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Injustiça epistêmica: a prova testemunhal e o preconceito identitário no julgamento de crimes contra a mulher

Epistemic Injustice: testimonial evidence and identity prejudice on crimes against women’s trials

Resumo

As estruturas patriarcais que ainda marcam a sociedade brasileira afloram na forma de diferentes espécies de violência contra a mulher. O conceito de injustiça epistêmica, concebido por Miranda Fricker, emerge como um importante referencial teórico para a compreensão dos impactos dos preconceitos identitários no julgamento de casos de violência contra a mulher, na medida em que explica as distorções na distribuição da credibilidade entre agressor e vítima. A partir desse marco teórico, corroborado pela revisão bibliográfica da literatura específica, o artigo desenvolve a hipótese de que as estruturas de poder forjadas pelo patriarcado se manifestam nas práticas epistêmicas, inclusive sob a guarida da pretensa neutralidade do discurso jurídico, gerando um desbalanço no grau de confiabilidade atribuído às mulheres e aos homens, no âmbito do processo penal, e culminando em graves injustiças como a impunidade do agressor e a culpabilização da vítima, com base em estereótipos de gênero. Busca-se, por meio dessa análise, responder ao seguinte questionamento: em que medida o “ouvinte virtuoso” idealizado por Fricker pode servir de parâmetro para guiar a colheita do testemunho de vítimas de violência doméstica e outros crimes contra mulheres? E, ainda, em que medida a adoção dessas práticas epistêmicas virtuosas pode contribuir para evitar a influência de preconceitos na avaliação da prova testemunhal, e, em última instância, para mitigar os perniciosos efeitos do preconceito identitário no Sistema de Justiça – considerando o poder simbólico ostentado pelo Direito?

Palavras-chave
Violência de gênero; Preconceito identitário; Ideologia patriarcal; Injustiça epistêmica; Injustiça testemunhal

Abstract

The patriarchal structures that still define Brazilian society are manifested in different forms of violence against women. The concept of epistemic injustice, developed by Miranda Fricker, is a key concept for understanding the impacts of identity prejudices in the trial of cases of violence against women, as it explains the distortions in the credibility distribution between aggressor and victim. Under this framework, endorsed by the bibliographical review of the specific literature, this article develops the hypothesis that the patriarchal power structures surface in epistemic practices, despite the presumed neutrality of the law, unbalancing the degree of credibility attributed to women and men in the context of criminal proceedings, and leading to injustices such as aggressors’ impunity and victim blaming based on gender stereotypes. Through this analysis, the article aims to answer: Fricker’s “virtuous hearer” ideal can be a helpful parameter to guide judicial hearings, especially regarding the judge’s posture towards victims of domestic abuse and other crimes against women? If so, how such virtuous epistemic practices can avoid negative gender biases on the evaluation of testimonial evidence, and ultimately contribute to diminish the harmful effects of identity prejudices in the justice system – given its inherent symbolic power?

Keywords
Gender violence; Identity prejudice; Patriarchal ideology; Epistemic Injustice; Testimonial injustice

Introdução

As relações de poder na sociedade contemporânea, mesmo diante das significativas conquistas do movimento feminista nas últimas décadas, ainda são fortemente pautadas pelo patriarcalismo, o que contribui para a manutenção da desigualdade substantiva entre homens e mulheres, a despeito da aparente igualdade formal garantida pelo ordenamento jurídico.

Embora essa desigualdade não apareça mais de forma explícita na lei, está ainda presente na sociedade, tendo por sustentáculo as estruturas de poder patriarcais, e se manifesta de múltiplas formas, algumas mais evidentes (como o número de feminicídios2 2 Vide CERQUEIRA, Daniel et al. Atlas da Violência 2021. São Paulo: FBSP, 2021. pp. 36-37. ) e outras menos, embora também graves (como é o caso da injustiça epistêmica testemunhal, objeto do presente artigo).

Essas diferentes formas de injustiça se combinam e se potencializam. A violência contra a mulher, em suas diversas facetas, é não apenas sintomática das práticas e estruturas sociais patriarcais e misóginas, mas também, simultaneamente, contribui para a perpetuação dessas práticas, na medida em que reafirma a separação de papéis e a hierarquia de poder entre homens e mulheres na sociedade. Essa desigualdade transparece no Sistema de Justiça, em especial no julgamento de casos de violência contra a mulher, causando graves distorções na medida em que contribui para a impunidade do agressor, de um lado, e a culpabilização da vítima, de outro: tudo sob o manto da ilusória neutralidade do direito.

Uma das formas com que os resquícios do sistema patriarcal se infiltra na prática jurídica é na forma da injustiça epistêmica, fenômeno identificado por Miranda Fricker em sua emblemática obra “Epistemic Injustice: power and the ethics of knowing3 3 FRICKER, Miranda. Epistemic Injustice: power and the ethics of knowing. New York: Oxford University Press, 2007. . O conceito de injustiça epistêmica testemunhal, empregado pela autora, embora aplicável a diversos outros contextos, traz uma importante chave de compreensão para a análise das injustiças perpetradas pelo próprio Sistema de Justiça, mais especificamente no julgamento de crimes contra a mulher.

A partir desses conceitos, busca-se, no presente artigo, empregando-se a metodologia de revisão da literatura específica sobre o tema, reforçada pela análise de casos emblemáticos que evidenciam os contornos dessa dinâmica discriminatória4 4 Há dificuldades de pesquisa inerentes à análise de casos de julgamento de crimes de violência contra a mulher, na medida em que a maioria desses casos tramita sob segredo de justiça, e envolvem assuntos que não devem ser indiscriminadamente publicitados, em respeito à intimidade e segurança das vítimas. Diante disso, optou-se por centrar a análise em casos de grande repercussão, já noticiados pela mídia. Embora o recurso a notícias assim veiculadas apresente limitações práticas, já que tais notícias não contemplam a integralidade dos fatos discutidos no processo, entende-se que são suficientes para exemplificar o fenômeno ora discutido, pois permitem visualizar algumas de suas manifestações práticas, cuja constatação não depende necessariamente do conhecimento acerca do desfecho dado ao caso. , responder à questão: em que medida a injustiça epistêmica testemunhal se relaciona à culpabilização da vítima e a consequente impunidade do agressor, no julgamento de crimes contra a mulher? A hipótese defendida é que a injustiça epistêmica testemunhal, ao transpor ao processo penal preconceitos identitários forjados nas estruturas sociais patriarcais, potencializa distorções na distribuição de credibilidade entre homens e mulheres, com consequências especialmente graves no âmbito do julgamento de casos de violência contra a mulher, culminando, em última instância, na impunidade do agressor e culpabilização da vítima.

A análise terá como ponto de partida a contextualização acerca do princípio constitucional da igualdade, das conquistas feministas e da violência contra a mulher na sociedade brasileira, tópicos a respeito dos quais será dedicada a seção I do presente artigo. Na seção II, será apresentado o conceito de injustiça epistêmica, tal como formulado por Fricker, e, dentro dessa moldura teórica, buscar-se-á identificar a relação causal entre as estruturas patriarcais que moldam a sociedade e as injustiças perpetradas por ocasião do julgamento de crimes contra a mulher, mais especificamente a culpabilização da vítima com base em estereótipos de gênero. Por fim, na seção III, buscar-se-á frisar o papel do Poder Judiciário – e dos demais integrantes do Sistema de Justiça – no combate à injustiça epistêmica e paulatina superação do discurso legitimador da violência contra a mulher, com ênfase nas virtudes epistêmicas que devem ser cultivadas ativamente pelos magistrados, bem como no dever de fundamentação que incide sobre suas decisões.

Tal análise tem por objetivo contribuir para dar a necessária visibilidade a esse grave problema social que, justamente por ser ainda pouco discutido, segue enraizado não apenas nas estruturas sociais, mas também no Sistema de Justiça, que acaba contribuindo para perpetrar a violência simbólica contra as mulheres ao legitimar e naturalizar uma ideologia patriarcal e androcêntrica que as oprime e as pretere. A despeito da gravidade desse problema, suas raízes estruturais dificultam sua identificação nas práticas jurídicas e sociais cotidianas, de modo que passa muitas vezes despercebido pelos atores envolvidos no processo judicial, inclusive pelos juízes. Dessa forma, o fomento ao debate mostra-se ainda mais importante ao se considerar que, embora possam conduzir a graves erros judiciários, as injustiças epistêmicas são praticadas muitas vezes de forma inconsciente e não intencional, justamente porque os juízes – e o Sistema de Justiça como um todo – estão inseridos no tecido social e por isso tendem a reproduzir, em suas posturas e decisões, a ideologia vigente, tida como natural e inevitável5 5 Refere Canotilho que “medida de justiça” para a ordenação da vida comunitária andou ancorada, durante longos séculos, a “padrões de conduta” e de orientação heterónomos (religiões, cosmovisões, ideologias) e preexistentes. Estes “padrões de conduta”, transformados, muitas vezes, em “verdades” e “regras fundamentalistas” ou em “leis da história”, revelam-se hoje premissas claudicantes num mundo plural, anti-totalizante, anti-iluminista”. (CANOTILHO, Jose Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 6.ed. Coimbra: Almedina, 1993. p. 110). .

O Direito não deve servir para perpetuar injustiças materiais e legitimar desigualdades sociais. Mas, para isso, é imprescindível que o Poder Judiciário assuma um papel transformador, rompendo ativamente com os padrões cognitivos que derivam da distribuição desigual de poder social e se infiltram silenciosamente no senso comum. Diante disso, defende-se que os juízes e as juízas devem assumir o papel de combater ativa e conscientemente a injustiça epistêmica testemunhal contra as mulheres, no âmbito do Sistema de Justiça, como decorrência não apenas de um dever ético, mas do próprio dever constitucional de garantir uma igualdade social substancial.

1. O princípio constitucional da igualdade, as conquistas feministas e a violência contra a mulher

Seguindo a principiologia inaugurada pela Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, a atual Constituição brasileira adotou uma concepção substantiva de igualdade, em detrimento da igualdade meramente formal, de cunho liberal. A ideia formal de igualdade, como garantia de tratamento igual a todos, mostrou-se insuficiente para atender às necessidades de uma sociedade materialmente desigual, que passou a reclamar do Estado uma postura proativa para a correção de injustiças e distorções socioeconômicas. É nesse contexto que emerge a acepção substantiva da igualdade, de acordo com a qual situações análogas, nos seus aspectos proeminentes, “devem” ser tratadas do mesmo modo e, em contrapartida, situações desiguais devem ser tratadas diferentemente, na exata medida dessa diferença. A premissa é que, por meio do tratamento diferenciado, as pessoas serão tratadas como iguais, atingindo assim o patamar de igualdade com as demais.

Partindo desse postulado, é somente com fundamento no objetivo de igualar desiguais que se torna justificável o tratamento diferenciado a certas pessoas em razão de suas circunstâncias particulares. É por isso que o constituinte brasileiro se preocupou não apenas em anunciar um princípio geral de igualdade, mas também em tratar especificamente de situações em que essa igualdade deve ser ativamente perseguida. É o caso da igualdade entre homens e mulheres.

Sob esse prisma, ao afirmar que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição” (art. 5º, inc. I, da CF/1988), o constituinte brasileiro atribuiu ao Estado não apenas o dever negativo de se abster de atos discriminatórios indevidos, mas também um dever positivo de garantir uma isonomia substantiva, através de uma postura ativa e corretiva perante a desigualdade tão fortemente impregnada no tecido social brasileiro.

A orientação adotada pelo constituinte pátrio se alinha a importantes marcos internacionais. A partir da década de 1970, os movimentos feministas, surgidos e fortalecidos na Europa e nos Estados Unidos, passaram a reivindicar, do Estado, o incremento de leis, ações e políticas voltadas para a prevenção e para o combate à violência contra a mulher6 6 SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. O poder do macho. São Paulo: Moderna, 1987. . É o caso da Convenção para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres (CEDAW), bem como da Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher (“Convenção de Belém do Pará”) (CIDH, 1994) e da Convenção do Conselho da Europa para a prevenção e o combate à violência contra as mulheres e à violência doméstica (Convenção de Istambul). Esses instrumentos internacionais preconizam, expressamente, aspectos da perspectiva de gênero, no âmbito do Sistema de Justiça, reforçando a obrigatoriedade de garantir efetivamente os direitos das mulheres. A partir deste enfoque, impõem aos Estados não apenas um dever de natureza negativa – isto é, que se abstenham da prática discriminatória –, mas também um dever de cariz positivo: que adotem as medidas adequadas e idôneas à transformação dos padrões socioculturais relativos à diferenciação entre homens e mulheres, a fim de assegurar a igualdade no processo judicial nos tribunais de justiça.

Na esteira dos progressos internacionais, o movimento feminista também logrou importantes conquistas em território nacional. Dentre as vitórias que se podem listar, cumpre destacar: a criação do Conselho Nacional da Condição da Mulher (CNDM), em 1984; a promoção de uma campanha nacional para a inclusão de direitos das mulheres; a criação da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres – ainda na última década do século XX, com o intuito de promover medidas protetoras, tendo como principal objetivo a luta contra a violência contra as mulheres, onde surgiram as Delegacias Especiais das Mulheres em todo o país; e a edição de uma das mais emblemáticas leis de proteção à mulher, a Lei Maria da Penha (Lei nº. 11.340, de 7 de agosto de 2006), que criou mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher.

Ao instituir a Lei Maria da Penha, a ordem jurídica estabeleceu um posicionamento de coibir atos que violem a liberdade e a integridade da mulher, com fundamento no preceito constitucional de igualdade substantiva entre os gêneros.

Ocorre que, apesar dos avanços verificados nas últimas décadas, e a despeito do prestígio constitucional e infraconstitucional à igualdade entre homens e mulheres, ainda há um longo caminho a percorrer para se alcançar uma igualdade fática. Basta atentar aos índices7 7 Vide CERQUEIRA, Daniel et al. Atlas da Violência 2021. São Paulo: FBSP, 2021. pp. 36-37. de crimes cometidos contra mulheres para se perceber que a violência de gênero ainda impregna fortemente a sociedade brasileira, trazendo à tona as deletérias marcas do patriarcado sobre a dinâmica social, como é o caso da violência contra a mulher, grave manifestação da estrutura de poder patriarcal.

A violência contra a mulher é um dos mais evidentes e preocupantes sintomas da desigualdade entre os gêneros, conforme mostram as estatísticas8 8 Segundo o Relatório “Atlas da Violência – 2021: em 2019, 3.737 mulheres foram assassinadas no Brasil. Embora esse número represente uma redução percentual de 17,3% em relação ao ano anterior, essa notícia deve “ser matizada pelo crescimento expressivo dos registros de Mortes Violentas por Causa Indeterminada (MVCI), que tiveram incremento de 35,2% de 2018 para 2019, um total de 16.648 casos no último ano”. Além disso, deve-se considerar que, embora o Brasil tenha apresentado “uma redução de 18,4% nas mortes de mulheres entre 2009 e 2019, em 14 das 27 UFs a violência letal contra mulheres aumentou. Neste período, os aumentos mais expressivos foram registrados nos estados do Acre (69,5%), do Rio Grande do Norte (54,9%), do Ceará (51,5%) e do Amazonas (51,4%)”. Importante também anotar que, em 2019, foram registrados 1.246 homicídios de mulheres nas residências, representando 33,3% do total de mortes violentas de mulheres registradas. (CERQUEIRA, Daniel et al. Atlas da Violência 2021. São Paulo: FBSP, 2021. pp. 36-37). Note-se que, em Portugal, no ano civil de 2021, a APAV constatou que a maioria das vítimas diretas de crime, que recorreram à associação, eram mulheres: 10.308 do número total de vítimas (13.234), o que representa o percentual de 77,9% (Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, Estatísticas APAV – Relatório Anual 2022, p. 16. .

Em termos conceituais, a violência de gênero tem sentido mais amplo, abarcando casos de violência familiar e doméstica9 9 SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. O poder do macho. São Paulo: Moderna, 1987. . Por outro lado, a violência doméstica não se reduz às situações de violência de gênero. Nessa linha, para Inês Ferreira Leite, “a violência doméstica é, essencialmente, violência relacional, desenvolvida na intimidade, associada à coabitação, à proximidade, à interdependência, à vinculação marital”10 10 LEITE, Inês Ferreira. A tutela penal da liberdade sexual. Revista portuguesa de ciência criminal, v. 21, n. 1, p. 29-94, 2011. p. 37. .

Os índices alarmantes de violência contra as mulheres, no Brasil, estão intimamente relacionados à estrutura social patriarcal. Nesse sentido, defende Saffioti que violência contra as mulheres é decorrência da socialização machista, apresentando estreita ligação com o sistema de dominação-exploração fundidos no patriarcado11 11 SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. O poder do macho. São Paulo: Moderna, 1987. .

Entende-se por patriarcado, essencialmente, um modelo familiar no qual o pai é o centro da família, garantidor do sustento familiar e da proteção da sua prole12 12 VENTURA, Isabel. Medusa no Palácio da Justiça, ou, Uma história da violação sexual. Lisboa: Tinta da China, 2018. p. 68. . Nesse esquema social, a mulher ocupa o papel de esposa e mãe, ficando seu valor condicionado ao cumprimento dos deveres conjugais e maternos. Para Larrauri, o elemento estrutural do patriarcado repousa no reduzido status atribuído, em regra, às mulheres, cujo elemento ideológico é conjecturado nos valores, crenças e normas referentes à “legitimidade” da dominação masculina em todas as esferas sociais13 13 LARRAURI, Elena. Criminología crítica y violencia de género. 2.ed. Madrid: Editorial Trotta, 2018. p. 10-14. .

Com base em uma separação sexual de papéis, homens e mulheres são formados para ostentarem posições que satisfaçam a uma carga de significados simbólicos e culturais carregados de uma forte representação escorada e expandida, de acordo com a ideologia imposta pelas instituições sociais.

Essa representatividade, interiorizada, conduz a uma evolução desarmoniosa entre homens e mulheres. A edificação desse arranjo pautada pela assimetria entre os sexos habita nas explicações conjecturadas nos pressupostos biológicos, ou melhor, na essência do que é considerado “feminino” e “masculino”, justificado e determinado por ideias sexistas.

Tal modelo reflete nas relações de poder existentes na sociedade, pois, raramente, as diferenças de gênero são neutras – em quase todas as sociedades, antes, revelam-se uma forma substancial de estratificação social, que sedimenta as formas de oportunidade e influencia os papéis desempenhados nas instituições sociais, da família ao Estado.

Assim, muito embora os atos de violência praticados contra a mulher sejam manifestações evidentes de uma cultura marcada pela subserviência feminina em face da dominância masculina, que legitima a objetificação do corpo da mulher e a sua inferiorização em relação ao homem, a violência não se reduz à relação individualmente considerada entre agressor e vítima, que é apenas uma das muitas facetas da opressão estrutural intrínseca ao patriarcado.

De fato, a influência da estrutura patriarcal nas relações de poder que permeiam a sociedade pode assumir formas sutis, muitas das quais sequer são percebidas espontaneamente pelos sujeitos individuais. Na acepção de poder de Foucault, o poder como relação se alastra enquanto teia na vida cotidiana, alcançando a todos, daí a compreensão de uma “microfísica do poder”14 14 FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1981. p. 183-184. . Sob essa ótica, o poder é visto como algo que se exerce em rede, em cujas malhas “os indivíduos não só circulam, mas estão sempre em posição de exercer este poder e de sofrer sua ação; nunca são o alvo inerte ou consentido do poder, são sempre centros de transmissão”15 15 Idem, p. 184. .

A violência contra a mulher está, nessa concepção, fortemente arraigada na forma como o poder circula na sociedade, de modo que é impossível compreender suas causas sem se considerar as relações de poder subjacentes16 16 Sob a ótica da sociologia, a desigualdade de gênero é tida como “a diferença de estatuto, poder e prestígio que as mulheres e os homens adquirem em grupos, colectividades e sociedades”, ficando evidenciada a relação entre desigualdade e as relações de poder. É o que afirma GIDDENS, Anthony. Sociologia. 6.ed. Tradução: Alexandra Figueiredo et al. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008. p. 115. . E mais: a análise dessas relações de poder revela que seus consectários são muito mais amplos e profundos do que sugerem os (já alarmantes) números de casos de violência de gênero computados nos índices oficiais, na medida em que a violência não é apenas física, assumindo variadas formas que se conectam e se potencializam mutualmente17 17 De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) em parceria com o Instituto Jones dos Santos Neves (IJSN), entre os anos de 2009 e 2019, 50.056 mulheres foram assassinadas. .

Uma dessas formas é a chamada violência simbólica. De acordo com Bourdieu, a violência simbólica é uma articulação de um instrumental de poder que objetiva naturalizar os discursos pelo domínio da linguagem e levar os agentes sociais a acreditarem que certa realidade é verdadeira e legítima ao camuflar sua real arbitrariedade18 18 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 6.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. p. 16. .

Embora a violência simbólica não envolva diretamente violência física, contribui para escusá-la e, consequentemente, legitimá-la no plano ideológico, o que, em última instância, corrobora para catalisá-la no plano fático, eternizando e exacerbando as distorções e injustiças ínsitas à sociedade patriarcal.

Dentro deste ciclo, relações simbólicas naturalizam o androcentrismo já incutido nas instituições jurídicas (já que estas estão inseridas na trama social e acompanham a ideologia hegemônica) e reforçam o isolamento moral pela consequente marginalização e subordinação de status19 19 MATTOS, Cristiane Araújo de. ‘Patriarcado público’: estereótipos de gênero e acesso à justiça no Brasil. Revista Ágora, Vitória, n. 22, p. 158-169, 2015. p. 167. . Assim, a visão androcêntrica impõe-se de forma “neutra” e faz parecer que essa relação de dominação é mesmo natural, levando as pessoas, homens ou mulheres, a aceitarem como normal e, consequentemente, a eternizar a vantagem que os homens levam em relação às mulheres20 20 CORRÊA, Vanisse Simone Alves. A visão androcêntrica do mundo: elemento facilitador para o acesso dos homens às funções da gestão escolar. Jornal de Políticas Educacionais, v. 4, n. 7, p. 53-60, 2010. p. 54. .

A violência simbólica contra as mulheres, enraizada na distribuição desigual de poder nas sociedades marcadas pelo patriarcalismo, reflete – dentre outras instâncias – na argumentação jurídica, no âmbito do Poder Judiciário, notadamente nos discursos e pensamentos baseados em concepções morais que culpabilizam a vítima e/ou minimizam ou desculpam o comportamento do agressor, o que conflui para a impunidade e contribui para a perpetuação da desigualdade de gênero, alimentando um ciclo de silenciamento e subjugação das mulheres e reforçando o poder social masculino.

Conforme se aprofundará na seção seguinte, esse julgamento moral das mulheres estereotipadas pela própria instância de poder que deveria protegê-las da violência sofrida, revela uma benevolência com a estrutura patriarcal posta e implica uma dupla vitimização (ou revitimização secundária): não bastasse a violência física, moral e/ou sexual originariamente sofrida, a mulher é novamente vitimizada pelas figuras de autoridades incumbidas de investigar, processar e julgar seu caso, que, sistematicamente, desconsideram ou minimizam o valor probatório do relato apresentado, relativizam a gravidade da violência sofrida ou até mesmo a justificam com base no comportamento da vítima, muitas vezes sob pretextos moralistas e sem qualquer respaldo jurídico. Ou seja, inobstante a violência física já sofrida, as vítimas que buscam justiça são, frequentemente, submetidas a uma série de microagressões por parte daqueles que as deveriam amparar. Esse fundado temor de sofrer represálias, não só pelo próprio agressor, mas também por parte das autoridades que as deveriam proteger (delegados e delegadas, investigadores e investigadoras, promotores e promotoras de justiça, advogados e advogadas, defensores públicos e defensoras públicas, juízes e juízas), desestimula a denúncia pelas mulheres vítimas de violência de gênero e violência doméstica, o que sugere que o número de ocorrências não registradas supera, em muito, os já preocupantes índices oficiais.

Esse tratamento deferido às mulheres pelo Sistema de Justiça propicia um cenário de desamparo para as vítimas, que em muitos casos deixam de pedir ajuda das autoridades por temerem uma dupla vitimização. Através do sistemático silenciamento das vítimas e consequente impunidade dos agressores, o sistema judicial reforça a posição de subjugação da mulher na sociedade e contribui para a própria intensificação da violência legitimada por essa ideologia patriarcal.

2. A injustiça epistêmica testemunhal contra mulher, os estereótipos de gênero e a culpabilização da vítima no Processo Penal

Como anteriormente afirmado, a violência contra a mulher é sustentada e alimentada pelas relações assimétricas de poder social subjacentes. Sob esse viés, é possível identificar um tipo específico de violência sofrido pelas mulheres, e que contribui para a mencionada revitimização: a injustiça epistêmica testemunhal, escorada nas relações de poder identitário. Trata-se de conceito cunhado por Miranda Fricker, na sua emblemática obra “Epistemic Injustice: power and the ethics of knowing21 21 FRICKER, Miranda. Epistemic Injustice: power and the ethics of knowing. New York: Oxford University Press, 2007. , e trazido para o direito processual penal e para a epistemologia probatória brasileiros por autoras como Rachael Herdy e Janaina Matida22 22 Em artigo inovador sobre o tema, a autora define a injustiça epistêmica nos seguintes termos: “a injustiça testemunhal ocorre quando se questiona, de partida e injustificadamente, a capacidade de um falante de conhecer os fatos e, neste sentido, de poder contribuir a uma reconstrução que mereça credibilidade. Na injustiça testemunhal, o questionamento quanto a tal capacidade deve-se ao pertencimento do falante a determinado grupo social ou étnico, operando-se uma infundada falta de credibilidade quanto ao conteúdo. Portanto, o mesmo conteúdo afirmado teria recepção diversa por parte de seu interlocutor se afirmado por alguém de outro grupo social ou étnico.” (MATIDA, Janaina. É preciso superar as injustiças epistêmicas na prova testemunhal. Limite Penal, 2020). .

Ressalve-se que o conceito de injustiça epistêmica concebido por Fricker, embora forneça subsídios teóricos importantes para a compreensão da (e combate à) injustiça sofrida pelas mulheres no cerne do Sistema de Justiça, é mais amplo que a questão específica ora analisada, na medida em que essa forma de injustiça pode ser motivada não apenas por preconceitos de gênero, mas também de cor, etnia e classe. Ademais, essa concepção não se reduz às situações específicas de prova testemunhal – enfocadas no presente artigo – abrangendo qualquer forma de testemunho, em sentido amplo.

Na definição de Fricker, poder social é “uma capacidade prática socialmente situada para controlar ações dos outros, onde esta capacidade pode ser exercida (ativa ou passivamente) por agentes sociais particulares ou, alternativamente, pode-se operar puramente estruturalmente”23 23 FRICKER, Miranda. Epistemic Injustice: power and the ethics of knowing. New York: Oxford University Press, 2007. p. 13. . O poder social, assim definido, impacta diretamente no status que cada pessoa ocupa na estrutura social, e esse status reflete na determinação do respectivo grau de credibilidade.

O poder social se manifesta no âmbito epistêmico na forma de poder identitário, que se alicerça sobre uma concepção imaginativa compartilhada de identidade social24 24 Idem, p. 14. . Em outras palavras, o enquadramento do locutor em determinada categoria social conduz à redução da sua identidade a um estereótipo, que será dotado de maior ou menor credibilidade, conforme o grau de poder social concentrado naquela categoria.

Partindo da premissa de que a credibilidade é um bem finito25 25 LACKEY, Jennifer. Credibility and the Distribution of Epistemic Goods. In: MCCAIN, Kevin (ed.). Believing in Accordance with the Evidence: New Essays on Evidentialism. Synthese Library. v. 398. Springer: Cham, 2018. p. 159. , de modo que os juízos de credibilidade são implicitamente comparativos e contrastivos26 26 MEDINA, José. The Relevance of Credibility Excess in a Proportional View of Epistemic Injustice: Differential Epistemic Authority and the Social Imaginary. Social Epistemology: A Journal of knowledge, v. 25, n. 1, p. 15-35, 2011. p. 20. , tem-se que o superávit de credibilidade atribuída aos integrantes de determinado grupo identitário tem como contrapartida necessária o déficit de credibilidade atribuída aos demais grupos. Essa desproporção na distribuição de credibilidade entre diferentes grupos identitários fica nítida, principalmente, em situações em que há um confronto entre dois relatos mutualmente excludentes.

Transpondo o raciocínio para a questão analisada no presente artigo, tem-se que os resquícios patriarcais que marcam a estrutura social brasileira, ainda que aparentemente extirpados no texto constitucional e legal, remanescem fortemente no imaginário social, construído a partir de papéis de gênero desiguais, cuja observância ou desvio impactam diretamente no status do indivíduo perante a sociedade.

Esse impacto pode ser percebido na formação dos estereótipos de gênero: aos homens, são concedidos quase automaticamente os rótulos de “pai de família” e “homem de bem”, ou, ainda, são infantilizados (mesmo que se trate de homens adultos) como “imaturos” e, portanto, incapazes de assumirem responsabilidades pelas próprias ações e decisões; às mulheres, por outro lado, o rótulo de “mulher decente” ou “mulher honesta” é condicionado à sua completa redenção às rígidas exigências do patriarcado, ou seja, a um padrão de comportamento que não ameace a manutenção da estrutura de poder androcêntrica. Daí o enaltecimento de traços passivos como a subserviência, a docilidade, a contenção e a abnegação feminina, já que essas características contribuem para perpetuar o monopólio masculino sobre o poder social. Por outro lado, ao agirem com liberdade, assertividade, independência e até mesmo ambição, as mulheres se desviam do papel social imposto pelo modelo patriarcal e, por isso, sofrem duras represálias – muitas vezes veladas – tornando-se alvos de estereótipos como o da “mulher promíscua”, da “esposa histérica”, da “mãe negligente” e da “ex-namorada vingativa”. Esses estereótipos são naturalizados no âmbito das relações sociais e afloram no discurso jurídico, em especial no contraste entre o tratamento dado ao homem e à mulher pelas autoridades envolvidas.

Há nisso um problema epistêmico, na medida em que são esses os estereótipos que guiam a imaginação do receptor de um testemunho, influenciando – ainda que inconscientemente – seu juízo quanto à credibilidade do relato apresentado. Desse modo, a capacidade do falante como agente cognitivo é avaliada a partir de preconceitos e estereótipos incutidos no interlocutor, prevalecendo até mesmo sobre fatos e evidências concretas. Vale dizer, “a pessoa que pratica injustiça epistêmica com base nos estereótipos e nas identidades sociais age movida pela crença (imaginação) de que a sua representação subjetiva do mundo tem prevalência sobre a objetividade do mundo”27 27 LIMA JUNIOR, Manoel Pereira. Injustiça epistêmica e a questão racial. Coluna ANPOF, 4 jun. 2020. p. 6. .

Sendo assim, se a própria estrutura da sociedade é marcada pela dominação-exploração da mulher, em contraste ao poder social masculino, essa desproporção reflete em nível epistêmico, implicando graves distorções na distribuição do grau de credibilidade atribuído às pessoas.

Os estereótipos de gênero, portanto, propiciam injustiças não apenas nas esferas econômica, educacional, profissional e familiar das mulheres, mas também na sua condição de sujeito epistêmico, ou seja, sujeito capaz de transmitir conhecimento digno de credibilidade28 28 No julgamento de casos de violência doméstica, essa depreciação da capacidade da mulher como agente cognitivo aparece de múltiplas formas. De modo geral, percebe-se que o mero enquadramento da mulher na posição de vítima de violência doméstica implica uma espécie de capitis diminutio na sua condição de sujeito epistêmico. Cite-se, como exemplo, os comentários realizados pelos membros do Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.424/DF, no bojo do qual enfrentou-se a divergência jurisprudencial acerca de ser a ação penal incondicionada ou não (a consequência prática era a de que a vítima poderia retratar-se antes do recebimento da denúncia). Na referida sessão, ao defender a natureza incondicionada da ação penal em casos de crime de lesão corporal, leve ou grave, praticado contra mulher no espaço doméstico, destacou o Relator, em seu voto, que incumbe ao Estado garantir a proteção da família e que não é razoável nem proporcional que fique ao arbítrio da mulher a atuação estatal dado que “sua manifestação de vontade é cerceada por diversos fatores da convivência no lar, inclusive a violência a provocar o receio, o temor, o medo de represálias “[...]. Após debate, permeado de senso comum, reconheceu-se a incapacidade, de modo geral, a toda mulher de manifestar-se sem que sua vontade fosse fruto de vício ou coerção, em razão de estar em “situação de violência doméstica” (RAMOS, Ana Luisa Schmidt. Dano Psíquico como crime de lesão corporal na violência doméstica. Florianópolis: Empório do Direito, 2017, p. 49). Ainda que sob o pretexto de proteger a mulher, o Sistema de Justiça legitima a sua anulação como sujeito epistêmico e até mesmo como pessoa capaz de manifestar vontade, o que contribui para agravar o déficit de credibilidade motivado pelo preconceito de gênero, reforçando o próprio discurso que, em última instância, legitima a violência contra a mulher. .

Sendo a injustiça epistêmica motivada por preconceitos baseados em estereótipos, a análise da sua prática contra as mulheres, especificamente no contexto dos julgamentos de crimes de violência de gênero, passa necessariamente pelo enfrentamento dos estereótipos que influenciam diretamente a distribuição de credibilidade entre agressor e vítima, nesses casos. Nessa linha, o estereótipo é escorado pelos papéis sociais designados para homens e mulheres, e pode resultar na punição moral daquela ou daquele que desvie do padrão referencial do julgador29 29 DE MATTOS, Cristiane Araújo. Patriarcado público: estereótipos de gênero e acesso à justiça no Brasil. Revista Ágora, v. 22, p. 158-169, 2018. .

De fato, em consonância com essa cultura, ao se produzir um desvio das expectativas, por exemplo, ou ao colocar em questão a ordem patriarcal, ou caso as condutas não se enquadrem, como no comportamento expectável pelo padrão em vigor naquela sociedade, há uma imposição de correção, até mesmo por meio de violência, cujo emprego é socialmente legitimado.

Aliás, no Brasil, o próprio Direito historicamente legitimava o emprego de violência contra a mulher que descumprisse os deveres de fidelidade conjugal: as Ordenações Filipinas expressamente atribuíam ao homem casado o direito de “licitamente matar” a esposa que cometesse (ou simplesmente pretendesse cometer) adultério30 30 M. – liv. 51. 16 § 1º. .

Apesar da evidente evolução da legislação desde então, é inegável que essa mentalidade – que tem por sustentáculo o modelo patriarcal, que vê a mulher como propriedade do homem – continua arraigada na sociedade, que impõe severas punições morais à mulher adúltera31 31 Esse estereótipo foi utilizado pelo Tribunal da Relação do Porto, em Portugal, como pretexto para legitimar as agressões sofridas pela vítima. Na decisão do caso, a suspensão da pena dos acusados de agressão foi fundamentada na violação do dever de fidelidade pela vítima, que remete aos padrões de preconceito contra as mulheres, sendo mencionado no julgado que “o adultério da mulher é um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem” (Processo n° 355/15.2 GAFLG. P1, do Tribunal da Relação do Porto, j. 11 out. 2017). , enquanto o adultério praticado pelo homem é normalizado e aceito como natural. Essa diferença de tratamento reflete no julgamento de casos de violência de gênero e especialmente de violência doméstica, na medida em que o adultério cometido pela mulher é muitas vezes invocado como justificativa para a agressão sofrida. Ainda hoje se invoca a tese da legítima defesa da honra na tentativa de escusar a violência contra a mulher, tendo sido inclusive objeto de recente julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que acertadamente a rechaçou32 32 “Não obstante tais avanços legais e institucionais, verifica-se, ainda, a subsistência de um discurso e uma prática que tentam reduzir a mulher na sociedade e naturalizar preconceitos de gênero existentes até os dias atuais, perpetuando uma crença estruturalmente machista, de herança histórica, que considera a mulher como inferior em direitos e mera propriedade do homem. Essa realidade é atestada por tantos casos ainda frequentes de homicídios e violência contra as mulheres, simplesmente por sua condição de gênero, que continuam atingindo números espantosos – repita-se, um feminicídio a cada sete horas – colocando o Brasil, lamentavelmente – repito novamente –, na corrida para campeão mundial de casos de feminicídio. É o que se denota, também, a partir da frequente e ainda atual invocação do discurso odioso da legítima defesa da honra, que continua possibilitando, mesmo que indiretamente, absolvições de homicídios perpetrados contra mulheres, em que pese tratar-se de retórica que reforça uma cultura extremamente patriarcal, de desrespeito e objetificação da mulher, como salvo-conduto de crime estruturalmente gravíssimo pelo motivo mais abjeto possível: o fato do homem entender que sua companheira lhe pertence; o fato de entender que pode matá-la para lavar a sua honra. Não pode o Estado permanecer omisso perante essa naturalização da violência contra a mulher, sob pena de ofensa ao princípio da vedação da proteção insuficiente e do descumprimento ao compromisso adotado pelo Brasil de coibir a violência no âmbito das relações familiares (art. 226, §8º, da CF)” (STF, Plenário, ADPF 779/DF, rel. Min. Dias Toffoli, j. 15/03/2021). .

A análise moral do comportamento da vítima, como no âmbito do referido julgamento, evidencia um elemento nuclear do patriarcado, cujo objetivo é controlar a sexualidade feminina. De acordo com Saffioti33 33 SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004. p. 67. , “o valor central da cultura gerada pela dominação-exploração patriarcal é o controle, valor que perpassa todas as áreas da convivência social”.

Esse padrão de dominação-exploração patriarcal reflete na valoração das mulheres, a partir de sua idoneidade moral-sexual, que condiciona sua credibilidade aos olhos da sociedade. Criam-se, com base nesse padrão, dois mitos: de que a mulher que tem experiência sexual seria mais propícia a consentir com a relação sexual; e de que, por sua suposta “promiscuidade”, seria menos crível34 34 CRAIG, Elaine. Putting Trials on Trial: sexual assault and the failure of the legal profession. Montreal and Kingston: McGill-Queen’s University Press, 2018, p. 39. ou até mesmo menos merecedora da tutela estatal35 35 Esse raciocínio pode ser encontrado na exposição de motivos do atual Código Penal. No item 50 da exposição, exemplifica-se como hipótese em que o comportamento da vítima deve influir na quantia da pena o “pouco recato da vítima”, que seria considerado “provação ou estímulo à conduta criminosa”. . Esses mitos repercutem diretamente nos julgamentos de crimes contra a mulher, especialmente em casos de estupro.

O uso de estereótipos de gênero como estratégia para minar a credibilidade do testemunho da vítima é recorrente em casos de estupro, pois, nesses casos, a palavra da vítima é muitas vezes a principal prova da ausência de consentimento que perfaz o suporte fático do tipo penal. Nesse contexto, o estereótipo da “mulher promíscua” é frequentemente utilizado para desacreditar o relato da vítima. Muito comum, por exemplo, a juntada, pela defesa do réu, de fotos supostamente sensuais da vítima, como fotos de biquíni compartilhadas em redes sociais, como estratégia para enviesar o julgamento de casos de estupro36 36 Em recente reportagem veiculada pelo G1, foi dado enfoque à recorrência dessa torpe estratégia de defesa em casos de estupro, conforme apontado pela advogada criminal e dos direitos das mulheres Maira Pinheiro, “a finalidade argumentativa das imagens é dizer que a vítima não parece suficientemente triste, deprimida ou com estresse pós-traumático”, com o intuito de descredibilizá-la. Essa prática, conforme frisado na referida reportagem, é uma forma de violência simbólica. (HONÓRIO, Gustavo. Advogados de agressores anexam fotos de vítimas de estupro usando biquíni, e defensoras denunciam ‘violência simbólica’ e falta de ética. 17 fev. 2023). , sob a falácia de que tal comportamento não seria condizente com a condição de vítima, de modo que não seria digna da tutela estatal. Foi exatamente a estratégia usada pela defesa no caso Mariana F., comentado mais adiante. No afã de punir a mulher que desvia do papel de gênero socialmente imposto, relativiza-se a culpa do homem que ofende norma jurídica expressa, de modo que o julgamento moral sobre o comportamento lícito da mulher se sobrepõe ao julgamento jurídico do comportamento ilícito do seu agressor.

De fato, em casos de estupro, é possível perceber um padrão de julgamento em que as vítimas apenas têm seus depoimentos valorizados se correspondem à figura da vítima idealizada pela sociedade e pelo Judiciário brasileiro37 37 ALMEIDA, Gabriela Perissinotto de; NOJIRIY, Sérgio. Como os juízes decidem os casos de estupro? Analisando sentenças sob a perspectiva de vieses e estereótipos de gênero. Rev. Bras. Polít. Públicas, Brasília, v. 8, n. 2, p. 825-853, 2018. p. 828. . Mulheres que desviam-se de alguma forma desse ideal, por não se submeterem integralmente ao rígido padrão de controle e dominação imposto pelo patriarcado ao seu comportamento e à sua sexualidade, passam rapidamente de vítimas a culpadas, por vezes sofrendo um escrutínio ainda mais severo que o próprio agressor.

Essa estratégia de dominação é um exemplo típico de injustiça epistêmica testemunhal, na medida em que a distribuição da credibilidade entre as partes envolvidas é desproporcional, pois guiada por aspectos discriminatórios arbitrários, baseados em preconceitos identitários.

Embora a influência desse preconceito seja, na maioria das vezes, velada, é possível detectá-la nitidamente em certos casos, alguns de grande repercussão nacional, como por exemplo o “caso Robinho”. O caso ocorreu em uma boate em Milão, em 2013, sendo a vítima uma mulher albanesa que, na ocasião, comemorava seu aniversário de 23 anos no local. A vítima, que se encontrava embriagada, foi estuprada pelo ex-jogador, com a participação de outros cinco brasileiros. O que chama atenção ao caso é o fato de que, embora o ex-jogador tenha admitido a prática da relação sexual com a jovem, negou reiteradamente a prática de “violência sexual”, valendo-se do torpe argumento de que a impossibilidade de consentimento38 38 Acerca da clássica discussão doutrinária sobre acordo e consentimento, ver ANDRADE, Manuel da Costa. Consentimento e Acordo em Direito Penal. Coimbra: Coimbra Editora, 1991, pp. 362 e ss., esp. pp. 382 e ss. pela moça em razão de sua embriaguez não equivaleria a um efetivo dissentimento com o ato. Trechos de conversas interceptadas pela polícia e publicados, em 2020, evidenciam essa mentalidade do criminoso, que chegou a afirmar em tom jocoso: “Estou rindo porque não estou nem aí, a mulher estava completamente bêbada, não sabe nem o que aconteceu”39 39 os trechos das gravações foram divulgados em 2020 pelo site Globo Esporte, em: FERRAZ, Lucas. As gravações do caso Robinho na justiça italiana: “A mulher estava completamente bêbada”. Globo Esporte, 16 out. 2020. .

O problema maior reside no fato de que esse pensamento está enraizado nas diversas camadas da sociedade brasileira, o que fica nítido ao se considerar a repercussão social que o caso gerou: apesar da gravidade do crime e da própria admissão dos fatos pelo estuprador, boa parte da opinião pública caminhou no sentido de minimizar a culpa do jogador e responsabilizar a jovem pelo ocorrido, com base em juízos morais sobre seu comportamento, principalmente no fato de a jovem estar em uma balada, ter consumido bebidas alcóolicas e ter feito contato com o jogador, fatos que, embora simplórios e arbitrários, foram considerados, por muitos, suficientes para desconsiderar o relato da jovem e minar a credibilidade do seu testemunho40 40 COITINHO, Denis. A Complexidade da injustiça epistêmica. Estado da Arte, 2020. . Felizmente, o conjunto probatório reunido foi suficiente para resultar na condenação do ex-jogador pela justiça italiana, que o sentenciou a nove anos de prisão pelo crime de estupro41 41 Robinho e um dos outros participantes foram condenados pelo Tribunal de Milão com fulcro no artigo “609 bis” do código penal italiano, que trata da participação de duas ou mais pessoas reunidas para ato de violência sexual coagindo alguém a manter relações sexuais por sua condição de inferioridade “física ou psíquica” (FERRAZ, Lucas. As gravações do caso Robinho na justiça italiana: “A mulher estava completamente bêbada”. Globo Esporte, 16 out. 2020). O caso teve um recente desdobramento com a recepção, em 23 de fevereiro de 2023, pelo STJ, do pedido do governo da Itália para que o ex-jogador cumpra pena no Brasil, estando ainda pendente de apreciação. . Outro notório exemplo do peso dos estereótipos de gênero nos julgamentos de casos de estupro é o caso da influenciadora digital Mariana F., que alcançou grande repercussão nacional em razão da agressividade perturbadora com que foi conduzida sua audiência judicial, especialmente por parte do advogado de defesa. Segundo o relato da jovem, durante um evento na boate em que trabalhava, em dezembro de 2018, ela (então com 21 anos e virgem), teria sido estuprada por um conhecido empresário (então com 40 anos). A partir das cenas da referida audiência42 42 Após serem divulgadas pelo site Intercept Brasil, os trechos da audiência circularam por diversos veículos de informação, dentre os quais cite-se a seguinte reportagem do Estadão: VIEIRA, Renato. Veja trecho em que Mariana Ferrer chora ao ser pressionada por advogado em audiência. Estadão, 4 nov. 2020. , a tentativa de descredibilizar a mulher com base em estereótipos de gênero ficou evidente na postura do advogado ao utilizar fotos íntimas da jovem, sem relação com o caso, com o intuito de questionar sua idoneidade moral43 43 Percebe-se que o julgamento sobre a sexualidade feminina é tão rígido que o fato de Mariana ser virgem à época, de ter metade da idade do empresário, e de estar trabalhando na ocasião foram suficientes para livrá-la do estereótipo da mulher promíscua e aproveitadora, capaz de tudo para destruir a reputação de um “cidadão de bem”. Essa narrativa foi deliberadamente cultivada pelo advogado de defesa Gastão da Rosa, que logrou retirar o foco dos fatos e da conduta do acusado para direcioná-lo ao julgamento moral da vítima, com o intuito de enquadrá-la em estereótipos depreciativos, desestabilizá-la emocionalmente e assim descredibilizar seu testemunho. Esse desvio de foco fica evidente quando Mariana implora à defesa que se atenha aos fatos, obtendo como resposta do advogado: “jamais teria uma filha do teu nível e também peço a Deus que meu filho não encontre uma mulher que nem você” (VIEIRA, Renato. Veja trecho em que Mariana Ferrer chora ao ser pressionada por advogado em audiência. Estadão, 4 nov. 2020). Ao final, o empresário foi absolvido sob o argumento de insuficiência probatória. A conclusão constante da sentença foi a seguinte: “Assim, diante da ausência de elementos probatórios capazes de estabelecer o juízo de certeza, mormente no tocante à ausência de discernimento para a prática do ato ou da impossibilidade de oferecer resistência, indispensáveis para sustentar uma condenação, decido a favor do acusado André de Camargo Aranha, com fundamento no princípio do in dúbio pro reo” (3ª Vara Criminal da Capital, Florianópolis/SC, Autos n° 0004733-33.2019.8.24.0023, juiz Rudson Marcos, j. 09.09.2020). e assim desvalorizar seu testemunho em relação ao próprio dissentimento44 44 Segundo Janaina Matida, essas cenas deixaram evidente a lastimável subsistência do conceito de “mulher honesta” na sociedade e no direito brasileiro (MATIDA, Janaina. Precisamos fortalecer a defesa criminal com perspectiva de gênero. Limite Penal, 18 nov. 2022). Também comentando o caso, pontua COITINHO, Denis. A Complexidade da injustiça epistêmica. Estado da Arte, 2020: “A injustiça do caso parece residir na consideração assimétrica em relação aos testemunhos, atribuindo menor credibilidade ao relato da vítima, que é mulher, com base em estereótipos sociais que consideram as mulheres irracionais e não confiáveis, maliciosas ou mesmo que desejariam esconder sua conduta libidinosa ou arruinar a vida de um ‘homem de bem’”. .

A brutalidade do tratamento conferido a Mariana F., nas cenas viralizadas, bem como a omissão do juiz em assegurar um patamar mínimo de respeito à vítima, acenderam um debate em nível nacional sobre os limites da ampla defesa em face de valores éticos mínimos: a garantia constitucional da ampla defesa pode servir de pretexto para a dupla vitimização da mulher que denuncia crimes de estupro?45 45 Para o Ministro Gilmar Mendes, do STF, comentando as cenas da fatídica audiência, “o sistema de justiça deve ser instrumento de acolhimento, jamais de tortura e humilhação” (Conjur, Justiça deve ser instrumento de acolhimento, não de humilhação, 3 nov. 2020).

Evidentemente, não se pode defender uma relativização da presunção de inocência nem uma mitigação do standard probatório em casos de violência contra a mulher. Contudo, essas garantias ao acusado não podem servir de pretexto para se legitimar um Sistema de Justiça que, desde a investigação até o julgamento, conduz à culpabilização da vítima com base em padrões discriminatórios e estereótipos de gênero.

3. A necessária transformação do Sistema de Justiça a partir da perspectiva de gênero

A sentença é uma prática discursiva, fundamentada na convicção motivada46 46 À guisa de exemplo, a motivação possui relevo como elemento que propicia uma interpretação precisa da decisão, iluminando com exatidão o conteúdo para fins de cumprimento da sentença ou de demarcação da coisa julgada. (MOREIRA, José Carlos Barbosa. A motivação das decisões judiciais como garantia inerente ao Estado de Direito. In: MOREIRA, José Carlos Barbosa. Temas de Direito Processual. 2ª série. São Paulo: Saraiva, 1980, p. 86). do julgador, que afirma a pretensão estatal para determinado caso concreto. Ao decidir um caso concreto, o julgador atribui um fundamento e uma justificativa ímpar que legitima o exercício do poder estatal, exercendo um importante papel social ao conferir valor aos julgados, que representam a verdade, a justiça para aquele caso.

Ocorre que o direito penal, por sua natureza, não coaduna com o rigorismo tipológico a que se propõe, pois abre ao magistrado ou à magistrada uma ampla margem de apreciação sobre a colmatação de lacunas, a solução de antinomias jurídicas, a avaliação dos elementos do crime e a fixação da pena47 47 ANDREUCCI, Ricardo Antunes. Direito Penal e Criação Judicial. São Paulo: RT, 1999, p. 57. . Sob esse prisma, a sentença não pode ser considerada mera aplicação silogística e engessada do texto legal, e sim o resultado de uma experiência verdadeiramente dialética48 48 REALE, Miguel. A ética do Juiz na cultura contemporânea. Revista Forense, Rio de Janeiro, jan./mar. 1994, p. 67. .

Contudo, enquanto sujeitos sociais, os juízes e juízas estão inseridos na trama social e suas sentenças são impregnadas de conteúdo valorativo49 49 HERKENHOFF, João Baptista. Como Aplicar o Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 81-82. , de modo que estão sujeitos, mesmo que involuntária e inconscientemente, a reproduzirem os estereótipos presentes na sociedade50 50 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (Brasil). Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero [recurso eletrônico]. Brasília: CNJ; Enfam, 2021. p. 35. . Aliás, a própria fixação na norma pode ser compreendida como um posicionamento conservador, pois direcionado à estabilização das relações sociais51 51 HERKENHOFF, João Baptista. Como Aplicar o Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 82-83. .

Nesse cenário, a proclamada neutralidade do Direito torna-se meramente ilusória, na medida em que o discurso jurídico, quando desconsidera as diferenças substantivas entre diferentes pessoas, traduz um poder simbólico que determina “verdades” estereotipadas e robustece a segregação52 52 Sobre a infiltração da visão sexista do mundo em sentenças proferidas em casos de violência contra a mulher, vide: FIGUEIREDO, Débora de Carvalho. Gênero e poder no discurso jurídico. Revista de Ciências Humanas, Florianópolis, v. 15, n. 21, p. 37-52, 1997. , perpetuando papéis hierárquicos de gênero e negando o tratamento isonômico constitucionalmente garantido, ao mesmo tempo em que relativiza sua própria importância e se distancia da democracia e da justiça social53 53 Essa falsa neutralidade do Direito foi bem abordada no Protocolo do CNJ para Julgamento com Perspectiva de Gênero, no qual se explicitou: “Agir de forma supostamente neutra, nesse caso, acaba por desafiar o comando da imparcialidade. A aplicação de normas que perpetuam estereótipos e preconceitos, assim como a interpretação enviesada de normas supostamente neutras ou que geram impactos diferenciados entre os diversos segmentos da sociedade, acabam por reproduzir discriminação e violência, contrariando o princípio constitucional da igualdade e da não discriminação.” (p. 36). .

Cada vez mais, as intricadas relações sociais e pessoais evidenciam a função normativa que a jurisdição desempenha em casos concretos, diante da impossibilidade de o Legislativo prever e regular todos os direitos e relações de forma tempestiva. Contudo, o desempenho dessa Jurisdição há de ser realizado de forma criteriosa, institucionalizada, ponderada e não dissociada dos ideais democráticos inspiradores do Estado Democrático de Direito54 54 WELSCH, Gisele Mazzoni. Legitimação democrática do Poder Judiciário no novo CPC. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. . Na busca da promoção da Justiça, deve-se observar, em qualquer fase e ato processual, a implementação dos direitos e garantias fundamentais da pessoa humana, independentemente da posição que ela ocupa na relação processual55 55 MARDEGAN, Alexssandra Muniz. A produção da prova testemunhal por videoconferência, o direito ao confronto e o princípio da imediação. In: SOUSA MENDES, Paulo de; PEREIRA, Rui Soares (coords.). Novos Desafios da Prova Penal, Coimbra: Almedina, 2020. p. 48. .

É inegável que, na concepção democrática, o direito serve à sociedade. Ocorre que a sociedade é mutável, o que torna necessária, em alguma medida, a recriação judicial do Direito, a fim de adaptar-se às complexas necessidades da sociedade contemporânea56 56 Nesse sentido, afirma-se que “a restrição do direito à norma, seja de caráter abstrato ou geral, não consegue conviver com a nova ideia de justiça, pois essa implicaria na grande confiança no poder criativo do julgador de quem se espera uma “sensibilidade muito refinada” para lidar com as constantes mudanças do contexto social.” (PRADO, Lídia Reis de Almeida. O Juiz e a Emoção: aspectos da lógica da decisão judicial. Campinas: Millenium, 2005, p. 93). . Para esse desiderato, cumpre ao juízo afastar-se de padrões decisórios preestabelecidos, turvos e patriarcais, pois só assim poderá contribuir para o progresso dos preceitos estabelecidos pelo Direito.

O reconhecimento dessa mutabilidade dos padrões sociais e da consequente necessidade de constante adaptação do Direito reforça a necessidade de uma postura proativa do Poder Judiciário em corrigir e combater os resquícios de um modelo social anacrônico e violento, isto é, o modelo patriarcal e androcêntrico que ainda atravessa e contamina as diversas camadas sociais. É preciso reconhecer que as instituições jurídicas estão inseridas nesse contexto cultural e buscar ativamente compensar essa desigualdade estrutural, e é com esse objetivo que surge a necessidade de se adotar a perspectiva de gênero como método-interpretativo dogmático57 57 AMORIM, Fernanda Pacheco. Neutralidade jurídica: o CNJ e a epistemologia feminista. Revista Consultor Jurídico, 10 jan. 2022. , em especial no âmbito da apreciação da prova testemunhal no julgamento de crimes contra a mulher.

O momento de oitiva da vítima, em casos de crimes de violência contra a mulher, traz ao juiz uma dificuldade redobrada: além das dificuldades inerentes à própria obtenção e avaliação da prova testemunhal58 58 A respeito, vide ANDRÉS IBÁÑEZ, Perfecto. Sobre a formação racional da convicção judicial. Julgar, Coimbra, n. 13, p. 155-173, 2011. , deve ser capaz de extrair e avaliar o relato da vítima com efetiva imparcialidade, o que significa não uma falsa neutralidade, mas sim uma postura intencional de desprender-se dos preconceitos socialmente incutidos e impedir que contaminem suas conclusões e a própria condução do processo. É preciso partir da premissa de que esses preconceitos já estão enraizados no imaginário social, e muitas vezes afloram inconscientemente, de modo que apenas poderão ser efetivamente extirpados do discurso jurídico mediante a adoção deliberada da perspectiva de gênero por todos que concorrem para a criação e recriação do Direito, especialmente pelos magistrados e magistradas, dado o poder social que exercem.

Toma-se por paradigma o arquétipo do “ouvinte virtuoso”, concebido por Fricker como aquele que consegue corrigir a influência do preconceito no próprio julgamento de credibilidade59 59 FRICKER, Miranda. Epistemic Injustice: power and the ethics of knowing. New York: Oxford University Press, 2007. p. 5. . Assim, o ouvinte age com “virtude da justiça testemunhal” quando logra detectar e corrigir, no seu próprio juízo de credibilidade, a influência do preconceito.

Sob este viés, defende-se que cabe ao magistrado ou magistrada desvencilhar-se ativamente dos vieses cognitivos forjados pelo paradigma patriarcal, adotando intencionalmente uma perspectiva de gênero apta a corrigir as distorções geradas por esses vieses, e assim romper com os padrões sociais que respaldam as diversas manifestações da violência contra a mulher.

Com esse propósito, destaca-se a importância de medidas e políticas de formação e conscientização daqueles que atuam no Sistema de Justiça60 60 Essa necessidade de formação específica é reconhecida pela legislação portuguesa, estando entre as medidas destinadas a evitar a vitimização secundária elencadas pela Lei nº 130, de 04 de setembro de 2015 (Estatuto da Vítima). A respeito, vide MORAN, Fabiola. Ingerência penal & proteção integral à vítima. Belo Horizonte, São Paulo: D’Plácido, 2020. p. 183-184. Uma salutar medida adotada pelo Canadá, com o objetivo de evitar esse enviesamento em julgamentos de crimes contra a mulher, foi proibir “o uso de qualquer referência à história da mulher durante estes julgamentos, só sendo possível este uso com um pedido formal que comprove a relevância desta história” (COITINHO, Denis. A Complexidade da injustiça epistêmica. Estado da Arte). , com o objetivo de evitar a revitimização da mulher e os graves erros judiciários que podem decorrer das injustiças epistêmicas no processo penal. Conforme alertam Herdy, Castelliano e Rodas, a “identificação e prevenção desses erros perpassa não apenas por melhorias na legislação e na rotina judicial de produção de provas, mas também pelo aprimoramento epistêmico das instâncias persecutórias e decisórias criminais”61 61 RODAS, Sérgio; CASTELLIANO; Carolina; HERDY, Rachel. Mais uma vítima de injustiça epistêmica. Revista Consultor Jurídico. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2021-ago-20/limite-penal-vitima-injustica-epistemica>. Acesso em: 14 dez. 2022. . Faz-se coro com os autores quando afirmam que esse aprimoramento deve ter como ponto de partida a sensibilização “daqueles que atuam na ponta do sistema, como juízes e delegados, de que a credibilidade não é e não deveria ser atribuída em função de fatores identitários sociais”, e sim em função de uma lógica objetiva, que considere o alinhamento entre as informações e as evidências.

Felizmente, o tema tem alçado crescente proeminência no Brasil, tendo até mesmo sido citado expressamente pelo STJ em recente e inovadora decisão. Trata-se do julgamento do AResp 1.940.381/AL, concluído em 14 de dezembro de 2021, sob a relatoria do ministro Ribeiro Dantas, que fez explícita referência à injustiça epistêmica sofrida pelo réu62 62 Nesse caso, a injustiça epistêmica identificada dizia respeito ao acusado, e foi motivada por preconceitos identitários relativos sobretudo à classe social, “7. Mesmo sem a produção de nenhuma prova direta sobre os fatos por parte da acusação, a tese da legítima defesa apresentada pelo réu foi ignorada. Evidente injustiça epistêmica — cometida contra um jovem pobre, em situação de rua, sem educação formal e que se tornou pai na adolescência —, pela simples desconsideração da narrativa do apresentado.. .

Destaca-se que o Conselho Nacional de Justiça, com o objetivo de fornecer diretrizes aos juízes e juízas incumbidos de julgar casos de violência contra a mulher, publicou o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero63 63 Trata-se da Recomendação CNJ n. 128/2022, e foi inspirada no “Protocolo para Juzgar con Perspectiva de Género” concebido pelo Estado do México após determinação da Corte Interamericana de Direitos Humanos. , que é mais um instrumento para persecução da efetiva igualdade de gênero. Trata-se de verdadeiro guia para julgamentos efetivamente igualitários e não discriminatórios, com o intuito de romper com estereótipos e com culturas de discriminação e de preconceitos.

Outro relevante avanço nessa direção foi a edição da Lei n.º 14.245, de 22 de novembro de 2021, que prevê punição para atos contra a dignidade de vítimas de violência sexual e das testemunhas do processo durante julgamentos. Tal lei foi inspirada no mencionado caso da influenciadora digital Mariana F., e, dentre outras alterações, traz previsão expressa do dever de proteção da honra e dignidade das vítimas e testemunhas de crimes64 64 A lei inseriu o art. 400-A no CPP, determinando que “ Na audiência de instrução e julgamento, e, em especial, nas que apurem crimes contra a dignidade sexual, todas as partes e demais sujeitos processuais presentes no ato deverão zelar pela integridade física e psicológica da vítima, sob pena de responsabilização civil, penal e administrativa, cabendo ao juiz garantir o cumprimento do disposto neste artigo, vedadas: I - a manifestação sobre circunstâncias ou elementos alheios aos fatos objeto de apuração nos autos; II - a utilização de linguagem, de informações ou de material que ofendam a dignidade da vítima ou de testemunha. .

Impõe-se capacitar os agentes públicos65 65 No âmbito das promotorias, essa preocupação com a capacitação prática daqueles que lidam com vítimas de crimes levou à edição de um “Guia prático de atuação do Ministério Público na proteção e amparo às vítimas de criminalidade” pelo Conselho Nacional do Ministério Público, em 2019. , especialmente os juízes e juízas, para que, no exercício dessa importante função, tenham as ferramentas cognitivas necessárias para corrigir a influência de preconceitos identitários na formação das próprias convicções, evitando assim a reprodução automática e inconsciente de padrões sociais discriminatórios. E mais, é imprescindível a conscientização dos membros do Poder Judiciário “sobre seu papel e a extensão de sua participação enquanto fator de vitimização secundária”66 66 MORAN, Fabiola. Ingerência penal & proteção integral à vítima. Belo Horizonte, São Paulo: D’Plácido, 2020. p. 216. , de modo a se evitar que o Sistema de Justiça continue sendo um espaço de perturbações de caráter secundário e julgamento moral da mulher já violentada pelo agressor e pela sociedade.

É claro que, conforme reconhece a própria Miranda Fricker67 67 FRICKER, Miranda. Epistemic Injustice: power and the ethics of knowing. New York: Oxford University Press, 2007. p. 8. , há um limite ao que se pode alcançar apenas com o desenvolvimento das virtudes éticas individuais, já que a injustiça epistêmica está enraizada em estruturas de poder e desigualdades sistêmicas. Sendo assim, o dever de adotar medidas para combater essas injustiças e garantir o bem-estar da vítima e/ou testemunha não é apenas dos juízes individualmente considerados, mas do Sistema de Justiça como um todo, pois o expectável não é que haja empatia, mas o mínimo de respeito pela dignidade da vítima e sua condição de pessoa humana e cidadã destinatária de justiça.

Ressalte-se que, embora caiba ao juízo apreciar o valor probatório do testemunho da vítima, essa avaliação deve ser sempre motivada na sentença judicial, que deve explicitar os critérios e premissas que conduziram à conclusão adotada. Sob este viés, o dever de fundamentação das decisões judiciais68 68 A obrigação da fundamentação das decisões é uma exigência que decorre do direito a um processo equitativo, estando consagrada na Convenção Europeia dos Direitos do Homem (artigo 49), tal qual a maioria dos ordenamentos jurídicos. No Brasil, o dever de fundamentação consagrou-se constitucionalmente na Constituição de 1988 (artigo 93, IX, da CF), embora houvesse clamor doutrinário. Em meados da decáda de 80, José Rogério Cruz e Tucci, destacava a premente necessidade de se elevar ao status constitucional a obrigatoriedade da fundamentação das decisões judiciais (TUCCI, José Rogério Cruz. A Motivação da Sentença no Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 1987, p. 153). No mesmo sentido, José Carlos Barbosa Moreira, defendia que o princípio da motivação obrigatória das decisões judiciais, sendo garantia inerente ao Estado de Direito, fazia jus a previsão expressa na Constituição brasileira (MOREIRA, José Carlos Barbosa. A motivação das decisões judiciais como garantia inerente ao Estado de Direito. In: MOREIRA, José Carlos Barbosa. Temas de Direito Processual. 2ª série. São Paulo: Saraiva, 1980, p. 94). Sobre a evolução histórica do dever de fundamentação, trata o tema de forma satisfatória, abordando desde o início do direito romano até o direito atual, passando pelo direito hispano-lusitano, luso-brasileiro e brasileiro: FERNANDES, José Henrique Lara. A Fundamentação das Decisões Judiciais. Rio de Janeiro: Forense, 2005. emerge como importante mecanismo de controle sobre a atuação judicial, pois requer do juízo a expressão do percurso mental que formou sua convicção fática, revelando suas convicções e axiomas69 69 Menciona Piero Calamandrei que: “A fundamentação da sentença é sem dúvida uma grande garantia de justiça, quando consegue reproduzir exatamente, como num levantamento topográfico, o itinerário lógico que o juiz percorreu para chegar à sua conclusão, pois se esta é errada, pode facilmente encontrar-se, através dos fundamentos, em que altura do caminho o magistrado se desorientou”. (CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes, vistos por nós, os advogados. Tradução de: Ary dos Santos. 4.ed. Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1971, p. 143). .

A motivação adequada e justa garante a transparência da atividade judicante e propicia o autocontrole e o controle social das decisões judiciais70 70 MIRANDA, Felipe Arandy. A fundamentação das decisões judiciais como pressuposto do estado constitucional. Brasília: IDP, 2014. p. 203. , sendo, pois, a pedra de toque que permite à sociedade a aferição da tutela estatal dispensada aos jurisdicionados71 71 Nas palavras de MOUROS-MATA, Maria de Fátima. A fundamentação da decisão como discurso legitimador do poder judicial. Boletim informação & debate. Lisboa, s. 4, n. 2, dez. 2003. p. 112, a motivação “confere um fundamento e uma justificação específica à legitimidade do poder judicial e à validade das suas decisões, a qual não reside nem no valor político do órgão judicial nem no valor intrínseco da justiça das suas decisões, mas na verdade que se contém na decisão”. . Esse dever assume redobrada importância no julgamento de casos de crimes contra a mulher, pois obriga o juízo a expor fundamentadamente as razões que o levaram a acolher ou não a versão dos fatos apresentada pela vítima, o que coíbe arbítrios e possibilita o controle sobre os processos de convencimento72 72 BADARÓ, Gustavo. Editorial dossiê “Prova penal: fundamentos epistemológicos e jurídicos”. Rev. Bras. de Direito Processual Penal, Porto Alegre, v. 4, n. 1, p. 43-80, jan.-abr. 2018. p. 75. , especialmente no que tange à identificação de eventual influência indevida de preconceitos identitários.

Considerações Finais

Embora sejam inegáveis os progressos do ordenamento jurídico nas últimas décadas, em matéria de igualdade de gênero, a sociedade ainda está longe de alcançar a igualdade substantiva idealizada pelo constituinte originário. A estrutura social ainda é marcada pela dominação-exploração da mulher, em contraste ao poder social masculino, e essa desproporção reflete em nível cognitivo, implicando graves distorções na distribuição da credibilidade atribuída às pessoas.

Uma das manifestações do poder social é o poder identitário, de modo que as estruturas de poder forjadas pelo patriarcado se manifestam nas práticas epistêmicas, inclusive sob a guarida da pretensa neutralidade do discurso jurídico. Sendo assim, a estrutura de poder social androcêntrica reflete no desbalanço entre o grau de credibilidade atribuído às mulheres e aos homens, no âmbito do processo penal, o que abre margem para graves injustiças, principalmente no julgamento de casos de violência contra a mulher, culminando na impunidade do homem e na culpabilização da mulher com base em estereótipos de gênero.

De fato, o senso comum de culpabilização das mulheres reforça um sistema de subordinação que passa pelas relações familiares, profissionais e sociais em que estão envolvidas mulheres consideradas indignas da proteção da própria lei73 73 MATTOS, Cristiane Araújo de. ‘Patriarcado público’: estereótipos de gênero e acesso à justiça no Brasil. Revista Ágora, Vitória, n. 22, p. 158-169, 2015. p. 161. .

Embora a influência desse preconceito seja, na maioria das vezes, velada, é possível detectá-la nitidamente em certos casos de grande repercussão nacional, nos quais os estereótipos de gênero afloram intensamente na opinião pública, evidenciando sua subsistência no imaginário social. Contudo, o Direito não deve servir para perpetuar injustiças materiais e legitimar desigualdades sociais, sendo imprescindível que o Poder Judiciário assuma o papel de transformar a sociedade, buscando uma igualdade substantiva, e não apenas de manter o status quo, reproduzindo estruturas de poder assimétricas, sob o manto da suposta neutralidade do Direito.

Diante disso, no que diz respeito ao problema enfocado no presente artigo, isto é, quanto ao papel do Poder Judiciário no enfretamento da violência epistêmica contra as mulheres, entende-se que o juiz ou juíza avoca esse papel de agente de transformação social ao se desvencilhar de paradigmas patriarcais e ativamente combater a influência de preconceitos e estereótipos neles fundados, visando uma prática epistêmica virtuosa. Essas virtudes devem ser estimuladas pelos entes de classe, que devem tomar iniciativas visando conscientizar seus membros a respeito da justiça epistêmica e das práticas que podem ser adotadas para mitigar os perniciosos efeitos do preconceito identitário no Sistema de Justiça, como fez o CNJ ao editar o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, em 2021. Afinal, conforme alerta Fricker74 74 FRICKER, Miranda. Epistemic Injustice: power and the ethics of knowing. New York: Oxford University Press, 2007. p. 8. , a importância do desenvolvimento individual das virtudes epistêmicas não afasta a necessidade de mudanças estruturais, pois é nas estruturas sociais que repousam as raízes da injustiça epistêmica.

  • 2
    Vide CERQUEIRA, Daniel et al. Atlas da Violência 2021. São Paulo: FBSP, 2021. pp. 36-37CERQUEIRA, Daniel et al. Atlas da Violência 2021. São Paulo: FBSP, 2021. Disponível em: <https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/arquivos/artigos/5141-atlasdaviolencia2021completo.pdf>. Acesso em: 23 dez. 2022.
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  • 3
    FRICKER, Miranda. Epistemic Injustice: power and the ethics of knowing. New York: Oxford University Press, 2007FRICKER, Miranda. Epistemic Injustice: power and the ethics of knowing. New York: Oxford University Press, 2007..
  • 4
    Há dificuldades de pesquisa inerentes à análise de casos de julgamento de crimes de violência contra a mulher, na medida em que a maioria desses casos tramita sob segredo de justiça, e envolvem assuntos que não devem ser indiscriminadamente publicitados, em respeito à intimidade e segurança das vítimas. Diante disso, optou-se por centrar a análise em casos de grande repercussão, já noticiados pela mídia. Embora o recurso a notícias assim veiculadas apresente limitações práticas, já que tais notícias não contemplam a integralidade dos fatos discutidos no processo, entende-se que são suficientes para exemplificar o fenômeno ora discutido, pois permitem visualizar algumas de suas manifestações práticas, cuja constatação não depende necessariamente do conhecimento acerca do desfecho dado ao caso.
  • 5
    Refere Canotilho que “medida de justiça” para a ordenação da vida comunitária andou ancorada, durante longos séculos, a “padrões de conduta” e de orientação heterónomos (religiões, cosmovisões, ideologias) e preexistentes. Estes “padrões de conduta”, transformados, muitas vezes, em “verdades” e “regras fundamentalistas” ou em “leis da história”, revelam-se hoje premissas claudicantes num mundo plural, anti-totalizante, anti-iluminista”. (CANOTILHO, Jose Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 6.ed. Coimbra: Almedina, 1993. p. 110CANOTILHO, Jose Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 6.ed. Coimbra: Almedina, 1993.).
  • 6
    SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. O poder do macho. São Paulo: Moderna, 1987SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. O poder do macho. São Paulo: Moderna, 1987..
  • 7
    Vide CERQUEIRA, Daniel et al. Atlas da Violência 2021. São Paulo: FBSP, 2021. pp. 36-37CERQUEIRA, Daniel et al. Atlas da Violência 2021. São Paulo: FBSP, 2021. Disponível em: <https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/arquivos/artigos/5141-atlasdaviolencia2021completo.pdf>. Acesso em: 23 dez. 2022.
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  • 8
    Segundo o Relatório “Atlas da Violência – 2021: em 2019, 3.737 mulheres foram assassinadas no Brasil. Embora esse número represente uma redução percentual de 17,3% em relação ao ano anterior, essa notícia deve “ser matizada pelo crescimento expressivo dos registros de Mortes Violentas por Causa Indeterminada (MVCI), que tiveram incremento de 35,2% de 2018 para 2019, um total de 16.648 casos no último ano”. Além disso, deve-se considerar que, embora o Brasil tenha apresentado “uma redução de 18,4% nas mortes de mulheres entre 2009 e 2019, em 14 das 27 UFs a violência letal contra mulheres aumentou. Neste período, os aumentos mais expressivos foram registrados nos estados do Acre (69,5%), do Rio Grande do Norte (54,9%), do Ceará (51,5%) e do Amazonas (51,4%)”. Importante também anotar que, em 2019, foram registrados 1.246 homicídios de mulheres nas residências, representando 33,3% do total de mortes violentas de mulheres registradas. (CERQUEIRA, Daniel et al. Atlas da Violência 2021. São Paulo: FBSP, 2021. pp. 36-37CERQUEIRA, Daniel et al. Atlas da Violência 2021. São Paulo: FBSP, 2021. Disponível em: <https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/arquivos/artigos/5141-atlasdaviolencia2021completo.pdf>. Acesso em: 23 dez. 2022.
    https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/a...
    ). Note-se que, em Portugal, no ano civil de 2021, a APAV constatou que a maioria das vítimas diretas de crime, que recorreram à associação, eram mulheres: 10.308 do número total de vítimas (13.234), o que representa o percentual de 77,9% (Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, Estatísticas APAV – Relatório Anual 2022, p. 16ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE APOIO À VÍTIMA (APAV). Estatísticas APAV – Relatório Anual 2022. Disponível em: <https://apav.pt/apav_v3/images/press/Relatorio_Anual_2021.pdf>. Acesso em: 23 dez. 2022.
    https://apav.pt/apav_v3/images/press/Rel...
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  • 9
    SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. O poder do macho. São Paulo: Moderna, 1987SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. O poder do macho. São Paulo: Moderna, 1987..
  • 10
    LEITE, Inês Ferreira. A tutela penal da liberdade sexual. Revista portuguesa de ciência criminal, v. 21, n. 1, p. 29-94, 2011. p. 37LEITE, Inês Ferreira. A tutela penal da liberdade sexual. Revista portuguesa de ciência criminal, v. 21, n. 1, p. 29-94, 2011..
  • 11
    SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. O poder do macho. São Paulo: Moderna, 1987SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. O poder do macho. São Paulo: Moderna, 1987..
  • 12
    VENTURA, Isabel. Medusa no Palácio da Justiça, ou, Uma história da violação sexual. Lisboa: Tinta da China, 2018. p. 68.VENTURA, Isabel. Medusa no Palácio da Justiça, ou, Uma história da violação sexual. Lisboa: Tinta da China, 2018.
  • 13
    LARRAURI, Elena. Criminología crítica y violencia de género. 2.ed. Madrid: Editorial Trotta, 2018. p. 10-14LARRAURI, Elena. Criminología crítica y violencia de género. 2.ed. Madrid: Editorial Trotta, 2018..
  • 14
    FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1981. p. 183-184FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1981..
  • 15
    Idem, p. 184.
  • 16
    Sob a ótica da sociologia, a desigualdade de gênero é tida como “a diferença de estatuto, poder e prestígio que as mulheres e os homens adquirem em grupos, colectividades e sociedades”, ficando evidenciada a relação entre desigualdade e as relações de poder. É o que afirma GIDDENS, Anthony. Sociologia. 6.ed. Tradução: Alexandra Figueiredo et al. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008. p. 115GIDDENS, Anthony. Sociologia. 6.ed. Tradução: Alexandra Figueiredo et al. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008..
  • 17
    De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) em parceria com o Instituto Jones dos Santos Neves (IJSN), entre os anos de 2009 e 2019, 50.056 mulheres foram assassinadas.
  • 18
    BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 6.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. p. 16BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 6.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003..
  • 19
    MATTOS, Cristiane Araújo de. ‘Patriarcado público’: estereótipos de gênero e acesso à justiça no Brasil. Revista Ágora, Vitória, n. 22, p. 158-169, 2015. p. 167MATTOS, Cristiane Araújo de. ‘Patriarcado público’: estereótipos de gênero e acesso à justiça no Brasil. Revista Ágora, Vitória, n. 22, p. 158-169, 2015..
  • 20
    CORRÊA, Vanisse Simone Alves. A visão androcêntrica do mundo: elemento facilitador para o acesso dos homens às funções da gestão escolar. Jornal de Políticas Educacionais, v. 4, n. 7, p. 53-60, 2010. p. 54CORRÊA, Vanisse Simone Alves. A visão androcêntrica do mundo: elemento facilitador para o acesso dos homens às funções da gestão escolar. Jornal de Políticas Educacionais, v. 4, n. 7, p. 53-60, 2010. https://doi.org/10.5380/jpe.v4i7.21863
    https://doi.org/10.5380/jpe.v4i7.21863...
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    FRICKER, Miranda. Epistemic Injustice: power and the ethics of knowing. New York: Oxford University Press, 2007FRICKER, Miranda. Epistemic Injustice: power and the ethics of knowing. New York: Oxford University Press, 2007..
  • 22
    Em artigo inovador sobre o tema, a autora define a injustiça epistêmica nos seguintes termos: “a injustiça testemunhal ocorre quando se questiona, de partida e injustificadamente, a capacidade de um falante de conhecer os fatos e, neste sentido, de poder contribuir a uma reconstrução que mereça credibilidade. Na injustiça testemunhal, o questionamento quanto a tal capacidade deve-se ao pertencimento do falante a determinado grupo social ou étnico, operando-se uma infundada falta de credibilidade quanto ao conteúdo. Portanto, o mesmo conteúdo afirmado teria recepção diversa por parte de seu interlocutor se afirmado por alguém de outro grupo social ou étnico.” (MATIDA, Janaina. É preciso superar as injustiças epistêmicas na prova testemunhal. Limite Penal, 2020MATIDA, Janaina. É preciso superar as injustiças epistêmicas na prova testemunhal. Limite Penal. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-mai-22/limite-penal-preciso-superar-injusticas-epistemicas-prova-testemunhal>. Acesso em: 22 fev. 2023.
    https://www.conjur.com.br/2020-mai-22/li...
    ).
  • 23
    FRICKER, Miranda. Epistemic Injustice: power and the ethics of knowing. New York: Oxford University Press, 2007. p. 13FRICKER, Miranda. Epistemic Injustice: power and the ethics of knowing. New York: Oxford University Press, 2007..
  • 24
    Idem, p. 14.
  • 25
    LACKEY, Jennifer. Credibility and the Distribution of Epistemic Goods. In: MCCAIN, Kevin (ed.). Believing in Accordance with the Evidence: New Essays on Evidentialism. Synthese Library. v. 398. Springer: Cham, 2018. p. 159LACKEY, Jennifer. Credibility and the Distribution of Epistemic Goods. In: MCCAIN, Kevin (ed.). Believing in Accordance with the Evidence: New Essays on Evidentialism. Synthese Library. v. 398. Springer: Cham, 2018. https://doi.org/10.1007/978-3-319-95993-1_10
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    MEDINA, José. The Relevance of Credibility Excess in a Proportional View of Epistemic Injustice: Differential Epistemic Authority and the Social Imaginary. Social Epistemology: A Journal of knowledge, v. 25, n. 1, p. 15-35, 2011. p. 20MEDINA, José. The Relevance of Credibility Excess in a Proportional View of Epistemic Injustice: Differential Epistemic Authority and the Social Imaginary. Social Epistemology: A Journal of knowledge, v. 25, n. 1, p. 15-35, 2011. https://doi.org/10.1080/02691728.2010.534568
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  • 27
    LIMA JUNIOR, Manoel Pereira. Injustiça epistêmica e a questão racial. Coluna ANPOF, 4 jun. 2020. p. 6LIMA JUNIOR, Manoel Pereira. Injustiça epistêmica e a questão racial. Coluna ANPOF; 4 jun. 2020. Disponível em: <https://www.anpof.org.br/comunicacoes/coluna-anpof/injustica-epistemica-e-a-questao-racial>. Acesso em: 13 dez. 2022.
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  • 28
    No julgamento de casos de violência doméstica, essa depreciação da capacidade da mulher como agente cognitivo aparece de múltiplas formas. De modo geral, percebe-se que o mero enquadramento da mulher na posição de vítima de violência doméstica implica uma espécie de capitis diminutio na sua condição de sujeito epistêmico. Cite-se, como exemplo, os comentários realizados pelos membros do Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.424/DF, no bojo do qual enfrentou-se a divergência jurisprudencial acerca de ser a ação penal incondicionada ou não (a consequência prática era a de que a vítima poderia retratar-se antes do recebimento da denúncia). Na referida sessão, ao defender a natureza incondicionada da ação penal em casos de crime de lesão corporal, leve ou grave, praticado contra mulher no espaço doméstico, destacou o Relator, em seu voto, que incumbe ao Estado garantir a proteção da família e que não é razoável nem proporcional que fique ao arbítrio da mulher a atuação estatal dado que “sua manifestação de vontade é cerceada por diversos fatores da convivência no lar, inclusive a violência a provocar o receio, o temor, o medo de represálias “[...]. Após debate, permeado de senso comum, reconheceu-se a incapacidade, de modo geral, a toda mulher de manifestar-se sem que sua vontade fosse fruto de vício ou coerção, em razão de estar em “situação de violência doméstica” (RAMOS, Ana Luisa Schmidt. Dano Psíquico como crime de lesão corporal na violência doméstica. Florianópolis: Empório do Direito, 2017, p. 49RAMOS, Ana Luisa Schmidt. Dano Psíquico como crime de lesão corporal na violência doméstica. Florianópolis: Empório do Direito, 2017.). Ainda que sob o pretexto de proteger a mulher, o Sistema de Justiça legitima a sua anulação como sujeito epistêmico e até mesmo como pessoa capaz de manifestar vontade, o que contribui para agravar o déficit de credibilidade motivado pelo preconceito de gênero, reforçando o próprio discurso que, em última instância, legitima a violência contra a mulher.
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    DE MATTOS, Cristiane Araújo. Patriarcado público: estereótipos de gênero e acesso à justiça no Brasil. Revista Ágora, v. 22, p. 158-169, 2018DE MATTOS, Cristiane Araújo. Patriarcado público: estereótipos de gênero e acesso à justiça no Brasil. Revista Ágora, v. 22, p. 158-169, 2018. https://doi.org/10.30899/dfj.v10i35.99
    https://doi.org/10.30899/dfj.v10i35.99...
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  • 30
    M. – liv. 51. 16 § 1º.
  • 31
    Esse estereótipo foi utilizado pelo Tribunal da Relação do Porto, em Portugal, como pretexto para legitimar as agressões sofridas pela vítima. Na decisão do caso, a suspensão da pena dos acusados de agressão foi fundamentada na violação do dever de fidelidade pela vítima, que remete aos padrões de preconceito contra as mulheres, sendo mencionado no julgado que “o adultério da mulher é um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem” (Processo n° 355/15.2 GAFLG. P1, do Tribunal da Relação do Porto, j. 11 out. 2017).
  • 32
    “Não obstante tais avanços legais e institucionais, verifica-se, ainda, a subsistência de um discurso e uma prática que tentam reduzir a mulher na sociedade e naturalizar preconceitos de gênero existentes até os dias atuais, perpetuando uma crença estruturalmente machista, de herança histórica, que considera a mulher como inferior em direitos e mera propriedade do homem. Essa realidade é atestada por tantos casos ainda frequentes de homicídios e violência contra as mulheres, simplesmente por sua condição de gênero, que continuam atingindo números espantosos – repita-se, um feminicídio a cada sete horas – colocando o Brasil, lamentavelmente – repito novamente –, na corrida para campeão mundial de casos de feminicídio. É o que se denota, também, a partir da frequente e ainda atual invocação do discurso odioso da legítima defesa da honra, que continua possibilitando, mesmo que indiretamente, absolvições de homicídios perpetrados contra mulheres, em que pese tratar-se de retórica que reforça uma cultura extremamente patriarcal, de desrespeito e objetificação da mulher, como salvo-conduto de crime estruturalmente gravíssimo pelo motivo mais abjeto possível: o fato do homem entender que sua companheira lhe pertence; o fato de entender que pode matá-la para lavar a sua honra. Não pode o Estado permanecer omisso perante essa naturalização da violência contra a mulher, sob pena de ofensa ao princípio da vedação da proteção insuficiente e do descumprimento ao compromisso adotado pelo Brasil de coibir a violência no âmbito das relações familiares (art. 226, §8º, da CF)” (STF, Plenário, ADPF 779/DF, rel. Min. Dias Toffoli, j. 15/03/2021).
  • 33
    SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004. p. 67SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004..
  • 34
    CRAIG, Elaine. Putting Trials on Trial: sexual assault and the failure of the legal profession. Montreal and Kingston: McGill-Queen’s University Press, 2018, p. 39CRAIG, Elaine. Putting Trials on Trial: sexual assault and the failure of the legal profession. Montreal and Kingston: McGill-Queen’s University Press, 2018..
  • 35
    Esse raciocínio pode ser encontrado na exposição de motivos do atual Código Penal. No item 50 da exposição, exemplifica-se como hipótese em que o comportamento da vítima deve influir na quantia da pena o “pouco recato da vítima”, que seria considerado “provação ou estímulo à conduta criminosa”.
  • 36
    Em recente reportagem veiculada pelo G1, foi dado enfoque à recorrência dessa torpe estratégia de defesa em casos de estupro, conforme apontado pela advogada criminal e dos direitos das mulheres Maira Pinheiro, “a finalidade argumentativa das imagens é dizer que a vítima não parece suficientemente triste, deprimida ou com estresse pós-traumático”, com o intuito de descredibilizá-la. Essa prática, conforme frisado na referida reportagem, é uma forma de violência simbólica. (HONÓRIO, Gustavo. Advogados de agressores anexam fotos de vítimas de estupro usando biquíni, e defensoras denunciam ‘violência simbólica’ e falta de ética. 17 fev. 2023HONÓRIO, Gustavo. Advogados de agressores anexam fotos de vítimas de estupro usando biquíni, e defensoras denunciam ‘violência simbólica’ e falta de ética. 17 fev. 2023. Disponível em: <https://ligademocratica.com/publicacao/284987/advogados-de-agressores-anexam-fotos-de-vitimas-de-estupro-usando-biquini-e-defensoras-denunciam-violencia-simbolica-e-falta-de-etica.htm>. Acesso em: 23 fev. 2023.
    https://ligademocratica.com/publicacao/2...
    ).
  • 37
    ALMEIDA, Gabriela Perissinotto de; NOJIRIY, Sérgio. Como os juízes decidem os casos de estupro? Analisando sentenças sob a perspectiva de vieses e estereótipos de gênero. Rev. Bras. Polít. Públicas, Brasília, v. 8, n. 2, p. 825-853, 2018ALMEIDA, Gabriela Perissinotto de; NOJIRIY, Sérgio. Como os juízes decidem os casos de estupro? Analisando sentenças sob a perspectiva de vieses e estereótipos de gênero. Rev. Bras. Polít. Públicas, Brasília, v. 8, n. 2, p. 825-853, 2018. https://doi.org/10.5102/rbpp.v8i2.5291
    https://doi.org/10.5102/rbpp.v8i2.5291...
    . p. 828.
  • 38
    Acerca da clássica discussão doutrinária sobre acordo e consentimento, ver ANDRADE, Manuel da Costa. Consentimento e Acordo em Direito Penal. Coimbra: Coimbra Editora, 1991, pp. 362 e ss., esp. pp. 382 e ssANDRADE, Manuel da Costa. Consentimento e Acordo em Direito Penal. Coimbra: Coimbra Editora, 1991..
  • 39
    os trechos das gravações foram divulgados em 2020 pelo site Globo Esporte, em: FERRAZ, Lucas. As gravações do caso Robinho na justiça italiana: “A mulher estava completamente bêbada”. Globo Esporte, 16 out. 2020FERRAZ, Lucas. As gravações do caso Robinho na justiça italiana: “A mulher estava completamente bêbada”. Globo Esporte, 16 out. 2020..
  • 40
    COITINHO, Denis. A Complexidade da injustiça epistêmica. Estado da Arte, 2020COITINHO, Denis. A Complexidade da injustiça epistêmica. Estado da Arte. Disponível em: <https://estadodaarte.estadao.com.br/injustica-epistemica-coitinho/>. Acesso em: 14 dez. 2022.
    https://estadodaarte.estadao.com.br/inju...
    .
  • 41
    Robinho e um dos outros participantes foram condenados pelo Tribunal de Milão com fulcro no artigo “609 bis” do código penal italiano, que trata da participação de duas ou mais pessoas reunidas para ato de violência sexual coagindo alguém a manter relações sexuais por sua condição de inferioridade “física ou psíquica” (FERRAZ, Lucas. As gravações do caso Robinho na justiça italiana: “A mulher estava completamente bêbada”. Globo Esporte, 16 out. 2020FERRAZ, Lucas. As gravações do caso Robinho na justiça italiana: “A mulher estava completamente bêbada”. Globo Esporte, 16 out. 2020.). O caso teve um recente desdobramento com a recepção, em 23 de fevereiro de 2023, pelo STJ, do pedido do governo da Itália para que o ex-jogador cumpra pena no Brasil, estando ainda pendente de apreciação.
  • 42
    Após serem divulgadas pelo site Intercept Brasil, os trechos da audiência circularam por diversos veículos de informação, dentre os quais cite-se a seguinte reportagem do Estadão: VIEIRA, Renato. Veja trecho em que Mariana Ferrer chora ao ser pressionada por advogado em audiência. Estadão, 4 nov. 2020.
  • 43
    Percebe-se que o julgamento sobre a sexualidade feminina é tão rígido que o fato de Mariana ser virgem à época, de ter metade da idade do empresário, e de estar trabalhando na ocasião foram suficientes para livrá-la do estereótipo da mulher promíscua e aproveitadora, capaz de tudo para destruir a reputação de um “cidadão de bem”. Essa narrativa foi deliberadamente cultivada pelo advogado de defesa Gastão da Rosa, que logrou retirar o foco dos fatos e da conduta do acusado para direcioná-lo ao julgamento moral da vítima, com o intuito de enquadrá-la em estereótipos depreciativos, desestabilizá-la emocionalmente e assim descredibilizar seu testemunho. Esse desvio de foco fica evidente quando Mariana implora à defesa que se atenha aos fatos, obtendo como resposta do advogado: “jamais teria uma filha do teu nível e também peço a Deus que meu filho não encontre uma mulher que nem você” (VIEIRA, Renato. Veja trecho em que Mariana Ferrer chora ao ser pressionada por advogado em audiência. Estadão, 4 nov. 2020VIEIRA, Renato. Veja trecho em que Mariana Ferrer chora ao ser pressionada por advogado em audiência. Estadão, 4 nov. 2020. Disponível em: <https://www.estadao.com.br/brasil/veja-trecho-em-que-mariana-ferrer-chora-ao-ser-pressionada-por-advogado-em-audiencia/>. Acesso em: 21 fev. 2023.
    https://www.estadao.com.br/brasil/veja-t...
    ). Ao final, o empresário foi absolvido sob o argumento de insuficiência probatória. A conclusão constante da sentença foi a seguinte: “Assim, diante da ausência de elementos probatórios capazes de estabelecer o juízo de certeza, mormente no tocante à ausência de discernimento para a prática do ato ou da impossibilidade de oferecer resistência, indispensáveis para sustentar uma condenação, decido a favor do acusado André de Camargo Aranha, com fundamento no princípio do in dúbio pro reo” (3ª Vara Criminal da Capital, Florianópolis/SC, Autos n° 0004733-33.2019.8.24.0023, juiz Rudson Marcos, j. 09.09.2020).
  • 44
    Segundo Janaina Matida, essas cenas deixaram evidente a lastimável subsistência do conceito de “mulher honesta” na sociedade e no direito brasileiro (MATIDA, Janaina. Precisamos fortalecer a defesa criminal com perspectiva de gênero. Limite Penal, 18 nov. 2022MATIDA, Janaina. Precisamos fortalecer a defesa criminal com perspectiva de gênero. Limite Penal, 18 nov. 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-nov-18/limite-penal-precisamos-fortalecer-defesa-criminal-perspectiva-genero>. Acesso em: 22 fev. 2023.
    https://www.conjur.com.br/2022-nov-18/li...
    ). Também comentando o caso, pontua COITINHO, Denis. A Complexidade da injustiça epistêmica. Estado da Arte, 2020: “A injustiça do caso parece residir na consideração assimétrica em relação aos testemunhos, atribuindo menor credibilidade ao relato da vítima, que é mulher, com base em estereótipos sociais que consideram as mulheres irracionais e não confiáveis, maliciosas ou mesmo que desejariam esconder sua conduta libidinosa ou arruinar a vida de um ‘homem de bem’”.
  • 45
    Para o Ministro Gilmar Mendes, do STF, comentando as cenas da fatídica audiência, “o sistema de justiça deve ser instrumento de acolhimento, jamais de tortura e humilhação” (Conjur, Justiça deve ser instrumento de acolhimento, não de humilhação, 3 nov. 2020CONJUR. Justiça deve ser instrumento de acolhimento, não de humilhação, 3 nov. 2020. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-nov-03/justica-instrumento-acolhimento-nao-humilhacao>. Acesso em: 21 dez. 2022.
    https://www.conjur.com.br/2020-nov-03/ju...
    ).
  • 46
    À guisa de exemplo, a motivação possui relevo como elemento que propicia uma interpretação precisa da decisão, iluminando com exatidão o conteúdo para fins de cumprimento da sentença ou de demarcação da coisa julgada. (MOREIRA, José Carlos Barbosa. A motivação das decisões judiciais como garantia inerente ao Estado de Direito. In: MOREIRA, José Carlos Barbosa. Temas de Direito Processual. 2ª série. São Paulo: Saraiva, 1980, p. 86MOREIRA, José Carlos Barbosa. A motivação das decisões judiciais como garantia inerente ao Estado de Direito. In: MOREIRA, José Carlos Barbosa. Temas de Direito Processual. 2ª série. São Paulo: Saraiva, 1980.).
  • 47
    ANDREUCCI, Ricardo Antunes. Direito Penal e Criação Judicial. São Paulo: RT, 1999, p. 57ANDREUCCI, Ricardo Antunes. Direito Penal e Criação Judicial. São Paulo: RT, 1999..
  • 48
    REALE, Miguel. A ética do Juiz na cultura contemporânea. Revista Forense, Rio de Janeiro, jan./mar. 1994, p. 67REALE, Miguel. A ética do Juiz na cultura contemporânea. Revista Forense, Rio de Janeiro, jan./mar. 1994, p. 67..
  • 49
    HERKENHOFF, João Baptista. Como Aplicar o Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 81-82HERKENHOFF, João Baptista. Como Aplicar o Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 81-82..
  • 50
    CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (Brasil). Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero [recurso eletrônico]. Brasília: CNJ; Enfam, 2021. p. 35CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (Brasil). Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero [recurso eletrônico]. Brasília: CNJ; Enfam, 2021. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br>. Acesso em: 21 dez. 2022.
    http://www.cnj.jus.br...
    .
  • 51
    HERKENHOFF, João Baptista. Como Aplicar o Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 82-83HERKENHOFF, João Baptista. Como Aplicar o Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 81-82..
  • 52
    Sobre a infiltração da visão sexista do mundo em sentenças proferidas em casos de violência contra a mulher, vide: FIGUEIREDO, Débora de Carvalho. Gênero e poder no discurso jurídico. Revista de Ciências Humanas, Florianópolis, v. 15, n. 21, p. 37-52, 1997FIGUEIREDO, Débora de Carvalho. Gênero e poder no discurso jurídico. Revista de Ciências Humanas, Florianópolis, v. 15, n. 21, p. 37-52, 1997..
  • 53
    Essa falsa neutralidade do Direito foi bem abordada no Protocolo do CNJ para Julgamento com Perspectiva de Gênero, no qual se explicitou: “Agir de forma supostamente neutra, nesse caso, acaba por desafiar o comando da imparcialidade. A aplicação de normas que perpetuam estereótipos e preconceitos, assim como a interpretação enviesada de normas supostamente neutras ou que geram impactos diferenciados entre os diversos segmentos da sociedade, acabam por reproduzir discriminação e violência, contrariando o princípio constitucional da igualdade e da não discriminação.” (p. 36).
  • 54
    WELSCH, Gisele Mazzoni. Legitimação democrática do Poder Judiciário no novo CPC. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016WELSCH, Gisele Mazzoni. Legitimação democrática do Poder Judiciário no novo CPC. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016..
  • 55
    MARDEGAN, Alexssandra Muniz. A produção da prova testemunhal por videoconferência, o direito ao confronto e o princípio da imediação. In: SOUSA MENDES, Paulo de; PEREIRA, Rui Soares (coords.). Novos Desafios da Prova Penal, Coimbra: Almedina, 2020. p. 48MARDEGAN, Alexssandra Muniz. A produção da prova testemunhal por videoconferência, o direito ao confronto e o princípio da imediação. In: SOUSA MENDES, Paulo de; PEREIRA, Rui Soares (coords.). Novos Desafios da Prova Penal, Coimbra: Almedina, 2020. p. 47-81..
  • 56
    Nesse sentido, afirma-se que “a restrição do direito à norma, seja de caráter abstrato ou geral, não consegue conviver com a nova ideia de justiça, pois essa implicaria na grande confiança no poder criativo do julgador de quem se espera uma “sensibilidade muito refinada” para lidar com as constantes mudanças do contexto social.” (PRADO, Lídia Reis de Almeida. O Juiz e a Emoção: aspectos da lógica da decisão judicial. Campinas: Millenium, 2005, p. 93PRADO, Lídia Reis de Almeida. O Juiz e a Emoção: aspectos da lógica da decisão judicial. Campinas: Millenium, 2005.).
  • 57
    AMORIM, Fernanda Pacheco. Neutralidade jurídica: o CNJ e a epistemologia feminista. Revista Consultor Jurídico, 10 jan. 2022AMORIM, Fernanda Pacheco. Neutralidade jurídica: o CNJ e a epistemologia feminista. Revista Consultor Jurídico, 10 jan. 2022. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2022-jan-10/amorim-neutralidade-juridica-cnj-epistemologia-feminista>. Acesso em: 20 fev. 2023.
    https://www.conjur.com.br/2022-jan-10/am...
    .
  • 58
    A respeito, vide ANDRÉS IBÁÑEZ, Perfecto. Sobre a formação racional da convicção judicial. Julgar, Coimbra, n. 13, p. 155-173, 2011ANDRÉS IBÁÑEZ, Perfecto. Sobre a formação racional da convicção judicial. Julgar, Coimbra, n. 13, p. 155-173, 2011..
  • 59
    FRICKER, Miranda. Epistemic Injustice: power and the ethics of knowing. New York: Oxford University Press, 2007. p. 5FRICKER, Miranda. Epistemic Injustice: power and the ethics of knowing. New York: Oxford University Press, 2007..
  • 60
    Essa necessidade de formação específica é reconhecida pela legislação portuguesa, estando entre as medidas destinadas a evitar a vitimização secundária elencadas pela Lei nº 130, de 04 de setembro de 2015 (Estatuto da Vítima). A respeito, vide MORAN, Fabiola. Ingerência penal & proteção integral à vítima. Belo Horizonte, São Paulo: D’Plácido, 2020. p. 183-184MORAN, Fabiola. Ingerência penal & proteção integral à vítima. Belo Horizonte, São Paulo: D’Plácido, 2020.. Uma salutar medida adotada pelo Canadá, com o objetivo de evitar esse enviesamento em julgamentos de crimes contra a mulher, foi proibir “o uso de qualquer referência à história da mulher durante estes julgamentos, só sendo possível este uso com um pedido formal que comprove a relevância desta história” (COITINHO, Denis. A Complexidade da injustiça epistêmica. Estado da ArteCOITINHO, Denis. A Complexidade da injustiça epistêmica. Estado da Arte. Disponível em: <https://estadodaarte.estadao.com.br/injustica-epistemica-coitinho/>. Acesso em: 14 dez. 2022.
    https://estadodaarte.estadao.com.br/inju...
    ).
  • 61
    RODAS, Sérgio; CASTELLIANO; Carolina; HERDY, Rachel. Mais uma vítima de injustiça epistêmica. Revista Consultor JurídicoRODAS, Sérgio; CASTELLIANO; Carolina; HERDY, Rachel. Mais uma vítima de injustiça epistêmica. Revista Consultor Jurídico. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2021-ago-20/limite-penal-vitima-injustica-epistemica>. Acesso em: 14 dez. 2022.
    https://www.conjur.com.br/2021-ago-20/li...
    . Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2021-ago-20/limite-penal-vitima-injustica-epistemica>. Acesso em: 14 dez. 2022.
  • 62
    Nesse caso, a injustiça epistêmica identificada dizia respeito ao acusado, e foi motivada por preconceitos identitários relativos sobretudo à classe social, “7. Mesmo sem a produção de nenhuma prova direta sobre os fatos por parte da acusação, a tese da legítima defesa apresentada pelo réu foi ignorada. Evidente injustiça epistêmica — cometida contra um jovem pobre, em situação de rua, sem educação formal e que se tornou pai na adolescência —, pela simples desconsideração da narrativa do apresentado..
  • 63
    Trata-se da Recomendação CNJ n. 128/2022, e foi inspirada no “Protocolo para Juzgar con Perspectiva de Género” concebido pelo Estado do México após determinação da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
  • 64
    A lei inseriu o art. 400-A no CPP, determinando que “ Na audiência de instrução e julgamento, e, em especial, nas que apurem crimes contra a dignidade sexual, todas as partes e demais sujeitos processuais presentes no ato deverão zelar pela integridade física e psicológica da vítima, sob pena de responsabilização civil, penal e administrativa, cabendo ao juiz garantir o cumprimento do disposto neste artigo, vedadas: I - a manifestação sobre circunstâncias ou elementos alheios aos fatos objeto de apuração nos autos; II - a utilização de linguagem, de informações ou de material que ofendam a dignidade da vítima ou de testemunha.
  • 65
    No âmbito das promotorias, essa preocupação com a capacitação prática daqueles que lidam com vítimas de crimes levou à edição de um “Guia prático de atuação do Ministério Público na proteção e amparo às vítimas de criminalidade” pelo Conselho Nacional do Ministério Público, em 2019.
  • 66
    MORAN, Fabiola. Ingerência penal & proteção integral à vítima. Belo Horizonte, São Paulo: D’Plácido, 2020. p. 216MORAN, Fabiola. Ingerência penal & proteção integral à vítima. Belo Horizonte, São Paulo: D’Plácido, 2020..
  • 67
    FRICKER, Miranda. Epistemic Injustice: power and the ethics of knowing. New York: Oxford University Press, 2007. p. 8FRICKER, Miranda. Epistemic Injustice: power and the ethics of knowing. New York: Oxford University Press, 2007..
  • 68
    A obrigação da fundamentação das decisões é uma exigência que decorre do direito a um processo equitativo, estando consagrada na Convenção Europeia dos Direitos do Homem (artigo 49), tal qual a maioria dos ordenamentos jurídicos. No Brasil, o dever de fundamentação consagrou-se constitucionalmente na Constituição de 1988 (artigo 93, IX, da CF), embora houvesse clamor doutrinário. Em meados da decáda de 80, José Rogério Cruz e Tucci, destacava a premente necessidade de se elevar ao status constitucional a obrigatoriedade da fundamentação das decisões judiciais (TUCCI, José Rogério Cruz. A Motivação da Sentença no Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 1987, p. 153TUCCI, José Rogério Cruz. A Motivação da Sentença no Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 1987.). No mesmo sentido, José Carlos Barbosa Moreira, defendia que o princípio da motivação obrigatória das decisões judiciais, sendo garantia inerente ao Estado de Direito, fazia jus a previsão expressa na Constituição brasileira (MOREIRA, José Carlos Barbosa. A motivação das decisões judiciais como garantia inerente ao Estado de Direito. In: MOREIRA, José Carlos Barbosa. Temas de Direito Processual. 2ª série. São Paulo: Saraiva, 1980, p. 94MOREIRA, José Carlos Barbosa. A motivação das decisões judiciais como garantia inerente ao Estado de Direito. In: MOREIRA, José Carlos Barbosa. Temas de Direito Processual. 2ª série. São Paulo: Saraiva, 1980.). Sobre a evolução histórica do dever de fundamentação, trata o tema de forma satisfatória, abordando desde o início do direito romano até o direito atual, passando pelo direito hispano-lusitano, luso-brasileiro e brasileiro: FERNANDES, José Henrique Lara. A Fundamentação das Decisões Judiciais. Rio de Janeiro: Forense, 2005FERNANDES, José Henrique Lara. A Fundamentação das Decisões Judiciais. Rio de Janeiro: Forense, 2005..
  • 69
    Menciona Piero Calamandrei que: “A fundamentação da sentença é sem dúvida uma grande garantia de justiça, quando consegue reproduzir exatamente, como num levantamento topográfico, o itinerário lógico que o juiz percorreu para chegar à sua conclusão, pois se esta é errada, pode facilmente encontrar-se, através dos fundamentos, em que altura do caminho o magistrado se desorientou”. (CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes, vistos por nós, os advogados. Tradução de: Ary dos Santos. 4.ed. Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1971, p. 143CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes, vistos por nós, os advogados. Tradução de: Ary dos Santos. 4.ed. Lisboa: Livraria Clássica Editora,1971.).
  • 70
    MIRANDA, Felipe Arandy. A fundamentação das decisões judiciais como pressuposto do estado constitucional. Brasília: IDP, 2014. p. 203MIRANDA, Felipe Arandy. A fundamentação das decisões judiciais como pressuposto do estado constitucional. Brasília: IDP, 2014..
  • 71
    Nas palavras de MOUROS-MATA, Maria de Fátima. A fundamentação da decisão como discurso legitimador do poder judicial. Boletim informação & debate. Lisboa, s. 4, n. 2, dez. 2003MOUROS-MATA, Maria de Fátima. A fundamentação da decisão como discurso legitimador do poder judicial. Boletim informação & debate. Lisboa, s. 4, n. 2, dez. 2003.. p. 112, a motivação “confere um fundamento e uma justificação específica à legitimidade do poder judicial e à validade das suas decisões, a qual não reside nem no valor político do órgão judicial nem no valor intrínseco da justiça das suas decisões, mas na verdade que se contém na decisão”.
  • 72
    BADARÓ, Gustavo. Editorial dossiê “Prova penal: fundamentos epistemológicos e jurídicos”. Rev. Bras. de Direito Processual Penal, Porto Alegre, v. 4, n. 1, p. 43-80, jan.-abr. 2018. p. 75BADARÓ, Gustavo. Editorial dossiê “Prova penal: fundamentos epistemológicos e jurídicos”. Rev. Bras. de Direito Processual Penal, Porto Alegre, v. 4, n. 1, p. 43-80, jan.-abr. 2018. https://doi.org/10.22197/rbdpp.v4i1.138
    https://doi.org/10.22197/rbdpp.v4i1.138...
    .
  • 73
    MATTOS, Cristiane Araújo de. ‘Patriarcado público’: estereótipos de gênero e acesso à justiça no Brasil. Revista Ágora, Vitória, n. 22, p. 158-169, 2015. p. 161MATTOS, Cristiane Araújo de. ‘Patriarcado público’: estereótipos de gênero e acesso à justiça no Brasil. Revista Ágora, Vitória, n. 22, p. 158-169, 2015..
  • 74
    FRICKER, Miranda. Epistemic Injustice: power and the ethics of knowing. New York: Oxford University Press, 2007. p. 8.FRICKER, Miranda. Epistemic Injustice: power and the ethics of knowing. New York: Oxford University Press, 2007.
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How to cite (ABNT Brazil):

  • MARDEGAN, Alexssandra M. Injustiça epistêmica: a prova testemunhale o preconceito identitário no julgamento de crimes contra a mulher. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, vol. 9, n. 1, p. 65-100, jan./abr. 2023. https://doi.org/10.22197/rbdpp.v9i1.788

Referências

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  • BADARÓ, Gustavo. Editorial dossiê “Prova penal: fundamentos epistemológicos e jurídicos”. Rev. Bras. de Direito Processual Penal, Porto Alegre, v. 4, n. 1, p. 43-80, jan.-abr. 2018. https://doi.org/10.22197/rbdpp.v4i1.138
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Editado por

Editorial team

  • Editor-in-chief: 1 (VGV)

  • Associated-editor: 2 (JM, AP)

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    28 Dez 2022
  • Revisado
    30 Dez 2022
  • Revisado
    16 Jan 2023
  • Revisado
    23 Jan 2023
  • Revisado
    26 Jan 2023
  • Revisado
    11 Fev 2023
  • Corrigido
    27 Fev 2023
  • Aceito
    13 Mar 2023
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