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A vida do bebê: a constituição de infâncias saudáveis e normais nos manuais de puericultura brasileiros

A vida do bebê: making healthy childhoods in Brazilian child care books

A vida do bebê: la constitución de infancias sanas y normales en los manuales de puericultura brasileños

Resumos

Este trabalho tem por objetivo investigar como o livro A vida do bebê, escrito pelo pediatra brasileiro Rinaldo De Lamare, promove/promoveu biopolíticas dirigidas às mães para a constituição de infâncias saudáveis e normais. Ressalto o quanto o manual analisado desempenhou/desempenha uma função pedagógica, ensinando mães e pais a como agir com suas/seus filhas/filhos, produzindo, assim, subjetividades, identidades e saberes. Para a realização da análise, foram utilizados, como referencial teórico, os Estudos Culturais, a partir de um olhar pós-estruturalista, e os estudos de Michel Foucault. Como material de análise foram utilizadas duas edições do manual, a saber, a 17ª edição (de 1963) e a 41ª edição (de 2002). A partir da análise verificou-se a força do discurso da psicologia como forma de subjetivar as mães e a visão evolutiva do desenvolvimento da criança normal na publicação ora objeto de estudo.

infância; manuais de puericultura; desenvolvimento infantil


This paper aims at investigating how Brazilian paediatrician Rinaldo De Lamare's book A vida do bebê has lead to mother-directed biopolitics to make healthy childhoods. I highlight how the analysed book has played a teaching role, teaching parents how to act upon their children to make subjectivities, identities and knowledge. For this analysis I have used the Cultural Studies in a poststructuralist perspective and Foucault's studies as a theoretical referential. I have used two the 17th (1963) and 41st (2002) editions of the book as the analysing material. Upon the analysis I have found the psychology discourse as a way to subjectify mothers and how the healthy child has been grown in the edition studied.

childhood; child care books; child development


Este trabajo tiene por objetivo investigar como el libro A vida do bebê, escrito por el pediatra brasileño Rinaldo De Lamare, fomenta/fomentó biopolíticas dirigidas a las madres hacia la constitución de infancias sanas y normales. Se enfatiza el valor que el manual analisado ejerce/ejerció como función pedagógica, enseñando madres y padres a como actuar hacia sus hijas/hijos, produciendo de ese modo subjetividades, identidades y saberes. A la realización del análisis, fueron utilizados como referencial teórico los Estudios Culturales a partir de una mirada postestructuralista y los escritos de Michel Foucault. Como material de análisis fueron utilizadas dos ediciones del manual. La primera, la 17ª edición (de 1963); y la segunda, la 41ª edición (de 2002). A partir del análisis se verificó la fuerza del discurso de la psicología como forma de subjetivar las madres y la visión evolutiva del desarrollo del niño normal en la publicación que ahora se hace objeto de este estudio.

infancia; manuales de puericultura; desarrollo del infante


ARTIGOS

A vida do bebê: a constituição de infâncias saudáveis e normais nos manuais de puericultura brasileiros

A vida do bebê: making healthy childhoods in brazilian child care books

A vida do bebê: la constitución de infancias sanas y normales en los manuales de puericultura brasileños

Cláudia Amaral dos Santos

Universidade Federal do Rio Grande do Sul Professora da Rede Municipal de Educação de Porto Alegre

RESUMO

Este trabalho tem por objetivo investigar como o livro A vida do bebê, escrito pelo pediatra brasileiro Rinaldo De Lamare, promove/promoveu biopolíticas dirigidas às mães para a constituição de infâncias saudáveis e normais. Ressalto o quanto o manual analisado desempenhou/desempenha uma função pedagógica, ensinando mães e pais a como agir com suas/seus filhas/filhos, produzindo, assim, subjetividades, identidades e saberes. Para a realização da análise, foram utilizados, como referencial teórico, os Estudos Culturais, a partir de um olhar pós-estruturalista, e os estudos de Michel Foucault. Como material de análise foram utilizadas duas edições do manual, a saber, a 17ª edição (de 1963) e a 41ª edição (de 2002). A partir da análise verificou-se a força do discurso da psicologia como forma de subjetivar as mães e a visão evolutiva do desenvolvimento da criança normal na publicação ora objeto de estudo.

Palavras-chave: infância; manuais de puericultura; desenvolvimento infantil

ABSTRACT

This paper aims at investigating how Brazilian paediatrician Rinaldo De Lamare's book A vida do bebê has lead to mother-directed biopolitics to make healthy childhoods. I highlight how the analysed book has played a teaching role, teaching parents how to act upon their children to make subjectivities, identities and knowledge. For this analysis I have used the Cultural Studies in a poststructuralist perspective and Foucault's studies as a theoretical referential. I have used two the 17th (1963) and 41st (2002) editions of the book as the analysing material. Upon the analysis I have found the psychology discourse as a way to subjectify mothers and how the healthy child has been grown in the edition studied.

Keywords: childhood; child care books; child development

RESUMEN

Este trabajo tiene por objetivo investigar como el libro A vida do bebê, escrito por el pediatra brasileño Rinaldo De Lamare, fomenta/fomentó biopolíticas dirigidas a las madres hacia la constitución de infancias sanas y normales. Se enfatiza el valor que el manual analisado ejerce/ejerció como función pedagógica, enseñando madres y padres a como actuar hacia sus hijas/hijos, produciendo de ese modo subjetividades, identidades y saberes. A la realización del análisis, fueron utilizados como referencial teórico los Estudios Culturales a partir de una mirada postestructuralista y los escritos de Michel Foucault. Como material de análisis fueron utilizadas dos ediciones del manual. La primera, la 17ª edición (de 1963); y la segunda, la 41ª edición (de 2002). A partir del análisis se verificó la fuerza del discurso de la psicología como forma de subjetivar las madres y la visión evolutiva del desarrollo del niño normal en la publicación que ahora se hace objeto de este estudio.

Palabras clave: infancia; manuales de puericultura; desarrollo del infante

APRESENTANDO O TEMA DA PESQUISA

No contexto brasileiro, assistimos, na atualidade, a uma proliferação de livros, revistas especializadas, reportagens em programas de televisão, artigos em revistas de grande circulação nacional, cadernos especiais em jornais, blogs, páginas na internet e manuais que procuram ensinar mães e pais, mas principalmente as primeiras, como devem educar e cuidar das crianças. Foi pensando nessas outras instâncias que também educam que me voltei para um material que há algum tempo me chamava a atenção: o livro A vida do bebê o maior e mais conhecido manual de puericultura do Brasil, escrito pelo pediatra Rinaldo De Lamare. Foram analisadas duas edições do manual, a saber, a 17ª edição (de 19631 1 Utilizo essa edição por ter sido a edição mais antiga a que tive acesso neste trabalho. ) e a 41ª edição (de 20022 2 Utilizo essa edição por ter sido a última lançada até a morte do autor (em 2002). Em 2009, foi lançada uma nova edição coordenada por outro médico - Geraldo Leme - que coordenava então a Clínica Dr. De Lamare no Rio de Janeiro. ). Para a realização da análise, foram utilizados, como referencial teórico, os Estudos Culturais, a partir de um olhar pós-estruturalista, e os estudos de Michel Foucault.

Dessa forma, procurei apontar as estratégias biopolíticas dirigidas principalmente às mães para produção de infâncias saudáveis e normais, procurando também dar visibilidade para aqueles discursos que rompem, vazam e provocam fissuras nos discursos mais legitimados, assim como o que chamei de retiradas estratégicas (temas presentes e defendidos na edição de 1963 e omitidos na edição de 2002, por diferentes razões). Nesse sentido, no decorrer do trabalho, analisarei por meio de quais estratégias discursivas o autor do livro, Rinaldo De Lamare, investido do saber médico, em específico o pediátrico, conduz as condutas maternas e paternas. Enfim: quais os saberes e poderes colocados em circulação na subjetivação materna e paterna na promoção de crianças normais e saudáveis? Como o manual aqui analisado constitui-se como tecnologia para o governo das famílias e das infâncias? Por meio de que estratégias discursivas A vida do bebê promove biopolíticas dirigidas às mães? Que discursos são legitimados para falar sobre a infância? Quais conselhos3 3 Uso itálico em algumas expressões, como observado por Rosa Silveira (2002), para marcar que tal registro pertence a outro discurso, ou pelas expressões serem parcialmente inadequadas ou passíveis de reserva de acordo com o objetivo do trabalho aqui proposto. são priorizados para governar a ação materna? Como são caracterizados os sujeitos infantis tidos como normais e anormais? Há diferenças nos discursos utilizados pelos especialistas entre as duas edições analisadas? No caso específico da infância, analisei como esta era narrada, descrita, produzida, ou seja, como o desenvolvimento infantil era normatizado entre 0 e 24 meses de idade e como eram nomeadas as infâncias anormais. Ressalto que não foram foco de análise os tópicos sobre doenças, problemas de saúde, higienização, alimentação, processos e encaminhamentos com relação à dentição, vacinação, roupas adequadas e remédios a serem utilizados em determinadas circunstâncias, mas sim temas que estivessem mais próximos do campo educacional, como, por exemplo, as questões cognitiva, psíquica e lúdica na formação dos sujeitos.

Como procurarei evidenciar ao longo deste trabalho, o manual que me proponho a analisar se insere numa longa tradição dos manuais que desempenham uma função pedagógica, à medida que ensinam a mães e pais como agir com suas filhas e seus filhos, como as crianças devem alimentar-se, quais os comportamentos esperados e adequados a cada faixa etária, quais são os problemas mais comuns na infância, dentre outros ensinamentos, produzindo, assim, subjetividades, identidades e saberes.

Dessa forma, assumo o sujeito como um produto do discurso e das relações de saber e poder que se impõem a ele, filiando-me à perspectiva teórica dos Estudos Culturais, a partir de um olhar pós-estruturalista de análise. Segundo Tomaz Tadeu da Silva (1998, p. 10),

[...] a subjetividade (isto é, aquilo que caracteriza o sujeito) não existe nunca fora dos processos sociais, sobretudo na ordem discursiva, que a produzem como tal. O sujeito não "existe": ele é aquilo que fazemos dele. Subjetividade e relações de poder não se opõem: a subjetividade é um artefato, é uma criatura das relações de poder.

Destaco, no entanto, que falar de sujeitos constituídos, produzidos pelos discursos que o rodeiam, "não é o mesmo que falar de indivíduos determinados. Há uma possibilidade de escolha e recusa nas relações de poder; os indivíduos podem aprender como não ser tão governados" (Dahlberg; Moss; Pence, 2003, p. 50).

No referencial proposto, não cabe dizer que possuímos uma identidade/subjetividade nossa, íntima, uma vez que "vivemos nossa subjetividade em um contexto social no qual a linguagem e a cultura dão significado à experiência que temos de nós mesmos" (Woodward, 2000, p. 55). Nesse sentido, nossas identidades são construídas culturalmente, são contraditórias, fragmentadas e inacabadas e estão ligadas a estruturas discursivas e narrativas, a sistemas de representação, possuindo estreitas conexões com as relações de poder.

Ademais, a identidade só pode fazer sentido se compreendida em relação à diferença. Identidade e diferença são inseparáveis e só inteligíveis nessa relação. Falar de uma identidade implica necessariamente demarcar fronteiras entre o que é próprio dessa identidade e o que não é. Corroborando essa breve explanação de como se dá a relação entre identidade e diferença, Silva (2000, p. 83) explica:

Fixar uma identidade como norma é uma das formas privilegiadas de hierarquização das identidades. [...] Normalizar significa eleger - arbitrariamente - uma identidade específica como o parâmetro em relação ao qual as outras identidades são avaliadas e hierarquizadas. [...] A identidade normal é "natural", desejável, única. A força da identidade normal é tal que ela nem sequer é vista como

uma

identidade, mas simplesmente como

a

identidade (grifos do autor).

Por ser a identidade produzida pela linguagem e em razão do caráter instável da última (uma vez que os significados são constantemente reconstruídos e produzidos), a identidade também assume essa instabilidade e passa a ser vista não como algo que se possua e que seja a mesma no decorrer de toda vida, mas, conforme enfatiza Hall (2001), como um tornar-se permanente. No entanto, é preciso destacar também que as identidades são posições de sujeito, que o capturam e o fixam em determinadas relações de poder. Assim, podemos pensar, a partir de publicações como A vida do bebê, sobre os efeitos da promoção de uma dada identidade materna. O que esses discursos produzem na vida dessas mulheres-mães? Como essas mulheres-mães se veem e se narram a partir do modelo de maternidade promovido por livros como esses?

Da mesma forma que o conceito de identidade é ampliado pelos Estudos Culturais para além do psicológico, enfatizado seu caráter cultural, devemos expandir o conceito de pedagogia, como proposto por Henry Giroux (1995), para além da questão de domínios de técnicas e de metodologias, ou seja, entendo a "pedagogia como uma configuração de práticas textuais, verbais e visuais que objetivam discutir os processos através dos quais as pessoas compreendem a si próprias e as possíveis formas pelas quais elas interagem com outras pessoas e seu ambiente" (p. 100).

Acredito que a visão de prática pedagógica descrita por Giroux possa ser útil por meio dos manuais, como A vida do bebê, que produzem e/ou transformam as experiências que mães e pais têm de si mesmas/mesmos ao lerem tais livros, isto é, práticas, discursos e identidades são fabricados por essa leitura.

A MEDICINA COMO ESTRATÉGIA BIOPOLÍTICA

Em seu texto "A Governamentalidade", Foucault (2003) explica que foi na segunda metade do século XVIII, com a emergência da problemática da população,4 4 A população até o século XVIII era considerada um dos elementos do soberano, juntamente com o território e as riquezas. A partir desse século, a população deixa de ser uma noção jurídica política de sujeitos e passa a ser um objeto técnico político de uma gestão e governo (Foucault, 2007). que a família se tornou "segmento privilegiado, na medida em que, quando se quiser obter alguma coisa da população [...] é pela família que se deverá passar" (p. 289); nesse sentido podemos fazer uma relação de tal emergência com as campanhas de vacinação, por exemplo, ou com o manual aqui analisado. Para Jacques Donzelot (2001), esse período é marcado por uma "passagem de um governo das famílias para um governo através das famílias" (p. 86). A família torna-se mecanismo (sic) de proteção da infância pobre, da aliança mãe-médico, de promoção da escola, dentre outras dimensões.

A partir da problemática colocada pelos fenômenos relativos à população,5 5 Como a população é composta de indivíduos diferentes, cujo comportamento não se pode prever, a tecnologia governamental procurará articular o interesse individual ao do Estado, através da produção do interesse coletivo (governamento do desejo da população). o Estado precisará reorganizar-se em suas estratégias, com vistas a organizar a população e, então, promover a vida, por meio de políticas públicas (biológico a serviço do político). A biopolítica emerge como uma resposta econômica e política a esses fenômenos específicos e variáveis próprias da população, como, por exemplo, natalidade, morbidade, expectativa de vida, fecundidade, estado de saúde, incidência de doenças, formas de alimentação, condições de habitat, criminalidade, entre outras. Essa tecnologia visa, assim, ao equilíbrio global, "[...] a segurança do conjunto em relação aos seus perigos internos" (Foucault, 1999, p. 297). Todas essas questões de longa duração passam a fazer parte dos cálculos do Estado, visando também à maximização das forças e da vida. Assim, a biopolítica olhará para o corpo enquanto espécie, para gerir e dispor sobre a vida e sobre a morte, administrar processos biológicos, assegurar sua regulamentação (fazer viver), através de uma política de saúde6 6 Um exemplo de biopolítica pode ser identificado na pesquisa National Children's Stu dy, iniciada em 2007 nos Estados Unidos. O objetivo desse estudo é "encontrar formas de prevenção e tratamento das doenças infantis mais comuns. Detectar no desenvolvimento infantil tendências a problemas de saúde na vida adulta" ( Veja, 2004, p. 91). Tal programa acompanhará cem mil crianças do nascimento até os 21 anos de idade. Essa é considerada a maior pesquisa já realizada sobre saúde infantil nos Estados Unidos. que vise "intervir nas condições de vida, para modificá-las e impor-lhes normas" (idem, p. 86). Para gerir a população, a biopolítica utiliza-se dos saberes produzidos pela estatística e pela demografia, assim como da medicina7 7 A medicina e a higiene passam a ter um caráter de autoridade social incontestável em termos de infância, principalmente a partir das pesquisas de Louis Pasteur, no campo da epidemiologia, que teve efeitos concretos na redução da mortalidade infantil (Kuhlmann Júnior, 2001). para higienizar e medicalizar a população, para ampliar a expectativa de vida e aumentar as forças dos corpos, tornando-os mais saudáveis, mais úteis e mais organizados.

Foucault chama-nos a atenção, no primeiro volume de História da sexualidade (1988), para a emergência de novos mecanismos de poder ao longo do século XVIII e XIX que visavam ao controle das populações, por meio da gestão da vida biológica (estratégias biopolíticas) e do controle dos corpos individuais (técnicas disciplinares). Nesse sentido, o biopoder atua em dois níveis: do corpo individual e do corpo populacional; disciplina e biopolítica, como afirma Foucault, apoiam-se e complementam-se nas diferentes instituições em que o sujeito se encontra, através de operações individualizantes sobre o corpo e daquelas que visam aos fenômenos relativos à população.

No caso deste estudo, o governamento8 8 Governamento, seguindo a sugestão de Veiga-Neto (2002), é utilizado nesta pesquisa como abrangendo ações direcionadas e calculadas para que se possa obter determinados comportamentos e condutas, "distribuídas microscopicamente pelo tecido social" ( idem, p. 21). O governamento implica cálculos e estratégias para produzirem no indivíduo posturas, escolhas e desejos que tenham determinadas finalidades; no dizer de Foucault (1995, p. 244), "o exercício do poder consiste em 'conduzir condutas' e em ordenar a probabilidade". das condutas maternas e paternas visa à produção de mães e pais responsáveis e de crianças com um bom desenvolvimento físico, cognitivo e psíquico. A partir disso, aponto a produtividade e a positividade dessa forma de poder que visa à promoção da saúde e da educação da criança, bem como à produção de sujeitos mais inteligentes e equilibrados emocionalmente no futuro.

Nesse sentido, entendo que o manual analisado neste estudo busca governar os corpos infantis por meio de estratégias de poder/saber que atuam sobre as práticas promovidas por mães e pais. A vida do bebê, ao descrever os sujeitos infantis, sejam meninas ou meninos, desta ou daquela forma, os está constituindo, produzindo e estabelecendo formas de governá-los.

Nessa direção, o sujeito (no caso mães e pais) tem de ser visto como sujeito de suas escolhas; a ele deve ser dada diretamente a possibilidade de pensar que pode ser livre para fazê-las, pois, assim, os efeitos do poder se tornam invisíveis e mais produtivos, além de serem muito mais longos do que se fossem da ordem da violência.9 9 De forma simples, poderíamos diferenciar poder de violência da seguinte maneira: o primeiro governa a ação alheia, por meio de estratégias de poder/saber; já o segundo governa o corpo do outro, não sendo este "livre" para escolher (compreendendo sujeitos livres como aqueles que têm diante de si um campo de possibilidades de ação). As relações de poder, adverte-nos Foucault, só podem ocorrer em uma sociedade na qual os sujeitos são livres, sendo tais práticas de liberdade inseridas pela cultura.

Um dos ramos que levará a contento o propósito da medicina social será a puericultura. Como descreve Maria Manuela Ferreira (2000), esta estaria vinculada aos cuidados da criança do pré-natal aos 3 anos de idade, propondo "um caráter mais descentrado da criança, globalizante e coletivo, porque procurará questionar, articular e intervir eficazmente nas diferentes relações bio-socioculturais que em seu torno se entrecruzam" (p. 88), enquanto a pediatria se constitui mais pelo estudo fisiológico da criança entre os 0 aos 12 anos de idade. Para a autora referida,

[...] a Puericultura será, pelas suas atribuições, a ciência médica eleita por melhor se adequar a perseguir tais propósitos junto das populações e, em particular, das mães. Encontrará na educação, o mecanismo social privilegiado para desencadear uma cruzada civilizadora que se pretende não apenas curativa (a partir da Pediatria e centrada no indivíduo), mas preventiva, educativa, centrada no coletivo social. [...] onde os médicos são os arautos de uma nova ordem sociocultural. (p. 88-89).

A puericultura, dessa forma, endereçará seus preceitos às mães e às normalistas por meio de cursos e manuais, visando prioritariamente educar a população feminina em relação às crianças. Dessa forma, a educação também será alvo de investimentos dos médicos, pois a verdade médica precisava ser ensinada a mães e professoras para que uma infância higiênica, saudável e normal pudesse constituir -se e, consequentemente, produzisse uma nação forte e saudável.

O DESENVOLVIMENTO DA CRIANÇA IDEAL

Os capítulos que acompanham mês a mês o desenvolvimento do bebê, na edição de 2002 de A vida do bebê, iniciam com um resumo de como seria o bebê com aquela idade, acompanhado de dicas sobre o que fazer diante de determinados problemas típicos do período, assim como de prescrições de estímulos que devem ser propiciados à criança. Assim, além de enfermeira responsável pela saúde e fiscal do desenvolvimento do bebê, a mãe também deve ser pedagoga, ao promover determinados hábitos, atitudes e aprendizagens nas crianças, utilizando-se de diferentes estratégias de estimulação precoce através da brincadeira. No caso das crianças que apresentam deficiências ou atrasos, estas precisam ser estimulados tão logo se detectem tais problemas; caso contrário, há o risco de perdas irreparáveis. Para evitar isso, as pessoas que lidam com o bebê precisam observá-lo e conhecer as etapas do desenvolvimento infantil para vigiar e estimular adequadamente, como tão bem manuais como A vida do bebê ensinam. Tais descrições são apresentadas como universais10 10 No entanto, o pediatra também afirma que "cada criança levará o tempo que necessitar para sua adaptação" (De Lamare, 2002, p. 187), referindo-se a horários de mamadas e ao ritmo diferenciado entre o dia e a noite. Em outra passagem, aconselha a mãe que "não compare o desenvolvimento dos movimentos do seu filho com o de outros bebês [...] cada bebê tem um ritmo próprio de crescimento e desenvolvimento" (2002, p. 271). e incontestáveis, como por exemplo no trecho que afirma: "no primeiro mês de vida, o bebê já conhece a voz e o cheiro da mãe" (De Lamare, 2002, p. 186).

Nesse sentido, a faixa etária dos 0 a 2 anos é descrita a partir de presumíveis características cognitivas, afetivas e psicomotoras, e dividida em etapas definidas por graus de complexidade crescente. Relembre-se que a biologia e a psicologia do desenvolvimento nas últimas décadas têm procurado dividir e subdividir cronologicamente a vida humana "de modo a criar faixas etárias pelas quais cada ser humano 'deve' passar ao longo da sua vida, para ser considerado normal" (Popkewitz, 2002, p. 222). No entanto, esse autor ressalta que tudo isso pouco nos diz sobre os muitos sentidos que atribuímos às idades, já que o que de fato importa é como são inventadas essas diferentes idades do corpo e quais os efeitos que elas produzem no nosso mundo contemporâneo.

Rogoff (2005) relata, em sua pesquisa sobre as várias concepções de desenvolvimento infantil em diferentes culturas, que "uma abordagem cultural observa que comunidades distintas podem esperar que as crianças desenvolvam atividades em momentos muito diferentes durante a infância" (p. 16), acrescentando que muitos de nós se surpreenderiam com os calendários (sic) de desenvolvimento de outras comunidades e até poderíamos "considerá-los perigosos" (idem, ibidem).

Retornando à obra A vida do bebê, podemos visualizar como o pediatra se utiliza, por vezes, de estratégias generalizantes para falar das diferenças entre bebês, por meio de explicações dicotômicas, ou seja, ou se a criança é de um jeito ou de outro. Assim, em relação à idade de 2 meses, De Lamare define que seriam os dois tipos clássicos de bebê: "o primeiro é agitado, com sono leve, mamando sem prazer, tenso, apreciando qualquer companhia; o segundo é quieto, come bem, tem sono, não gosta de estranhos" (idem, p. 203).

Embora o pediatra afirme que cada bebê tem seu tempo, parece entender que há um limite para esse tempo. No caso da linguagem, a idade limite normal para a criança começar seu desenvolvimento na linguagem (falar) são os 18 meses. Depois disso, o pediatra recorrerá aos especialistas. Em outro trecho, o autor ressalta que é melhor ter um bebê que quer se movimentar e ir a todo lugar, mas que precisa ser constantemente vigiado, do que criar bebês muito quietos.

No desenvolvimento da criança, como já referido, a mãe é sempre apresentada como a figura central para o seu bom progresso cognitivo, emocional e físico. Assim, o bebê, aos 3 meses, já "reconhece a mãe e responde com todo o corpo à alegria de sua presença, balbucia e sorri diferente para ela" (idem, p. 219). Asserções como essas me fazem pensar se realmente todo bebê reage assim ante a presença materna, tendo em vista as diferentes composições familiares atuais.

A FORMAÇÃO DA PERSONALIDADE

Na edição de 1963, De Lamare define a personalidade como "o conjunto de particularidades próprias a cada indivíduo e que determina o seu comportamento nas diferentes ocasiões" (p. 83). Para o pediatra, "cada bebê tem sua personalidade desde o primeiro dia de vida e, aos sete meses, já começa a 'mostrar o gênio'" (2002, p. 286). Dessa forma, as mães devem ficar atentas, pois "as primeiras semanas de intimidade podem influenciar todo o seu futuro, e cada mãe tem de encontrar a melhor maneira de se relacionar com seu filho" (idem, p. 187). Nesse enunciado encontramos a fixidez e o caráter determinista do discurso promovido pelo especialista em questão.

A abordagem da formação da personalidade é dividida em cinco tópicos, nos quais são descritos comportamentos que o bebê deve realizar ou apresentar quando solicitado. Tais aspectos abrangem coordenação motora, sentimentos, memória e linguagem. Não obstante, é interessante destacar a relação entre o que é apresentado como inato e o que seria adquirido no ambiente. De Lamare parece creditar tanto ao meio quanto à hereditariedade as potencialidades ou não do desenvolvimento da criança. No entanto, para a perspectiva teórica pela qual estou avaliando tais manuais, a forma como nos constituímos como sujeito é organizada pelo mundo que nos rodeia e, como já dito anteriormente, a subjetividade é fabricada no contexto social e histórico no qual estamos inseridos.

Na formação da personalidade, encontramos descrições do que a criança já deveria fazer naquela idade específica, sendo o desenvolvimento infantil regulado a partir dessas avaliações mensais propostas pelo pediatra. Por exemplo, aos 8 meses o bebê "deverá estar engatinhando" (idem, p. 300). Para o pediatra, as crianças que não correspondem a esse padrão, como descrito anteriormente, deveriam ser encaminhadas para especialistas para avaliação das causas e para prescrição de práticas para promover tais habilidades.

Além disso, na edição de 2002, Piaget11 11 Especialista em psicologia evolutiva e epistemologia genética, filósofo e educador. Jean Piaget nasceu em Neuchâtel, Suíça, em 9 de agosto de 1886, e morreu em Genebra a 16 de setembro de 1980. , mais conhecido autor no campo da educação brasileira sobre as questões do desenvolvimento cognitivo da criança, é citado para explicar o comportamento pessoal e social. Para o autor suíço, nas palavras de De Lamare, "[...] no primeiro mês de vida as coisas aparecem e desaparecem como quem olha pela janela de um trem em movimento" (idem, p. 189), analogia utilizada por Piaget para explicar que os bebês dessa idade não se fixam ainda a nenhum objeto.

Outro exemplo da apropriação da teoria do desenvolvimento proposta por Piaget, em A vida do bebê, está na "classificação de brinquedos". Embora De Lamare (1963) não cite Piaget, os brinquedos e brincadeiras descritas entre os 0 e 2 anos acompanham os estágios descritos por Piaget e Inhelder (1998). Tais descrições do que supostamente uma criança é (ou deve ser) capaz de fazer, produzidas pela pediatria, psicologia do desenvolvimento e pela pedagogia, são tomadas como normas, sendo que os comportamentos que se afastam desse modelo são patologizados. Em relação a isso, Dahlberg, Moss e Pence (2003, p. 53) afirmam que

[...] a psicologia do desenvolvimento pode ser vista como um discurso que, além de contribuir para a construção de nossas imagens das crianças e para o nosso entendimento das suas necessidades, contribui para a construção e para a constituição de toda a paisagem da infância.

Prosseguindo nosso percurso pelas páginas do manual, vemos que o tema dos brinquedos, na edição de 1963, estava incluído no capítulo destinado à formação da personalidade do bebê. Já na edição de 2002, na maior parte das vezes, o tema do brinquedo constitui um tema tratado à parte, embora, em alguns meses, esteja incluído na parte da formação da personalidade. O brincar na cultura ocidental tem sido idealizado e encontra, nos discursos da biologia e na psicologia do desenvolvimento, explicações que o naturalizam, vendo-o como um "suporte essencial, positivo, espontâneo e natural do seu desenvolvimento [da criança]" (Ferreira, 2004, p. 82), sendo ele transformado em uma das características da infância.

Comparando-se as edições de 1963 e 2002, percebe-se que discursos provenientes do campo da psicologia ganharam mais espaço no manual, seja nos temas envolvendo o desenvolvimento e a educação, seja na referência à importância da relação mãe-bebê.

O discurso psicanalítico também encontra espaço na edição mais recente de A vida do bebê. No tópico "as meninas têm inveja do pênis do irmãozinho?" (2002), De Lamare aponta que pesquisas sobre comportamento têm comprovado "que algumas meninas podem apresentar problemas emocionais ocasionados pela ausência do pênis, com sentimentos de decepção e frustração" (p. 394). Para explicar isso, o pediatra chama a atenção para a doutrina de Freud, pela qual

[...] existe uma parte inconsciente na mente humana e cujo núcleo se desenvolve na primeira infância. Esta foi uma das maiores descobertas da Ciência; os sentimentos e as fantasias deixam suas marcas, que nunca desaparecerão, permanecendo ativas e exercendo poderosa influência no comportamento emocional, intelectual do indivíduo. (

idem

, p. 395)

Devemos destacar a força do discurso científico no manual em questão, assim como a ênfase a determinados discursos, como os da área psi, e o silenciamento de outros, como o feminista, que questiona o tipo de asserção citado anteriormente, que coloca a superioridade do pênis como algo natural.

O DESENVOLVIMENTO DA INTELIGÊNCIA

Como explicita De Lamare, desde o primeiro mês, pode-se verificar "se o desenvolvimento da inteligência do bebê está se processando normalmente" (2002, p. 189). Por isso, o bebê deveria responder positivamente às provas elaboradas por Charlotte Bühler e Hildegard Hetzer12 12 Charlotte Bühler (psicóloga alemã, nascida em 1893 e falecida em 1974) e Hildegard Hetzer (psicóloga alemã, nascida em 1899 e falecida em 1991) escreveram juntas o livro O desenvolvimento da criança do primeiro ao sexto ano de vida - testes: aplicação e interpretação. . Nesse contexto, desde o primeiro mês são apresentadas cinco provas ou testes (são usadas ambas as designações ao longo de A vida do bebê) que avaliam as respostas do bebê a reflexos, sons, estímulos visuais, além de monitorarem a coordenação motora e acompanharem seu comportamento em relação às pessoas, pois, já aos 6 meses, "a inteligência, ou raciocínio, e o relacionamento social do bebê tornam-se evidentes" (De Lamare, 2002, p. 271).

Embora o autor utilize os mesmos testes desde a edição de 1963 até a de 2002, De Lamare salienta que "pelo fato de as crianças hoje serem muito mais estimuladas do que as de antigamente, temos de ter cuidado na interpretação de alguns testes clássicos aplicados sem adaptá-los" (idem, p. 205). Apesar dessa ressalva, todas as provas, com mínimas alterações, seguem há quarenta anos os mesmos preceitos, o que nos poderia levar a concluir que, segundo De Lamare, a formação da personalidade e o desenvolvimento da inteligência são a-históricos. Burman (1999), em sua pesquisa sobre as prescrições da psicologia evolutiva às mães, questiona os testes de maneira geral, por suas pretensões de abranger a todos, assim como questiona "até que ponto a categorização de condutas reflete ou se refere a determinadas práticas culturais" (p. 246).

Para De Lamare (2002, p. 732), a inteligência

[...] não é resultado de simples processo mental, mas se compõe de um grupo de diferentes aptidões, incluindo pensamento abstrato, memória visual e auditiva, raciocínio causal, expressão verbal, capacidade de usar as mãos e compreensão do espaço. Todas as particularidades poderão ser avaliadas por testes, para verificar se a idade mental corresponde à idade cronológica, com apresentação expressiva através do quociente de inteligência (QI).

A partir disso, De Lamare (2002) explica-nos, com base em discursos muito professados em décadas anteriores, o QI das crianças com "retardo mental". Segundo ele, as crianças com QI entre 50 e 75 são "educáveis", por serem "ligeiramente retardadas", podendo, inclusive, "aprender um ofício simples, que não exija muita abstração" (p. 732). Já as crianças com QI entre 35 e 50 só poderiam ser "treinadas", enquanto aquelas com quociente abaixo de 35 são totalmente dependentes de outras pessoas.

O uso do teste de QI para determinar o grau de normalidade de um sujeito pode ser visualizado no caso do bebê "excepcional" (que compreende crianças que possuem retardo mental, autismo, esquizofrenia, fenilcetonúria13 13 Segundo o pediatra, essa doença ocorre "devido a um defeito congênito de uma enzima que toma parte na decomposição da fenilalanina, um aminoácido. A criança nasce perfeita, mas com os primeiros meses inicia um processo de deterioração cerebral com tendência à idiotia" (De Lamare, 2002, p. 733). ou galactosemia14 14 De Lamare define-a como uma "doença metabólica. No caso, o defeito congênito é a ausência de uma enzima que toma parte de decomposição da galactose, um açúcar encontrado no leite materno e no de vaca. O acúmulo de galactose no organismo leva a retardo mental, icterícia, catarata etc." (2002, p. 733). ). De Lamare observa que

[um] bebê que tem dificuldade em desenvolver habilidades musculares, que não consegue sentar, andar ou treinar seus hábitos higiênicos, [...] aquele que tem dificuldade no que se refere à inteligência, não realizando os testes correspondentes às diversas idades relatadas nos capítulos deste livro, é considerado um bebê excepcional. É excepcional porque necessita de cuidados e educação especiais - diferentes das normas habituais; precisa de auxílio e métodos diferentes para ser recuperado e educado. (idem, p. 731)

Em testes como o de QI, a diferença é vista como falta, déficit, incapacidade. Como explica Kincheloe (200415 15 Todas as traduções deste texto são de minha responsabilidade. ), a psicologia somente busca "um conjunto culturalmente específico de indicadores de aptidão. Desta maneira são recusadas tanto inteligências quanto indivíduos de culturas diferentes" (p. 19), porque são procurados determinados traços de inteligência com os quais a psicologia está familiarizada, privilegiando um determinado tipo de inteligência, principalmente aquela vinculada a funções mentais requeridas pela maioria dos testes de inteligência.

Esse mesmo autor também postula que a inteligência não é um fenômeno individual, mas social e histórico, considerando a noção de desenvolvimento infantil como uma invenção cultural, e as fases do desenvolvimento, como uma estratégia de monitoramento e vigilância sobre aqueles considerados anormais - aqueles que não correspondem ao padrão. Os especialistas, nessa lógica, assumiriam a posição de fiscais e recuperadores daqueles que se desviam.

É interessante chamar a atenção para a articulação que o especialista De Lamare faz entre a psicometria (testes de QI) e a psicologia do desenvolvimento. A quantificação das capacidades intelectuais significava objetividade e estava de acordo com os preceitos científicos da época e o modelo das ciências exatas. Para essa matriz de pensamento, as aptidões intelectuais são constantes ao longo da vida, possuem uma base genética, podem ser avaliadas por meio de testes que podem a priori determinar e rotular os indivíduos. Assim, ela quantifica para constatar. Dessa forma, os testes visavam enfatizar as diferenças entre os indivíduos dentro de um grupo, não havendo diferenças entre áreas de conhecimento, já que os testes eram iguais para todos.

Ao longo da primeira metade do século XX, surgiram diferentes autores que ampliaram e diversificaram os testes de inteligência, incluindo outros fatores (análise fatorial) para medir diferentes aspectos da inteligência. É interessante ressaltar que as diferentes culturas e o seu peso nos testes foram alvo de discussões por muitos psicólogos, embora a maioria considerasse que essas não teriam peso significativo no resultado das testagens.

Já nos anos 1950, a psicologia do desenvolvimento de Piaget mudou o enfoque acerca da inteligência, preocupando-se com a gênese dessa, estabelecendo estágios sequenciais e invariantes de desenvolvimento mental desde o nascimento até a adolescência, num modelo mais próximo das ciências naturais. Para essa corrente, as operações mentais são processos de busca e processamento de informações, que podem ser avaliadas por provas que permitam ao examinador perceber como o indivíduo responde a determinadas situações. Ao contrário da psicometria, de acordo com área a ser testada, há diferentes abordagens. Assim, o que se busca nas provas na psicologia do desenvolvimento é verificar se o sujeito é capaz ou não de fazer tal ação, descrevendo-a para intervir eventualmente.

No entanto, ambas as abordagens acreditam em elementos universais, dando pouco (ou nenhum) peso às questões históricas e culturais que atuam sobre o sujeito, diferentemente de outras abordagens, como a Escola Soviética, que ficou conhecida no Brasil pelos trabalhos de Vygotsky. Além disso, psicometria e psicologia do desenvolvimento acreditam na determinação genética e na maturação da inteligência, assim como consideram uma determinada racionalidade como definição de inteligência (Almeida, 1983). Ademais, tais testes, a partir de algumas abordagens, são vistos como medindo outras variáveis, como classe social, raça/etnia, gênero, dentre outras.

APONTAMENTOS DA PESQUISA

Foi buscando transformar minha relação com os manuais de puericultura que realizei a pesquisa da qual este trabalho é um recorte, que os mostrou como muito produtivos ao colocarem em marcha discursos, saberes, condutas, subjetividades e práticas.

Como foi possível verificar no manual analisado, a mãe é responsabilizada por grande parte dos problemas de saúde e da educação das crianças, desconsiderando a realidade que vive essa mãe e a rede de proteção social a que ela tem acesso, além de outras dimensões e peculiaridades que podem intervir.

Assim, as crianças em A vida do bebê devem ser constantemente testadas, descritas e analisadas no detalhe por suas mães - a partir das provas realizadas mês a mês. Através da vigilância permanente do seu bebê e do acompanhamento do que a criança já é capaz de fazer, a mãe torna-se uma fiscal do desenvolvimento da criança, devendo recorrer aos experts, caso ela observe algo anormal nesta. Além disso, a mãe extrai verdades sobre aquele sujeito objeto de vigilância, verdades essas que serão retranscritas à criança a partir dos discursos da pedagogia e da psicologia, dependendo da posição que ela ocupa na curva de normalidade. Assim, esse exame da criança começa antes mesmo de ela estar inserida numa instituição, como, por exemplo, a escola, e inicia em casa, a partir do olhar materno. Dessa forma, o manual, ao intervir na família através desses exames mensais, por exemplo, visa prevenir futuros problemas e normalizar aqueles encontrados.

Em síntese, o trabalho aqui apresentado, ao analisar o manual A vida do bebê, do pediatra Rinaldo De Lamare, em duas edições, a saber, 1963 e 2002, procurou enfatizar a análise das estratégias de governamento da maternidade e da paternidade para promoção de biopolíticas que buscassem assegurar bebês normais. No caso desse manual, arrisco-me a dizer que A vida do bebê faz parte de um dispositivo que visa, através de mães bem instruídas, promover biopolíticas que buscam a constituição de crianças saudáveis, disciplinadas, inteligentes e normais, assegurando através da medicalização das crianças e das famílias controle social pela medicina.

Dessa forma, reafirmo a dimensão pedagógica do manual ao ensinar mães e pais como cuidarem e educarem seus bebês, ao mesmo tempo em que atendia aos anseios maternos nas horas de aflição; ensinamentos estes que passaram de geração para geração em muitas famílias, por meio da doação do manual às novas grávidas.

Compreendo que o trabalho aqui empreendido poderia ser multiplicado em diversas outras temáticas e olhares, uma vez que os manuais sobre a infância são poderosos instituidores/constituidores de formas de ser criança, de ser mãe, de ser pai, de ser mulher, de ser homem, pelas formas sedutoras com que subjetivam pais e mães por meio de um discurso científico/especializado sobre a temática da infância.

Recebido em novembro de 2010

Aprovado em julho de 2011

SOBRE O AUTOR

Cláudia Amaral dos Santos é doutora em educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora substituta do Curso de Pedagogia da mesma instituição e professora da Educação Infantil da Rede Municipal de Porto Alegre.

E-mail: camarals@yahoo.com.br

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  • 1
    Utilizo essa edição por ter sido a edição mais antiga a que tive acesso neste trabalho.
  • 2
    Utilizo essa edição por ter sido a última lançada até a morte do autor (em 2002). Em 2009, foi lançada uma nova edição coordenada por outro médico - Geraldo Leme - que coordenava então a Clínica Dr. De Lamare no Rio de Janeiro.
  • 3
    Uso itálico em algumas expressões, como observado por Rosa Silveira (2002), para marcar que tal registro pertence a outro discurso, ou pelas expressões serem parcialmente inadequadas ou passíveis de reserva de acordo com o objetivo do trabalho aqui proposto.
  • 4
    A população até o século XVIII era considerada um dos elementos do soberano, juntamente com o território e as riquezas. A partir desse século, a população deixa de ser uma noção jurídica política de sujeitos e passa a ser um objeto técnico político de uma gestão e governo (Foucault, 2007).
  • 5
    Como a população é composta de indivíduos diferentes, cujo comportamento não se pode prever, a tecnologia governamental procurará articular o interesse individual ao do Estado, através da produção do interesse coletivo (governamento do desejo da população).
  • 6
    Um exemplo de biopolítica pode ser identificado na pesquisa
    National Children's Stu dy, iniciada em 2007 nos Estados Unidos. O objetivo desse estudo é "encontrar formas de prevenção e tratamento das doenças infantis mais comuns. Detectar no desenvolvimento infantil tendências a problemas de saúde na vida adulta" (
    Veja, 2004, p. 91). Tal programa acompanhará cem mil crianças do nascimento até os 21 anos de idade. Essa é considerada a maior pesquisa já realizada sobre saúde infantil nos Estados Unidos.
  • 7
    A medicina e a higiene passam a ter um caráter de
    autoridade social incontestável em termos de infância, principalmente a partir das pesquisas de Louis Pasteur, no campo da epidemiologia, que teve efeitos concretos na redução da mortalidade infantil (Kuhlmann Júnior, 2001).
  • 8
    Governamento, seguindo a sugestão de Veiga-Neto (2002), é utilizado nesta pesquisa como abrangendo ações direcionadas e calculadas para que se possa obter determinados comportamentos e condutas, "distribuídas microscopicamente pelo tecido social" (
    idem, p. 21). O governamento implica cálculos e estratégias para produzirem no indivíduo posturas, escolhas e desejos que tenham determinadas finalidades; no dizer de Foucault (1995, p. 244), "o exercício do poder consiste em 'conduzir condutas' e em ordenar a probabilidade".
  • 9
    De forma simples, poderíamos diferenciar poder de violência da seguinte maneira: o primeiro governa a ação alheia, por meio de estratégias de poder/saber; já o segundo governa o corpo do outro, não sendo este "livre" para escolher (compreendendo sujeitos livres como aqueles que têm diante de si um campo de possibilidades de ação).
  • 10
    No entanto, o pediatra também afirma que "cada criança levará o tempo que necessitar para sua adaptação" (De Lamare, 2002, p. 187), referindo-se a horários de mamadas e ao ritmo diferenciado entre o dia e a noite. Em outra passagem, aconselha a mãe que "não compare o desenvolvimento dos movimentos do seu filho com o de outros bebês [...] cada bebê tem um ritmo próprio de crescimento e desenvolvimento" (2002, p. 271).
  • 11
    Especialista em psicologia evolutiva e epistemologia genética, filósofo e educador. Jean Piaget nasceu em Neuchâtel, Suíça, em 9 de agosto de 1886, e morreu em Genebra a 16 de setembro de 1980.
  • 12
    Charlotte Bühler (psicóloga alemã, nascida em 1893 e falecida em 1974) e Hildegard Hetzer (psicóloga alemã, nascida em 1899 e falecida em 1991) escreveram juntas o livro
    O desenvolvimento da criança do primeiro ao sexto ano de vida - testes: aplicação e interpretação.
  • 13
    Segundo o pediatra, essa doença ocorre "devido a um defeito congênito de uma enzima que toma parte na decomposição da fenilalanina, um aminoácido. A criança nasce perfeita, mas com os primeiros meses inicia um processo de deterioração cerebral com tendência à idiotia" (De Lamare, 2002, p. 733).
  • 14
    De Lamare define-a como uma "doença metabólica. No caso, o defeito congênito é a ausência de uma enzima que toma parte de decomposição da galactose, um açúcar encontrado no leite materno e no de vaca. O acúmulo de galactose no organismo leva a retardo mental, icterícia, catarata etc." (2002, p. 733).
  • 15
    Todas as traduções deste texto são de minha responsabilidade.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Out 2011
    • Data do Fascículo
      Ago 2011

    Histórico

    • Aceito
      Jul 2011
    • Recebido
      Nov 2010
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