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Muito jovem ou pobre para casar? Efeito do Programa Bolsa Família sobre o casamento infantil feminino

Resumo

Este artigo estima os efeitos do Programa Bolsa Família (PBF) sobre a probabilidade de casamento infantil das beneficiárias. Em particular, testamos a hipótese de que a situação financeira familiar é um dos determinantes do matrimônio de meninas menores de 18 anos. Tal hipótese é resultado da otimização sob incerteza das famílias, a qual construímos através de um modelo teórico. O teste empírico utiliza dados da Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílios Contínua de 2019 e o método Propensity Score Matching. Nosso principal resultado é de que o PBF reduz a probabilidade de casamento infantil para as meninas na condição de pobreza.

Palavras-chave
Casamento Infantil; Efeito do Tratamento; Programa Bolsa Família; Propensity Score Matching


1. Introdução

Apesar do significativo número de meninas que casam precocemente no Brasil, o qual coloca o país na quarta posição do ranking mundial em termos absolutos (Taylor et al., 2015Taylor, A. Y., G. Lauro, M. Segundo, e M. E. Greene (2015): “Ela vai no meu barco. Casamento na infância e adolescência no Brasil. Resultados de pesquisa de método mistos,” Rio de Janeiro e Washington DC: Instituto Promundo & Promundo-US. [1, 18]), existe uma escassez de estudos e políticas públicas abordando o tema. Em particular, pouco se tem investigado sobre as condições socieconômicos associadas ao problema. Posto que fatores culturais ou religiosos não são tão presentes no Brasil quanto em outros países, como Índia e Bangladesh, é esperado que exista influência da situação financeira familiar sobre as uniões antes da maioridade. Isto ocorre especialmente quando se considera a evidência de que o casamento infantil é um problema que responde ao nível de desenvolvimento tanto micro quanto macroeconômico (Unicef, 2018--- (2018): “Key Drivers of the Changing Prevalence of Child Marriage in Three Countries in South Asia: Working Paper,” Rel. téc., UNICEF, Kathmandu. [1]). Se a hipótese de que famílias em condições financeiras precárias podem estar mais sujeitas a permitir que seus filhos se casem precocemente for verdadeira, o Brasil pode ter uma vantagem no combate ao problema por ter contado com o maior programa de transferência de renda do mundo, o Programa Bolsa Família (PBF). De fato, por quase 20 anos, o Programa atuou como uma porta de saída da pobreza ao longo das gerações. Ao passo que o benefício monetário fornecia alívio das dificuldades financeiras familiares de curto prazo, as condicionalidades relacionadas à saúde e à educação das crianças e adolescentes visavam prepará-los para as oportunidades futuras. Assim, alguns dos principais resultados positivos do PBF dizem respeito à educação (Glewwe e Kassouf, 2012Glewwe, Paul e Ana Lucia Kassouf (2012): “The impact of the Bolsa Escola/Familia conditional cash transfer program on enrollment, dropout rates and grade promotion in Brazil,” Journal of Development Economics, 97, 505-517. [2]; De Brauw et al., 2015De Brauw, Alan, Daniel O Gilligan, John Hoddinott, e Shalini Roy (2015): “The impact of Bolsa Família on schooling,” World Development, 70, 303-316. [2]), mas a literatura registra uma série de outros efeitos desejáveis (Camelo et al., 2009Camelo, Rafael de Sousa, Priscilla Albuquerque Tavares, e Carlos César Santejo Saiani (2009): “Alimentação, nutrição e saúde em programas de transferência de renda: evidências para o Programa Bolsa Família,” Revista EconomiA, 10, 685-713. [2]; Tavares, 2010Tavares, Priscilla Albuquerque (2010): “Efeito do Programa Bolsa Família sobre a oferta de trabalho das mães,” Economia e Sociedade, 19, 613-635. [2]; Paes-Sousa et al., 2011Paes-Sousa, Rômulo, Leonor Maria Pacheco Santos, e Édina Shisue Miazaki (2011): “Effects of a conditional cash transfer programme on child nutrition in Brazil,” Bulletin of the World Health Organization, 89, 496-503. [2]; Rasella et al., 2013Rasella, Davide, Rosana Aquino, Carlos A. T. Santos, Rômulo Paes-Sousa, e Mauricio L. Barreto (2013): “Effect of a conditional cash transfer programme on childhood mortality: a nationwide analysis of Brazilian municipalities,” The Lancet, 382, 57-64. [2]; De Brauw et al., 2014De Brauw, Alan, Daniel O. Gilligan, John Hoddinott, e Shalini Roy (2014): “The impact of Bolsa Família on women’s decision-making power,” World Development, 59, 487-504. [2]; Shei et al., 2014Shei, Amie, Federico Costa, Mitermayer G. Reis, e Albert I. Ko (2014): “The impact of Brazil’s Bolsa Família conditional cash transfer program on children’s health care utilization and health outcomes,” BMC International Health and Human Rights, 14, 10. [2]; Vasconcelos et al., 2017Vasconcelos, Andressa Mielke, Felipe Garcia Ribeiro, Marcelo de Carvalho Griebeler, e André Carraro (2017): “Programa Bolsa Família e Geração “Nem-Nem": Evidências para o Brasil,” Revista Brasileira de Economia, 71, 233-257. [2]).

Uma análise das características do Programa, contudo, deixa dúvida se há e qual o sentido dos efeitos de transbordamento sobre o casamento infantil. À primeira vista, parece evidente que, além das vantagens de atrelar as crianças e os adolescentes à educação formal, o PBF também estimula as famílias a não permitirem as uniões precoces. Note que, por um lado, manter tais indivíduos no domicílio é uma forma de estender os ganhos das transferências de renda a todos no núcleo familiar. Contudo, quanto maior o número de membros na família, maior o gasto com alimentação, vestuário, entre outros. A hipótese que testamos neste trabalho - fundamentada no modelo teórico construído na seção 3 - é a de que o nível de renda familiar condiciona a decisão sobre o casamento infantil. Tal argumento assume que a família considera que o jovem não é apenas motivador dos repasses do Programa, uma vez que a sua presença também expande o nível de gastos da residência. A pergunta a ser feita, então, é se o PBF permite atingir renda familiar corrente que incentive as famílias muito pobres a terem posicionamento contrário às uniões na infância ou adolescência.

Considerando esses pontos, neste artigo estimamos o efeito do PBF sobre a probabilidade de que as meninas com idade inferior a 18 anos estejam casadas. Para tal, são utilizados os dados da Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios Contínua (PNADC) de 2019 associados ao Propensity Score Matching (PSM) com a definição de amostragem complexa ilustrada por Leite (2016)Leite, Walter (2016): Practical propensity score methods using R, Sage Publications. [2, 11]. Para que seja possível verificar as diferenças de equilíbrio entre os grupos de tratados e controles e a robustez aos fatores não observáveis, o pareamento é dado por duas técnicas: Nearest Neighbor e Genetic Matching. Além disso, o Average Treatment Effect on the Treated (ATT) é estimado para diferentes faixas de idade e de renda. Essa última análise, em especial, nos permite testar a hipótese gerada pelo nosso modelo teórico microfundamentado de que a renda é um dos principais determinantes da decisão familiar.

O emprego das técnicas citadas acima também possibilita obter evidências de que o PBF de fato reduz a probabilidade de que as meninas casem-se antes de atingir a maioridade. Além disso, o efeito ocorre de modo mais intenso dentre aquelas classificadas como pobres, em consonância com a hipótese teórica. Traçando um comparativo com intervenções de outros países que foram bem-sucedidas em reduzir uniões precoces (Alam et al., 2011Alam, Andaleeb, Javier Eduardo Baez, e Ximena V. Del Carpio (2011): “Does cash for school influence young women’s behavior in the longer term? Evidence from Pakistan,” Policy Research Working Paper. [2, 4, 18]; Sayeed, 2016Sayeed, Yeasmin (2016): “Effect of girls’ secondary school stipend on completed schooling, age at marriage, and age at first birth: Evidence from Bangladesh,” Working Paper. [2, 3, 18]; Buchmann et al., 2018Buchmann, Nina, Erica Field, Rachel Glennerster, Shahana Nazneen, Svetlana Pimkina, e Iman Sen (2018): “Power vs money: Alternative approaches to reducing child marriage in Bangladesh, a randomized control trial,” Working Paper. [2, 3, 18]), é possível concluir que a combinação entre a transferência de renda e suas condicionalidades, presente no caso do PBF, pode funcionar como um mecanismo eficiente para atenuar o problema. Em suma, nossos resultados indicam que pode haver margem para tornar o PBF mais efetivo se houver uma contrapartida na situação civil das crianças e adolescentes, mas tal movimento exige estudos e testes ainda não efetuados para o contexto brasileiro.

Nosso resultado de que o alívio financeiro gerado por uma transferência governamental pode fazer com que famílias pobres evitem que suas filhas menores casem é corroborado pela literatura internacional. Para Bangladesh1, por exemplo, podemos citar duas iniciativas que exploraram esse mecanismo com sucesso, notadamente o Female Stipend Program (FSP), implementado em 1982, e o Kishoree Kontha (“Vozes das Adolescentes", em Português), implementado entre 2008 e 20102. Utilizando o método de Regressão com Descontinuidade, Sayeed (2016)Sayeed, Yeasmin (2016): “Effect of girls’ secondary school stipend on completed schooling, age at marriage, and age at first birth: Evidence from Bangladesh,” Working Paper. [2, 3, 18] mostra que o FSP gerou um aumento de 0,4 anos na idade de casamento das meninas. De forma similar, Buchmann et al. (2018)Buchmann, Nina, Erica Field, Rachel Glennerster, Shahana Nazneen, Svetlana Pimkina, e Iman Sen (2018): “Power vs money: Alternative approaches to reducing child marriage in Bangladesh, a randomized control trial,” Working Paper. [2, 3, 18] conclui que, apesar não haver complementariedade entre as estratégias de ação envolvidas no Kishoree Kontha, o benefício financeiro condicional aumentou a idade de casamento das meninas bem como as incentivou a permanecer na escola.

Outro país que foi alvo de mais de uma intervenção visando o combate ao casamento infantil foi Malaui, dentre as quais destacam-se o Zomba Cash Transfer Experiment (ZCTE), implementado entre 2008 e 2009, e o Social Cash Trans Program (SCTP), executado no período de 2013 a 2015. Enquanto o primeiro testou se o efeito das transferências monetárias variaria com as condicionalidades (frequentar a escola), o segundo não envolveu qualquer condicionante. O desenho do ZCTE permitiu que Baird et al. (2011)Baird, Sarah, Craig McIntosh, e Berk Özler (2011): “Cash or condition? Evidence from a cash transfer experiment,” The Quarterly Journal of Economics, 126, 1709-1753. [3] estimasse um modelo simples de probabilidade linear e concluísse que a transferência incondicional reduziu a probabilidade de casamento e gravidez das meninas. Para o SCTP, Dake et al. (2018)Dake, Fidelia, Luisa Natali, Gustavo Angeles, Jacobus de Hoop, Sudhanshu Handa, Amber Peterman, Malawi Cash Transfer Evaluation Team, e the Zambia Cash Transfer Evaluation Team (2018): “Cash Transfers, Early Marriage, and Fertility in Malawi and Zambia,” Studies in Family Planning, 49, 295-317. [3] utilizou o método de Análise de Covariância para testar o impacto do programa, o qual se mostrou insatisfatório. O mesmo autor executou análise similar para o Multiple Category Targeted Grant (MCTG), inciativa implementada na Zâmbia entre 2011 e 2013. Deste modo, seus resultados são próximos aqueles encontrados para o SCTP, indicando ausência de efeito3.

Quênia e Paquistão são outros dois países com casos de sucesso documentados pela literatura. Para o país africano, podemos citar a intervenção experimental aleatorizada a nível de escolas efetuada por Duflo et al. (2015)Duflo, Esther, Pascaline Dupas, e Michael Kremer (2015): “Education, HIV, and early fertility: Experimental evidence from Kenya,” American Economic Review, 105, 2757- 97. [3, 4, 18] em 2003. Embora a ação tivesse um caráter mais abrangente (envolvendo saúde e educação, entre outros), um dos seus resultados foi a de que o fornecimento de uniforme escolares reduziu a probabilidade de casamento de crianças de ambos os sexos. Também em 2003, o Punjab Female School Stipend Program (PFSSP) teve início no Paquistão, o qual previa uma transferência monetária condicional à frequência da menina às aulas. Alam et al. (2011)Alam, Andaleeb, Javier Eduardo Baez, e Ximena V. Del Carpio (2011): “Does cash for school influence young women’s behavior in the longer term? Evidence from Pakistan,” Policy Research Working Paper. [2, 4, 18] utiliza os métodos de Diferença em Diferenças e Regressão em Descontinuidade para demonstrar que existem indícios de que as meninas beneficiárias protelam a idade de união matrimonial em 1,4 anos, além de reduzirem o número de filhos4.

Por fim, vale citar duas experiências com resultados de certa forma desencorajadores. A primeira diz respeito ao programa indiano Apni Beti Apni Dhan (“Nossas Filhas, Nossa Riqueza", em Português), o qual busca mudar a percepção do valor feminino no domicílio5. Apesar das transferências monetárias para as famílias, os resultados da avaliação de impacto de Nanda et al. (2016)Nanda, P., P. Das, N. Datta, S. Lamba, e E. Pradhan (2016): “Making change with cash? Impact of a conditional cash transfer program on girls’ education in India,” Impact on Marriage: Program Assessment of Conditional Cash Transfers. [4], através do modelo Probit com Variáveis Instrumentais, não indicam que o programa tenha apresentado efeito significativo sobre o estado civil das meninas. A segunda experiência é o piloto do programa Berhane Hewan (“Luz para Eva", na tradução do amárico), implementado em 2006 na Etiópia6. Assim como no caso indiano, a despeito das ações múltiplas, os resultados do modelo de Riscos Proporcionais obtidos por Erulkar e Muthengi (2009)Erulkar, Annabel S. e Eunice Muthengi (2009): “Evaluation of Berhane Hewan: a program to delay child marriage in rural Ethiopia,” International Perspectives on Sexual and Reproductive Health, 35, 6-14. [4] são heterogêneos: há evidências de que o Berhane Hewan reduziu as chances de que as meninas entre 10 e 14 anos experienciem matrimônio no período em análise, mas o resultado é o oposto para aquelas com idade entre 15 e 19 anos.

Posto isto, cabe destacar que este artigo está estruturado em cinco seções, além desta introdução. Na seção seguinte são analisadas as nuances do PBF com o intuito de destacar os canais pelos quais o programa pode influenciar a decisão de casamento infantil. A terceira seção, por sua vez, desenvolve um modelo teórico microeconônomico para formalizar os mecanismos entre o PBF e o casamento infantil feminino. Já a quarta seção discorre sobre os dados e a estratégia empírica, enquanto na quinta estão registrados os resultados obtidos. Por fim, a sexta seção apresenta as considerações e discute nossos resultados. Os apêndices A, B e C trazem as provas das proposições, tabelas e gráficos omitidos no corpo do texto, respectivamente.

2. Programa Bolsa Família

O PBF foi criado em 2003 através da unificação de programas de menor escala, como o Auxílio-Gás, o Bolsa Alimentação, o Bolsa-Escola, e o Programa Nacional de Acesso à Alimentação. Tomando o exemplo de experiências prévias bem-sucedidas, tal qual o Oportunidades/Progresa do México, o PBF também possuiu a estrutura de um programa de transferência condicionada de renda (PTCR). Posto o número de pessoas assistidas, o PBF foi o maior programa nestes moldes no mundo, tendo contado com orçamento de R$ 29,5 bilhões em 2020 e posteriormente extinto em 2021.

As famílias que desejavam receber o PBF deviam estar registradas no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico) e, dentro da capacidade orçamentária do Programa, este evoluía de modo a atender quem enquadrava-se nos critérios de elegibilidade. Desta forma, os grupos classificados como extremamente pobres (renda mensal de até R$ 89,00 per capita) e pobres (renda mensal entre R$ 89,01 e R$ 178,00 per capita) podiam candidatar-se ao Programa. Entretanto, as famílias consideradas pobres eram elegíveis somente se possuíam crianças e/ou adolescentes de 0 a 17 anos de idade em seu núcleo. Em suma, constavam os seguintes benefícios, valores e condicionalidades:

  1. Benefício Básico: auxílio de R$ 89,00 destinado às famílias na condição de extrema pobreza, sem ser vinculado a condicionalidades;

  2. Benefício para Superação da Extrema Pobreza: auxílio às famílias na condição de extrema pobreza que, mesmo após recebimento do PBF, continuam nesta classificação. Portanto, o valor transferido dependia da renda familiar per capita e dos benefícios recebidos, sem ser vinculado a condicionalidades;

  3. Benefício Variável à Gestante: auxílio de R$ 41,00 em, no máximo, nove parcelas destinado às mulheres gestantes na condição de extrema pobreza ou pobreza, com a condicionalidade de monitoramento da saúde da mãe e do bebê;

  4. Benefício Variável à Nutriz: auxílio de R$ 41,00 em, no máximo, seis parcelas destinado às famílias na condição de extrema pobreza ou pobreza com crianças de até seis meses de vida, com a condicionalidade de monitoramento da saúde do bebê;

  5. Benefício Variável: auxílio de R$ 41,00 destinado às famílias na condição de extrema pobreza ou pobreza com membros de até 15 anos de idade. Como era possível acumular até cinco Benefícios Variáveis, contando com o Benefício Variável à Gestante e com o Benefício Variável à Nutriz, além das condicionalidades de monitoramento da saúde e do bebê, as crianças e adolescentes com idade entre 6 e 15 anos necessitavam frequentar, no mínimo, 85% das aulas mensais;

  6. Benefício Variável Jovem: Auxílio de R$ 48,00 destinado às famílias na condição de extrema pobreza ou pobreza com adolescentes entre 16 e 17 anos de idade. Nesta categoria, era possível receber no máximo dois benefícios, e a condicionalidade exigia que estes jovens frequentassem, no mínimo, 75% das aulas mensais.

Portanto, a transferência de renda era uma forma de aliviar a severidade da pobreza no curto prazo. Assim, era reduzido o custo de oportunidade da família atender as condicionalidades do PBF quanto aos cuidados com saúde e educação das crianças e dos adolescentes. Observe que, além desses efeitos mais imediatos, as condicionalidades formavam um mecanismo para atingir o objetivo de longo prazo, isto é, que seja rompida a transmissão intergeracional de pobreza através da acumulação de capital humano. Se isto se confirma, as gerações futuras não serão dependentes do Programa.

3. Modelo teórico

Nesta seção modelamos a decisão familiar de permitir que um membro menor de idade e do sexo feminino case através de uma estrutura simples de escolha sob incerteza. O interesse não está em estudar a dinâmica intrafamiliar, de forma que a família é considerada um agente econômico individual. Sua decisão pode ser pensada como imposta pelo chefe do domicílio ou mesmo como fruto de negociação entre seus membros. Seu bem-estar é dado pela soma das utilidades da filha, v(·), e dos demais membros da família, u(·), como segue:

(1) U F I C = u I C m 1 + 1 I C α m 1 + v ( I C m 1 C + β m 2 C + 1 I C 1 α m 1 + β m 2 E ) .

Assumimos que v,u>0 e v,u<0, tal que todos os membros são avessos ao risco. Além disso, limx→+∞ v(x) = limx→+∞ u(x) = +∞ e limx→0 v(x) = limx→0 u(x) = -∞. Enquanto a primeira hipótese é padrão, a segunda pode ser interpretada como se existisse um mínimo de renda ou riqueza, representado por x, necessário para a subsistência.

A variável de escolha é IC, que assume valor 1 se a família permite que a filha case e zero caso contrário. Além disso, m1 representa a renda presente de toda a família (incluindo a filha), m1C é a renda presente da filha caso case, m2C é a renda futura da filha caso case e m2E é sua renda futura caso não case. O parâmetro α ∈ (0,1) é a parcela de renda familiar total direcionada aos demais membros - e, portanto, 1 - α é aquela direcionada à filha - quando não há casamento7 e β ∈ (0,1) é a taxa de desconto intertemporal. Nosso próximo passo é entender o impacto de cada opção no bem-estar familiar.

Suponha que a familília decida que a filha deve casar, tal que IC=1. Neste caso, temos:

(2) U F 1 = u m 1 + v m 1 C + β m 2 C .

Observe que, quando há casamento, a renda da família é toda alocada aos demais membros, não sendo direcionada fração alguma à filha, uma vez que a mesma deixou o domicílio. Esta última tem um fluxo de renda proveniente exclusivamente de seu casamento, provavelmente provido por seu marido, que costuma ser mais velho (Raj, 2010Raj, Anita (2010): “When the mother is a child: the impact of child marriage on the health and human rights of girls,” Archives of Disease in Childhood, 95, 931-935. [7]). Assumimos que, neste caso, não há incerteza. A ideia é que a família normalmente conhece o futuro noivo e consegue ter uma ideia razoavelmente precisa de sua renda.

Quando a família não autoriza o casamento, isto é, IC=0, a renda futura da filha é m2E. Assumimos que m2E é uma variável aleatória, tal que m2E ocorre com probabilidade p0,1 com probabilidade 1 - p, sendo m2E>m_2E. A ideia de incorporar a incerteza vem do fato de que, com a filha permanencendo no domicílio, é provável que se dedique aos estudos. Contudo, para famílias em condições de pobreza tão extremas como as estudadas aqui, é natural que exista incerteza sobre o futuro das estudantes. De fato, as famílias podem ter baixa expectativa sobre o retorno da educação, especialmente quando é considerada a qualidade do ensino público brasileiro, e optarem por não investir neste aspecto8.

A utilidade da família quando não autoriza o casamento é, portanto, dada por:

(3) U F 0 = u α m 1 + p v 1 α m 1 + β m 2 E + 1 p v 1 α m 1 + β m _ 2 E .

É possível notar que, agora, parte da renda familiar total deve ser alocada à filha. Adicionalmente, há a incerteza mencionada acima. Para tornar o modelo mais realista, é assumido que m_2E<m2C<m2E. Assim, a probabilidade p pode ser entendida, por exemplo, como uma medida de qualidade da educação e do seu consequente retorno: quanto maior p, mais próspero será o destino esperado da filha caso esta estude.

3.1 A escolha ótima da família

A família permite o casamento infantil se e somente se UF (1) ≥ UF (0). Usando (2) e (3), é possível reescrever a condição acima como:

(4) u m 1 u α m 1 + { v m 1 C + β m 2 C p v 1 α m 1 + β m 2 E + 1 p v 1 α m 1 + β m _ 2 E } 0 ,

onde o trade-off da escolha fica explícito: IC=1 permite que toda renda presente seja consumida pelos demais membros e ainda garante um fluxo de renda conhecido, porém pequeno, para a filha; IC=0, por sua vez, gera uma renda presente repartida na família, mas permite a possibilidade de uma renda futura (potencialmente) mais alta para a filha estudante.

De fato, a análise poderia focar em qualquer um dos vários parâmetros do modelo, mas o interesse está, particularmente, em m1, a renda presente da família. É razoável imaginar que, para as famílias mais pobres, a opção de não precisar repartir a renda e garantir o futuro da filha seja mais atrativa do que para outras menos pobres. Como a proposição a seguir mostra, quando parte-se da hipótese de que mais renda fornece mais autonomia e independência à família, é este o caso. Relembre, também, que as provas da proposições encontram-se no Apêndice A.

Proposição 1. Suponha que, para todo m1> 0, os parâmetros p, α, β, m_2E e m2E satisfazem:

(5) u m 1 < α u α m 1 + 1 α [ p v 1 α m 1 + β m 2 E + 1 p v 1 α m 1 + β m _ 2 E ] .

Então, existe m1*>0 tal que a família permite que a filha case se e somente se m1m1*9

Antes de interpretar o resultado da proposição acima, é necessário uma discussão sobre a importância e o realismo da sua principal hipótese. A interpretação mais simples da condição ilustrada por (5) é a seguinte: o impacto marginal de uma unidade monetária extra de renda familiar total é maior na utilidade esperada de não permitir que a filha case (composta pela soma do bem-estar dos demais membros e da filha) do que naquela de permitir o casamento (composta somente pelos demais membros da família, já que a filha deixa o domicílio). Como citado acima, a ideia por trás desta hipótese é que uma maior renda gera uma maior independência financeira à família, fazendo com que a opção de deixar a filha casar seja cada vez menos atrativa. De certa forma, é natural a imposição de uma condição como esta, uma vez que, no modelo apresentado, o mecanismo que dirige as decisões da família é a busca de uma maior renda conjunta. Mais do que isso, assumimos que tal efeito é monótono, não mudando de sinal conforme a renda familiar cresce. Por fim, note que (5) é uma condição somente suficiente para o resultado, tal que este pode valer mesmo quando aquela falha10.

A previsão gerada pela Proposição 1 é direta: somente as famílias suficientemente pobres (abaixo do patamar m1*) autorizam o casamento de suas filhas menores de idade. Na próxima subseção são documentados alguns efeitos de mudanças em outros parâmetros sobre o thresholdm1*. Tais efeitos corroboram a ideia de que as famílias em extrema pobreza tendem a ser aquelas mais propensas ao casamento infantil.

3.2 Estática comparativa

A proposição a seguir resume dois relevantes resultados de estática comparativa.

Proposição 2. O valor dem1*é decrescente na probabilidade de sucesso no estudo - ou na qualidade da educação, p. Além disso, se a renda futura da filha em caso de casamento, m1C, é suficientemente pequena, m1* é decrescente também no nível de paciência da família, β.

Para melhor compreender os resultados acima, considere uma família com renda marginalmente inferior a m1* (m1=m1*ε, com ɛ muito pequeno, por exemplo). Adicionalmente, assuma que a renda futura de uma mulher que case ainda criança é baixa o bastante, tal qual aponta a literatura sobre o tema. Então, de acordo com a Proposição 2, se seu nível de paciência aumentar, a família que optava por deixar a filha casar passa a impedir o casamento e mantê-la no domicílio estudando. O mesmo raciocínio se aplica para um aumento na probabilidade de sucesso no estudo. Outra maneira de interpretar os resultados é notando que, quanto maiores β ou p, mais pobre deve ser a família para que opte por permitir o casamento infantil. Similarmente, famílias muito impacientes ou que acreditam que a educação trará pouco retorno não precisam ser tão pobres para optarem pelo casamento.

O ponto principal, portanto, é a evidência de que as famílias em situação de pobreza, em geral, possuem um baixo nível de paciência11 e pouca informação sobre os benefícios da educação12 - ou, como argumentado anteriormente, as escolas que estão à sua disposição são muito ruins. Tal combinação faz com que seu m1* não seja tão baixo, tornando ainda mais atrativa a opção pelo casamento infantil. Pode ser o caso, por exemplo, de uma família com m1 próximo de zero e alto m1*, devido a seus baixos valores de β e p. Nesta situação, deveria haver um aumento substancial de renda familiar para que houvesse uma mudança na decisão de permitir que a filha case.

3.3 O efeito do Programa Bolsa Família

A principal previsão gerada pelo modelo teórico apresentado, e que será testada com os dados brasileiros, é a de que um aumento de renda para as famílias pobres, aquelas abaixo de m1*, pode fazer com que ocorra uma diminuição na prevalência de casamento infantil. Para formalizar o argumento, considere um conjunto de famílias de massa 1 com renda inferior a m1* e denote por H:0,m1*0,1 sua distribuição. Assim, H(A), por exemplo, mede a proporção de famílias pobres com renda até A. Defina B > 0 como o valor do PBF. Então, as famílias beneficiárias do Programa que passam a impedir o casamento infantil são aquelas cuja renda satisfaz m1+B>m1*, totalizando uma parcela de H(m1*) - H(m1* - B) dos pobres. Logo, a parcela complementar, H(m1* - B), diz respeito àquelas famílias que, mesmo recebendo o benefício, continuam a permitir que sua filha menor de idade case. Ao interpretar a proporção como probabilidade, chegamos a uma contrapartida teórica do exercício empírico executado nas próximas seções.

A Figura 1, a seguir, traz uma representação visual do efeito do PBF sobre a quantidade de famílias pobres que passariam a impedir o casamento infantil, considerando uma dada distribuição H e sua correspondente densidade h(·). Note que a área hachurada corresponde à parcela de famílias que trocam de IC=1 para IC=0. Claramente, além do valor do benefício, a forma funcional da distribuição interfere na área H(m1*) - H(m1* - B). Contudo, no que segue, abstraímos tais efeitos e testamos diretamente a hipótese de que receber os benefícios do Programa diminui a probabilidade de que a família permita que filha case precocemente.

Figura 1
Efeito do Bolsa Família sobre a prevalência de casamento infantil. Fonte: Elaboração própria.

Uma observação final sobre a análise é que não é considerado o caso em que a filha casa, deixa o domicílio, mas continua recebendo as transferências do PBF. De fato, nos casos em que a mulher menor de idade é a titular do benefício, existe a possibilidade de que esta case, passe a viver com seu cônjuge em outro domicílio e continue recebendo a transferência. Em situações como esta, quando a filha deixa a casa dos pais, os demais membros da família perdem o acesso ao benefício. Contudo, a inclusão de tal possibilidade não alteraria qualitativamente os resultados: ao permitir o casamento infantil, o incremento na renda dos demais membros agora seria (1 - α)m1 - B, enquanto a renda da filha casada seria m1C+B. Os demais ingredientes do trade-off permanecem os mesmos13.

4. Dados e estratégia de identificação

Para estimar o efeito do PBF sobre a probabilidade de ocorrência do casamento infantil, optamos por utilizar a 5ª entrevista da PNADC em 2019. Esses dados são disponibilizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e possuem um desenho de amostragem complexa, isto é, cada observação está associada a um peso que traduz o número de indivíduos na população que a unidade amostral representa.

Posto que o PBF é uma política pública que transfere renda para todas as famílias elegíveis dentro da sua capacidade orçamentária, as unidades designadas à intervenção não foram aleatorizadas. Como consequência, é necessário adotar uma estratégia que atenue os vieses associados às diferenças entre aqueles que recebem ou não o Programa. Para tal, nossa análise empírica emprega o método PSM. A utilização desse modelo é ideal para simular um ambiente experimental, pois os escores de propensão são estimativas de probabilidade de recebimento do tratamento inferidas condicionalmente em características observáveis. Logo, o pareamento resulta em grupos de tratados e controles e, dentro deste contexto, optamos por estimativas de acordo com os passos apresentados no manual de Leite (2016)Leite, Walter (2016): Practical propensity score methods using R, Sage Publications. [2, 11]. Nesse caso, os dados são pareados sem considerar os pesos amostrais, mas a definição de amostragem complexa utilizada para estimar o efeito da intervenção, além de contar com os mesmos, também inclui a Unidade Primária de Amostragem (UPA) e o Estrato14.

As covariadas da matriz X utilizadas para a inferência dos escores de propensão buscam considerar as características das meninas e a realidade na qual estão inseridas, as quais incluem: (i) renda per capita ex-ante ao PBF15; (ii) idade; (iii) dummy igual a 1 se o indivíduo é autodeclarado branco e 0 caso se considere preto ou pardo; (iv) dummy igual a 1 se reside em área urbana e 0 caso contrário; (v) dummy igual a 1 se a menina é chefe ou cônjuge do chefe do domicílio e há filhos ou enteados na residência e 0 caso contrário; (vi) dummy igual a 1 se possui mais que o Ensino Fundamental completo e 0 caso contrário; (vii) dummy igual a 1 para domicílios com chefe de escolaridade maior que o Ensino Fundamental completo e 0 caso contrário; (viii) dummy igual a 1 se há pessoas maiores de 14 anos ocupadas no domicílio e 0 caso contrário; e (ix) número de pessoas no domicílio. Ademais, também controlamos as características regionais através de diferentes variáveis binárias.

Os escores de propensão pi são obtidos por meio de regressão Logística. O indicador do tratamento de interesse é dado por T = {0,1}, tal que T = 1 se o indivíduo é beneficiário do PBF e T = 0 caso não seja. Então, a estimativa da probabilidade de recebimento do PBF é condicionada nas variáveis observáveis contidas em X , como segue:

(6) p i = p X i = P r T i = 1 | X i = e x p β X i 1 + e x p β X i .

Para o pareamento, importa a hipótese de suporte comum, também conhecida por condição de sobreposição, a qual é descrita pela probabilidade positiva de que a amostra contenha indivíduos beneficiários do PBF:

(7) 0 < P r T i = 1 | X i < 1 ,

de modo que, se satisfeita, é plausível combinar indivíduos do grupo de controle àqueles que são designados ao recebimento do tratamento. Para tanto, são utilizadas as técnicas de pareamento Nearest Neighbor e Genetic Matching, possibilitando comparação entre as mesmas.

No caso do Nearest Neighbor, o objetivo é minimizar a diferença entre os escores de propensão sem considerar a qualidade geral do pareamento. Sendo assim, com C(i) representando o conjunto de controles combinados com a unidade tratada i, temos:

(8) C i = min j p i p j ,

de onde exigimos 0,25 unidades de desvio-padrão na região de suporte comum devido à recomendação de Rosenbaum e Rubin (1985)Rosenbaum, Paul R. e Donald B. Rubin (1985): “Constructing a control group using multivariate matched sampling methods that incorporate the propensity score,” The American Statistician, 39, 33-38. [12] para remover até 90% do viés. Além disso, o pareamento ocorre na razão 1:1, sem reposição, e começa pelas observações com maiores escores de propensão.

Quanto ao Genetic Matching, se trata de um processo iterativo onde ocorrem pareamentos sucessivos até ser atingido o equilíbrio ótimo entre as observações. A ideia é que o algoritmo atribua pesos visando aprimorar o equilíbrio entre as médias das covariadas dos grupos de tratados e controles. Logo, W representa uma matriz de pesos diagonal com número de linhas e colunas igual ao de variáveis observáveis. Esta é selecionada para minimizar a função de perda dos pareamentos em termos de balanço das covariadas. Para tanto, maximiza-se o p-valor dos testes t pareados e dos testes de Kolmogorov-Smirnov correspondentes à cada coluna da matriz de balanceamento. Definindo, também, S-1/2 como a decomposição de Cholesky da matriz de covariância de X, resulta a seguinte forma funcional para a Distância Mahalanobis Generalizada (DMG):

(9) D M G X i , X j = X i X j ' S 1 / 2 ' W S 1 / 2 X i X j 1 / 2 ,

e, mais uma vez, o pareamento ocorre sem reposição e com, no máximo, 0,25 unidades de desvio padrão na região de suporte comum. Além disso, o algoritmo utiliza 1.000 observações para resolver o problema de otimização e, para fixar os resultados e garantir a replicabilidade, a semente utilizada tanto no Nearest Neighbor quanto no Genetic Matching corresponde a 100.

A etapa seguinte diz respeito à verificação do critério de balanceamento das covariadas após o pareamento das observações. Assim, a diferença normalizada é dada por:

(10) Δ X = X T = 1 X T = 0 s 2 , T = 1 s 2 , T = 0 2 ,

onde é desejável ter resultado inferior a 0,25, pois valores mais altos implicam em sensibilidade à especificação (Imbens e Wooldridge, 2009Imbens, Guido W. e Jeffrey M. Wooldridge (2009): “Recent developments in the econometrics of program evaluation,” Journal of Economic Literature, 47, 5-86. [13]).

Já em relação à variável binária que indica o casamento infantil, Y , as meninas foram identificadas como casadas quando o núcleo domiciliar possui chefe e cônjuge, com a condicionalidade adicional de que as mesmas figurem em alguma destas posições na PNADC. Entretanto, note que isto gera uma limitação ao presente estudo através da possibilidade de que os domicílios com alguma extensão familiar contenham casamento infantil de membros registrados em outras posições. Se este for o caso, haverá uma subidentificação das uniões antes da maioridade.

Dito isto, sejam YiT=0 e YiT=1 os resultados potenciais nos casos em que os indivíduos são controles e tratados, respectivamente. Deste modo, a hipótese central do modelo é chamada de independência condicional, onde o casamento infantil é assumido ser ortogonal ao tratamento condicionado em características observáveis:

(11) Y i T = 0 , Y i T = 1 T i | X i .

Como, após parear as observações, o grupo que recebe o tratamento possui um análogo contrafactual, as diferenças nos resultados de interesse entre tratados e controles devem-se meramente ao recebimento da intervenção. Considerando as características de amostragem complexa, isto resulta no valor populacional do ATT, isto é, aponta o efeito médio do PBF sobre aqueles que o recebem:

(12) A T T ^ = 1 N T = 1 i | T = 1 Y i T = 1 j | T = 0 w i j Y j ,

tal que wi j são os pesos que agregam o resultado potencial referente ao grupo de controle. Ainda, sendo NT =0 o total de unidades no grupo que não recebe o PBF, wij=1NiT=0 se jC(i).

Por fim, note que um dos problemas mais graves relativos ao PSM é a violação da hipótese de independência condicional. Isto justifica-se pelos resultados enviesados se há fatores não observáveis que determinam as probabilidades de recebimento da intervenção. Logo, é importante testar a robustez dos coeficientes através de uma análise de sensibilidade dos limites de Rosenbaum (2002)Rosenbaum, Paul R. (2002): “Overt bias in observational studies,” em Observational Studies, Springer, 71-104. [13]. Para tanto, introduz-se na equação (6) a possibilidade de haver ui ∈ {0,1} variáveis não observadas que afetem a probabilidade condicional de recebimento do PBF, sendo tais associadas ao parâmetro γ . Desta forma, se os indivíduos i e j são idênticos em características observáveis, Xi = Xj, a razão entre as probabilidades de que pertençam ao grupo de tratados resulta em:

(13) p i 1 p j p j 1 p i = p i 1 p j p j 1 p i = e x p β X j + γ u j e x p β X i + γ u i = e x p γ u i u j .

A partir da equação acima percebe-se que, na ausência de disparidades entre os fatores não observáveis referentes aos sujeitos i e j, não há viés nas estimativas do ATT:

(14) 1 e γ = p i 1 p j p j 1 p i = e γ ,

pois se eγ = τ = 1 os indivíduos em questão equivalem-se em termos de probabilidade de recebimento da intervenção.

Quanto aos recortes efetuados na base de dados, são mantidas somente as meninas16 com idade entre 12 e 18 anos incompletos. A estratégia se deve ao fato de que a forma de identificação dos casamentos infantis associada aos dados do Censo resulta em nenhum registro de união precoce antes desta faixa etária. Porém, como é um problema social que predomina a partir dos 16 anos de idade, também são feitas estimativas em específico para este grupo17. Além disso, como o PBF possuía diferentes benefícios de acordo com a renda per capita familiar, o ATT é calculado segundo os thresholds de elegibilidade vigentes em 2019: (i) renda per capita ex-ante ao PBF inferior a R$ 89,00 caracterizando a extrema pobreza; (ii) pobreza sendo definida pela renda per capita ex-ante ao PBF entre R$ 89,01 e R$ 178,00; (iii) renda per capita ex-ante ao PBF de até R$ 178,00 para englobar todos os elegíveis; e (iv) efeito de transbordamento sendo capturado pela renda per capita ex-ante ao PBF entre R$ 178,01 e R$ 356,00.

5. Resultados

Em uma análise quase-experimental, tal como a proposta neste estudo, é de extrema importância que os grupos de tratados e controles apresentem similaridade em termos de médias para que os resultados possam ser atribuídos somente à intervenção de interesse. Posto isto, as Tabelas B.1 a B.4 (Apêndice B) apresentam a diferença normalizada entre as médias das covariadas para os respectivos grupos e de acordo com quatro diferentes faixas de renda per capita ex-ante ao PBF. Observe que tais tabelas revelam que, nas duas técnicas de pareamento adotadas, existem casos em que não são atingidos valores inferiores a 0,25, mas estes são exceções e não a regra.

O mesmo ponto pode ser visto nas Figuras C.1 a C.8 (Apêndice C), onde são apresentadas as distribuições dos escores de propensão dentre os grupos de tratamento e de controle após o pareamento. As distribuição das densidades mostram a preponderância das tendências similares e a sobreposição dos grupos de tratados e controles. Dito de outra forma, a seleção dos matchings privilegiou o balanceamento entre as meninas em termos de probabilidade de que recebam a intervenção em análise.

Ainda, precisamos verificar os percentuais de casamentos infantis registrados nas amostras utilizadas para estimar o ATT. Este resultado consta na Tabela 1, a qual evidencia que as uniões predominam na faixa de 16 a 18 anos incompletos, aquela onde o regramento atual permite o casamento em casos consentidos pela família. Contudo, ao incluir as meninas mais jovens na análise, nota-se percentuais de menor magnitude, o que pode ser explicado pelo fato de que são informações autorreportadas e, talvez, exista um potencial incentivo para ocultar as ocorrências nesta faixa etária. Se este for o caso, as estimativas da análise empírica estão sujeitas à subestimação, uma vez que o PBF pode estar associado a uma redução mais significativa das chances de casamento infantil feminino do que é possível identificar na diferença de média entre os grupos.

Tabela 1
Média e erro-padrão para a variável dependente.

Os coeficientes das estimativas do efeito do PBF sobre o casamento infantil estão registrados na Tabela 2, onde as meninas são separadas em subgrupos de renda, idade, e técnicas de pareamento. Uma análise geral destaca o fato de que o PBF reduz a probabilidade de que as meninas na minoridade casem. Este efeito desejável se manifesta em magnitude e significância estatística heterogêneas. Note, por exemplo, que os coeficientes são mais intensos na faixa etária entre 16 e 18 anos de idade incompletos se a menina estiver em situação de pobreza. Por outro lado, há indicativos de que o mesmo ocorra para o grupo mais jovem, com idade entre 12 e 15 anos, se a renda a colocar na categoria de extrema pobreza, embora a comparação empírica fique limitada quando, por vezes, não restaram meninas casadas neste grupo após o pareamento. Por fim, apesar dos problemas de focalização do Programa, o efeito estimado sobre o casamento infantil das meninas não elegíveis é desejável.

Tabela 2
Efeito sobre a probabilidade de casamento.

Como visto acima, na faixa de renda que caracteriza a extrema pobreza é possível destacar que os resultados são significativos estatisticamente apenas quando analisadas as meninas de 12 a 18 anos incompletos, indicando que o efeito se concentra nas meninas com menos de 15 anos de idade. Note que as meninas do grupo de tratamento estão associadas a coeficientes de -2,54 pontos percentuais (p.p.) e -2,84 p.p. nos pareamentos via Genetic Matching e Nearest Neighbor, respectivamente, apesar desta redução na probabilidade de estarem casadas ser estatisticamente significativa apenas ao nível de 10%. Em geral, portanto, se trata de uma evidência de que o alívio financeiro provido pelo Programa possibilita a mudança na decisão acerca das uniões precoces, o que ocorre especialmente entre as meninas mais jovens desta faixa de renda. Essa focalização do efeito segundo a faixa etária pode se dever às diferenças no enforcement tanto da condicionalidade educacional do PBF quanto da própria lei que dispõe sobre a frequência escolar.

Já as estimativas para as meninas da categoria de pobreza revelam o oposto no que tange à comparação dos grupos etários. Isso ocorre porque os resultados são de maior magnitude no caso das meninas com idade entre 16 e 18 anos de idade incompletos, indicando que a redução na probabilidade de casamento infantil feminino em virtude do PBF se dá entre as meninas mais próximas à maioridade. Neste caso, a significância estatística foi de 5% em ambas as formas de pareamento, sendo que os respectivos coeficientes obtidos por meio do Genetic Matching e Nearest Neighbor são de 9,43 p.p. e 10,19 p.p. Já ao considerar todas as meninas de 12 a 17 anos, os coeficientes estão no patamar de 4,10 p.p. e 3,52 p.p., respectivamente. Comparando tais resultados com a faixa de renda de extrema pobreza, observamos que o PBF tem um efeito mais intenso dentre as meninas com menor restrição de renda. De fato, pode ser o caso em que as meninas com maiores limitações financeiras ainda precisem de um benefício mais robusto para apresentar maior consistência na redução das chances de casamento precoce.

Observe que, ao serem mantidos todos os elegíveis ao PBF na base de dados, os resultados possuem maior robustez em significância estatística e se mantêm no sentido de redução da probabilidade de uniões na infância ou adolescência. No grupo de meninas com idade entre 16 e 18 anos de idade incompletos, os efeitos são nas magnitudes de -5,99 p.p. e -6,33 p.p. quando o pareamento se deu por Nearest Neighbor e Genetic Matching, respectivamente. Por sua vez, nos casos em que a amostra também conta com observações na faixa etária entre 12 e 17 anos de idade, estes coeficientes são de -3,12 p.p. e -3,33 p.p. Então, mais uma vez, nota-se que o impacto do recebimento do tratamento em questão difere de acordo com a idade das meninas.

Por fim, os resultados observados quando a análise é feita para o grupo que recebe indevidamente o Programa são ainda mais limitados em significância estatística e, até mesmo, em magnitude do efeito. Neste caso, as meninas mais próximas à maioridade estão associadas à coeficientes mais elevados, os quais estão entre 2,52 p.p. e 3,25 p.p., com respectivos pareamentos via Genetic Matching e Nearest Neighbor. Por outro lado, com uma amostra abrangendo todas as meninas de 12 a 18 anos de idade incompletos, o maior coeficiente foi de 0,82 p.p. Dados estes coeficientes e nível de significância estatística dos mesmos, parece que as meninas que recebem o programa indevidamente podem ter sua decisão marital associada a demais fatores que não apenas as necessidades financeiras.

Comparando os resultados das diferentes faixas de renda estudadas até então, podemos corroborar a hipótese de que o valor do benefício é mais eficiente para tratar do problema em questão quando a menina está na classificação de pobreza. Como ventilado anteriormente, talvez o valor do benefício seja insuficiente para que algumas famílias em extrema pobreza de fato mudem sua decisão sobre o casamento infantil ou, ainda, talvez este grupo focalize a sua decisão em determinado grupo etário. Por outro lado, as famílias não elegíveis ao PBF estão em um patamar de renda possivelmente menos sensível às variações marginais atreladas à transferência do benefício. Calibrar o valor concedido para cada faixa de rendimento domiciliar, portanto, ainda pode ser um desafio a ser sobreposto se o objetivo for alcançar um maior efeito do PBF sobre a redução dos casamentos infantis.

Por fim, estimados os coeficientes, é preciso verificar a robustez dos resultados à influência de variáveis não observáveis. Nas tabelas B.5 e B.6 é possível notar que os resultados variam de acordo com os subgrupos de interesse e as técnicas de pareamento. Apesar disto, variabilidade em robustez das estimativas de acordo com diferentes técnicas de pareamento é relativamente pequena. Por outro lado, há diferenças nos resultados para os limites inferiores e superiores, posto que, em muitos casos, embora seja possível rejeitar a hipótese de subestimação dos efeitos por conta de variáveis não observáveis até o maior fator analisado, τ = 3, há maior sensibilidade à superestimação. Este resultado configura um ponto de alerta, apesar de ser razoável ao considerar que a seleção ao Programa pode ter uma associação com fatores não observáveis.

6. Discussão e considerações finais

Tendo em vista que a legislação brasileira vigente até período recente possuía brechas para o casamento antes da idade núbil e que as alterações posteriores ainda não solucionam o problema integralmente, importa saber quais fatores podem mudar a trajetória de vida das crianças e adolescentes mais vulneráveis às uniões precoces. Por isso, a proposta do presente estudo foi estimar o efeito do maior programa de transferência de renda condicionada do mundo, o PBF, sobre a probabilidade de que as meninas em fase de minoridade casem-se. A motivação para uma análise específica para as mulheres se deve ao fato de que as estatísticas internacionais mostram que é o gênero predominante neste problema social (Unicef, 2014Unicef (2014): Ending child marriage: Progress and prospects, UNICEF. [3, 4, 14, 18]) e o Brasil apresenta números que o destacam negativamente (Taylor et al., 2015Taylor, A. Y., G. Lauro, M. Segundo, e M. E. Greene (2015): “Ela vai no meu barco. Casamento na infância e adolescência no Brasil. Resultados de pesquisa de método mistos,” Rio de Janeiro e Washington DC: Instituto Promundo & Promundo-US. [1, 18]).

Em linha com os estudos para outros países que apontam que os programas sociais fazem parte de uma agenda de políticas públicas eficiente para combater o casamento infantil (Alam et al., 2011Alam, Andaleeb, Javier Eduardo Baez, e Ximena V. Del Carpio (2011): “Does cash for school influence young women’s behavior in the longer term? Evidence from Pakistan,” Policy Research Working Paper. [2, 4, 18]; Duflo et al., 2015Duflo, Esther, Pascaline Dupas, e Michael Kremer (2015): “Education, HIV, and early fertility: Experimental evidence from Kenya,” American Economic Review, 105, 2757- 97. [3, 4, 18]; Sayeed, 2016Sayeed, Yeasmin (2016): “Effect of girls’ secondary school stipend on completed schooling, age at marriage, and age at first birth: Evidence from Bangladesh,” Working Paper. [2, 3, 18]; Buchmann et al., 2018Buchmann, Nina, Erica Field, Rachel Glennerster, Shahana Nazneen, Svetlana Pimkina, e Iman Sen (2018): “Power vs money: Alternative approaches to reducing child marriage in Bangladesh, a randomized control trial,” Working Paper. [2, 3, 18], entre outros), os resultados do presente estudo encontram evidências de que o mesmo é verdade no caso brasileiro. Através dos dados da PNADC, pareamento pelo PSM, e estimação do ATT, a principal evidência obtida diz respeito ao PBF reduzir as chances de que as meninas pobres casem precocemente. Ainda, os coeficientes apontam que, neste caso, o efeito ocorre em maior magnitude quando as mesmas possuem idade entre 16 e 18 anos incompletos, faixa etária em que a PNADC registra maior concentração no número de casamentos infantis.

Tais resultados recebem respaldo do modelo teórico desenvolvido, onde é estruturada a decisão de casamento infantil feminino a partir da otimização da utilidade familiar esperada. Uma das proposições diz respeito a um threshold de renda no qual a família decide permitir ou não o casamento das meninas do domicílio. Assim, quando a família experiencia um incremento na sua renda através do PBF, recebe um alivio financeiro e pode protelar o casamento das filhas menores de idade. Neste contexto, é preciso considerar se o montante do benefício é suficiente para fazer a família mudar o seu comportamento sobre o casamento precoce. Se isto ocorre, é razoável também supor que estas famílias possam escolher investir em bens que tragam retorno futuro, possivelmente por motivação altruísta em relação às filhas, como é o caso do incentivo à educação.

Além dos resultados acima, sabendo que o PBF enfrentava um problema de transbordamento para as famílias não elegíveis em renda, foram efetuadas estimativas para as meninas com esta característica de rendimento familiar per capita. Apesar de ser possível questionar se estes recebimentos afetam a eficiência do Programa, podemos notar que, em termos de casamento infantil feminino, há uma externalidade positiva. Porém, é importante destacar que os exercícios empíricos para este grupo apresentaram limitações estatísticas consideráveis, carecendo de maior amparo para afirmar com assertividade que se trata de uma intervenção ótima.

Em uma análise geral, os resultados obtidos implicam em duas principais lições. A primeira delas reforça o PBF como uma política pública relevante especialmente para as famílias mais pobres do país, e que isto vai além da própria transferência de renda. Através das condicionalidades, meninas de famílias beneficiárias acumularão capital humano - ao se casarem mais tarde, frequentarem mais à escola, terem menos filhos - e, como efeito indireto, terão possibilidade de adquirir independência para desenhar seu futuro. Por outro lado, a questão das transferências para as famílias que não deveriam estar inseridas no Programa aponta para a necessidade de melhorar em tal aspecto. Trabalhar neste sentido possibilitaria, até mesmo, ampliar os benefícios para aqueles indivíduos com maior privação de renda, os quais também respondem positivamente aos incentivos do Programa.

Por fim, nossa pesquisa abre a possibilidade de alguns pontos serem explorados em extensões futuras. O principal diz respeito às estimativas de acordo com as regiões do Brasil, pois podem haver aspectos culturais enraizados que impliquem em heterogeneidade do efeito do Programa. Ainda, como base para a comparação, seria interessante verificar o efeito do PBF sobre a probabilidade de casamento infantil dos meninos. Ambos os pontos não foram tratados no presente trabalho devido à redução do tamanho amostral após as diversas estratificações - o que comprometeria as estatísticas estimadas caso fossem utilizadas. Com a possível adoção de uma base de dados mais ampla, contudo, pode ser possível contornar tais entraves e avançar nessa importante e promissora agenda de pesquisa.

  • O primeiro autor agradece o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) através da bolsa 140809/2017-1 durante o período de Doutorado. O segundo autor agradece o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) através da bolsa 305358/2020-0.
  • 1
    Bangladesh é um natural candidato a iniciativas que visam combater o casamento infantil, uma vez que 74% das mulheres com idade entre 20 e 49 anos casam antes da maioridade (Unicef, 2014Unicef (2014): Ending child marriage: Progress and prospects, UNICEF. [3, 4, 14, 18]). Além disso, sua educação não é vista como algo prioritário. Isto porque, além das meninas mais jovens possuírem maior demanda no mercado de casamentos e implicarem em um menor dote a ser pago ao noivo, há o estigma de que o esposo deve ter maior escolaridade do que a esposa.
  • 2
    O FSP previa transferências monetárias para as meninas que frequentassem pelo menos 75% das aulas, alcançassem o score mínimo de 45% nos testes anuais das escolas, e que não fossem casadas até a formatura no Ensino Secundário ou que atingissem 18 anos ainda solteiras. O Kishoree Kontha, por sua vez, envolvia os seguintes componentes: (i) empoderamento feminino, tal que as meninas recebiam suporte educacional e social; (ii) incentivo financeiro, onde as meninas que permanecessem solteiras até 18 anos recebiam óleo de cozinha regularmente; e (iii) empoderamento feminino mais o incentivo financeiro.
  • 3
    O ZCTE foi focalizado em meninas com idade entre 13 e 22 anos de idade que ainda eram solteiras, o experimento aleatorizou as áreas do distrito de Zomba em três grupos: (i) meninas que receberiam o benefício caso frequentassem a escola regularmente; (ii) meninas das quais as transferências não exigiriam contrapartidas; e (iii) meninas elegíveis ao programa que foram alocadas ao grupo de controle. Já o SCTP tinha como grupo focal indivíduos extremamente pobres ou com restrições para trabalhar. As transferências deste programa eram bimensais e dependiam da composição familiar e do número de crianças matriculadas nas escolas. Por fim, o MCTG efetuou pagamentos de MWK 120,00 a cada dois meses para as famílias da Zâmbia que estavam em condições de profunda vulnerabilidade. Dentre os exemplos de famílias elegíveis, estão aquelas chefiadas por mulheres ou por idosos que contam com órfãos ou deficientes.
  • 4
    A intervenção de Duflo et al. (2015)Duflo, Esther, Pascaline Dupas, e Michael Kremer (2015): “Education, HIV, and early fertility: Experimental evidence from Kenya,” American Economic Review, 105, 2757- 97. [3, 4, 18] englobou o treinamento informacional de professores do Ensino Primário sobre HIV, debates com alunos, competição de artigos sobre os problemas em questão e distribuição de uniformes - para reduzir o custo de estudar. O PFSSP, por sua vez, teve como grupo focal as meninas matriculadas entre a 6ª e a 8ª série de escolas públicas, desde que sejam residentes em distritos onde a taxa de alfabetização é inferior a 40%. Como critério de elegibilidade, a frequência mínima deve ser de 80% das aulas ministradas para que a transferência trimestral de PKR 600,00 por menina seja feita à família.
  • 5
    Como é tradição do país que as mulheres passem a integrar o núcleo familiar do marido quando casadas, isto implica na ideia de que o investimento nas meninas é um desperdício em termos de retorno para a família da noiva. Sabendo disto, em 1994 o Apni Beti Apni Dhan entrou em atividade beneficiando as mães de meninas recém-nascidas elegíveis com Rs 500,00. Além disso, investiu Rs 2.500,00 em títulos no nome destas crianças, mas esse ativo poderia ser resgatado no valor esperado de Rs 25.000,00 somente se as meninas ainda fossem solteiras aos 18 anos de idade.
  • 6
    Os números acerca sobre casamento infantil na Etiópia também revelam um problema severo, uma vez que 58% das mulheres com idade entre 20 e 49 anos reportam terem casado precocemente (Unicef, 2014Unicef (2014): Ending child marriage: Progress and prospects, UNICEF. [3, 4, 14, 18]). O Berhane Hewan tinha foco nas meninas com idade entre 10 e 19 anos. Com estratégias bastante amplas, o programa estabeleceu a reunião das participantes com mulheres adultas que seriam suas mentoras, discussão com a comunidade local para promover conscientização, forneceu incentivo e suporte financeiro para que as meninas permanecessem na escola, e também beneficiou as famílias com uma cabra se as meninas ainda fossem solteiras ao final do programa.
  • 7
    A parcela 1 - α pode ser composta, em parte, pelo investimento da família na educação da filha. De fato, as evidências obtidas por Akresh et al. (2012)Akresh, Richard, Emilie Bagby, Damien De Walque, e Harounan Kazianga (2012): “Child ability and household human capital investment decisions in Burkina Faso,” Economic Development and Cultural Change, 61, 157-186. [6] mostra que famílias pobres podem optar por investir na criança percebida com maior chance de sucesso futuro. Esta possibilidade pode ser capturada pelo modelo se assumirmos que a probabilidade de sucesso ou a renda em caso de sucesso sejam funções crescentes de 1 - α ( p(1 - α) com p1 > 0 ou m2E1α com m2E>0, respectivamente). Como α é um parâmetro na modelagem apresentada, tal mudança não afetaria os resultados.
  • 8
    Hipóteses neste sentido ganham força com o estudo da OECD (2018)OECD (2018): Equity in education: Breaking down barriers to social mobility, Organisation for Economic Co-operation and Development OECD. [7], o qual mostra que, no Brasil, somente 2,1% dos estudantes do menor quartil de status econômico, cultural e social do Programme for International Student Assessment (PISA) podem ser classificados como resilientes em habilidades chamadas essenciais, a saber, Ciências, Matemática e Leitura. Em outras palavras, apenas 2,1% dos estudantes brasileiros em situação de vulnerabilidades atingem o nível 3 de proficiência do PISA, em uma escala que progride até o nível 6.
  • 9
    Por simplicidade, assumimos que, em caso de indiferença, a família permite o casamento.
  • 10
    Como visto na prova da Proposição 1, a hipótese expressa por (5) garante a monotonicidade de G(·) e a consequente unicidade da raiz. Portanto, mesmo que G(·) não seja monótona, o resultado se manteria se, por exemplo, G1 (m1) < 0 para m10,m1*+ε, com ɛ > 0, e G1 (m1) > 0 para m1m1*+ε,m˜1, mas com Gm˜1<0. Ainda, como limm1 →+∞G(m1) = -∞, temos que G1 (m1) < 0 para m1>m˜1.
  • 11
    O trabalho de Epper et al. (2020)Epper, Thomas, Ernst Fehr, Helga Fehr-Duda, Claus Thustrup Kreiner, David Dreyer Lassen, Søren Leth-Petersen, e Gregers Nytoft Rasmussen (2020): “Time discounting and wealth inequality,” American Economic Review, 110, 1177-1205. [9], por exemplo, mostra que existe uma associação positiva entre o nível de paciência e a posição na distribuição de riqueza.
  • 12
    Banerjee et al. (2011)Banerjee, Abhijit V, Abhijit Banerjee, e Esther Duflo (2011): Poor economics: A radical rethinking of the way to fight global poverty, Public Affairs. [9] argumenta que, se os pais acreditam que os anos iniciais de estudo não implicam em retornos significativos, a escolha em não investir em educação pode gerar uma armadilha da pobreza.
  • 13
    Também há a possibilidade de altruísmo da família, que pode julgar importante que a filha carregue consigo o benefício ao casar, especialmente se há a expectativa de que mC seja baixa.
  • 14
    O desenho amostral da PNADC se dá em dois estágios de estratificação das UPAs, as quais são formadas por setores censitários com, no mínimo, 60 domicílios particulares permanentes. Em casos onde não é atingido este número requerido, os setores censitários são agrupados dentro dos subdistritos. Já a estratificação ocorre por divisão administrativa, geográfica, espacial, e estatística.
  • 15
    A definição de renda utilizada diz respeito ao rendimento efetivo domiciliar sem incluir os benefícios de alimentação e transporte, nem os proventos de domiciliares pensionistas, empregados domésticos ou parentes destes. Para obter a renda per capita ex-ante ao PBF, excluímos desta definição também o valor recebido em transferências do Programa. Após, o valor é dividido pelo número de membros no domicílio.
  • 16
    Nossa análise se concentra em analisar somente o casamento infantil feminino devido ao fato de sua prevalência ser muito superior ao equivalente masculino, tanto no Brasil quanto nos demais países. De fato, a (Unicef, 2014Unicef (2014): Ending child marriage: Progress and prospects, UNICEF. [3, 4, 14, 18]) mostra que, mundialmente, 720 milhões de mulheres vivas hoje casaram na minoridade, enquanto a estatística revela que há 156 milhões de homens em situação análoga.
  • 17
    O fato de que entre 12 e 16 anos de idade há um baixo número de meninas casadas justifica o porquê de não serem apresentadas inferências para esta subamostra. Como o mecanismo de pareamento trata da intervenção de interesse, o PBF, houveram casos onde a amostra pareada não continha registros de casamentos segundo os grupos de tratamento, implicando em problemas para a comparação de médias.

Apêndice A Provas das proposições

A.1 Proposição 1

Denote o lado esquerdo de (4) por G (m1), tal que o intuito é encontrar m1*> 0 que garanta G (m1*) = 0. Para tanto, é aplicado o Teorema do Valor Intermediário. Inicialmente, observe que limm1→0 G (m1) = +∞ e limm1→+∞ G (m1) = -∞. Além disso, é fácil ver que G (·) é uma função contínua. Isto implica que existe algum m1*> 0 tal que G (m1*) = 0. Para mostrar sua unicidade, basta verificar que G (·) é uma função monótona:

(15) G m 1 = u m 1 α u α m 1 1 α p v 1 α m 1 + β m 2 E + 1 p v 1 α m 1 + β m _ 2 E < 0 ,

onde utilizamos o fato de que α ∈ (0,1) e a hipótese expressa por (5). Por fim, como G1 < 0, temos que G(m1*) ≥ 0 se e somente se m1m1*, tal que o casamento é a melhor escolha sempre que a renda for pequena o bastante.

A.2 Proposição 2

Devemos aplicar o Teorema da Função Implícita em G(m1), definido na prova da Proposição 1. Assim, a análise resulta em:

(16) d m 1 * d p = v 1 α m 1 + β m _ 2 E v 1 α m 1 + β m 2 E G m 1 < 0 ,

dado que m2E>m_2E e v' > 0. Ainda,

(17) d m 1 * d β = m 2 C v m 1 C + β m 2 C p m 2 E v 1 α m 1 + β m 2 E G m 1 1 p m _ 2 E v 1 α m 1 + β m _ 2 E G m 1 < 0

se e somente se:

(18) m 2 C < p m 2 E v 1 α m 1 + β m 2 E + 1 p m _ 2 E v 1 α m 1 + β m _ 2 E v m 1 C + β m 2 C ,

o que encerra a prova.

Apêndice B Tabelas

Tabela B.1
Diferença normalizada - Extrema pobreza.
Tabela B.2
Diferença normalizada - Pobreza.
Tabela B.3
Diferença normalizada - Elegíveis.
Tabela B.4
Diferença normalizada - Dobro do limite de renda.
Tabela B.5
Teste de sensibilidade - Pareamento via Nearest Neighbor.
Tabela B.6
Teste de sensibilidade - Pareamento via Genetic Matching.

Apêndice C Figuras

Figura C.1
Distribuição dos escores de propensão das meninas de 16 a 18 anos incompletos - Extremamente pobres.

Figura C.2
Distribuição dos escores de propensão das meninas de 16 a 18 anos incompletos - Pobres.

Figura C.3
Distribuição dos escores de propensão das meninas de 16 a 18 anos incompletos - Elegíveis.

Figura C.4
Distribuição dos escores de propensão das meninas de 16 a 18 anos incompletos - Dobro do limite de renda.

Figura C.5
Distribuição dos escores de propensão das meninas de 12 a 18 anos incompletos - Extremamente pobres

Figura C.6
Distribuição dos escores de propensão das meninas de 12 a 18 anos incompletos - Pobres.

Figura C.7
Distribuição dos escores de propensão das meninas de 12 a 18 anos incompletos - Elegíveis

Figura C.8
Distribuição dos escores de propensão das meninas de 12 a 18 anos incompletos - Dobro do limite de renda

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    2023
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