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O quinto século, André Rebouças e a construção do Brasil

A atualidade de André Rebouças

Maria Alice Rezende de CARVALHO. O quinto século, André Rebouças e a construção do Brasil. Rio de Janeiro, Revan/Iuperj, 1998. 254 páginas.

Wilma Peres Costa

No ano de 1891, o engenheiro e intelectual liberal André Rebouças desenhou em seu Registro de Correspondência um triângulo equilátero, nomeando cada um dos lados: Joaquim Nabuco (Liberal), Taunay (Conservador) e André Rebouças (sem partido). Por meio de uma tênue linha pontilhada, os ângulos da figura uniam-se em uma pirâmide, em cujo vértice encontrava-se o nome de d. Pedro II. Assim ilustrava Rebouças suas relações com seus companheiros de campanha abolicionista e militância reformadora, reunidos pelo exílio europeu: divergentes em suas escolhas partidárias, mas unidos em sua lealdade a d. Pedro II.

A ilustração é fecunda em sugestões e serve como ponto de partida para o instigante estudo de Maria Alice Rezende de Carvalho que, centrado na trajetória de André Rebouças, nos convida a refletir sobre o pensamento brasileiro nas últimas décadas do século XIX.

São múltiplas as razões que fazem oportuna a reflexão sobre a trajetória desse pensador e o seu legado, não sendo a menos importante a atual entressafra de intelectuais com espírito público, em vívido contraste com o final do século XIX, tão profícuo no esforço de "pensar" e "reformar" o Brasil, quanto trágico no destino reservado a muitos dos "intelectuais militantes" de vários matizes: a loucura (Aristides Lobo), o crime passional (Euclides da Cunha), o suicídio (Silva Jardim (?), Raul Pompéia e o próprio Rebouças). Ao escolher como caminho para estruturar a biografia intelectual e política de Rebouças a referência a Joaquim Nabuco e Alfredo Taunay, o livro de Maria Alice Rezende de Carvalho aborda uma faceta das agitadas correntes de idéias que animaram o Brasil naquele período — os liberais reformadores que se mantiveram fiéis à monarquia e que viram nessa instituição uma espécie de caminho insubstituível para as "reformas liberais". A República, na concepção desse grupo e de outros intelectuais monárquicos, nada mais era do que o resultado do conluio dos escravocratas descontentes com a Abolição com o militarismo de inspiração platina. Ela nos afastava da Europa e da Civilização e nos lançava na vala comum do caudilhismo latino-americano.

A influência dessa visão foi profunda na historiografia brasileira e aparece reciclada em muitas interpretações vigentes. André Rebouças é o menos lido da tríade e, de certa forma, o menos influente nas correntes do pensamento brasileiro subseqüentes. A obra literária de Taunay, em particular os clássicos A retirada da Laguna e Inocência, é das mais lidas e comentadas da literatura brasileira, ao passo que O abolicionismo e Um estadista do Império, representando diferentes momentos da trajetória política de Joaquim Nabuco, desfrutam a curiosa peculiaridade de serem obras fundantes, respectivamente, da historiografia crítica e da historiografia conservadora no Brasil. A maior parte da obra de Rebouças permanece não publicada, estando confiada aos seus Diários íntimos e à sua extensa correspondência, ou foi divulgada em revistas dedicadas a temas técnicos de engenharia e agricultura, hoje de difícil acesso. O esforço em legitimar seus argumentos na linguagem da ciência e da técnica não ajuda, também, sua aproximação com o leitor de hoje. Tudo isso torna ainda muito mais meritória a cuidadosa garimpagem de uma parcela significativa de seu pensamento realizada pela autora e sua habilidade em reconstruí-la numa "trajetória" com sentido. O resultado faz ressaltar, por um lado, a profunda imersão de Rebouças na problemática de seu tempo e, por outro, a impressionante atualidade de seu pensamento. Seu cerne — o obstáculo representado pelo monopólio da terra à construção de um capitalismo dinâmico e de uma democracia genuína — ainda desafia pensadores e militantes nesse triste final de século XX.

Para desenhar a primeira vertente interpretativa, Maria Alice Rezende de Carvalho conduz o leitor, através de refinada erudição, para as leituras que esse intelectual "periférico" e seus companheiros faziam da efervescência intelectual que acompanhava as Grandes Transformações nos centros do pensamento europeu e norte-americano. O leitor ganha, assim, uma rica reconstituição das principais linhas do pensamento europeu do século XIX (e mesmo anterior, no caso das leituras privilegiadas pela autora para o entendimento da formação de Rebouças), forjando as saborosas tipologias do "inglês" (Nabuco), do "francês" (Taunay) e do yankee (Rebouças).

Em uma segunda vertente interpretativa, a autora privilegia a escolha e a trajetória profissionais de Rebouças, com um panorama do ensino e do exercício da Engenharia, nas suas vertentes militar e civil, como uma maneira estratégica de encarar a formação de Rebouças e sua inserção social. O leitor atento pode apreciar, aqui, uma tensão, embora não seja essa a ênfase preferencial da autora, entre duas linhas de força na vida de nossa personagem. De um lado, a opção pela Escola Militar e pela carreira "científica" indica direção alternativa ao bacharelismo típico da elite imperial, o que aproximaria a história pessoal de Rebouças da de vários membros da contra-elite crítica, cientificista, antibacharelesca que se forja na Escola Militar a partir da Guerra do Paraguai (e da qual Benjamim Constant e seus discípulos são uma espécie de paradigma). De outro, os profundos laços de Rebouças com o Imperador e sua família e com alguns proeminentes estadistas do período, como o Visconde de Itaboraí, para não falar de seu convívio referencial com os melhores filhos-família da Corte da Belle Époque. Isso não obstante uma profunda aversão à política partidária, que acompanha nosso engenheiro durante toda a vida, e uma busca quase quixotesca do "espírito empresarial" e da "livre iniciativa", que marca sua vida pública durante a década de 1870.

Parece quase impossível pensar essa tensão sem tematizar a questão racial e a posição excêntrica de Rebouças como refinado intelectual negro em uma sociedade escravista. Nossa autora escolheu não fazê-lo, embora a questão não esteja ausente de seu trabalho. Acompanha nisso, solidariamente, sua personagem, extremamente reticente em abordar a problemática da cor no plano de sua experiência existencial, embora inflamado abolicionista. Desperta-nos, entretanto, a curiosidade em saber como, nos imaginados debates da Sociedade de Imigração da qual faziam parte Rebouças e Taunay, nosso engenheiro encarava a questão do "branqueamento", tão notória nas propostas daquela entidade. Da mesma forma, nos textos trabalhados por Maria Alice Rezende de Carvalho, podemos adivinhar divergências entre Rebouças, Taunay e Nabuco no calor da campanha abolicionista e no tratamento da questão agrária e do problema social nos anos subseqüentes. Ou, em outra direção, ficamos a nos perguntar o que teria impedido esse apaixonado cultor da livre empresa de aproximar-se das iniciativas que, poucas, mas expressivas, desenvolviam-se na Província de São Paulo, como a expansão ferroviária com capital nacional?

A verdade é que, dentre os muitos méritos desse fascinante trabalho, conta-se o de transmitir ao leitor de hoje o interesse pelas profundas ambigüidades de sua personagem: um homem de formação militar que tenta até o limite a carreira de self made man; um intelectual negro apaixonado pela cultura yankee; um filho-família que rejeita a carreira política; uma biografia de positivista que floresce como expoente liberal; um cultor do livre-cambismo e admirador das duas mais importantes vias de desenvolvimento através do protecionismo no século XIX (os EUA e a Alemanha); um dandy, apaixonado pela ópera, que vive como celibatário e termina trágica e solitariamente seus dias no fundo de um penhasco na Ilha da Madeira.

O Brasil pelo qual ele lutou é uma quimera, como afirmou nossa autora encerrando seu trabalho: "Afinal, no século que se seguiu ao seu suicídio, atirando-se de um penhasco em Funchal, os três amigos permaneceriam amalgamados na trajetória empreendida pelo Brasil: o rinnovamento de Nabuco tornar-se-ia o método pelo qual os brasileiros reconheceriam o seu longo e lento movimento em direção às reformas; o império de Taunay, metáfora de sua aspiração por uma `razão de Estado' ilustrada e complacente, seria reeditado em muitas versões ao longo do século XX, das quais a emergência de um novo Estado — o Estado Novo — seria a sua mais acabada expressão; por fim, a democracia expansiva de Rebouças, refletindo sua crença na potencialidade libertária dos interesses, seria a forma assumida pela esperança, no crepúsculo desse nosso quinto século". Muitos de nós não acalentamos essa esperança — a de que a livre iniciativa e as forças liberadoras do mercado sejam capazes de construir e consolidar a democracia nesse sombrio final de século XX. Sentimo-nos convidados, entretanto, por esse belo livro, a nos aproximarmos do pensamento e do legado de André Rebouças, no seu profundo inconformismo com a desigualdade e no seu incansável combate às oligarquias, à miséria e à exclusão social.

WILMA PERES COSTA

é professora do Departamento de Política e História Econômica do Instituto de Economia da Unicamp e coordenadora associada do Centro de Estudos Brasileiros do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da mesma universidade.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Maio 2000
  • Data do Fascículo
    Jun 1999
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