste momento, em que centenas de animais precisam de socorro e em que dezenas de veterinários estão assumindo para si esta responsabilidade, o que se espera da sociedade brasileira é o mais sincero apoio a cada um dos profissionais presentes hoje em Brumadinho (MG).14 14 Nota emitida pela Comissão Nacional de Bem-Estar Animal (Cobea) do CFMV.

Não vamos polemizar essa situação, que é algo dentro do procedimento de atendimento de socorrimento de uma crise dessa natureza.15 15 Declaração proferida pelo chefe do Gabinete Militar e da Defesa Civil de Minas Gerais. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/01/animais-agonizando-sao-mortos-a-tiros-em-brumadinho.shtml, consultado em 20/06/2019.

Ao analisar as respostas, é possível então apontar os três movimentos que podem ser interpretados conforme a desculpa enquanto um dispositivo (Werneck, 2012WERNECK, Alexandre. (2012), A Desculpa: As Circunstâncias e a Moral das Relações Sociais, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.): primeiro, o de afirmar o comprometimento com a vida animal; em segundo lugar, o de apresentar as peculiaridades que não deixaram outra alternativa que não a eutanásia através do rifle sanitário; e, por fim, tratou-se de fazer um aceno geral para que se apoie o trabalho de respostas ao desastre, ao invés de criticá-lo. Como pano de fundo deste mal-estar, observa-se a pressão exercida por protetores e defensores dos direitos dos animais, para que o governo das populações animais em desastres também ocorra pelo viés humanitário. Justamente em razão desta mudança de qualificação, observa-se o imperativo de elaborar técnicas, de formar equipes capacitadas para atuar no resgate em todas as dimensões, e de pressionar a esfera pública e privada para engajar-se e garantir a viabilidade do trabalho de resgate dos animais, incluindo-os nos planos de resposta aos desastres.

Considerações finais

Aponto, na conclusão da tese de doutoramento sobre os defensores dos direitos dos animais, que estamos diante da atuação, no Brasil e em outros países, de mobilizações que reivindicam, em termos acadêmicos e políticos, que as vidas animais sejam consideradas moralmente simétricas às vidas humanas (Perrota, 2015PERROTA, Ana Paula. (2015), Humanidade estendida: a construção dos animais como sujeitos de direito. Tese de Doutorado. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.). Ao mesmo tempo, ela indica, contudo, o caráter complexo dessa mobilização, de modo que os próprios defensores não são capazes de dar todas as respostas sobre como seria um contexto social em que os animais figuram como sujeitos morais e de direitos. A partir então da perspectiva de que essa nova moralidade abre possibilidades múltiplas de relação interespecífica, propus-me a pensar sobre o lugar dos animais domesticados em situações de desastres. Este seria um, dentre tantos outros desdobramentos que emergem da extensão do humanismo que possa abranger também outras espécies.

Desse modo, a preocupação moral com os animais vem, ao longo das últimas décadas, adquirindo a forma de um projeto político e humanitário que se ocupa desde o governo da vida e morte de cães e gatos, até a preocupação em abolir o uso de animais para quaisquer finalidades humanas. Pretendeu-se, assim, discutir como essas preocupações se desdobram nas situações de desastres, em que animais domesticados vinham sendo tratados sob a ótica sanitária. Viu-se, portanto, que um novo enquadramento moral sobre os animais se impõe ao aparato estatal, pressionando-o a destinar atenção e instrumentos para o resgate e salvamento de vidas além das humanas.

A partir de então, observa-se que o entendimento de que haveria negligência por parte do Estado pode ser melhor refletido como uma transformação moral empreendida pelos defensores dos animais, que faz com que os protocolos vigentes até então se tornem inadequados e insuficientes. Os defensores podem ser, portanto, interpretados como “empreendedores morais” (Becker, 2008BECKER, Howard Saul. (2008), Outsiders: estudos de sociologia do desvio, Rio de Janeiro, Zahar.), pois buscam impor sua moral, reivindicando a criação de outro estatuto dos animais em que estes figurem como “sujeitos de uma vida”. De acordo com Becker (2008)BECKER, Howard Saul. (2008), Outsiders: estudos de sociologia do desvio, Rio de Janeiro, Zahar., a criação de regras, de novas agências e de mecanismos para a imposição de tais regulamentos indicam o sucesso do empreendedor de impor sua própria moral aos outros e significa que a cruzada torna-se institucionalizada. Como as reivindicações em favor dos animais já provocaram transformações, é possível notar avanços da cruzada animalista.

A preocupação humanitária com a condição dos animais, exposta nos canais jornalísticos e redes sociais, bem como a formação do GRAD enquanto um grupo de voluntários especializados no salvamento dos animais, a atuação desse grupo junto ao comando central de resgate, as decisões judiciais favoráveis e a criação de novas leis são exemplos que, no Brasil e em outros países, apontam a ascensão da ética animalista. Assim, conforme os animais também se inscrevem em termos de biopolítica no regime de vidas que merecem proteção, observa-se a concretização de exigências de um governo que leve em conta a consideração deste novo enquadramento moral. Por fim, essa questão dialoga ainda com um debate recente nas Ciências Sociais, que questiona a dualidade humano e animal, sujeito e objeto e, portanto, o lugar dos animais apartado da vida social. O empreendedorismo moral a favor dos animais contribui, portanto, por fazer entrechocar as questões sobre as relações entre humanos e não humanos não só em termos epistemológicos, mas também políticos, em torno da vida e morte dos seres.

Agradecimentos

Agradeço aos pareceristas pelas sugestões que contribuíram de maneira fundamental para a versão final do artigo. E aos colegas Ana Claudia Rodrigues da Silva, Andrea Osório, Felipe Vander Velden e Flávio Leonel Abreu da Silveira, que estiveram junto comigo na realização de uma mesa redonda na ANPOCS, que permitiu um importante diálogo para a elaboração deste artigo.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    23 Jan 2021
  • Aceito
    24 Set 2021
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