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Ideologia (e contraideologia), utopia e mitologia: abordagens e discussões teóricas

BOSI, Alfredo. Ideologia e contraideologia: temas e variações. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, 448p.

Ideologia (e contraideologia), utopia e mitologia: abordagens e discussões teóricas

A ideologia [...] não é reflexo do vivido, mas um projecto de agir sobre ele. Para que a acção tenha qualquer possibilidade de eficácia, é preciso que não seja demasiado grande a disparidade entre a representação imaginária e as "realidades" da vida. Mas a partir daí, se o que se diz e o que se escreve é entendido, novas atitudes cristalizam e vêm modificar a forma pela qual os homens compreendem a sociedade de que fazem parte.

(Duby, 1994, p. 21)

Deste modo, Georges Duby (1919-1996), em seu livro As três ordens, distinguia o que estaria entendendo por "ideologia" (e "sistemas ideológicos") em sua pesquisa, ao mesmo tempo em que tomava certa distância quanto à maneira pela qual o termo fora definido no marxismo, como "uma falsa consciência da realidade", fruto da vontade das "classes dominantes", que impunham suas formas de agir e pensar às massas, sem que estas ao mesmo tempo tivessem vontade ou decisão, pois, se encontravam apáticas no interior do sistema, em função do efeito das ideologias em suas mentes. Adiante, o autor indicará ainda que: "Os sistemas ideológicos não se inventam. Existem, difusos, aflorando apenas a consciência dos homens. Nunca imóveis. Elaborados na memória dos homens, intrinsecamente, através de uma lenta evolução, imperceptível, mas cujos efeitos se descobrem de longe em longe, efeitos que no conjunto se deslocam e que podemos reconstruir" (Duby, 1994, p. 81). Dado que as ideologias só se conformam na realidade, quando se assemelham a ela, e na medida em que sua repetição, sobre os corações e as mentes das pessoas, estabeleça-se mediante uma relação entre grupos e indivíduos, e essas relações se cristalizem em novas atitudes na sociedade, esta não seria apenas um reflexo deste vivido, mas uma ação direta sobre ele.

Mais preocupado com seu itinerário no interior do pensamento marxista, Leandro Konder (2002) procurou analisar de que modo o termo foi pensado antes e depois de Karl Marx (18181883), e a quais desdobramentos (nos campos da política, da arte, da história, da linguagem, da ética, da psicanálise) o conceito (de ideologia) perpassaria no século passado. Para ele:

Não existe imunidade contra a ação sutil da ideologia: ela pode se manifestar tanto na percepção sensível como na análise e na reflexão; pode aparecer tanto na pretensão à universalidade como na resignação à particularidade. O pensamento pode se perder tanto na abstração como na empiria. A sensibilidade pode falhar sendo intensa ou enfraquecida. [...] O empenho desmistificador é valioso, mas não garante a eficácia da desmistificação. [...] A questão da ideologia, quando é reconhecida e enfrentada, exacerba a desconfiança e relativiza os conhecimentos constituídos. Isto é, com certeza, profundamente necessário para o avanço do conhecimento. Mas, para complicar mais as coisas, a distorção ideológica pode se infiltrar na própria desconfiança ou mesmo na relativização. A exacerbação da desconfiança e o exagero da relativização podem acarretar certo esvaziamento no esforço do conhecimento, certa desmobilização na práxis. A ideologia pode estar no excesso como na insuficiência; no que falta como no que sobra. (Konder, 2002, p. 257-259)

Por que, onde "há conhecimento há ideologia" e onde "há ideologia há algum conhecimento" (p. 259).

De "instrumento de interpretação da vida intelectual, por meio da análise da experiência e da esfera dos sentidos" (a que Destutt de Tracy a conferiu) à "falsa consciência" da realidade (como a definiu Marx e Engels, em A ideologia alemã), até "visão de mundo" e "estilo de pensamento" (como a interpretou Karl Mannheim, em Ideologia e utopia), a ideologia tem feito um itinerário confuso, turbulento e arredio. Seja para o estudioso que tenha sua base teórica no marxismo ou não (como já vimos). Por suas estreitas ligações com os jogos do poder e da política o termo tem caído, cada vez mais, em desuso no vocabulário acadêmico - ainda que sua eficácia interpretativa continue válida (Eagleton, 1997).

No interior destas aguerridas contendas políticas e intelectuais, o novo livro de Alfredo Bosi,1 1 Professor emérito da Universidade de São Paulo, é autor, entre outros, de: História concisa da literatura brasileira; Dialética da colonização; Céu, inferno; Machado de Assis - o enigma do olhar; Brás Cubas em três versões; Literatura e resistência e O ser e o tempo da poesia, além de organizador de várias outras obras, como Cultura brasileira. Ideologia e contraideologia, traz uma contribuição significativa, na medida em que procurou pensar de que modo são formadas as ideias que se conformam em ideologias (como o liberalismo, o desenvolvimentismo, o individualismo, o evolucionismo etc.), e como estas mesmas ideologias coexistem com propostas contraideológicas, que, em certas ocasiões, são movidas por investidas "utópicas" (que propõem caminhos alternativos para o futuro) e "mitológicas" (que se inscrevem em análises sobre o passado e o presente). De fato, a percepção das questões "míticas", é a menos discutida no conjunto do texto. Para ele, a "ideologia é sempre modo de pensamento condicionado, logo relativo [...] mas pode enrijecer-se sempre que transponha a estreita faixa que a separa de um pensamento determinista (2010, p. 11). Dado que:

A ideologia está sempre a meio caminho entre a verossimilhança e a mentira. A verossimilhança torna plausível o que a fala enganadora tenta passar por verdadeiro. [...] a ideologia contenta-se, via de regra, com a justificação final do vencedor. (p. 394-95)

Em vista disso, a contraideologia se refere ao polo oposto, porque seu "esforço argumentativo [...] consiste em desmascarar o discurso astucioso, conformista ou simplesmente acrítico dos forjadores ou repetidores da ideologia dominante" (p. 394). Nesse aspecto, as "utopias [...] recebem sinal positivo quando assumem a linguagem realista e combatente das contraideologias" (p. 380). Não por acaso, a "imaginação utópica alimentou a primeira contraideologia sistemática dos tempos modernos" (p. 17), apesar do contraditório "significado etimológico do termo utopia, que vale nenhum lugar". Mas, a verdadeira motivação de Thomas More, ao escrever seu livro Utopia, foi justamente "imaginar uma sociedade que fosse em tudo o oposto da Inglaterra rural do seu tempo" (p. 16). Como o autor articula esses mecanismos num sistema, que demonstra a pluralidade das ideias, sua formação e inserção na sociedade, e que é o ponto alto do livro, é o que passamos a resumir. Como tal, não há como reconstituir em sua totalidade, a complexa trama que perfaz o enredo do livro.

O início de sua discussão encontra-se justamente na passagem da civilização do Ocidente medieval para os chamados "tempos modernos", em que se circunscreveria o Renascimento (da cultura e das artes), a Reforma (protestante) e a Contrarreforma (católica) dos séculos XV e XVI. Em que houve intenso diálogo entre o discurso religioso e o discurso científico. Forjando-se, para ele, "na pré-história do processo à ideologia, [onde] encontramos ora o discurso utópico, ora o discurso satírico, e, às vezes, uma combinação de ambos" (p. 18). Das discussões científicas, ao debate político e econômico organizado pelo liberalismo:

A oposição aos componentes ideológicos do Antigo Regime aprofunda-se quando o objeto de controvérsia passa do contexto econômico e político às discussões culturais e propriamente simbólicas vigentes no século XVIII francês. Refiro-me à relevância de sua

polêmica pedagógica

e à originalidade do seu

pensamento religioso

. Em ambas as esferas Rousseau difere sensivelmente do discurso dos enciclopedistas, seus companheiros na difusão das Luzes até um certo momento, pois é sabido que os

philosophes

, sobretudo Diderot e Voltaire, o acolheram na primeira fase da sua entrada na luta contra os males do regime, renegando-o depois, quando ficaram patentes as divergências de doutrina. A perseguição que lhe moveu Voltaire nos últimos anos de sua vida dá um triste exemplo de intolerância no campeão da ideia de tolerância. (p. 33, grifos do autor)

Ao mesmo tempo, o autor destaca os diferentes polos interpretativos a que o discurso sobre o progresso científico e material estava se pautando no período; tencionando entre a "linha reta" pensada por Condorcet,2 2 Que, para ele: "Alinha reta de Condorcet, redesenhada pelo positivismo de Comte, ora prosseguiu eufórica, ora foi violentamente rompida pela onipotente vontade de poder dos Estados, povos e tribos em todo o mundo; e, contra o propósito generoso [...] dos philosophes, o seu pensamento corre o risco de ser treslido e transforma-se naquela caricatura da ideologia burguesa que tudo justifica em nome do progresso" (p. 50). em seu Esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito humano (de 1794), o olhar "cíclico" indicado por Vico, em sua A ciência nova (de 1725, revista em 1744), para interpretar o processo histórico, e a "espiral dialética" de Hegel, proposta na Fenomenologia do espírito, na qual este perscrutou o(s) caminho(s) para o desenvolvimento do Estado nacional alemão.3 3 "Não se deve, portanto, ver no desenho hegeliano da História um eterno retorno: os povos diferem entre si nos seus fins e nas suas contingências. Nem é justo caracterizá-lo como uma evolução linear, pois a rememoração conserva, superando, o sentido das civilizações pretéritas. O que se ajusta àquela sentença pela qual, a rigor, para o Espírito não há passado" (p. 59). Portanto:

A filosofia moderna, da Renascença às Luzes, detectou modos de pensar que lhe pareceram errôneos: ora fruto de preconceitos etnocêntricos (é o sentido do relativismo antropológico de Montaigne); ora fruto de maus hábitos cognitivos herdados da tradição e das convenções sociais (os

idola

de Bacon); ora de submissão ao poder no bojo de contextos sociais iníquos (as denúncias de Rousseau); ora simplesmente desvios da razão imanente na história das nações, tais como afloram nas flechas de Vico ou de Hegel lançadas contra certas tendências culturais de seu tempo. (p. 61)

Mas, ao ser vislumbrada como um conjunto de propostas, formadas no interior de um pensamento sistemático, as ideologias - com as definições de Destutt de Tracy e de Marx e Engels4 4 Para estes, segundo o autor, "o ideólogo quer convencer o interlocutor de que seus argumentos foram construídos em nome e por meio da razão universal. A sua validade receberia força das ideias dominantes, tidas por assentes" (p. 72). E mais: "A falsa consciência pode manter-se sempre que o homem dominado introjeta as razões do dominador, confirmando, nesse caso, a observação de Marx segundo a qual a ideologia do oprimido reproduz a do opressor. Mas nem sempre e fatalmente é assim, desde que a consciência do homem dominado tenha subido a ponto de pôr em dúvida ou contestar a ordem que o rebaixa. Nesse quadro matizado, a 'mentalidade popular' poderia ser ora decalque da ideologia dominante, ora o seu avesso e a sua desmistificação" (p. 75). Mesmo assim: "O conceito marxista de ideologia tem, em todo caso, o mérito de aguçar a percepção do caráter mistificador (voluntário ou não) da falsa consciência. É na justeza desse conceito suspeitoso que se comprova a verdade da dialética histórica. Tendo em vista que as doutrinas políticas não são meros e vazios artefatos mentais, elas engendram-se da práxis dos seus atores. As ideologias veiculam necessidades materiais e aspirações reais, mas estruturalmente parciais. Em razão dessa parcialidade, as ideias dos grupos dominantes raramente estão sós: defrontam-se com motivações e interesses que lhes são contrários, verdadeiros antídotos da retórica do poder" (p. 76). - passaram a figurar também como uma ação sobre a prática, com vistas a mudar o comportamento e a própria realidade, ou ainda a moldá-la de tal forma a assugeri-la como uma "falsa consciência". Ao passar em revista as metamorfoses do termo no pensamento marxista, e fora dele, o autor destaca de que modo a ideologia, tida como forma de percepção da "falsa consciência", das "visões de mundo" e dos "estilos de pensamento", torna-se ela própria parte desse itinerário, envolvido pelos jogos do poder, nas contendas políticas dos séculos XIX e XX.5 5 De acordo com o autor: "O primeiro deriva da Ideologia alemã de Marx e Engels: por ideologia entende-se um pensamento que legitima o poder da classe dominante e justifica como naturais e universais as diferenças entre as classes socioeconômicas e os estratos políticos. Ideologia, neste caso, é basicamente manipulação, distorção, ocultação. A segunda acepção foi construída pelo historicismo e pela sociologia do saber, tendo por inspirador Dilthey e continuadores, entre si bastante diversos, Max Weber, Scheler e o próprio Mannheim. Ideologia seria sinônimo de visão de mundo, concepção do homem e da História, estilo de época; em suma, complexo de representações e valores peculiar a um determinado país ou a uma determinada cultura" (p. 419). Ou mais precisamente, como destacou Paul Ricoeur, que o autor toma de empréstimo:

A ideologia apareceria, de início, como simples

resposta à necessidade que todo grupo social tem de dar a imagem de si mesmo

, isto é, uma necessidade de representar-se para si e para o outro. [...] A lembrança deve ser mantida coletivamente, e o discurso que a consagra é o primeiro e necessário grau de identificação nacional ou grupal. A ideologia, nesse caso, verbaliza, interpreta o passado e o integra no presente sem que se possa afirmar que represente nessa instância fatalmente um processo de distorção ou embuste. (p. 135, grifos do autor)

Ainda assim, a "ideologia [do ponto de vista epistemológico] seria, de todo modo, uma interpretação fechada do real, que em vez de abrir-se, obstrui novas possibilidades de compreensão" (p. 136). Em razão disso:

A utopia não é, pois, o sonho que não se realizará jamais, mas o pensamento que se opõe radicalmente à forma que a sociedade assume aqui e agora.

Para o ideólogo da classe dominante, utopia é simplesmente o projeto dos seus adversários radicais. Em contrapartida, para o revolucionário, assim tachado de utópico, ideologia é o pensamento secretado na classe dos donos dos bens e do poder. Para o conservador, utopia é palavra negativa, que desclassifica o adversário; para o revolucionário a pecha recai de preferência no termo "ideologia". Ideologia e utopia enfrentam-se simetricamente como

racionalizações viciosas do outro

, aquele interlocutor surdo e incapaz de exercer sobre si mesmo a crítica que lhe vem de fora. [...] As ideologias pretendem garantir o presente brandindo, às vezes, as armas de um certo passado. As utopias, ao contrário, querem desestabilizar o presente com os olhos postos no futuro. (p. 138-139, grifos do autor)

A maneira como indica as relações tênues da "religião" estarem, quase sempre, entre a "alienação" e a "desalienação", não deixa de ser uma outra forma, também esclarecedora, de demonstrar as tensões entre "ideologia" e "contraideologia". As quais foram ainda percebidas, por ele, ao analisar a trajetória política e intelectual de Simone Weil (1909-1943), e a maneira pela qual a autora destacou os processos de alienação, estranhamento e inconformismo das classes trabalhadoras, mediante a ação dos discursos do poder.

Após descortinar os jogos entre "ciência" e "ideologia" (e que não deixam de ter também uma fronteira consideravelmente tênue), o autor passa a ver o projeto "fáustico", que estaria entre o "mito", do bem e do mal, e a "ideologia", do progresso contínuo, pois, o "que a caracteriza[ria] é sua dependência direta da imagem de um tempo linear em que cada momento é sempre um avanço em relação ao anterior, a partir de uma concepção cada vez menos convincente de que o que vem depois é sempre melhor do que o que veio antes" (p. 199). Por sua vez:

Essa marcha para frente, que coexiste e lida com o retorno do mesmo da Natureza, é a forma hegeliana do desenvolvimento, nem só círculo, nem só linha reta ascendente, mas uma combinação de figuras em movimento a que chamamos espiral. (p. 200)

Nesse caso, o termo "ideologia pode ser adotado aqui tanto no significado forte e valorativo de justificação do poder como na acepção descritiva e historicista de visão de mundo peculiar a uma determinada época" (p. 202).

Ao voltar-se para as conexões e intersecções entre Brasil e Europa, o autor revê as relações entre centro e periferia, desfazendo as concepções simplistas que estabelecem uma mera relação de "cópia" de uma para a outra, e primando mais por demonstrar a relação dialética que se forma entre elas. Daí a importância de analisar a ideologia do desenvolvimentismo, e a maneira pela qual foi apropriada no país, particularmente, nas décadas de 1940 e 1950. Destaca de que modo foi interpretado pela direita e pela esquerda, e de que forma apareceria nos textos de Celso Furtado e de Padre Lebret. Não foi por acaso, que do desenvolvimentismo, apropriado pelo discurso político no século XX, o autor passou a dar atenção ao liberalismo, e às suas acepções, no discurso político do século XIX. De igual modo, fez uma análise comparativa entre a maneira como foi pensado na Europa e no Brasil. Para tanto, resume as trajetórias de Bernardo Pereira de Vasconcelos, Joaquim Nabuco, Perdigão Malheiro e Tavares Bastos, e como cada um deles se apropriou do discurso liberal oitocentista. Feito isso, o autor faz uma volta do liberalismo para o neoliberalismo, e as diferentes formas introjetadas pelo "Estado-providência".

O autor fecha seu percurso, indicando de que maneira a literatura apreende as "visões de mundo" e os discursos políticos de uma época. E elege Machado de Assis, para demonstrar de que modo um escritor de contos e romances, no século XIX, absorveu esses diferentes discursos (liberais, progressistas, conservadores, evolucionistas) e os projetou em seus personagens. Em suas palavras:

Desconfiando de toda doutrina que se arvorasse em dar esperanças para o destino do gênero humano, o autor das Memórias póstumas se apartava, discreta mas firmemente, das correntes filosóficas e das ideologias políticas dominantes na segunda metade do século XIX. Os intelectuais brasileiros que estavam chegando à maturidade (então, em geral, precoce) entre os decênios de 1860 e 1870 tinham à sua disposição pelo menos três vertentes doutrinárias: o liberalismo democrático, monárquico ou republicano (que Nabuco batizaria de "novo liberalismo"), o positivismo e o evolucionismo. Naquela altura já se verificava razoável sincronia entre a nossa vida intelectual e as correntes europeias de pensamento.

O Machado que emerge das crônicas dos anos 1860 optou pela primeira corrente que selaria a sua militância jornalística, no começo francamente inconformista, depois matizada por jocosidades de superfície. Será provavelmente correto afirmar que o liberalismo democrático de Machado em seus anos de maturidade era coerente, mas abstinha-se de toda e qualquer adesão partidária, mostrando-se avesso a atitudes públicas que denotassem sentimentos radicais.

No campo das principais doutrinas filosóficas do tempo, nem o positivismo nem o evolucionismo o atraíram. Pelo contrário, a concepção progressiva e progressista da história da humanidade, partilhada pelos discípulos de Comte e Spencer, parecia-lhe um contrassenso digno de irrisão. (p. 414)

O que o faz supor duas tendências, a rigor "contraideológicas", na trajetória de Machado: "o liberalismo democrático da sua juventude, cujo ponto alto são as suas manifestações abolicionistas, e o moralismo pessimista, que o distingue nitidamente das correntes contemporâneas, o republicanismo jacobino, o positivismo e o evolucionismo" (p. 421). Apesar de instado pelas "filosofias do progresso",6 6 As filosofias do progresso, moeda corrente durante a vida de Machado, ancoravam-se na hipótese da vigência de uma qualidade positiva e cumulativa do tempo. Agindo no cerne dos seres, o tempo vital e o tempo histórico tinham arrancado o homem da sua primitiva animalidade e o elevavam, à custa de embates biológicos e sociais, ao grau de civilização de que o século XIX dava cabal exemplo. A evolução da espécie e a sobrevivência dos mais aptos substituíam o papel milenarmente atribuído à Providência (p. 416). Machado teria, para o autor, sabido contorná-las e, ao mesmo tempo, compreender parte de suas limitações.

Posto o problema nestes termos, o autor sintetiza de forma primorosa o complexo percurso, na História, dos termos ideologia, contraideologia e utopia, além de ressaltar as relações e contradições que se estabelecem entre cada um eles. Muito embora, parte desse percurso seja seguido de acordo com a "visão de mundo" e o "estilo de pensamento" que o autor construiu ao longo de sua carreira, e a partir dele conforme discussões, análises e críticas a outros autores e interpretações (como o seu contínuo diálogo com Roberto Schwarz). Mas, afinal, o campo dos jogos "políticos" e "ideológicos" não se faz em meio a esse tipo de "valores" e "atitudes"?

Diogo da Silva Roiz

Professor dos cursos de

História e de Ciências Sociais na

Universidade Estadual de Mato

Grosso do Sul (UEMS), na unidade de

Amambai, é doutorando no Programa

de Pós-Graduação em História da

Universidade Federal do Paraná

(UFPR), campus de Franca.

E-mail: diogosr@yahoo.com.br

ou diogosr@uems.br

  • DUBY, Georges. As três ordens, ou o imaginário do feudalismo. Tradução Maria Helena Costa Dias. 2. ed. Lisboa/Portugal: Estampa, 1994.
  • EAGLETON, Terry. Ideologia: uma introdução. Tradução Luís Carlos Borges e Silvana Vieira. São Paulo: Boitempo; Editora UNESP, 1997.
  • KONDER, Leandro. A questão da ideologia. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
  • 1
    Professor emérito da Universidade de São Paulo, é autor, entre outros, de:
    História concisa da literatura brasileira; Dialética da colonização; Céu, inferno; Machado de Assis - o enigma do olhar; Brás Cubas em três versões; Literatura e resistência e
    O ser e o tempo da poesia, além de organizador de várias outras obras, como
    Cultura brasileira.
  • 2
    Que, para ele: "Alinha reta de Condorcet, redesenhada pelo positivismo de Comte, ora prosseguiu eufórica, ora foi violentamente rompida pela onipotente vontade de poder dos Estados, povos e tribos em todo o mundo; e, contra o propósito generoso [...] dos
    philosophes, o seu pensamento corre o risco de ser treslido e transforma-se naquela caricatura da ideologia burguesa que tudo justifica em nome do progresso" (p. 50).
  • 3
    "Não se deve, portanto, ver no desenho hegeliano da História um
    eterno retorno: os povos diferem entre si nos seus fins e nas suas contingências. Nem é justo caracterizá-lo como uma
    evolução linear, pois a rememoração conserva, superando, o sentido das civilizações pretéritas. O que se ajusta àquela sentença pela qual, a rigor, para o Espírito não há passado" (p. 59).
  • 4
    Para estes, segundo o autor, "o ideólogo quer convencer o interlocutor de que seus argumentos foram construídos em nome e por meio da razão universal. A sua validade receberia força das ideias dominantes, tidas por assentes" (p. 72). E mais: "A falsa consciência pode manter-se sempre que o homem dominado introjeta as razões do dominador, confirmando, nesse caso, a observação de Marx segundo a qual a ideologia do oprimido reproduz a do opressor. Mas nem sempre e fatalmente é assim, desde que a consciência do homem dominado tenha subido a ponto de pôr em dúvida ou contestar a ordem que o rebaixa. Nesse quadro matizado, a 'mentalidade popular' poderia ser ora decalque da ideologia dominante, ora o seu avesso e a sua desmistificação" (p. 75). Mesmo assim: "O conceito marxista de ideologia tem, em todo caso, o mérito de aguçar a percepção do caráter mistificador (voluntário ou não) da falsa consciência. É na justeza desse conceito suspeitoso que se comprova a verdade da dialética histórica. Tendo em vista que as doutrinas políticas não são meros e vazios artefatos mentais, elas engendram-se da práxis dos seus atores. As ideologias veiculam necessidades materiais e aspirações reais, mas estruturalmente parciais. Em razão dessa parcialidade, as ideias dos grupos dominantes raramente estão sós: defrontam-se com motivações e interesses que lhes são contrários, verdadeiros antídotos da retórica do poder" (p. 76).
  • 5
    De acordo com o autor: "O primeiro deriva da
    Ideologia alemã de Marx e Engels: por ideologia entende-se um pensamento que legitima o poder da classe dominante e justifica como naturais e universais as diferenças entre as classes socioeconômicas e os estratos políticos. Ideologia, neste caso, é basicamente manipulação, distorção, ocultação.
    A segunda acepção foi construída pelo historicismo e pela sociologia do saber, tendo por inspirador Dilthey e continuadores, entre si bastante diversos, Max Weber, Scheler e o próprio Mannheim. Ideologia seria sinônimo de visão de mundo, concepção do homem e da História, estilo de época; em suma, complexo de representações e valores peculiar a um determinado país ou a uma determinada cultura" (p. 419).
  • 6
    As filosofias do progresso, moeda corrente durante a vida de Machado, ancoravam-se na hipótese da vigência de uma qualidade positiva e cumulativa do tempo. Agindo no cerne dos seres, o tempo vital e o tempo histórico tinham arrancado o homem da sua primitiva animalidade e o elevavam, à custa de embates biológicos e sociais, ao grau de civilização de que o século XIX dava cabal exemplo. A evolução da espécie e a sobrevivência dos mais aptos substituíam o papel milenarmente atribuído à Providência (p. 416).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Set 2010
    • Data do Fascículo
      Ago 2010
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