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Socioanálise de pré-noções no discurso jornalístico sobre educação

Social analysis of pre-notions about education in the media

Resumos

A partir da análise de reportagens publicadas em duas revistas semanais de grande circulação nacional, esta pesquisa investiga as formas assumidas pelas pré-noções acionadas por agentes do campo jornalístico na produção e difusão de informações e pontos de vista sobre a educação. Parte-se da hipótese segundo a qual, em razão da posição ocupada pelo campo jornalístico na economia geral de bens simbólicos, as práticas educativas de professores e demais agentes sociais são conformadas por uma determinada construção social da realidade, isto é, por princípios de visão da educação impostos por jornalistas, o mais das vezes sutilmente, tanto ao campo educacional quanto ao espaço social geral.

educação; jornalismo; pré-noções


The text analyses articles published in two major weekly magazines with a large national circulation and aims at investigating the proportion of those pre-notions disclosed by media professionals in the production and broadcasting of information and points-of-view on education. In view of the position held by the media in the general economy of symbolic goods, we start from the hypothesis according to which the educational practices of teachers and other social agents are shaped by a given social construction of reality, that is, by principles and views of education imposed, generally in a subtle fashion, by journalists and the general social space.

education; journalism; pre-notions


ARTIGOS

Socioanálise de pré-noções no discurso jornalístico sobre educação

Social analysis of pre-notions about education in the media

Gilson R. de M. Pereira; Maria da Conceição L. de Andrade

Universidade Regional de Blumenau, Mestrado em Educação

RESUMO

A partir da análise de reportagens publicadas em duas revistas semanais de grande circulação nacional, esta pesquisa investiga as formas assumidas pelas pré-noções acionadas por agentes do campo jornalístico na produção e difusão de informações e pontos de vista sobre a educação. Parte-se da hipótese segundo a qual, em razão da posição ocupada pelo campo jornalístico na economia geral de bens simbólicos, as práticas educativas de professores e demais agentes sociais são conformadas por uma determinada construção social da realidade, isto é, por princípios de visão da educação impostos por jornalistas, o mais das vezes sutilmente, tanto ao campo educacional quanto ao espaço social geral.

Palavras-chave: educação; jornalismo; pré-noções

ABSTRACT

The text analyses articles published in two major weekly magazines with a large national circulation and aims at investigating the proportion of those pre-notions disclosed by media professionals in the production and broadcasting of information and points-of-view on education. In view of the position held by the media in the general economy of symbolic goods, we start from the hypothesis according to which the educational practices of teachers and other social agents are shaped by a given social construction of reality, that is, by principles and views of education imposed, generally in a subtle fashion, by journalists and the general social space.

Key-words: education; journalism; pre-notions

Pré-Noções. Conceito durkheimiano. Idéias prontas,

crenças do senso comum, falsas evidências que escapam

à reflexão crítica e que o sociólogo deve descartar para

alcançar o conhecimento científico dos fatos sociais.

Accardo e Corcuff, 1986, p. 233

Introdução

Este artigo expõe os resultados de uma pesquisa voltada a descrever as pré-noções mobilizadas por profissionais da comunicação jornalística em suas reportagens sobre assuntos direta ou indiretamente relacionados à educação. O apetrecho empírico submetido a exame são matérias publicadas durante um ano, de outubro de 2000 a outubro de 2001, em duas revistas semanais de grande circulação nacional, Isto É e Veja. Esses hebdomadários foram selecionados em razão de suas legitimidades jornalísticas e de, seguramente, concentrarem a maior fatia do poder de imposição de arbitrários do jornalismo impresso. Quer dizer, maior poder de inculcação de conteúdos culturais conscientes e inconscientes que, pelo fato de serem arbitrários, ocultam as condições sociais de sua produção, contribuindo dessa forma para "formar opinião", sem, no entanto, explicitar os processos sutis de construção de crenças e idéias.

Situados no pólo dominante do campo jornalístico e gozando de elevado capital simbólico manifesto no prestígio e na respeitabilidade junto aos poderes e aos agentes alocados nos postos médios e altos do espaço social, além de pertencerem a grandes empresas, os periódicos mencionados constituem lugares privilegiados para a análise dos modos mediante os quais são construídos, a partir de determinadas condições sociais, pontos de vista sobre a educação, hábitos e comportamentos educativos, práticas pedagógicas, condição docente, legislação educacional, assim como sobre os desafios e perspectivas da educação nacional.

Foram consultados 285 textos, englobando desde os de conteúdos imediatamente educacionais (aparecendo nas seções "Educação" e "Educação & Cidadania", de Isto É, ou sem lugar definido e em colunas assinadas, como em Veja) até informes publicitários e reportagens com temas indiretamente ligados à educação (aparecendo referências educacionais em assuntos como "Comportamento", "Mulher", "Carreira", entre outros). O Quadro 1, a seguir, sintetiza as fontes do material empírico.


O que se pretende neste texto é, relativamente à educação, delinear os contornos daquilo que Accardo et al. (1995, p. 49) chamou de "filosofia espontânea das redações", responsável, em razão das potencialidades do campo jornalístico de imposição simbólica, pela criação e mobilização, na assim chamada "opinião pública", em geral, e no campo educacional, em particular, de toda uma gama de pré-noções por meio das quais se consagra uma visão legítima, pois legitimada pela imprensa, da educação e das coisas educacionais (sobre a abordagem de temas educacionais em jornais cotidianos, conferir Costa, 1995).

A produção jornalística da educação

Não seria precipitado afirmar, analisando as condições sociais da produção jornalística, que, de todos os campos simbólicos, o jornalístico é o mais heterônomo, o mais aberto às demandas externas. Embora a produção jornalística seja orientada pela concorrência específica do campo, seu destino final é atingir o maior número possível de não-jornalistas. Essa abertura, desencadeadora de feroz concorrência interna pelo público externo, lança luz tanto no fato de os jornalistas serem particularmente sujeitos às dicotomias socialmente produzidas (micro/macro, interno/externo, público/privado, alto/baixo, entre outras) como nas formas e conteúdos assumidos por um tipo de trabalho submetido a um conjunto de coações cruzadas. Essas coações são: as advindas do ritmo temporal, "a perpétua urgência na qual trabalham os jornalistas" (Accardo et al., 1995, p. 27), ou seja, a perseguição desenfreada à informação "em primeira mão" para atender às demandas do público; as econômicas (o volume de capital econômico constitui um indício da posição da empresa jornalística no interior do campo); as políticas, decorrentes da reverência aos poderes e ao mercado (Halimi, 1998, p. 63), e as propriamente simbólicas, proporcionadas pela concorrência entre os pares.

Sofrendo os efeitos dessas coações, agravadas pelo fato de ocuparem posições relativamente desprestigiadas no universo simbólico (sendo a escrita jornalística estimada como menor, perecível, segundo as classificações intelectuais), os jornalistas encontram no carisma "ser percebido socialmente é ser percebido pelos jornalistas" (Accardo et al., 1995, p. 33) e na força de imposição acumulada pelo campo (jornalistas e políticos compõem, não sem conflitos internos e com elevada dose de cumplicidade e reverência mútuas, o campo do poder), os rendimentos materiais e simbólicos da profissão. Essas condições de produção põem o jornalista num estado de forte adesão à ordem social estabelecida, muito embora essa adesão adquira, às vezes, as modalidades transfiguradas da crítica e da denúncia "Eles [os jornalistas] proclamam-se 'contrapoder'... Vigorosos, desrespeitadores, porta-vozes dos obscuros e dos sem-voz, fórum da democracia viva" (Halimi, 1998, p. 13). Considerando o ritmo da profissão e os compromissos assumidos na aliança de seu campo com os poderes temporais, pacto cada vez mais forte e indisfarçável à medida que se sobe nas hierarquias sociais, o jornalista encontra-se em geral incapaz de "parar para refletir e discutir, pondo-se à distância das coisas e de si mesmo" (Accardo et al., 1995, p.42).

Visto que os jornalistas devem a relevância social da profissão e o poder de que dispõem ao fato de deterem o monopólio da produção e difusão em larga escala da informação e da opinião, e considerando também que os meios jornalísticos representam para a maioria das pessoas os únicos instrumentos de acesso não só aos temas do debate público como também às categorias espontâneas por meio das quais formam uma "opinião pessoal" sobre os mesmos (Bourdieu, 1997, p. 65-66), então se é levado a suspeitar que parte, senão a maior parte, dos pontos de vista sobre a educação (assim como sobre a política, a saúde, a violência, a economia etc.), amplamente partilhados pela população, são produzidos e difundidos pelo campo jornalístico.

Essa produção e difusão são realizadas tanto a partir dos interesses propriamente jornalísticos a notícia, o furo, as pressões da audiência e vendagem, capazes de condicionar as matérias e operar, sob as formas mais variadas de censura interna, uma verdadeira seleção tanto na forma como no conteúdo dos assuntos quanto do sistema de crenças e valores característicos desse setor de atividade. Isso é suficiente talvez para sugerir que as opiniões sobre a educação, ou seja, os pontos de vista tornados públicos pela ação da imprensa, são filtrados pelas formas jornalísticas de classificação, à semelhança das formas primitivas de classificação, estudadas por Durkheim e Mauss (1969), e pelos esquemas de pensamento e ação, percepção e sentimento acionados tacitamente por agentes do campo jornalístico em seu ofício cotidiano.

Após os anos de 1960 na Europa e após a década de 1980 no Brasil, os jornalistas passaram a competir com os políticos em torno da definição legítima da atividade política por meio da ação das equipes de marketing político, visível, sobretudo no trabalho dos conselheiros publicitários e peritos em sondagens eleitorais, aptos e dispostos a negociarem seus serviços no mercado, operando uma definição da prática política fundada na encenação midiática (Champagne, 1996, p. 33).

Do mesmo modo, os jornalistas passam a concorrer com os profissionais da educação pela imposição da visão legítima sobre a educação. No Brasil, isso se dá a partir da expansão do ensino privado processo correlativo à diversificação interna das elites dirigentes ocorrida desde o Governo Juscelino Kubitschek. A definição de educação e de seus processos, explicitada pela intermediação de julgamentos caucionados por pré-noções, cuja força normativa reside na pregnância com o cotidiano e com o modo jornalístico de interpretar esse cotidiano, sofre uma modelagem talvez tão profunda quanto a operada no debate político. A crença jornalística de como deve ser a educação causa efeitos homólogos aos efeitos decorrentes das crenças jornalísticas sobre o universo político.

Efeitos jornalísticos na educação

Na análise de matérias jornalísticas não se pode ignorar que os diversos campos são constantemente modificados pela ação simbólica do campo jornalístico. Essa modificação é às vezes profunda, a exemplo da já mencionada metamorfose do campo político. O poder de difusão de crenças, aliado à abordagem jornalística dos fatos sociais, inteiramente voltada à banalização e geralmente à simplificação deformadora, contribui para conformar os pontos de vista da população sobre os mais diversos assuntos. No caso da educação, a melhor escola, o modo de educar crianças, a competência pedagógica, as funções da universidade, o bom professor, entre outros temas, enfocados desde uma mistura de senso comum e erudição pedagógica, são disseminados e inculcados a partir das interpretações operadas pelas formas jornalísticas de classificação, modificando nos agentes (professores, pais, gestores, entre outros) não apenas suas percepções sobre a educação, como também suas próprias práticas educativas. Esse "efeito no real" (Champagne, 1998, p. 171-174), ou seja, a produção de modificações nos campos, decorrente de enunciados performativos, atingindo as populações diferencialmente de acordo com as classes e frações de classes, constitui um dado estrutural das sociedades contemporâneas.

Abordando assuntos considerados menores, segundo as taxionomias definidoras dos tópicos nobres da pauta (como os de política nacional e internacional, ou os de economia), e, em razão da familiaridade, demasiado evidentes, e conduzido quase inevitavelmente a pensar de maneira simplificadora, certamente não por má-fé ou incompetência, mas em razão da adesão dóxica ao universo mental da imprensa, mais inclinado, devido às coações estruturais advindas da concorrência, a homogeneizar e apagar as sutilezas e desprezar as diferenças, o jornalista da matéria educacional é um dos mais dispostos, sem disso dar-se conta, a introduzir, nos escritos jornalísticos, seus pressupostos e categorias de percepção e, com isso, produzir no âmbito educacional o "efeito no real", antes mencionado, decorrente dos pontos de vista partilhados por ele e seus pares.

Os próprios jornalistas, embora não tenham consciência da introdução de pré-noções nas reportagens, parecem dar-se conta do seu efeito no real. Não é incomum matérias nas quais os profissionais da comunicação jornalística reconhecem a influência direta, no campo educacional, de suas notícias e pontos de vista. Por exemplo, na matéria "Fórmula do saber" (Isto É, 1626, 29 nov. 2000, p. 43), consta que o Secretário de Educação do Estado da Bahia conheceu o "Programa de Enriquecimento Instrumental", do educador romeno R. Feuerstein, "ao ler a reportagem 'Deixe-me pensar', de Isto É (edição 1496, de junho de 1998)"; em matéria sobre alfabetização, registra-se que "um programa com esse objetivo [formar professores alfabetizadores] será lançado no próximo ano pelo Ministro da Educação, Paulo Renato Souza. O projeto estava em estudos, e o Ministro tornou-o prioritário depois da publicação da reportagem 'Ensino reprovado', na edição de Isto É, de 10 de maio, que denunciou a aprovação automática" ("Com a palavra", Isto É, 1619, 11 out. 2000, p. 56); em matéria sobre a venda de diplomas em universidades, lê-se que "o Ministro da Educação vai formar uma comissão de sindicância para apurar as denúncias de facilitação de diplomas na Universidade Iguaçu e nas Faculdades Integradas de Filosofia, Teologia, Ciências Humanas e Sociais. Informado por Isto É, Paulo Renato afirmou que, se as irregularidades forem confirmadas, o passo seguinte será a intervenção" ("Sacoleiros do ensino", Isto É, 1646, 18 abr. 2001, p. 42).

Caucionados pela importância do jornal ou revista, importância essa medida por índices tais como o capital econômico da empresa, a fatia de mercado, as credenciais dos jornalistas, a proximidade com os poderes temporais, entre outros (Bourdieu, 1997, p. 58), os pontos de vista jornalísticos dissimulam, sob a égide de mitos como a imparcialidade e independência da imprensa, a modelação operada na própria matéria. Essa modelação, entretanto, não é proposital, nem consciente, nem tampouco irracional. É produto do encontro ou, mais ainda, da harmonia tácita entre os esquemas de percepção e ação do jornalista, produzidos na prática e para a prática, e as estruturas objetivas do campo jornalístico. Como observa Bourdieu (1991, p. 116),

[...] é sobre a base da cumplicidade originária entre as estruturas cognitivas e as estruturas objetivas das quais elas são o produto que se instaura a submissão absoluta e imediata que é aquela da experiência dóxica do mundo natal, mundo sem surpresas onde tudo pode ser percebido como natural e evidente.

Configura-se, assim, a situação paradoxal na qual a educação não parece despertar nos jornalistas, justamente em razão das evidências, a particular vigilância que o assunto exige.

Em se tratando, como já mencionado, da difusão em larga escala de informações e opiniões, o peso do órgão de imprensa no campo jornalístico é proporcional ao seu "poder de fazer crer" potencialmente disponível. Uma vez mobilizado sistematicamente, o poder de fazer crer opera nos usuários da informação um patamar mais ou menos comum de acordo, um consenso que percorre todos os graus do espectro de convicções, um entendimento ao mesmo tempo "lúcido e confuso" (Accardo et al., 1995, p. 43), capaz de exercer, sobre os agentes sociais, pressões invisíveis e efeitos simbólicos muito eficientes. Para além de eventuais boa ou má vontades, o fato é que as práticas educativas de professores e demais agentes sociais são conformadas por uma determinada construção social da realidade, isto é, por princípios de visão da educação, impostos, o mais das vezes sutilmente, por jornalistas ao campo das práticas educacionais.

O efeito de intrusão

O poder do campo jornalístico de impor arbitrários aos demais campos, inclusive ao educacional, pode ser aquilatado considerando que o jornalismo está mais inclinado a fazer difundir seus julgamentos em favor do "comercial" (o útil, o vendável, o prático, "novas faculdades de negócios"), por oposição ao "puro" (o desinteressado, o não imediatamente útil, o conhecimento teórico, "faculdades e universidade tradicionais"), e do "privado", por oposição ao "público". Nessa lógica, o campo jornalístico reforça as posições dos agentes e instituições situados nos diversos campos mais próximos dos pólos comercial e privado. Esse efeito, chamado por Bourdieu (1997, p. 109) de "efeito de intrusão", "se exerce quanto mais os campos que o sofrem estão, eles próprios, mais rigidamente sujeitos, estruturalmente, a essa lógica". Na educação, um pólo sujeito a esse efeito pode ser exemplificado pelo patronato educacional e por todos os agentes, assim como instituições, situados no limite entre a educação e os negócios. Levando em conta que o campo educacional é, conquanto seja longa sua trajetória histórica de diferenciação, ainda bastante heterônomo, com crônicos problemas de legitimidade, e considerando ainda a expansão quase inteiramente sem regulamentação do ensino privado no país, é de supor que a incidência de mestrados profissionalizantes e mestrados de negócios, a prevalência de um tipo de pensamento mais inclinado à instrumentalidade e aos conhecimentos práticos e úteis, assim como a consagração da idéia de que a educação é um bom negócio, decorram da intrusão de categorias de percepção, hierarquias axiológicas e esquemas práticos de percepção produzidos pela imprensa.

De fato, seria suficiente recensear algumas reportagens para apreender os modos pelos quais o campo jornalístico faz incidir sobre o pólo mais aberto às demandas externas do campo educacional, o da mencionada interface educação e negócios, todo o poder de legitimação de que dispõe. Assim é quando se comemora um exemplo de "sucesso" na universidade pública, o Instituto de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração (Coppead/ UFRJ), "escolhido pelo jornal inglês Financial Times como uma das 10 melhores escolas do mundo na área de negócios" ("Aula magna", Isto É, 1636, 17 fev. 2001, p. 44). Esse instituto é considerado pela reportagem, e nisso reside o selo de sua excelência, "pouso obrigatório para as maiores empresas e instituições financeiras do país". A adesão dóxica às demandas do patronato alia-se à admiração ingênua pelo glamour do poder, quando se informa que um alto executivo da Ambev "desce de helicóptero no campus para recrutar os alunos do Coppead". Já na reportagem "Além do inglês" (Veja, 43, ano 33, 25 out. 2000, p. 172), faz-se o recenseamento dos idiomas economicamente atrativos. Fica-se sabendo quais os novos idiomas mais valorizados pelas empresas: "o que antes era um tópico do currículo que valorizava o profissional tornou-se um requisito obrigatório nas grandes empresas, nestes tempos de globalização".

Nas reportagens acima mencionadas, ao reforçar as disposições éticas e políticas dos homens de negócios, o jornalismo legitima o pólo privado da educação. Por um efeito de duplicação, há reportagens reforçando, simultaneamente, tanto o pólo dos negócios quanto o pólo do conhecimento útil e prático ("nada de debates sem-fim"). Operando verdadeira modificação na função docente, no papel da universidade, e estabelecendo hierarquias curriculares, a matéria "A prática na teoria" (Veja, 40, ano 33, 4 out. 2000, p. 153-154) é exemplar na construção de pré-noções inclinadas tanto a inculcar a idéia segundo a qual a função do ensino universitário é formar pessoas com o perfil desejado pelas empresas quanto a desvalorizar o conhecimento não economicamente rentável, ou seja, não manifestamente implicado na gestão de negócios. A oposição "gente de mercado" versus "intelectuais puros", estabelecida na reportagem, é correlativa à dualidade que fixa, de um lado, o interesse, o comercial e a razão prática, ou seja, as disposições mais desejadas nos "empresários com alta escolaridade", e, de outro, o desinteresse, a dádiva e a razão pura, disposições relegadas aos "educadores tradicionais".

A última novidade em matéria de ensino na área de administração são as escolas montadas por gente de mercado, e não por intelectuais puros, aqueles criados nas chamadas torres de marfim. [...] Os professores do curso são os contadores que verificam os balanços de companhias e planejam privatizações de estatais. [...] Quem está investindo em educação, agora, são empresários com alta escolaridade, que conhecem o tipo de gente e as habilidades que as empresas brasileiras estão procurando. "Os educadores tradicionais precisam se mexer porque já estão perdendo o bonde da História", diz Luiz Carlos Queirós Cabrera, sócio da PMC Amrop International, empresa especializada na contratação de profissionais. [...] Os cursos são dados em salas de aula que reproduzem escritórios. Lousa e giz são considerados instrumentos pré-históricos. [...] Há terminais ligados à bolsa de valores. [...] Nada de modismos, de debates sem-fim sobre as idéias do último guru da administração. [...] O mercado mundial de educação é de aproximadamente 2 trilhões de dólares. Ao lado da mídia e da internet, a educação é pontada como um dos três maiores centros de negócios do futuro. [...] Muitas universidades não estão conseguindo acompanhar a evolução pedagógica e tecnológica. Defasadas, formam profissionais cada vez mais distantes da realidade das empresas. [...] "A educação é um ótimo negócio", diz Cláudio Haddad, um dos donos da Ibmec. (Veja, 40, ano 33, 4 out. 2000, p. 153-154)

Esses exemplos mostram como os efeitos do mercado, pela intermediação do campo jornalístico, fazem-se pesar na educação. Seria o caso de sugerir a pertinência de um outro estudo destinado a descrever, a partir da análise de realidades empíricas construídas como casos particulares, os processos mediante os quais esses efeitos modificam a estrutura do campo educacional.

O círculo dos julgamentos

Seria talvez suficiente se deter nos títulos das reportagens consultadas para esclarecer as formas do julgamento jornalístico sobre a realidade educacional. Semelhante aos veredictos endereçados aos demais "problemas sociais" — violência, drogas, guerra, prostituição, poluição, terrorismo, entre outros —, o mecanismo acionado nos julgamentos jornalísticos sobre a educação é o de "atribuir indistintamente ao conjunto de uma categoria extremamente diversificada e dispersa um 'estado' (de saúde ou de espírito) em si mesmo mal identificado e mal definido" (Bourdieu & Champagne, 1998, p. 219). Toda a realidade é simplificada pela ação cognitiva de esquemas de percepção que, por assim dizer, borram as nuanças e suprimem os matizes. Desse modo, por meio de um círculo de juízos que se repetem, voltados ao convencimento do leitor, estabelecem-se modelos de escola, definem-se os problemas do sistema universitário, apontam-se os acertos e equívocos, os males e virtudes da educação nacional, assim como, por chamadas que às vezes não escondem o desprezo, se define a condição docente. No Quadro 2, a seguir, listam-se alguns exemplos desses julgamentos.


Se na produção de matérias jornalísticas sobre temas associados às ciências naturais é quase inevitável a intervenção do cientista-jornalista, tipo híbrido que abdicou da carreira propriamente científica, obtendo na folha de jornal ou na revista de divulgação recompensas materiais e simbólicas mais instantâneas, não encontradas na demorada competição do campo científico, isso parece dispensável na produção e difusão de pontos de vista jornalísticos sobre a educação, embora se constate a intervenção de economistas e cientistas políticos (na seção "Ponto de Vista", de Veja). Comum a todos, desde o nascimento, a educação, como processo de integração dos agentes na ordem social, é a mais familiar das familiaridades, e isso confere ao jornalista (e a qualquer um) o direito e a suposta competência, percebida por todos como evidente, de emitir juízos sobre a educação, quase sempre prescindindo da mediação das categorias produzidas no campo da análise educacional, às vezes até traduzindo-as para o sistema de decodificação, valores e esquemas de percepção propriamente jornalísticos.

Destarte, nada detém o articulista de preconizar uma revolução na educação pela modificação arquitetônica das salas de aula ("Revolucione a sala de aula", Veja, 42, ano 33, 18 out. 2000, p. 23). Partindo da oposição entre uma sala disposta de modo que o centro das atenções seja o professor ("uma mesa de professor bem imponente, em cima de um tablado. As aulas eram centradas no professor, o locus arquitetônico da sala, e nunca no aluno"), e outra "construída como anfiteatro, onde os alunos ficavam num plano acima do professor, não abaixo", o autor é levado a sugerir mudanças comportamentais nas quais podem ser identificadas todas as pré-noções semi-eruditas das disciplinas destinadas aos negócios (treino, consenso, liderança, habilidade para resolver problemas, espírito de colaboração):

Se você ainda é um aluno, faça uma pequena revolução na próxima aula. Coloque as cadeiras em semicírculo. Identifique um problema de sua comunidade, da favela ao lado, da própria faculdade ou escola, e tente encontrar uma solução. Comece a treinar sua habilidade de criar consenso e liderança. Se o professor quiser colaborar, melhor ainda. Lembre-se de que na vida você terá de ser aprovado pelos seus colegas e futuros companheiros de trabalho, não pelos seus antigos professores. (Veja, 42, ano 33, 18 out. 2000, p. 23)

A exemplaridade de "Revolucione a sala de aula" pode ser reforçada considerando que a argumentação está alicerçada em uma pedagogia simultaneamente espontânea e erudita: na sala em anfiteatro, o objetivo "não era a transmissão de conhecimentos por parte do professor", mas "exercitar nossa capacidade de raciocínio, de convencer nossos colegas, de forma clara e concisa, sem 'encher lingüiça', indo direto ao ponto". Talvez se possa ver aí a transliteração jornalística, simplificada e, por isso, evidente e em si mesmo maldefinida, do conflito entre a pedagogia tradicional e as pedagogias não-diretivas ou assemelhadas.

Certamente, é preciso muita pregnância com as oposições do senso comum para construir a dualidade ilusória, conquanto bem fundada, entre os modelos de sala identificáveis na matéria: a do tablado alto é brasileira: "nossas salas de aula geram alunos intelectualmente passivos, puxa-sacos, não-colaboradores", "o importante no Brasil é anotar pérolas da sabedoria", "no Brasil só se fica na teoria", "talvez seja por isso que tão poucos brasileiros escrevem e expõem idéias"; a sala em forma de anfiteatro é estrangeira: "aprendíamos a ser objetivos, a resolver conflitos de opinião, a obter ação construtiva, mostrar liderança" (Veja, 42, ano 33, 18 out. 2000, p. 23).

Se, ao entrevistar cientistas, o jornalista, pela não-legitimidade científica de suas competências, considera-se desautorizado a introduzir as marcações de seus pontos de vista, quando se trata de entrevistas a profissionais da área educacional, sente-se inteiramente autorizado um à vontade só explicável pela familiaridade natal com o mundo social a proferir as opiniões, os veredictos e as chamadas à ordem da imprensa. Assim, a força desse princípio supera até mesmo a reverência a um agente poderoso do campo do poder, ferroado com o labéu de simplista em matéria sobre os resultados do Serviço Nacional de Avaliação da Educação Básica (SAEB): "'A escola está cada vez mais chata e o aluno, mais dispersivo e indisciplinado', justificou o Ministro [da Educação] ao divulgar o estudo. Há quem discorde dessa explicação extremamente simplista do Ministro" ("Nota vermelha", Isto É, 1627, 6 dez. 2000, p. 49); um outro exemplo pode ser o de um professor da Universidade de São Paulo (USP) e então integrante do Conselho Nacional de Educação que, após tecer objeções "à adoção da internet como ferramenta para o ensino superior", é chamado à ordem pelo repórter: "A preocupação do conselheiro vai na contramão do pensamento do Ministro da Educação" ("Canudo pela internet", Isto É, 1663, 15 ago. 2001, p. 50).

Um pensar por oposições

Nada parece trair mais a origem escolar dos jornalistas e as operações de seleção operadas no campo jornalístico do que a submissão às dualidades socialmente bem fundadas. De fato, os esquemas de classificação parecem seguir as oposições entre o contínuo e o descontínuo, entre o rápido e o lento, entre o novo e o antiquado. No Quadro 3 listam-se alguns exemplos das dicotomias presentes nas matérias jornalísticas.


Porém, de todas as oposições identificáveis nas matérias consultadas, nenhuma parece ser mais freqüente do que a entre a escola pública e a particular. Dissimuladas sob a forma de apresentação imparcial, geralmente denunciatória, da real situação dessas instituições, as reportagens inculcam hierarquias axiológicas nas quais se identificam os bons valores ao privado, e os maus, ao público. Tudo se passa como se os jornalistas fossem coagidos a parecer críticos e vigilantes em relação à escola pública e se sentissem dispensados de comportamento análogo em relação à escola privada (exceção feita às denúncias de irregularidades em instituições de ensino superior "caça-níqueis").

De fato, em "A Escola certa" (Isto É, 1630, 27 dez. 2000, p. 78), reportagem na qual "especialistas dão dicas para pais escolherem colégios que se identificam com seus filhos", todos os critérios práticos capazes de orientar a "escolha certa" "proposta pedagógica clara", "ambiente de afeto, amizade, confiança e cooperação", "colégio preocupado com valores morais" e, sobretudo, a nebulosa norma segundo a qual "os pais devem escolher [o estabelecimento] que mais se identifique com seu filho são associados a propriedades de "colégios particulares" e "escolas tradicionais". Para marcar a oposição público versus privado, faz-se, no final do texto, uma concessão destinada, afinal, a sugerir uma equânime visão da escola brasileira: "Vários desses requisitos também podem ser encontrados nas escolas públicas". Já em "Passando pelo funil", reportagem sobre cursinhos comunitários, consta que "enquanto as instituições particulares se mostram disponíveis para ajudar, as universidades públicas resistem em facilitar o acesso dos estudantes carentes" (Isto É, 1640, 7 mar. 2001, p. 43). Oposição semelhante aparece em "Férias educativas" (Isto É, 1633, 17 out. 2001, p. 44-45), reportagem sobre escolas particulares que "oferecem cursos de robótica, pintura e equitação, e transformam-se em espaços de lazer e integração". Segundo a matéria, essas "boas iniciativas com bons resultados" contrastam com o teor da pequena caixa intitulada "Enquanto isso..." (p. 45), na qual se critica a recuperação então realizada nas escolas municipais da cidade de São Paulo: "Nas escolas públicas, alunos lotam as salas de aulas nas férias para fazer a chamada 'recuperação', em contraste aos colegas de colégios privados que têm acesso a atividades especiais" (p. 45). Considerando a difícil realidade das escolas públicas de São Paulo, não é de surpreender a relação impressionista do jornalista com o tema da matéria. As expressões incluídas no Quadro 4, a seguir, presentes nos dois textos anteriormente mencionados, revelam a hierarquia de valores.


Assim, a oposição público versus privado parece encobrir todas as demais (público: contínuo, lento, antiquado; privado: descontínuo, rápido, novo). Como o Quadro 4 sugere, os elogios à iniciativa privada na educação são eufemizados por expressões, maldefinidas, alusivas ao mundo propriamente escolar. É assim também na reportagem "Ao mestre com carinho" (Isto É, 1618, 4 out. 2000, p. 56), na qual uma escola privada de ensino à distância é premiada com encômios tais como "o que existe de mais avançado em práticas de alfabetização", "novas propostas pedagógicas", "experiências pedagógicas inovadoras". Porém, o que confere legitimidade à reportagem, para além das identificações com as coisas de escola (pedagogias, práticas de alfabetização), é a contabilidade comercial: "um investimento inicial de US$ 10 milhões e prevê um retorno de US$ 3 milhões, com propaganda e patrocínio até 2001 [...] Quem quiser participar terá de desembolsar R$ 300 por módulos de 30 horas" (p. 56). O fato é que, a partir tanto dos julgamentos entrevistos nos títulos quanto dos conteúdos das reportagens, a realidade educacional é apreendida com o recurso de uma clivagem que separa o bom, freqüentemente associado ao moderno, forma eufemizada de designar o privado, e o ruim, associado ao antiquado, quer dizer, ao público. Mesmo nas aparentes exceções, as matérias colam signos depreciativos na escolaridade pública: é o caso de "Viva a periferia" (Veja, 9, ano 34, 7 mar. 2001, p. 63-64), onde escolas públicas, mesmo com ensino considerado de boa qualidade, são estigmatizadas com o ferrete de "escolas pobres".

Seria um nunca acabar se fossem recenseados todos os exemplos da fascinação jornalística por dicotomias. Desde o sugestivo título da seção ("Para usar"), revelador do poder de atração exercido pela razão prática sobre o campo jornalístico, a matéria "Clube do Bolinha pode render mais" é interessante por explicitar um dos expedientes jornalísticos mais comuns de inculcação de pré-noções:

Os garotos têm um melhor aproveitamento nos estudos quando não há garotas por perto. Essa foi a conclusão de uma pesquisa de três psicólogos alemães. Foram avaliados 140 meninos e 111 meninas de escolas mistas e 140 alunos de uma escola exclusivamente masculina, na Alemanha. Os resultados indicaram ainda que os garotos têm preferência por matemática, tecnologia e ciências naturais, com um correspondente desinteresse das meninas por essas matérias. Em outra pesquisa, os alunos alemães (83%) se disseram céticos quanto aos ganhos de se adotar turmas exclusivas para algumas disciplinas. (Veja, 44, ano 33, 1 nov. 2000, p. 135)

O expediente utilizado é o de ocultar o descontrole sobre os processos de produção da informação, pois a credibilidade da reportagem dificilmente se sustentaria a partir de questões tais como: quem são os pesquisadores? Quais as suas credenciais científicas? Qual a ligação da segunda com a primeira pesquisa? Os resultados foram divulgados em revistas científicas? Quais os métodos utilizados? Os resultados seriam os mesmos se fossem incluídas alunas de uma escola exclusivamente feminina? A ocultação mencionada é realizada acionando a evidência social dos dados divulgados (dicotomia homem associado às ciências exatas versus mulher associada às ciências humanas ou ao senso comum).

Uma profissão familiar

A ilusão de transparência da vida social repousa no postulado, sempre reconhecido e nunca explicitado, segundo o qual o agente conhece os mecanismos sociais pelo simples fato de vivê-los. Todos os homens têm a certeza comum sobre seu universo comum lar, escola, trabalho, lazer e sentem-se autorizados a falar de tudo o que é humano e a julgar qualquer discurso, inclusive o científico, sobre a humanidade. Ao fazer a análise das condições sociais de produção do discurso, a ciência social rompe com essa ilusão de transparência. O fato científico, como se sabe, é conquistado, construído e constatado contra o saber imediato (pré-noções, preconceitos).

Comum a todos, a educação é, nas matérias jornalísticas, objeto de "sistematizações fictícias" que, pelo efeito de lucidez e cegueira cruzadas, reproduzem as "condições de sua credibilidade" (Bourdieu, Chamboredon & Passeron, 1999, p. 23). Presa das evidências ofuscantes da familiaridade, a educação é particularmente sujeita a ser descrita a partir de um discurso natural e convincente. Por meio das pré-noções acionadas pelos esquemas práticos da percepção jornalística, a profissão docente parece familiar e espontânea, para cujo exercício não se exigem requisitos específicos. A matéria "Qualquer um pode ensinar" (Veja, 16, ano 34, 25 abr. 2001, p. 74-75), por exemplo, sugere desde o título a despossessão técnica e intelectual da profissão docente. Outro exemplo é a reportagem "A cadeia é uma escola" (Isto É, 1618, 4 out. 2000, p. 62-63), sobre o programa de remissão da pena pela educação, realizado na Casa de Detenção de São Paulo. A matéria mobiliza identificações formais entre a situação de aula na cadeia e a escola, também sugerindo o vazio técnico de uma profissão que todos, sem nenhum preparo específico senão a boa vontade, podem desempenhar bem. O fato de um preso, ao ministrar aulas, fazer afirmações do tipo "São Vicente foi fundada por criminosos", numa versão autojustificadora da história segundo a qual os bandeirantes, "heróis dos livros didáticos", "eram em sua maioria presidiários, descendentes de ex-degredados e salteadores de estradas em Portugal" (p. 62), é sublimado por alusões à suposta competência pedagógica do professor — "o olhar aplicado dos alunos", "conquistou a admiração dos colegas por exercer com honestidade sua função pedagógica" — (p. 62). A boa vontade é consagrada em outra reportagem, "Heróis da resistência" (Isto É, 1620, 18 out. 2000, p. 44-45), na qual os professores são descritos como "profissionais que, mesmo com os baixos salários, a falta de apoio e de investimento na educação, dão exemplos de dedicação e altruísmo" (p. 44), e na qual também se faz presente o já antigo elogio ao etos sacerdotal do magistério: "A profissão de professor costuma ser considerada um sacerdócio" (p. 45).

A lógica pela qual se move a construção de evidências relacionadas à qualificação docente parece ser a seguinte: quando a experiência educacional é julgada favoravelmente pelos esquemas práticos de percepção dos jornalistas, a docência exercida "instintivamente" é elogiada. Porém, quando se trata de resultados considerados negativos, cobra-se, por uma espécie de deslocamento da atenção e pelo efeito de culpabilização coletiva, a má-formação de professores, formação esta não exigida nos professores "instintivos". Assim é quando a falta de investimentos em formação docente e mecanismos ineficientes de avaliação são responsabilizados pela aprovação automática na experiência de ciclos ("Com a palavra", Isto É, 1619, 11 out. 2000, p. 56).

Considerações finais

Devido ao monopólio da produção e difusão em larga escala da informação e da opinião, e à sua privilegiada posição no campo do poder, o jornalista encontra-se em condições de impor visões do mundo social sobre temas direta ou indiretamente ligados à educação. Conforme visto anteriormente, isso é feito por uma transmutação nos objetos da própria matéria jornalística. Ao sofrer as censuras internas ao campo jornalístico, isto é, filtrada pelas taxionomias sociais da imprensa, a educação é conformada às lutas simbólicas nas quais os jornalistas estão implicados. A análise do material empírico revela que essa conformação da educação às lutas de classificação propriamente jornalísticas se dá por meio de dois mecanismos principais: pela inserção dos temas educacionais nas oposições estruturantes do universo mental da imprensa e pelo reforço conferido pelo campo jornalístico aos agentes e instituições educacionais mais próximos dos pólos comercial e privado.

Considerando a ampla disseminação do interesse pela educação na sociedade, sobretudo em razão da familiaridade que todos sentem com o tema, a escola e a profissão docente, assim como outros objetos desse cosmo social, são assuntos potencialmente interessantes para o profissional da produção jornalística. Tudo se passa como se o jornalista satisfizesse uma "necessidade social preexistente" (Champagne, 1996, p. 20) de representação realista e legítima da educação. Porém, essa necessidade é arbitrária, isto é, resulta tanto da concorrência interna ao campo jornalístico como da disputa do jornalismo com os demais campos pela imposição da "última palavra" em quase todos os assuntos, especialmente os mais suscetíveis de catalogação sob o rótulo de "problemas sociais". Além disso, conquanto produzindo efeitos bem reais, essa necessidade é também fictícia, isto é, só existe na e para a inculcação como arbitrário. Disso decorre que políticas e práticas educativas são influenciadas por princípios de visão da educação impostos por jornalistas tanto ao campo educacional como ao espaço social geral.

Finalmente, os textos jornalísticos sobre a educação constituem um protocolo exemplar para análises voltadas ao desvelamento dos mecanismos de imposição identificáveis nessas formas quase irreconhecíveis de lutas de classe, que são as lutas simbólicas (Champagne, 1996, p. 21). A relevância disso, possivelmente, está relacionada à tarefa de "fazer progredir a consciência e o conhecimento [e] conceder a todos, antes de tudo, a possessão dessa coisa inteiramente bizarra que é o mundo social" (Bourdieu, 1983). Considerando isto, é oportuno, à guisa de conclusão, observar que o estudo das trocas simbólicas nas interfaces do campo educacional com os demais campos, sobretudo com o jornalístico, auxilia o educador ao lhe fornecer os instrumentos para a reflexividade necessária à vigilância intelectual de si, isto é, para o controle das pré-noções cotidianas e a explicitação dos impensados epistemológicos que permeiam sua prática.

Recebido em setembro de 2003

Aprovado em agosto de 2004

GILSON R. DE M. PEREIRA, doutor em educação pela Universidade de São Paulo (USP), é professor no mestrado em educação da Universidade Regional de Blumenau (FURB). Publicações recentes: PEREIRA, Gilson R. de M., CATANI, Afrânio Mendes. Espaço social e espaço simbólico: introdução a uma topologia social. Perspectiva. Florianópolis, v. 20, nº especial, 2002, p. 107-120. PEREIRA, Gilson R. de M., CATANI, Denice B; CATANI, Afrânio Mendes. As apropriações da obra de Pierre Bourdieu no campo educacional brasileiro, através de periódicos da área. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro: ANPEd. Campinas: Autores Associados, nº 17, 2001, p. 63-85. PEREIRA, Gilson R. de M., 2001. Servidão ambígua: Valores e condição do magistério. São Paulo: Escrituras, 2001. Pesquisa em desenvolvimento: A construção da Administração Escolar na RBAE. E-mail: gilsonmp@furb.br

MARIA DA CONCEIÇÃO L. DE ANDRADE, doutora em ciências sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), é professora no Mestrado em Educação da Universidade Regional de Blumenau (FURB). Publicação recente: ANDRADE, Maria da Conceição L. de. A categoria gênero nas teses de doutorado em educação. In: II Seminário Internacional Educação Intercultural, Gênero e Movimentos Sociais, Florianópolis, 2003, (CD-ROM). Pesquisa em andamento: Lucro de ação: estudo sobre as condições de possibilidade do magistério oficial. E-mail: mconceicao@furb.br

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Out 2005
  • Data do Fascículo
    Abr 2005

Histórico

  • Aceito
    Ago 2004
  • Recebido
    Set 2003
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