Serena Intransigência
O falecimento de Vilmar Evangelista Faria, ocorrido no dia 28 de novembro de 2001, deixou a comunidade de cientistas sociais profundamente consternada. Habituados a conviver com a sua personalidade discreta e forte, firme nos momentos mais decisivos da nossa vida profissional, recebemos a notícia da sua morte como se atravessássemos um pesadelo. Não havia explicações para aquele movimento arrebatado da existência, que levava no seu ímpeto uma das figuras mais marcantes da Ciência Social no Brasil. Vilmar personificou a melhor expressão da nossa comunidade, cultivada na sobriedade dos gestos, aprimorada num feitio sem ostentação, tão ao gosto dos mineiros de velha cepa. Logo ele que acumulava reconhecidos motivos para manifestações de humanas vaidades.
Não foram poucas as razões a sedimentar o reconhecimento unânime da sua posição de proa no milieu dos cientistas sociais brasileiros. Sendo impossível enumerar o vasto elenco nesta curta, porém sentida homenagem, uma vez que Vilmar atuou praticamente em todos os campos da nossa atividade, sublinho o seu papel como professor, como pesquisador empenhado, como dirigente de instituições acadêmicas e públicas, como intelectual comprometido com os problemas do seu país. Nesse conjunto variegado de ações, Vilmar imprimiu o seu selo de sociólogo competente, não se esquivando a oferecer o melhor de si. Acrescente-se a sua participação marcante nos principais fóruns nacionais e internacionais da área, presença jamais desapercebida, atestada inconteste da sua alta qualificação, sobretudo da face cosmopolita da sua sociologia, construída no conhecimento amplo de diversas correntes de pensamento, cultivada no ímpeto incessante de atualização. O artigo do sociólogo publicado neste número da Revista Brasileira de Ciências Sociais, à guisa da homenagem, é fruto de uma aula inaugural, na qual Vilmar expõe as dimensões de seu caráter multifacetado.
Em "Ciências sociais: razões e vocações" o sociólogo exercita a sua própria vocação de professor e de pesquisador, educada no seu compromisso com as instituições e com as questões maiores de nossa sociedade. O momento convidava à reflexão generosa, a qual não se furta, aproveitando a ocasião para "fazer uma defesa meditada e serena ­ mas intransigente ­ não só do ensino universal e público em todos os níveis e do princípio da gratuidade e até mesmo da remuneração, para que todos aqueles que, demonstrando disposição e aptidões, e não dispondo, por qualquer razão dos meios adequados para realizar esse objetivo, possam fazê-lo". O texto em tela esconde a perspectiva republicana de Vilmar, mas que se ancorava no princípio da busca do entendimento, enquanto forma superior de expressão do humano. "Conversar sem a interferência de qualquer força, senão a força do melhor argumento racional". Traço muito mineiro, como salienta Pedro Nava, para quem os nascidos em Minas Gerais apreciam muito a conversa e odeiam a controvérsia, atributo que Vilmar carregou para todas as funções que exerceu, sem que, com isso, transigisse diante da iniqüidade ou abdicasse dos valores substantivos.
Foi com esse espírito que Vilmar exerceu o papel de professor ­ aliás de grande mestre ­ na Universidade Católica de São Paulo, na Universidade de Campinas e, nos últimos tempos, na Universidade de São Paulo, da qual estava licenciado em função do cargo que ocupava no governo federal, dedicando-se, sobretudo, aos problemas sociais. Professor rigoroso, caracterizava-se por dominar em profundidade a teoria e a metodologia das Ciências Sociais. Presidiu o Cebrap entre 1991 e 1993 e a Anpocs entre 1988 e 1990, instituições com as quais manteve ligações indeléveis, sempre disponível nos momentos difíceis, como comprovam sua atitudes de apoio à Associação. Vilmar Faria deixou um grande legado, mas ofereceu, especialmente, a imagem viva de um caráter sereno, porém firme nos propósitos superiores que perseguiu. A homenagem que ora lhe prestamos ­ a diretoria da Anpocs e a Revista Brasileira de Ciências Sociais ­ se é modesta na sua manifestação, é profundamente reconhecida do significado e alcance das suas atitudes no âmbito da nossa comunidade, com as quais procurou preservar condições que garantissem a excelência científica, acadêmica e profissional das Ciências Sociais no Brasil.
Maria Arminda do Nascimento Arruda
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
07 Fev 2003 -
Data do Fascículo
Fev 2002