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A escola de Leonardo: Política e educação nos escritos de Gramsci

RESENHAS

SCHLESENER, Anita Helena. A escola de Leonardo. Política e educação nos escritos de Gramsci. Brasília: Liber Livro, 2009. 188p.

Prefaciado por Dermeval Saviani, o livro apresenta a relação entre política e educação na obras de Gramsci, com base na figura de Leonardo da Vinci. Trata-se de estabelecer uma ponte conceitual entre a Oficina de Verrocchio (século XV) e a escola unitária de Gramsci (século XX). O elo entre constituído pela Escola de Leonardo, uma metáfora esculpida teoricamente ao longo de belos capítulos. Esse texto revela um profundo conhecimento da obra de Gramsci, que tem sido o principal objeto de estudo da autora. O livro apresenta o conceito-imagem da Escola de Leonardo retomando a abordagem dialética gramsciana, constituindo-se em exemplo vivo da correlação entre teoria, prática e imaginação. Assim são contrapostos a concepção de homem renascentista com o ideário de humanidade socialista do autor italiano, a questão da espontaneidade e do direcionamento, da disciplina e da democracia na escola, da formação de uma perspectiva cosmopolita e do engendramento da consciência nacional.

A metáfora da Escola de Leonardo torna-se uma espécie de candeeiro cuja luz possibilitou à autora revelar novos delineamentos dos conceitos chave da filosofia gramsciana, tais como o significado do ser mestre, do ensinar, do ser aluno, da escola, da política, da luta de classes, do Estado, do consenso e da hegemonia. É com tal candeeiro que Schlesener percorre a obra do filósofo italiano passando pela experiência do L'Ordino nuovo até as Cartas do Cárcere, lançando luz sobre a concepção de educação vista com base no que Gramsci falou sobre Leonardo da Vinci, sobre educação de seus sobrinhos na Itália fascista e de seus filhos na União Soviética e dos trabalhadores nas fábricas. O mesmo candeeiro é também usado para esclarecer as tendências das políticas educacionais no Brasil.

O livro contribui para o atual debate em torno da formação humana. Com base nele, podemos retomar as principais questões educacionais da atualidade, como: em que sentido se pode falar de humanismo numa era de intenso policiamento anti-humanista por parte de autores pós-modernos? Como falar em pedagogia do modelo, de disciplina e direcionamento numa época que se reluta em aceitar definir a natureza humana? Como fugir da fragmentação e do relativismo que permeia a educação na atualidade? A obra em questão é um contraponto fundamental neste debate. Se, na perspectiva anti-humanista, a "experiência" é erigida como o princípio formativo por excelência, pois ela pressupõe a mudança contínua, a diferenciação interna constante arredia a qualquer regra ou ideal, permitindo pensar o ser apenas como devir ou estar à deriva, a noção de práxis, retomada pela autora, permite resgatar a importância formativa da experiência sem, contudo, desfazer-se da noção de modelo. Segundo Anita Helena, a arte e a filosofia, tomadas no sentido de experiência, o que vale também para a o trabalho e a educação, "se entrecruzam porque interrogam". A filosofia é (pensamento) errante: é movimento de vida. Assim é também o processo educacional, que não é tomado como mera diferenciação individual, "singularizacão", ao longo de uma vida. A compreensão da experiência e sua relação com a formação humana é feita com base no princípio educativo do trabalho. Perante a práxis, a individualidade é tomada como conjunto de relações existentes, sendo que formar uma personalidade significa adquirir consciência de tais vínculos, e modificar a própria personalidade significa transformar o conjunto dessas relações. A identidade se configura como síntese de relações existentes e também a história de tais nexos. Isso "exige uma permanente releitura do passado e a compreensão do movimento que constitui nosso presente" (p. 80).

A autora mostra que o homem integral, pensado com base na figura de Leonardo, é "uma síntese possível a partir dos pressupostos da filosofia da práxis, herdeira da filosofia clássica alemã enquanto a realiza concretamente, herdeira das promessas do iluminismo francês, que não se realizaram no projeto burguês, e do ideário que pretende renovar a sociedade pelo trabalho, aplicando a tecnologia mais avançada (p. 60). A realização desse projeto de sociedade ousado e utópico depende da educação. Mas isso não significa dizer que a escola é o único ponto de partida para mudanças radicais, "mas sim que ela é um dos mecanismos de formação do homem, inserida em processos mais amplos de organização política", podendo ser também um fator decisivo para a realização de mudanças radicais (p. 123).

A construção da figura de Leonardo, feita no capítulo I, ocorre na contextualização do Renascimento, com a retomada de estudos clássicos desse período. A apresentação do conceito de homem do renascimento retoma o mundo do trabalho do período histórico em questão, mostrando os elos entre a produção intelectual (do cientista, do artista e do construtor) e a vida social no interior das Guildas e Bottegas, indicando como estas também funcionavam à maneira de escolas nas quais se desenvolviam ofícios e artes. Anita Helena mostra como a formação de personalidades capazes de desempenhar várias atividades com igual rigor e competência estava ligada ao fato de que a sociedade possibilitou "a seus filhos um conhecimento universal e concreto" sem descurar da conexão entre teoria e prática. A oficina de Verrocchio apresenta-se como o local de formação onde a atividade técnica e manual exigia também a formação humana, ética e política necessária ao próprio processo de trabalho. O valor maior dessa escola de ofício foi dado pela formação baseada no trabalho coletivo: este "não vinha com a assinatura do mestre, mas com o nome da instituição, precisamente por se tratar de uma produção coletiva" (p. 44). Conforme Gramsci, a figura de Leonardo aponta para um ideal não realizado, ou seja, o de formar elites intelectuais sem desvincular esse trabalho formativo da educação das grandes massas, cabendo à filosofia da práxis retomar essa tarefa de modo a realizar, simultaneamente, um Renascimento e uma Reforma, agora a serviço de uma nova ordem social e política ligada à libertação dos trabalhadores da opressão capitalista.

No Capítulo II, é abordada a dimensão política da educação. Depois de um acurado estudo do método gramsciano, feito à luz da metáfora do "canteiro de obras", que se constitui, por si só, numa leitura obrigatória para quem estuda Gramsci, a autora discute o significado político da formação de uma nova civilização na obra do filósofo sardo. A ponte com o Renascimento é feita com base na retomada de Maquiavel que passa a ser, assim como Marx, um dos principais interlocutores de Gramsci para definir a política, caracterizada a partir da correlação entre poder e desigualdade social. O sentido da educação, tanto na perspectiva capitalista quanto na ótica dos trabalhadores, é apresentado juntamente com a discussão do Príncipe e do Estado. Mostra-se que a educação não se restringe ao espaço da escola, sendo seu significado abrangente marcado pelo pressuposto de que ela faz parte da luta das massas trabalhadoras na redescoberta de sua identidade e na conquista de sua autonomia. Nesse sentido, acentua-se não tanto a pedagogia, mas a política, destacando a educação como um processo de interação com outros (o homem, bem como sua formação, compreendido como bloco histórico) e de busca de transformações sociais, sem o que não se pode compreender o surgimento do "homem-coletivo" no lugar do "homem-massa".

No capítulo III, "Na senda de Leonardo: política e educação", é mostrada a relação ensinar-aprender como arte. São definidos termos como mestre, aluno e ensino. A partir da retoma da experiência do L'Ordino Nuovo, a escola é pensada em sua correlação com uma "nova gestão social": conhecer-se significa "distinguir-se, sair do caos", no sentido de tornar-se um elemento de uma nova ordem social. Isso se refere ao compromisso de uma educação que se enraíze na vida operária, de uma escola que se identifica com o sistema geral dos Conselhos. Assim, a escola única é proposta para realizar o princípio educativo do trabalho, segundo o qual se faria a medição entre o presente e o passado para construir o futuro. A escola única, à luz da metáfora leonardiana, torna-se o coroamento de uma perspectiva humanista de formação integral do homem, desde que se entenda este como ser que "pode controlar seu destino", que pode "fazer-se" ou pode "criar a sua vida", definição que - longe de ser uma resposta a uma pergunta genérica - refere-se a uma questão prática.

"A educação nas cartas do Cárcere" é o título do capítulo V. Depois de um estudo das características da escrita presente nas cartas, a autora detém-se na abordagem de teorias pedagógicas, com base nas quais define o sentido da "espontaneidade" e da "disciplina" para Gramsci. Mostra-se que a disciplina democrática, contraditoriamente, permite que, no processo pedagógico, se conquiste a "consciência da própria personalidade" e a afirmação livre do educando no mundo (p. 135). A abordagem do que o filósofo escreveu sobre a educação dos sobrinhos e dos filhos permitiu discutir a "educação do educador". O estudo das cartas sobre a educação do filho mostra o quanto a figura de Leonardo marcou a concepção de educação de Gramsci. A educação ganha uma dimensão integral, segundo a qual engenharia e poesia, arquitetura e literatura, filosofia e matemática, teoria e prática, trabalho e descoberta, reflexão e experiência tornam-se inseparáveis na formação humana.

No Capítulo VI, "Indagações sobre política e educação", Anita Helena mostra que a "escola de Leonardo" não é meramente uma entidade poética e fantasiosa, mas que ela é viável, estando a serviço de transformações políticas que vão na contramão do que vem sendo feito nas políticas educacionais no Brasil, ajudando a superar um "modelo de interpretação funcional que possibilitou ajustar as classes subalternas ao projeto político e econômico liberal" (p. 160). Diante disso, são discutidos o dilema da escola pública brasileira e as atuais políticas educacionais no Brasil, sobretudo aquelas que tentam viabilizar o atual Plano Nacional de Educação. No mesmo capítulo, a autora mostra que é possível que a escola não se restrinja a mera fornecedora de instrumentos para o aluno desempenhar uma profissão, no caso competências bem específicas, mas pode criar condições para "torná-lo capaz de reconhecer suas raízes culturais e os valores que transcendem seu tempo, a fim de compreender a sua inserção no mundo" (p. 163). Mas tal escola só pode surgir como expressão das lutas dos trabalhadores, como formação política e cultural independente, sem o que não seriam mesmo capazes de intensificar sua união e reacender o entusiasmo pela criação de uma nova civilização. Em que sentido a Escola de Leonardo pode ser a escola para João, Pedro, Maria...? Perante essa questão, mostra-se como a escola única proposta por Gramsci é referência inelutável para a formação integral genuína.

Sidney Reinaldo da Silva

Universidade Tuiuti do Paraná,

Mestrado e Doutorado em Educação

E-mail: sreinald@uol.com.br

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Set 2010
  • Data do Fascículo
    Ago 2010
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