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Letramentos múltiplos, escola e inclusão social

RESENHAS

Samuel Rodrigues dos SantosI; Acir Mário KarwoskiII

ILicenciado em letras pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM). E-mail: samsantos19@yahoo.com.br

IIDoutor em letras – estudos linguísticos pela Universidade Federal do Paraná, professor de linguística na Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM).  E-mail: acirmario@letras.uftm.edu.br

ROJO, Roxane. Letramentos múltiplos, escola e inclusão social. São Paulo: Parábola Editorial, 2009, 128 p.

Roxane Rojo dirige a nossa atenção para conceitos como alfabetização, alfabetismo, alfabetismo funcional, ajudando a diferenciá-los do conceito de letramento ou letramento múltiplo. É muito útil a sistematização desse conjunto de conhecimentos em um único livro, tendo em vista promover uma reflexão que renova a prática do professor. Rojo tem muita experiência nesse campo, é doutora em linguística aplicada ao ensino de línguas, pós-doutora pela Universidade de Genebra, no setor didático de línguas da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação; atualmente atua como docente no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e participa da avaliação do livro didático de língua portuguesa do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), como coordenadora dos trabalhos da equipe paulista de avaliação.

A leitura da obra foi motivada pela necessidade de compreender os novos letramentos que estão surgindo na atual conjuntura. Para muitos professores, não é fácil interagir com alunos que demonstram conhecimentos e necessidades criadas pelo mundo digital.

O livro está organizado em seis capítulos. O primeiro, "O insucesso escolar no Brasil do século XX – Um processo de exclusão social", promove uma reflexão a respeito do mau êxito da instituição escolar brasileira. Chama a atenção para a relação de exclusão e de fracasso entre a escola e os meios populares durante a maior parte do século XX. São discutidos os gráficos que apresentam a queda secular da taxa percentual de analfabetismo e o aumento do número absoluto de analfabetos. Informa que a taxa de analfabetismo se manteve em torno de 80% da população no século XIX e início do XX; no entanto, há o início do declínio desse número na década de 1940, que se acelera no final do século, no período abrangido entre 1990 e 2000, totalizando 16,7% da população brasileira. No entanto, esse declínio se mostra desproporcional ao aumento populacional.

A pesquisa sobre a reprovação, a evasão e o fracasso escolar mostra que as taxas de reprovação se concentram nas séries mais adiantadas do ensino fundamental (5ª a 8ª séries), intimamente relacionadas com a evasão e a consequente exclusão escolar, obedecendo a "destinos" e razões seculares. A partir dos anos de 1990, constata a diminuição da evasão escolar após a 8ª série, que equivale ao fim do ensino fundamental. A razão dessa diminuição é o "efeito diploma": os estudantes prosseguem na escola até a conclusão do ciclo escolar. Isso leva a crer que nesse período surgiu um interesse maior dos estudantes em continuar os estudos no ensino médio.

Conforme revelam os dados, a reprovação é uma das causas primárias para determinar a evasão escolar e o baixo nível de acúmulo educacional no Brasil. A alternativa adotada pelos sistemas de ensino foi a adoção das políticas de ciclos e progressão continuada, medida bastante criticada por especialistas e pela opinião pública, chefiada pela mídia.

Lamentavelmente temos de admitir que, embora na década final do século passado o país tenha cambaleado alguns passos na direção da mudança do quadro de exclusão escolar (e de seus impactos nos letramentos), temos pelo menos metade da população ainda muito longe da realidade de uma escolaridade de longa duração, que possa ser tomada como uma experiência significativa e rica, ao invés de um percurso de fracasso e exclusão. Temos também, forçosamente, de concluir que nos cabe agora, nos primórdios deste século XXI, enfrentar esses dois problemas: evitar a exclusão escolar e tornar a experiência na escola um percurso significativo em termos de letramentos e de acesso ao conhecimento e à informação – o que temos chamado, bastante genericamente, de "melhorar a qualidade do ensino". (Rojo, 2009, p. 23)

Ao final dessa conclusão, há um exercício em que o leitor é convidado a refletir sobre sua experiência de escolarização e de sua família. Também é proposto que sejam pensadas sugestões, a fim de melhorar as práticas de letramento.

No capítulo seguinte, "Letramento escolar, resultados e problemas – O insucesso escolar no Brasil do século XXI", apresenta dados nacionais recentes quanto à capacidade de leitura e escrita e letramentos escolares colhidos a partir dos exames e provas de nível nacional e internacional.

Rojo explica que os alunos da educação básica (ensino fundamental e médio) têm participado de programas de avaliação como o ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio), o SAEB (Sistema de Avaliação da Educação Básica) e também do PISA (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes), que têm como objetivo medir os resultados da educação básica em termos de construção de capacidades e competências pelos alunos. Uma das competências primordiais envolve um aspecto-chave dos letramentos: as capacidades leitoras.

O ENEM e o SAEB partem de uma concepção discursiva de leitura, pois incorporam descritores ou habilidades e competências que englobam o conteúdo e a materialidade linguística, as capacidades cognitivas de leitura e a situação de produção. Já no PISA estão incluídas três capacidades básicas – a localização, a identificação e a recuperação de informação, interpretação e reflexão – necessárias à leitura e compreensão de uma diversidade de gêneros.

Esses exames apresentam dados alarmantes. No relatório PISA/2000, os brasileiros obtiveram os piores resultados nas capacidades de leitura, dentre alunos de 15 anos de 32 países diferentes. A média da prova de redação do ENEM/2001 foi regular, 52,58 em 100; no ENEM/2007, não se percebeu muita diferença: a média subiu para 55,99 em 100. Os dados do SAEB/2001 não se mostraram melhores: 32,11% dos alunos da 3ª série do ensino médio que realizaram o exame estão no nível 5, indicativo das capacidades elementares de leitura, como localizar informações explícitas e implícitas em fragmentos de textos narrativos simples. O relatório ainda revela que apenas 5,35% dos alunos desenvolveram capacidades de leitura compatíveis com o que é de esperar de concluintes do ensino médio.

Resultados concretos e mensuráveis como esses configuram um quadro de ineficácia das práticas didáticas que nos leva a perguntar: como alunos de relativamente longa duração de escolaridade puderam desenvolver capacidades leitoras tão limitadas? A que práticas de leitura e propostas de letramento estiveram submetidos por cerca de dez anos? A que textos e gêneros tiveram acesso? Trata-se de ineficácia das propostas? De desinteresse e enfado dos alunos? De ambos? Que fazer para construir letramentos mais compatíveis com a cidadania protagonista? (idem, p. 35)

O terceiro capítulo, "Letramentos da população brasileira – Alfabetismo funcional, níveis de alfabetismo e letramento(s)", propõe uma reflexão sobre os conceitos de alfabetização, alfabetismo, alfabetismo funcional, letramento e letramentos.

Rojo apresenta o Indicador de Alfabetismo Funcional (INAF), que revela os níveis de alfabetismo funcional da população adulta brasileira. Com informações qualificadas sobre as habilidades e práticas de leitura fornecidas pelo INAF, os governos e a sociedade podem avaliar a situação da população quanto a um dos mais importantes resultados da educação escolar: a capacidade de acessar e processar informações escritas como ferramenta para enfrentar as demandas cotidianas.

A autora chama a atenção para o conceito de alfabetismo com foco no conhecimento, nas capacidades envolvidas na leitura e na escrita, observando que esse conceito muda constantemente, pois tem a ver com as mudanças sociais. Por exemplo, no começo do século passado, alfabetizado era aquele que conseguia escrever o próprio nome; em 1958 a UNESCO define alfabetizado como a pessoa que pode ler e escrever com entendimento um enunciado curto sobre a vida cotidiana. Já na atualidade essa capacidade seria tida como um nível baixo de alfabetismo, porque a UNESCO adotou o conceito de analfabeto funcional, um indivíduo que lê e escreve, mas não possui habilidades suficientes para atender as demandas do seu cotidiano e progredir pessoal e profissionalmente.

O quarto capítulo, "Alfabetização – O domínio das relações entre os sons da fala e as letras da escrita", retoma a questão da alfabetização, discutindo seu conceito e o processo que a envolve. Insiste na importância da diversidade de sociabilidades em torno do texto escrito e na diversidade dos letramentos das camadas mais pobres.

Rojo discorre sobre o funcionamento da escrita alfabética, da importância de se perceber as relações bastante complexas que há entre os sons da fala (fonemas) e as letras da escrita (grafemas), que requerem uma consciência fonológica de linguagem. Afirma que não há uma relação tão simples quanto as cartilhas apresentam, normalmente construídas por convenção.

Conta a longa história da escrita até o momento em que a humanidade inventou a relação entre o grafismo e um som e deslocou-se da representação do significado das palavras para o isolamento de um significante delas. Argumenta que o mito de que se escreve como se fala e que se fala apenas de uma só maneira deve ser expulso da sala de aula.

O leitor pode refletir mais detalhadamente sobre as diferenças entre alfabetização e alfabetismo no quinto capítulo, "Alfabetismo(s) – Desenvolvimento de competências de leitura e escrita", no qual a autora chama a atenção para os diversos procedimentos e capacidades (perceptuais motoras, cognitivas, afetivas, sociais, discursivas, linguísticas) que a leitura envolve, todas dependentes da situação e finalidade de leitura.

Ela aborda a questão de que, no início do século XX, a leitura era vista apenas como um processo perceptual de decodificação de grafemas em fonemas, para se atingir o significado do texto. A leitura era relacionada à alfabetização. Mas, nos últimos 50 anos, muitas capacidades foram desveladas: capacidade de ativação, reconhecimento e resgate de conhecimento armazenado na memória, capacidades lógicas, capacidades de interação social etc. A leitura começa a ser encarada como um ato de cognição, de compreensão, que engloba conhecimentos de mundo, conhecimentos de práticas sociais e conhecimentos linguísticos, algo além dos fonemas e grafemas, que vai proporcionar uma interação leitor e autor. Apesar dos avanços nessa área, somente poucas e as mais básicas capacidades têm sido ensinadas. As demais são quase desconsideradas, como mostram os resultados dos exames ENEM, SAEB e PISA.

A autora discute as mudanças sofridas pelas políticas educacionais que antes dos anos de 1990 priorizavam a formação de profissionais que pudessem dominar a utilização de maquinarias ou dirigir processos de produção. Esses processos mudaram radicalmente nas últimas duas décadas, pois a formação do aluno passou a ter como alvo principal a aquisição de conhecimentos básicos (ditos "competências e habilidades"), a preparação científica e a capacidade para utilizar as diferentes tecnologias das diferentes áreas de atuação.Â

Ao longo dessas reflexões, o leitor encontrará alguns exercícios relacionados com a capacidade de compreensão de leitura de leitores menos proficientes, exercícios que podem ser utilizados em sala de aula. Encontrará ainda uma atividade de análise de uma proposta de produção textual, assim como uma reflexão mais aprofundada sobre os conceitos de letramento. É ressaltado que alfabetismo tem um foco individual, bastante ditado pelas capacidades e competências (cognitivas e linguísticas) escolares e valorizadas de leitura e escrita (letramentos escolares e acadêmicos em uma perspectiva psicológica), enquanto no letramento se busca recobrir os usos e as práticas sociais de linguagem que envolvem a escrita de uma ou de outra forma, valorizadas ou não, locais ou globais, recobrindo diferentes contextos sociais (família, igreja, trabalho, mídias, escola etc.), numa perspectiva sociológica, antropológica e sociocultural.

Rojo apresenta os enfoques autônomo e ideológico dos letramentos. O primeiro está relacionado com termos técnicos, não levando em conta o contexto social, uma variável autônoma cujas consequências para a sociedade e a cognição são derivadas de sua natureza intrínseca. O enfoque ideológico, por sua vez, considera as práticas de letramento como indissoluvelmente ligadas às estruturas culturais e de poder da sociedade e reconhece a variedade de práticas culturais associadas à leitura e à escrita em diferentes contextos. Dessa forma o significado de letramento muda ao longo dos tempos e das culturas, e dentro de uma mesma cultura.

Apresenta em seguida os letramentos dominantes que preveem agentes (professores, autores de livros didáticos, especialistas, pesquisadores, burocratas, padres e pastores, advogados e juízes) e os letramentos vernaculares. Estes últimos não são regulados, controlados ou sistematizados por intuições ou organizações sociais, mas têm sua origem na vida cotidiana, nas culturas locais e geralmente são desvalorizados ou desprezados pela cultura oficial.

O livro encerra abordando a questão da globalização que passou a exigir novos letramentos relacionados aos meios de comunicação e à circulação da informação. A ampliação do acesso às tecnologias digitais da comunicação e informação (computadores, celulares, tocadores de MP3, televisão digital, entre outras) resulta em quatro mudanças de importância na reflexão sobre os letramentos: intensificação e diversificação da circulação da informação, diminuição das distâncias espaciais, diminuição das distâncias temporais ou a contração do tempo e a multissemiose ou a multiplicidade de modos de significar.

A autora incentiva maneiras de incrementar, tanto na escola como fora dela, os letramentos críticos, capazes de lidar com os textos e discursos naturalizados, neutralizados, de forma que se perceba seus valores, suas intenções, suas estratégias, seus efeitos de sentido. O texto já não pode mais ser visto fora da abrangência dos discursos, das ideologias e das significações, como a escola e as teorias se acostumaram a fazer.

 Como conclusão, pode-se dizer que trabalhar com leitura e escrita na escola hoje é muito mais que trabalhar com alfabetização ou alfabetismos, é trabalhar com letramentos múltiplos, com leituras múltiplas – a leitura na vida e a leitura na escola –, e que os conceitos de gêneros discursivos e suas esferas de circulação podem ajudar a organizar esses textos, eventos e práticas de letramento.

Essa recente obra de Roxane Rojo se mostra muito interativa, com sugestões de sites e exercícios. Não são expostos apenas conhecimentos teóricos; o leitor é convidado a construir o próprio conhecimento. A autora provoca um diálogo com o leitor, oferece referências e indica instrumentos para o fazer pedagógico.

Sua leitura é muito proveitosa para estudiosos interessados em assuntos linguísticos e professores de língua e educação, especialmente os que atuam na educação infantil e nas séries iniciais do ensino fundamental. É bastante útil também para professores alfabetizadores que se preocupam com os novos saberes essenciais para formar cidadãos capazes de interpretar as novas semioses e atuar socialmente a partir disso, não permitindo que outros agentes os privem do que lhes é de direito: a liberdade ideológica e o uso da linguagem em sociedade.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Jun 2010
  • Data do Fascículo
    Abr 2010
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