Open-access Formação continuada de professores para a diversidade cultural: ênfases, silêncios e perspectivas

Continuing teacher education for cultural diversity: emphases, silences and perspectives

Formación continuada de profesores para la diversidad cultural: éntasis, silencios y perspectivas

Resumos

A formação continuada de professores tem sido objeto de debates nos contextos acadêmicos e políticos. O artigo sugere uma perspectiva "culturalmente responsiva" como caminho promissor para essa formação, analisando, a partir desse olhar, a produção do conhecimento na área, no presente milênio, por intermédio da análise documental de dois periódicos classificados como internacionais pelo sistema Qualis/CAPES, mais especificamente, Cadernos de Pesquisa e Revista Brasileira de Educação, bem como de trabalhos apresentados nas reuniões anuais da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), com foco nos GTs de Formação de Professores, Didática, Educação e Relações Étnico-Raciais e Gênero, Sexualidade e Educação. Os dados oferecem um panorama da temática na produção acadêmica, problematizando silêncios e apontando potenciais e desafios, podendo contribuir para se pensar em formas plurais pelas quais a formação docente para a diversidade cultural pode se desenvolver.

formação continuada de professores; diversidade cultural; multiculturalismo; produção do conhecimento


Teacher continuing education has been the focus of debates in political and academic contexts. The present paper suggests a " culturally responsive" perspective as a promising way towards that education, and it discusses the knowledge production in the area during the present millennium, through documentary analysis of two Brazilian scientific journals classified as international, as well as of studies presented in the annual meetings of the ANPEd (the Brazilian National Association of Post-Graduation and Research in Education), focusing on its working groups that deal with Teacher Education, Didactics, Education and Ethnic and Racial Relations, and Gender, Sexuality and Education. The data convey an overview of that production, problematising silences, as well as pointing to potentials and challenges of that production. Its relevance comes insofar as it can contribute to thinking about plural ways through which teacher education for cultural diversity may develop.

teacher continuing education; cultural diversity; multiculturalism; knowledge production


El articulo propone una perspectiva "culturalmente responsiva" como posibilidad desta formación, discutindo la producción del conecimiento en la area, en lo presente milenio, utilisando analise documental de los periódicos internacionales por lo sistema Qualis/CAPES, mais especificamente, Cadernos de Pesquisa y Revista Brasileira de Educação, y también de trabajos y ponencias de las runiónes anuales de la Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), con el foco en los GTs de "Formação de Professores, Didática, Educação e Relações Étnico-Raciais e Gênero, Sexualidade e Educação. Los resultados apresentán un panorama de la temática en la producción academica, problematizando silencios y apontando possibilidads y desafios, podendo contribuir para el desarollo da la formación de maestros para la diversidad cultural.

formación continuada de profesores; diversidad cultural; multiculturalismo; producción del conocimiento


ARTIGOS

Formação continuada de professores para a diversidade cultural: ênfases, silêncios e perspectivas*

Continuing teacher education for cultural diversity: emphases, silences and perspectives

Formación continuada de profesores para la diversidad cultural: éntasis, silencios y perspectivas

Ana CanenI; Giseli Pereli de Moura XavierII

IUniversidade Federal do Rio de Janeiro

IICentro Universitário da Cidade do Rio de Janeiro

RESUMO

A formação continuada de professores tem sido objeto de debates nos contextos acadêmicos e políticos. O artigo sugere uma perspectiva "culturalmente responsiva" como caminho promissor para essa formação, analisando, a partir desse olhar, a produção do conhecimento na área, no presente milênio, por intermédio da análise documental de dois periódicos classificados como internacionais pelo sistema Qualis/CAPES, mais especificamente, Cadernos de Pesquisa e Revista Brasileira de Educação, bem como de trabalhos apresentados nas reuniões anuais da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), com foco nos GTs de Formação de Professores, Didática, Educação e Relações Étnico-Raciais e Gênero, Sexualidade e Educação. Os dados oferecem um panorama da temática na produção acadêmica, problematizando silêncios e apontando potenciais e desafios, podendo contribuir para se pensar em formas plurais pelas quais a formação docente para a diversidade cultural pode se desenvolver.

Palavras-chave: formação continuada de professores; diversidade cultural; multiculturalismo; produção do conhecimento.

ABSTRACT

Teacher continuing education has been the focus of debates in political and academic contexts. The present paper suggests a " culturally responsive" perspective as a promising way towards that education, and it discusses the knowledge production in the area during the present millennium, through documentary analysis of two Brazilian scientific journals classified as international, as well as of studies presented in the annual meetings of the ANPEd (the Brazilian National Association of Post-Graduation and Research in Education), focusing on its working groups that deal with Teacher Education, Didactics, Education and Ethnic and Racial Relations, and Gender, Sexuality and Education. The data convey an overview of that production, problematising silences, as well as pointing to potentials and challenges of that production. Its relevance comes insofar as it can contribute to thinking about plural ways through which teacher education for cultural diversity may develop.

Keywords: teacher continuing education; cultural diversity; multiculturalism; knowledge production.

RESUMEN

El articulo propone una perspectiva "culturalmente responsiva" como posibilidad desta formación, discutindo la producción del conecimiento en la area, en lo presente milenio, utilisando analise documental de los periódicos internacionales por lo sistema Qualis/CAPES, mais especificamente, Cadernos de Pesquisa y Revista Brasileira de Educação, y también de trabajos y ponencias de las runiónes anuales de la Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), con el foco en los GTs de "Formação de Professores, Didática, Educação e Relações Étnico-Raciais e Gênero, Sexualidade e Educação. Los resultados apresentán un panorama de la temática en la producción academica, problematizando silencios y apontando possibilidads y desafios, podendo contribuir para el desarollo da la formación de maestros para la diversidad cultural.

Palabras clave: formación continuada de profesores; diversidad cultural; multiculturalismo; producción del conocimiento.

INTRODUÇÃO: O OLHAR TEÓRICO-METODOLÓGICO DO ESTUDO

As questões que envolvem a diversidade cultural brasileira têm sido alvo de inúmeros estudos na última década no cenário educacional. Cada vez mais conceitos como diversidade, diferença, igualdade e justiça social têm se configurado como uma preocupação por parte daqueles que lutam por uma educação verdadeiramente cidadã. Ao mesmo tempo, articular tais conceitos à formação de professores tem se tornado um desafio premente para a educação e para as instâncias envolvidas nesse processo.

A formação de professores, seja ela inicial ou continuada, constitui-se como um lócus privilegiado, não só para refletir e discutir sobre essas questões, como para a criação e a implementação de proposições que possibilitem vislumbrar novos caminhos e avanços no que tange ao trato da diversidade cultural no contexto escolar. Nesse sentido, articular os pressupostos de uma proposta multicultural à formação docente coloca-se como um desses profícuos caminhos a ser seguido, para uma escola culturalmente responsiva.

O multiculturalismo tem sido compreendido como um campo teórico, prático e político que busca respostas à diversidade cultural e desafio a preconceitos, com ênfase na identidade como categoria central para se pensar em uma educação valorizadora da pluralidade no contexto escolar (Candau, 2008a, b, c; Canen, 2008; Canen; Santos, 2009; Moreira; Câmara, 2008). Nesse sentido, trabalhos nessa perspectiva têm apontado a relevância da educação para o desafio a preconceitos raciais, de gênero, de orientação sexual, de religião e outros, rumo a uma visão democrática e plural que permita o diálogo entre culturas e avance no desempenho positivo de alunos de universos culturais plurais.

Na última década, o multiculturalismo vem ganhando espaço em vários setores da sociedade, entre eles, a educação. Isto se dá porque no multiculturalismo a noção de cultura é um aspecto essencial para o desenvolvimento de uma análise das relações sociais e seus determinantes, o que implica um novo olhar sobre o papel constitutivo e central da cultura na sociedade e na formação das identidades, dentre elas a identidade docente.

De acordo com autores tais como Candau (2008a, b, c), Canen (2008), Canen e Santos (2009), Moreira e Câmara (2008) e McLaren (1997), o multiculturalismo pode ser considerado um conceito polissêmico que encerra diversos modelos que expressam e discutem a questão da pluralidade cultural, e que vão desde perspectivas mais conservadoras e pouco problematizadoras da realidade, que apenas constatam a existência da diversidade, afirmando a hegemonia cultural já existente, até perspectivas mais críticas, que questionam os discursos que constroem a identidade e a diferença, e em que a relação entre cultura e poder é trazida à tona. Nessas vertentes mais críticas, a diversidade deve ser assumida dentro de uma política de crítica e de compromisso com a justiça social. Isto significa desvelar, questionar e superar os mecanismos que forjam as desigualdades e calam sujeitos e grupos oprimidos, privilegiando projetos, práticas e espaços que permitam sua valorização, seu resgate e sua representação. Para tanto, destacam-se, nessa abordagem, como categorias centrais, a identidade e a diferença, entendidas como construções discursivas que se deslocam e se conflitam, "reinscrevendo" novos signos em sua composição (Hall, 1999; Silva, 2000).

Dentro dessa abordagem, a formação continuada de professores possui um papel relevante, uma vez que preparar professores para refletirem e trabalharem com a diversidade cultural no contexto escolar significa abrir espaços que permitam a transformação da escola em um local em que as diferentes identidades são respeitadas e valorizadas, consideradas fatores enriquecedores da cidadania.

Nessa concepção, Candau (2008a, b, c), Canen e Moreira (2001), Moreira e Câmara (2008), McLaren (2007) e Zeichner (2009), por exemplo, apontam algumas proposições para a formação de professores. Inicialmente, é preciso conceber a educação multicultural como uma perspectiva que deve informar todas as áreas do conhecimento e do currículo escolar, fazendo-se presente nas diversas atividades voltadas para essa formação e nas práticas cotidianas entre os atores sociais envolvidos. Afinal, pensar a formação continuada de professores em uma perspectiva multicultural significa pensar em uma efetiva mudança de atitude, de postura e de olhar sobre a diversidade e a diferença. Não mais a celebração acrítica da diversidade, e sim o questionamento, a participação e a decodificação de teorias, conceitos, discursos e mensagens que compõem o currículo e as práticas em sala de aula e que muitas vezes se apresentam impregnados de preconceitos, estereótipos, silêncios e omissões. Para tanto, o diálogo apresenta-se como um instrumento indispensável, a partir do qual professores e alunos possam estabelecer uma dinâmica de entendimento e reflexão, em que as "vozes" de todos sejam ouvidas, consideradas e debatidas.

No caso da formação continuada de professores na perspectiva multicultural pós-colonial ou pós-moderna (Peters, 2005), argumentamos que o desafio à essencialização da categoria identidade, percebendo seu caráter sempre provisório, em construção, é uma visão que sensibiliza professores para conceberem caminhos didático-pedagógicos que deem conta das hibridizações e sínteses culturais presentes nessas construções identitárias.

Aprofundando mais o significado da perspectiva multicultural pós-colonial ou pós-moderna, Hall (2003, p. 56) sugere que "há uma íntima relação entre o ressurgimento da 'questão multicultural' e o fenômeno do 'pós-colonial'". Para o referido autor, o movimento que vai da colonização aos tempos pós-coloniais é mais do que uma relação cronológica, referente a um período que se sucedeu ao colonialismo, no qual novos Estados-nação surgiram em função da descolonização. Trata-se, isto sim, de um processo de ruptura discursiva das divisões binárias que marcaram aquele período, nas linhas de colonizadores e colonizados, negros e brancos, dentre outras. Isto porque a visão pós-colonial assume a condição das diásporas e dos deslocamentos que ocorrem no mundo pós-colonização, com forte influência na construção e reconstrução das identidades culturais, relocalizando a narrativa do centramento para as "periferias" e assumindo "as ligações transversais que cruzam as fronteiras dos Estados-nação e os inter-relacionamentos global/local" (p. 113). Emergem, portanto, no multiculturalismo pós-colonial, "as questões do hibridismo e sincretismo [...] e as complexidades da identificação diaspórica que interrompem qualquer 'retorno' a histórias originais fechadas e centradas, em termos étnicos" (p. 114).

O enraizamento do pensamento multicultural pós-colonial no pós-modernismo, em sua versão pós-estruturalista, é explicado pelo referido autor nos seguintes termos: "[...] [no pensamento pós-colonial] há uma escolha mais profunda de epistemologias: entre uma lógica racional e sucessiva e uma desconstrutora [...], o pós-colonial [é] aquilo que mais amplamente se pode chamar de formas 'pós-estruturalistas' de pensamento [...]" (p. 121). Peters (2005), na mesma perspectiva, aponta que o multiculturalismo em sua visão pós-colonial tem raízes no pensamento pós-moderno e pós-estruturalista, o que leva à expressão multiculturalismo pós-colonial ou pós-moderno. Indica que esse paradigma assume a pluralidade cultural de forma que se rompa com a divisão das identidades culturais em duas categorias separadas e discretas (na linha "opressor-oprimido"), desafiando a reificação e a homogeneização dessas partes e passando a assumir as conexões, a fluidez das fronteiras entre culturas e identidades que levam a hibridizações e outros processos relacionais entre elas.

Trazendo tais preocupações para a área educacional, Hickling-Hudson (2003) aponta que os educadores multiculturalistas pós-coloniais irão preocupar-se em transmitir, para os estudantes, que é fundamental criticar e pensar, no campo do currículo, para além do legado modernista de divisões e fronteiras, trabalhando o multiculturalismo no contexto de migrações, diásporas, hibridismos e as novas formações identitárias.

A partir do exposto, argumentamos que a formação continuada de professores, a partir da perspectiva multicultural pós-colonial, favorecerá a compreensão de que: as identidades e as posições políticas não se conformam a binarismos, sendo essencialmente híbridas, sincréticas, não puras; os "efeitos de fronteira" são construídos discursivamente; a proliferação de histórias e temporalidades dos alunos e alunas deve ser considerada, assim como devem ser levadas em conta "a intrusão da diferença, [...] a multiplicidade de conexões culturais laterais e descentradas, os movimentos e migrações que compõem hoje o mundo" (Hall, 2003, p. 111), desafiando congelamentos identitários e discursos preconceituosos contra aquele percebido como "diferente".

Nessa perspectiva, a partir da centralidade da identidade no pensamento multicultural, os seguintes eixos didático-pedagógicos são propostos para o desenvolvimento de ações de formação continuada em uma perspectiva multicultural: a) articulação dos conteúdos didático-pedagógico-curriculares ao olhar multicultural, analisando as tensões entre universalismo e relativismo, homogeneização e pluralismo, bem como questionando e desafiando narrativas que constroem preconceituosamente a identidade do "outro"; b) o trabalho com os saberes docentes e com os professores como pesquisadores em ação (Zeichner, 2009; Canen; Santos, 2009), com o desenvolvimento dos espaços/tempos de formação continuada voltados ao desenvolvimento da identidade docente e da identidade institucional da escola como uma organização multicultural (Canen ; Canen, 2005), ou seja: aquela que deve apresentar, em suas políticas e práticas, respostas e ações valorizadoras da diversidade e desafiadoras de assédios, bullying e preconceitos, bem como articuladoras da visão multicultural à inclusão em educação (Xavier; Canen, 2008). Nessa perspectiva, Morris e Monroe (2009) analisam impactos contextuais sobre a formação das identidades étnico-raciais de alunos e professores, demonstrando a relevância do olhar sobre a escola como espaço de cruzamento de culturas, na formação continuada docente.

Tais eixos são relevantes pelos seguintes motivos: em primeiro lugar, no sentido de sensibilizarem professores e gestores para o caráter híbrido, sempre inacabado das identidades, evitando o congelamento de visões que acabam por essencializá-las e a dicotomizar suas relações em termos de branco ou negro, masculino ou feminino e assim por diante, ajudando-os a perceberem as complexidades e imbricações múltiplas em suas construções; em segundo lugar, trazem à mente que a formação continuada de professores não deve perder de vista os três níveis identitários que configuram seu contexto de atuação multicultural, quais sejam: identidades individuais, coletivas e institucionais. Assim, ainda que se enfatizem, em alguns momentos, os dois primeiros níveis identitários (o primeiro sendo relativo aos indivíduos e o segundo aos grupos de pertencimento desses indivíduos - seja em termos raciais, de religião, de opção sexual e outros), a consideração sobre as identidades das instituições ou organizações em que esses indivíduos atuam e onde a própria formação continuada docente ocorre se torna fundamental.

A partir dessas considerações, as seguintes questões apresentam-se, nos limites do presente artigo: como se manifestam, no recorte temporal do presente milênio (2001-2009), as preocupações com a diversidade cultural na formação continuada de professores, a partir da produção do conhecimento em artigos provenientes de duas revistas brasileiras consideradas de nível internacional pelo sistema Qualis/CAPES de classificação de periódicos: Cadernos de Pesquisa, editada pela Fundação Carlos Chagas, e Revista Brasileira de Educação, editada pela Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), bem como nos pôsteres e trabalhos apresentados nas reuniões anuais da ANPEd, tendo como referência as categorias multi/interculturalismo, diversidade cultural, identidade, raça e etnia, gênero e sexualidade? Em que medida se percebem preocupações multiculturais em suas formulações? Que perspectivas apresentam?

O recorte temporal escolhido - o presente milênio - partiu do entendimento de que se trata de um marco de tempo atravessado por questões de ordem multicultural e planetária, refletindo encontros e desencontros culturais mais amplos com possibilidades de racionalizações e análises profícuas no campo da educação, particularmente na formação de professores.

A metodologia seguiu a tendência para estudos de análise de estado da arte, tais como as desenvolvidas por Brzezinski e Garrido (2001) e Moreira (2001), que fizeram levantamentos da produção de pesquisas, respectivamente, nas áreas de formação de professores e de multiculturalismo. O estudo trabalhou com a análise documental dos artigos produzidos nas revistas e nas reuniões anuais em tela, com a seguinte sistemática: no que tange aos artigos, seguiu a leitura deles em cada número dos referidos periódicos, por ano, a partir das categorias centrais de "formação de professores" e "formação continuada de professores". Essas categorias foram cruzadas com aquelas pertencentes ao campo do pensamento multicultural, tais como cultura, gênero, raça, etnia e orientação sexual, dentre outras. Tabelas foram produzidas, nas quais se buscava detectar artigos em que o multiculturalismo aparecia de forma explícita, bem como aqueles em que se anunciavam preocupações multiculturais ou potenciais multiculturais - entendidos, segundo Canen et al. (2001), como perspectivas que valorizam a diversidade cultural e se colocam no desafio a preconceitos e a desigualdades, portanto comungando dos ideais multiculturais, ainda que não tendo a categoria multiculturalismo como explicitamente balizadora das análises. Assim, os trabalhos eram considerados detentores de potencial multicultural quando utilizavam as categorias ligadas ao multiculturalismo (raça, etnia, gênero, sexualidade, diversidade cultural, identidade, inclusão, exclusão etc.), ou quando revelavam questões/preocupações ligadas à valorização da diversidade cultural, mas não se denominavam claramente multiculturais. Os considerados multiculturalmente explícitos foram aqueles que utilizavam declaradamente o termo multi/interculturalismo e/ou tinham como referencial teórico os seus pressupostos.

Sistemática semelhante foi desenvolvida no levantamento dos trabalhos da ANPEd, que envolveu, em um primeiro momento, um levantamento do total de trabalhos e pôsteres, focalizando os grupos de trabalho Didática (GT04), Formação de Professores (GT08), Educação e Relações Étnico-Raciais (GT21) e Gênero, Sexualidade e Educação (GT23), que se relacionavam à temática formação continuada de professores. É preciso explicitar que, dentro da temática central, foram incluídas outras nomenclaturas, com o efeito de busca de artigos, utilizadas como sinônimos, tais como: capacitação docente, capacitação em serviço, formação em serviço, formação continuada em serviço, formação permanente e especialização de professores. Em um segundo momento, procedeu-se à leitura e à seleção dos trabalhos encontrados que articulavam formação continuada de professores às seguintes categorias: multi/interculturalismo, identidade, diversidade cultural, raça e etnia, gênero e sexualidade. Finalmente, procedeu-se à análise dos trabalhos selecionados na 2ª etapa, procurando evidenciar seus potenciais multiculturais (Canen et al., 2001) e suas implicações teóricas e práticas.

É importante salientar, ainda, que, nos limites do presente artigo, não se optou por uma relação quantitativa dos artigos, mas sim pela análise das tendências discursivas aí evidenciadas. Também, vale registrar que a análise aqui desenvolvida faz parte de pesquisa mais ampla, tendo se dado, em uma de suas etapas, no contexto da produção do conhecimento em dois periódicos analisados como de nível internacional pelo sistema Qualis/CAPES de classificação de periódicos, a saber: Cadernos de Pesquisa (produzido pela Fundação Carlos Chagas) e Revista Brasileira de Educação (produzida pela Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação - ANPEd). Em outra etapa, o levantamento e a análise dos trabalhos apresentados nas reuniões anuais da ANPEd partiu da relevância desse fórum anual como espaço-tempo de apresentação de estudos desenvolvidos na academia, que conta com forte incidência de publicações, após as apresentações, representando trabalhos de ponta na área.

Da mesma forma, é importante assinalar que a opção pelos GTs indicados partiu do foco da pesquisa, reconhecendo-se que a temática da diversidade cultural permeia aqueles que apresentam categorias ligadas a identidades coletivas étnico-raciais, de gênero e sexualidade, assim como, conforme argumentamos, se constitui como dimensão relevante na didática e na formação de professores, o que justifica nosso recorte em termos da seleção dos grupos de trabalhos pesquisados. Desse modo, o foco nesses grupos de trabalho partiu da relevância deles para se pensar em uma formação docente para a diversidade cultural, seja pela temática pedagógica (caso do GT Didática), seja pela ênfase explícita nessa formação (GT de Formação de Professores), seja pelos potenciais multiculturais anunciados nas categorias balizadoras de suas discussões (casos dos GTs de Educação e Relações Étnico-Raciais e Gênero, Sexualidade e Educação). Também, conforme explicitado anteriormente, tais recortes partiram dos limites do presente artigo, que se refere às fases da pesquisa em que esses foram os grupos de trabalho a partir dos quais os dados foram analisados, ficando, para uma fase posterior, a análise de outros relevantes GTs, como, por exemplo, o de Currículo (GT12). É importante frisar que tal etapa também se insere em trabalho mais amplo de investigação, envolvendo fase preliminar, em 2008, que teve sua continuação em 2009, com o refinamento das categorias de análise.

A relevância do estudo dá-se na medida em que problematiza silêncios e levanta tendências, ênfases e lacunas, com possíveis potenciais de desdobramento, na produção do conhecimento na área e com expectativas de impactos nas teorias e práticas de formação continuada de professores para a diversidade cultural.

ANALISANDO A PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO NOS TRABALHOS DA ANPEd

No levantamento geral dos trabalhos apresentados nas reuniões anuais da ANPEd, no recorte de tempo explicitado no presente artigo, foram encontrados 104 trabalhos e pôsteres que se relacionavam à formação continuada de professores, sendo 19 no GT04 (Didática), 82 no GT08 (Formação de Professores), zero no GT21 (Educação e Relações Étnico-Raciais) e 3 no GT23 (Gênero, Sexualidade e Educação). Destes, apenas 9 trabalhos e pôsteres, sendo 1 no GT04, 5 no GT08 e 3 no GT23, foram considerados detentores de potenciais multiculturais (Canen et. al., 2001) ou multiculturalmente explícitos.

De fato, o trabalho localizado no GT de Didática/04 (Gomes, 2005), considerado detentor de potenciais multiculturais, discute a construção de identidades profissionais de educadoras de crianças pequenas, a partir de sua articulação com as identidades pessoais e institucionais, por meio de narrativas e da participação dessas educadoras em grupos de pesquisa-formação - experiência de desenvolvimento profissional docente, promovida pela Secretaria Municipal de Educação de São Paulo. Discute as variadas dimensões identitárias (pessoal, profissional e institucional) e sua relação com as culturas institucionais, ressaltando o caráter dinâmico e em construção da categoria identidade, em consonância com as perspectivas teóricas anteriormente discutidas, destacando, particularmente, formas pelas quais as identidades de gênero permeiam e consolidam identidades pessoais.

No caso do GT de Formação de Professores/08, dos cinco trabalhos encontrados, um deles (Lade, 2005) foi considerado detentor de potenciais multiculturais, discutindo a formação de profissionais da educação aptos a trabalharem na perspectiva da educação inclusiva, utilizando categorias consideradas centrais para o multiculturalismo crítico, tais como: inclusão, exclusão, diferença, diversidade cultural, cidadania e relações de poder.

Os outros quatro trabalhos, por sua vez, foram considerados explicitamente multiculturais: o primeiro foi encontrado na 30ª Reunião Anual (Xavier, 2007), utilizando, de forma clara, pressupostos e autores que desenvolvem referenciais teóricos multiculturais críticos e pós-coloniais, na discussão sobre uma experiência de formação continuada para professores e gestores escolares que buscava articular conteúdos pedagógicos da formação à perspectiva multicultural. Apresentou como categorias centrais: pluralidade cultural, identidade, diferença, hibridismo e relações de poder.

O segundo trabalho, um pôster, foi encontrado também na 30ª Reunião Anual, constituindo-se como um mapeamento da produção acadêmica na formação inicial e continuada de professores de educação física e suas preocupações multiculturais, a partir das reuniões da ANPEd no período de 2001 a 2006 (Silva; Janoário, 2007), utilizando-se, de forma explícita, do termo multiculturalismo e verificando em que medida o campo da educação física tem sido influenciado (ou não) por questões relacionadas à diversidade cultural dos alunos, ao desafio a ideias homogeneizadas de corpo, à pluralização das atividades esportivas para além daquelas competitivas e normatizadoras do sucesso esportivo e assim por diante.

O terceiro trabalho (Monteiro; Nunes, 2008) foi encontrado na 31ª Reunião Anual e possui, como objeto de análise, os modelos formativos e as dificuldades vividas na formação continuada de professores de classes multisseriadas no campo, a partir do Programa EducAmazônia/São Domingos do Capim-PA. As autoras destacam uma formação continuada que tem como foco a diversidade cultural, uma vez que ela é destinada à atuação com povos indígenas, afrodescendentes e trabalhadores do campo, dentre outros grupos culturais. Evidencia a necessidade de adequação dos currículos à realidade dos povos que vivem no campo e a promoção de políticas afirmativas e programas formativos preocupados com a inclusão desses grupos identitários. Apresenta, de forma explícita, a categoria multicultural, ao denominar as ações desenvolvidas como "inclusivas e multiculturais".

O quarto trabalho (Xavier, 2008), por sua vez, foi encontrado na 31ª Reunião Anual e refere-se a uma investigação sobre a produção do conhecimento na formação continuada de professores e gestores escolares como objeto de pesquisa no contexto da formação de profissionais da educação brasileira, procurando evidenciar de que forma a temática formação continuada tem sido discutida ou influenciada por preocupações multiculturais, na produção de conhecimento na área. Para tanto, foram analisados os resumos das dissertações e teses disponíveis no Banco de Teses da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), defendidas de 1987 a 2006, e nos pôsteres e trabalhos apresentados de 2000 a 2007 no GT08 - Formação de Professores, disponíveis no site da ANPEd.

No que se refere ao GT de Educação e Relações Étnico-Raciais/21, é importante salientar que foram consideradas as diversas fases e nomenclaturas assumidas desde a sua criação, durante a 25ª Reunião Anual em 2002, na qual era denominado Relações Raciais/Étnicas e Educação. Embora a temática mobilizadora desse GT possua características e categorias de análise (raça e etnia) detentoras de potenciais multiculturais (Canen et. al., 2001), não foi encontrado trabalho que articulasse tais potenciais à formação continuada de professores propriamente dita.

Finalmente, quanto ao GT Gênero, Sexualidade e Educação/23, semelhantes observações feitas no caso do GT de Educação e Relações Étnico-Raciais aplicam-se, uma vez que também foram consideradas as suas várias fases, desde a sua criação como Grupo de Estudos (GE) na 27ª Reunião Anual em 2004. Da mesma forma que o GT21, o GT23 trabalha com categorias de análise (gênero e sexualidade) que o configuram como um GT que apresenta temáticas detentoras de potenciais multiculturais (Canen et al., 2001). No que se refere a trabalhos relacionados à formação continuada de professores, foram encontrados três considerados portadores de tais potenciais.

O primeiro trabalho (Dazzi, 2004) foi localizado na 27ª Reunião Anual, discorrendo sobre a capacitação de professores na prevenção de HIV/AIDS, desenvolvida por meio de mídias educativas (vídeos) produzidas pelo Ministério da Saúde - Coordenação Nacional DST/AIDS - Programa Prevenir É Sempre Melhor. Guiada pela abordagem dos estudos culturais, a autora discute o "governamento" dos corpos/sexualidade, por meio dos discursos oficiais (vozes autorizadas, posições e produções de sujeito) e as relações de poder envolvidas, focalizando identidades de gênero que são atingidas nesses processos e a necessidade de formação docente continuada para lidar com eles.

O segundo trabalho (Castro, 2008) foi encontrado na 31ª Reunião Anual e apresenta um estudo sobre as ações empreendidas para a capacitação de professores, por meio do Programa de Educação Afetivo-Sexual/PEAS (SEEMG/Fundação Odebrecht), que trata das relações que envolvem sexualidade e gênero, tendo como foco a adolescência. Utilizando-se da abordagem pós-estruturalista, o autor procura problematizar a formação docente para a abordagem da sexualidade no ambiente escolar, empregando as categorias discurso, identidade e sexualidade como centrais nas análises empreendidas.

O terceiro trabalho (Tortato, 2008), por sua vez, refere-se a uma pesquisa apresentada na 31ª Reunião Anual, que teve como foco formas pelas quais a literatura infantil foi trabalhada em um dos módulos de um curso de capacitação para profissionais da educação da rede municipal de ensino do município de Matinhos-PR, que tinha como objetivo refletir sobre as questões de gênero e sexualidade na sociedade e na escola, a fim de promover uma educação democrática e inclusiva. Para tanto, o artigo discute as questões de gênero, diversidade sexual e educação, bem como as vivências dos participantes e o conceito de família, articulando-os ao trato da diversidade cultural no espaço escolar.

Observa-se que o levantamento e a análise dos dados realizados nessa etapa da pesquisa evidenciaram, ainda, a existência de um número restrito de trabalhos que articulavam a formação continuada de professores a perspectivas multiculturais explícitas. De fato, os dados demonstraram que, apesar de a formação continuada de professores constituir-se como objeto de um considerável número de pesquisas, ela ainda se encontra praticamente restrita ao GT08, sendo pouco explorada nos outros GTs estudados. Ainda assim, são raros os trabalhos que possuem um foco explicitamente multicultural, ou mesmo potenciais multiculturais.

De fato, as tendências mais constantes nos trabalhos analisados referem-se a temáticas como a profissionalização do professor e os saberes e práticas docentes. Não por acaso, o autor mais citado é Antonio Nóvoa, que aparece em 37 dos trabalhos encontrados, seguido por autores como Paulo Freire, Maurice Tardiff, Philippe Perrenoud, K. Zeichner e Donald Schön.

No que se refere especificamente aos cinco trabalhos selecionados como sendo portadores de potenciais multiculturais, eles utilizavam, em sua maioria, como referenciais, a perspectiva dos estudos culturais e/ou o pós-estruturalismo. Apesar de apresentarem categorias e discussões pertinentes a uma abordagem multicultural, é raro haver referência ou citação a essa perspectiva nos textos. No entanto, é possível afirmar que tais trabalhos apresentam potenciais multiculturais, visto que discutem a questão da diversidade cultural (sexual, de gênero, identitária) e as relações de poder que perpassam a escola e a formação docente.

Em relação aos quatro trabalhos considerados explicitamente multiculturais, conforme pudemos ver, estes encontram-se concentrados no GT08, sendo que um pode ser classificado como pertencendo à perspectiva multicultural crítica (Monteiro; Nunes, 2008), dois como imbuídos de uma perspectiva multicultural crítica e pós-colonial (Xavier, 2007; 2008) e um como de perspectiva indefinida (Silva; Janoário, 2007), uma vez que não foi possível acessar o artigo, na íntegra, mas tão somente o resumo do pôster.

Um outro dado interessante revela-se nos GTs 21 e 23, que se focam especificamente em temas considerados pertencentes à área do multiculturalismo: a inexistência (GT21), ou a parca existência de trabalhos (GT23) que articulem as questões como raça, etnia, gênero e sexualidade com a formação continuada de professores. Esse fato poderia ser explicado, talvez, pelo fato de haver um GT exclusivo para discutir a formação de professores. Entretanto, conforme foi comentado, também no GT08 foram raros os trabalhos que discutiam diretamente tais categorias. Um repensar das fronteiras disciplinares e de campos entre os GTs poderia ser fomentado, incentivando-se, talvez, reflexões sobre possibilidades de novas configurações que, ainda que em um primeiro momento não se contrapusessem à divisão dos GTs, poderiam em outra perspectiva, aglutinar temáticas "inter-GTs", no contexto da complexidade do conhecimento em educação.

ANALISANDO A PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO NOS PERIÓDICOS

Os dados referentes aos dois periódicos analisados na outra etapa da pesquisa indicaram algumas tendências, em termos de preocupações com a diversidade cultural e formas pelas quais se articulavam à categoria identidade.

Uma primeira tendência foi a de preocupação multicultural com ênfase em identidades coletivas, com destaque para a identidade indígena (Monte, 2000; Silva, 2000; Paes, 2002; Weigel, 2003; Cavalcante, 2003; Oliveira, 2003; Gomes, 2006). Trabalhos nessa linha desenvolveram-se a partir de uma visão multicultural pós-colonial, ressaltando a diversidade dentro da categoria indígena, de modo que se levem em conta as configurações culturais e as expectativas dessas identidades nas escolas, entendidas como espaços de fronteira. Há destaque (por exemplo, Cavalcante, 2003) para a compreensão da inserção indígena na universidade, em cursos em que estão presentes, no intuito de se repensar esse espaço e o currículo aí desenvolvido.

Também nessa perspectiva das identidades coletivas como questão central da formação docente multicultural, destacam-se estudos sobre a identidade negra. Assis e Canen (2004), por exemplo, objetivaram investigar como se formavam as identidades negras de professores-formadores, atuando em curso de formação continuada, na forma de pós-graduação lato sensu, destacando a constituição identitária como formada nos espaços vivenciados nas histórias de vida, com implicações para cursos de formação docente e para o currículo multicultural. A identidade negra também esteve presente em outros trabalhos (Coelho, 2007; Carvalho, 2005; Valente, 2005; Gonçalves; Silva, 2000) que abordam a discriminação e o racismo no currículo e no cotidiano escolar.

Em menor escala, preocupações multiculturais giraram em torno da questão da identidade coletiva de alunos com necessidades especiais, em termos das políticas e seus silêncios (Michels, 2006); identidades coletivas de imigrantes e saberes curriculares por eles e para eles produzidos (Kreutz, 2000; Wanderer; Knijnik, 2008); identidades coletivas de jovens e adultos (Paiva, 2006), com ênfase na necessidade de concepções de formação continuada de professores que leve em conta as identidades culturais específicas dessa população; identidades coletivas degênero, particularmente enfatizando a identidade feminina (Barroso, 2004; Vianna; Unbehaum, 2004). Certos trabalhos, como, por exemplo, os de Vianna (2000), Roldão (2007), Rosa e Ramos (2008) e Carvalho (2005), associaram a identidade coletiva docente, entendida enquanto identidade profissional, a histórias de vida e narrativas de militância política, de enfrentamento a repressões, de participação em ONGs e outras instâncias, bem como questionaram as percepções e os saberes específicos docentes como constituidores de suas identidades, com implicações para a formação docente. No caso de Viana (2000), esse tipo de abordagem foi ligado a questões de gênero, sugerindo, dessa feita, uma recomposição da identidade docente para além da participação nos sindicatos e um olhar que supere o da voz feminina, incorporando a identidade masculina nessa esfera.

É importante notar que, nessa categoria de trabalhos, não se verificou, em nenhum dos dois periódicos no período em tela, qualquer menção a estudos de gênero que abordassem a perspectiva da identidade coletiva homossexual, ao contrário da literatura internacional, na qual os denominados queer studies (teoria queer) têm embasado olhares sobre a questão.

Uma segunda tendência detectada a partir dos dados foi a ênfase nos aspectos macropolíticos que envolvem a formação continuada de professores (Gatti, 2008). Nessa tendência, para além da descrição de programas, observou-se forte predomínio de ensaios, associando as tendências políticas de formação continuada a movimentos ligados a organismos multilaterais.

No entanto, para além das críticas, alguns autores propuseram articulações entre as propostas políticas a tendências de valorização da diversidade, aproximando-se mais de uma visão da identidade institucional ou organizacional (Canen; Canen, 2005; Morris; Monroe, 2009), onde se dá a formação continuada de professores. Por exemplo, Dubet (2004) menciona que devemos, em uma perspectiva de escola justa, articular a ideia da "escola meritocrática" a algumas considerações, tais como a existência de uma "dose de discriminação positiva" de identidades marginalizadas e a "garantia de competências mínimas" para elas. Também se observa que preocupações multiculturais, ainda que tangentes, estiveram presentes em alguns desses artigos, no intuito de: a) defender a preservação da diversidade cultural das escolas e dos fazeres e saberes docentes, como formas de resistência à homogeneização das perspectivas denunciadas; b) realizar levantamento de perspectivas multiculturais e seus impactos curriculares, a partir de artigos publicados (Moreira, 2001) e de análise de tendências e tensões epistemológicas do campo (Candau, 2008b); c) analisar o espaço da branquidade nas discussões sobre raça e etnia na educação e na formação docente (Apple, 2001); d) compreender espaços de resistências, ressignificações e hibridizações culturais desenvolvidas pelos professores e pelas Secretarias de Educação em seus programas e propostas de formação continuada (Duarte, 2004; Santos, 2000).

Finalmente, em menor proporção, uma terceira tendência foi a preocupação com a diversidade cultural dos professores e a explicitação de possíveis conteúdos curriculares, tanto das escolas como de formação docente, que levassem em conta a diversidade cultural. Em um ensaio sobre o assunto, Tardiff (2000) traz à tona a necessidade de maior articulação entre os saberes dos cursos de formação continuada e os saberes docentes. Ainda que implícitas, as preocupações com a diversidade cultural puderam ser identificadas quando o autor enfatiza que esses saberes deveriam ter implicações sobre o respeito e a apreciação aos outros, destacando que a lógica disciplinar que trata alunos como "espíritos virgens" deveria dar lugar a outras lógicas, que considerassem suas crenças, culturas e modos de ver o mundo, bem como que ligasse esses componentes à socialização profissional docente, ela própria mobilizadora de questionamentos identitários e éticos.

Dois outros estudos (Chassot, 2003; Santos, 2007) falaram da alfabetização científica para a inclusão social, enfatizando as culturas dos alunos e sua incorporação no ensino de ciências como linha emergente na didática das ciências, com consequências implícitas para a formação de professores. Também o já citado estudo voltado a imigrantes desenvolvido por Wanderer e Knijnik (2008) se insere nessa perspectiva, analisando implicações curriculares na matemática em função da diversidade cultural imigrante. Em um dos trabalhos, embora a pluralidade cultural fosse levada em conta para a formação continuada de professores, na verdade ela era compreendida a partir de uma perspectiva assimilatória, no sentido de trazer professores e profissionais em serviço para o contato com conteúdos curriculares socialmente valorizados, associadas ao que se denomina "cultura erudita", entendida de forma homogeneizada. Por exemplo, o acesso à arte, por parte de professores, foi destacado em um deles (Sardelich, 2001).

Ainda na tendência da ênfase aos conteúdos curriculares em uma perspectiva multicultural, o estudo de Araújo e Pérez (2006) buscou detectar falas e concepções de professoras alfabetizadoras, tangenciando o que se espera de conteúdos para alunos culturalmente diferenciados, ainda que o aspecto multicultural não tenha sido a tônica a imbuir o olhar do estudo. Canen e Oliveira (2002), por sua vez, a partir de categorias multiculturais explícitas, analisaram a forma pela qual uma professora de ciências desenvolvia uma abordagem antirracista aos temas trabalhados, detectando eixos e categorias multiculturais balizadoras de práticas docentes curriculares, sinalizando possibilidades de trabalho futuro na formação docente inicial e continuada.

O balanço da produção, objeto do presente estudo, pareceu indicar que, de forma geral, o multiculturalismo desponta como cerne de preocupações, embora ainda com fraca presença, se considerarmos a pouca frequência com que aparece, de forma explícita, a balizar as análises. No entanto, as preocupações ou potenciais multiculturais (Canen et al., 2001) puderam ser detectados em trabalhos que, ainda que em outros referenciais, tenderam a desenvolver a sensibilidade para a diversidade cultural, seja em relação a identidades individuais, coletivas ou institucionais, com contribuições para as reflexões sobre a formação continuada docente para essa diversidade.

CONCLUSÕES: BALANÇO DA PRODUÇÃO, ÊNFASES, SILÊNCIOS E PERSPECTIVAS FUTURAS

Este estudo buscou analisar a produção do conhecimento em formação continuada de professores, no recorte temporal do presente milênio, a partir de dois periódicos classificados como de nível internacional pelo sistema Qualis/CAPES, bem como a partir da produção acadêmica dos trabalhos apresentados nas reuniões da ANPEd. Mais do que um levantamento quantitativo sobre a presença de preocupações multiculturais (explícitas ou não) nesses estudos, o artigo procurou delinear tendências, ênfases, espaços de silêncio e possibilidades futuras, nessa produção.

No que concerne ao levantamento dos trabalhos apresentados nas reuniões da ANPEd, discutiu-se a produção do conhecimento na formação continuada de professores e seus potenciais multiculturais, apresentada nos GTs Didática/04, Formação de Professores/08, Educação e Relações Étnico-Raciais/21 e Gênero, Sexualidade e Educação/23, a partir da análise das categorias multi/interculturalismo, diversidade cultural, identidade, raça, etnia, gênero e sexualidade. Foram discutidas tendências, ênfases e omissões aí presentes, bem como temáticas e metodologias propostas. Verificou-se a existência de um número reduzido de trabalhos que articulassem a formação continuada de professores a perspectivas multiculturais. Ao mesmo tempo, também foi possível perceber que os poucos trabalhos existentes, fossem eles portadores de potenciais multiculturais ou multiculturalmente explícitos, se encontravam voltados para perspectivas mais críticas do multiculturalismo, no espaço escolar e naquele da formação docente.

No caso do levantamento de artigos das duas revistas analisadas, três tendências foram detectadas, em termos da forma pela qual trataram das identidades culturais plurais e dos saberes curriculares da formação continuada em tela. Dentre as ênfases detectadas, percebeu-se um predomínio de estudos teóricos, na forma de ensaios ou análises de políticas e de perspectivas analíticas, em detrimento de estudos de campo. Ao mesmo tempo, o foco, em termos de identidades, pareceu recair naquelas marginalizadas, tomadas de forma coletiva, particularmente referentes a indígenas (com o maior número de trabalhos no período), em detrimento de pesquisas com identidades plurais, no contexto de escolas públicas, bem como silenciando estudos sobre currículo em ação, suas dimensões e seus impactos em contextos escolares e de formação docente multicultural. Também não se percebeu a presença de trabalhos sobre a gestão no contexto de escolas tomadas como organizações multiculturais, ou análises de experiências e narrativas de desenvolvimento de ações concretas no cotidiano escolar, junto a profissionais e professores de escolas. Da mesma forma, experiências com a diversidade sexual nas escolas não estiveram presentes, bem como houve pouca penetração de metodologias de pesquisa-ação e de cunho quantitativo.

Que implicações e contribuições são decorrentes da análise? Em primeiro lugar, em termos epistemológicos, seria interessante que as pesquisas que tomam as identidades coletivas como foco, predominantes nos artigos analisados, pudessem enriquecer-se de visões multiculturais pós-coloniais, inquirindo de forma mais explícita sobre processos de hibridização identitária, cruzamento de fronteiras e desafio a binarismos. Nessa perspectiva, trazemos as considerações de McCarthy (2005), para quem pesquisadores multiculturalistas pós-coloniais deveriam questionar o próprio poder da narrativa de suas pesquisas, verificando se falam em nome dos "oprimidos", como se fossem categoria imaginada, homogeneizada, ou se verdadeiramente trazem, para seus trabalhos, as vozes e práticas culturais plurais das identidades híbridas a que se referem, para facilitar a compreensão dos processos de hibridização e rearticulação identitária constantes que ocorrem no decorrer das relações culturais, para além de divisões raciais, étnicas e de Estados-nação.

Em segundo lugar, parece haver a necessidade de maior articulação entre estudos curriculares multiculturais pós-coloniais e o "chão da escola", de modo que se percebam formas pelas quais o cruzamento de fronteiras, a hibridização identitária e a pluralidade podem ser conectadas ao currículo escolar e de formação docente, para além de disciplinas específicas que tratem dessas questões. Categorias multiculturais pós-coloniais relativas à transitoriedade da formação identitária, à relevância da identidade institucional (escolar ou de formação de professores) e seus impactos contextuais sobre as culturas dos alunos poderiam contribuir para análises que verificassem formas pelas quais escolas culturalmente abertas, plurais e democráticas poderiam desenvolver-se cada vez mais, estudando essas questões no cotidiano escolar. Seria interessante, também, estudar formas de articulação das considerações multiculturais pós-coloniais ao planejamento, à execução e à avaliação das ações pedagógico-curriculares concretas. Discussões sobre tensões entre universalismo e relativismo nessas temáticas, de que forma influenciam o currículo, em que medida trazem a pluralidade cultural e o hibridismo para o cerne de suas preocupações, poderiam avançar nas pesquisas multiculturais sobre formação docente. Da mesma forma, como contribuição do trabalho, recomendaríamos, a partir do olhar multicultural pós-colonial, a intensificação de estudos sobre histórias de vida, narrativas e ações dos atores escolares e de formação docente, entendendo tais vozes plurais como constitutivas das identidades institucionais e como protagonistas de ações curriculares.

Grosso modo, parece que estamos em um momento de mudanças, em que anúncios multiculturais podem e devem seguir-se a denúncias de sua ausência. A parceria entre a universidade e as escolas, com a fértil troca de saberes no contexto da formação continuada, pode representar instância multicultural transformadora, na medida em que permite o encontro entre culturas diferenciadas e novas sínteses dele decorrentes, rumo a uma educação valorizadora da diversidade cultural e promotora do sucesso e da equidade, em suma, uma educação culturalmente responsiva.

Novas produções acadêmicas podem adicionar-se às existentes nessa perspectiva, de modo que possamos contar com mais narrativas, a partir das vozes dos professores-pesquisadores de ambos os lóci, sobre desdobramentos curriculares multiculturais no contexto das escolas brasileiras, para um movimento crescente de formação continuada valorizadora da diversidade cultural e da equidade escolar.

Nesse sentido, fazemos votos de que estudos que articulem a formação continuada de professores a perspectivas multiculturais possam configurar-se como caminho a ser mais bem explorado, desafiador e instigante, de modo que contribua para propiciar, a pesquisadores e professores, processos de reflexão que permitam construir uma escola mais justa e democrática e, consequentemente, mais coadunada com a realidade sociocultural plural brasileira.

Recebido em setembro de 2010

Aprovado em junho de 2011

SOBRE AS AUTORAS

Ana Canen é PhD em educação pela University of Glasgow. Professora associada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

E-mail: acanen@globo.com

Giseli Pereli de Moura Xavier é professora do Centro Universitário da Cidade do Rio de Janeiro (UniverCidade) e doutoranda em educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

E-mail: titogigi@uol.com.br

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    Versão preliminar deste artigo foi apresentada na forma de painel no Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino (ENDIPE) 2010, Belo Horizonte-MG.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Fev 2012
    • Data do Fascículo
      Dez 2011

    Histórico

    • Recebido
      Set 2010
    • Aceito
      Jun 2011
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