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Ler e escrever: habilidades de escravos e forros? Comarca do Rio das Mortes, Minas Gerais, 1731-1850

Leer y escribir: ¿habilidades de esclavos y de libertos? Comarca de Rio das Mortes, Minas Gerais, 1731-1850

Reading and writing: skills of slaves and freed slaves? County of Rio das Mortes, Minas Gerais, 1731-1850

Resumos

Neste artigo busca-se analisar as relações estabelecidas entre escravos e ex-cativos (forros) com a cultura escrita, a partir de um recorte de longa duração (1731-1750) e de um levantamento quantitativo de documentos produzidos na Comarca do Rio das Mortes, Minas Gerais. As assinaturas foram elevadas ao estatuto de fontes para inferir os graus de letramento daqueles capazes de firmar seus nomes. As capacidades autográficas foram coletadas em processos-crime e testamentos, tendo sido as chancelas originais qualificadas com o auxílio de uma escala de assinaturas. Outras fontes analisadas foram as notícias de venda ou fuga de escravos, publicadas em um periódico do Oitocentos, uma vez que alguns anúncios informavam se os escravos sabiam ler e escrever. Ao longo do período analisado, percebeu-se uma continuidade na posse das tecnologias de leitura e escrita por parte dos homens que exerciam ofícios especializados, como os alfaiates, pedreiros e carpinteiros.

escravidão; cultura escrita; graus de letramento


En este artículo se busca analizar las relaciones que se establecen entre esclavos y ex cautivos (libertos) con la cultura escrita, a partir de un recorte de larga duración (1731-1750) y de un levantamiento cuantitativo de documentos producidos en la Comarca de Rio das Mortes, Minas Gerais. Las firmas fueron elevadas al estatuto de fuentes para inferir los grados de letramiento de aquellos que son capaces de firmar sus nombres. Las capacidades autográficas fueron recogidas en procesos de crímenes y testamentos, habiendo sido los sellos originales calificados con el auxilio de una escala de formas. Otras fuentes analizadas fueron las noticias de venta o fuga de esclavos, publicadas en un periódico de los ochocientos, una vez que algunos periódicos informaban si los esclavos sabían leer y escribir. A lo largo del período analizado, se nota una continuidad en la posesión de las tecnologías de lectura y escrita por parte de los hombres que ejercían oficios especializados, como los sastres, albañiles y carpinteros.

esclavitud; cultura escrita; grados de letramiento


This article seeks to analyse the relations established between slaves and freed slaves and written knowledge, based on the period between 1731 and 1750 and on a quantitative survey of documents produced by the County of Rio das Mortes, Minas Gerais. The signatures on these documents were considered as valid data for evaluating the degree of literacy of those capable of signing their names. The autographic data were collected from criminal proceedings and wills, after the original signatures had been qualified with the help of a set of signatures. Other sources were the publishing, in an eighteenth century periodical, of information on the sale or escape of slaves given that some of the news items informed whether or not the slaves were literate. Throughout the period analysed, it became apparent that those who had specialized jobs, like tailors, masons and carpenters, were the ones who dominated the techniques of reading and writing.

slavery; written knowledge; degrees of literacy


ARTIGOS

Ler e escrever: habilidades de escravos e forros? Comarca do Rio das Mortes, Minas Gerais, 1731-1850

Reading and writing: skills of slaves and freed slaves? County of Rio das Mortes, Minas Gerais, 1731-1850

Leer y escribir: ¿Habilidades de esclavos y de libertos? Comarca de Rio das Mortes, Minas Gerais, 1731-1850

Christianni Cardoso Morais

Universidade Federal de São João del-Rei, Departamento de Educação; Doutoranda em História pela Universidade Federal de Minas Gerais

RESUMO

Neste artigo busca-se analisar as relações estabelecidas entre escravos e ex-cativos (forros) com a cultura escrita, a partir de um recorte de longa duração (1731-1750) e de um levantamento quantitativo de documentos produzidos na Comarca do Rio das Mortes, Minas Gerais. As assinaturas foram elevadas ao estatuto de fontes para inferir os graus de letramento daqueles capazes de firmar seus nomes. As capacidades autográficas foram coletadas em processos-crime e testamentos, tendo sido as chancelas originais qualificadas com o auxílio de uma escala de assinaturas. Outras fontes analisadas foram as notícias de venda ou fuga de escravos, publicadas em um periódico do Oitocentos, uma vez que alguns anúncios informavam se os escravos sabiam ler e escrever. Ao longo do período analisado, percebeu-se uma continuidade na posse das tecnologias de leitura e escrita por parte dos homens que exerciam ofícios especializados, como os alfaiates, pedreiros e carpinteiros.

Palavras-chave: escravidão; cultura escrita; graus de letramento

ABSTRACT

This article seeks to analyse the relations established between slaves and freed slaves and written knowledge, based on the period between 1731 and 1750 and on a quantitative survey of documents produced by the County of Rio das Mortes, Minas Gerais. The signatures on these documents were considered as valid data for evaluating the degree of literacy of those capable of signing their names. The autographic data were collected from criminal proceedings and wills, after the original signatures had been qualified with the help of a set of signatures. Other sources were the publishing, in an eighteenth century periodical, of information on the sale or escape of slaves given that some of the news items informed whether or not the slaves were literate. Throughout the period analysed, it became apparent that those who had specialized jobs, like tailors, masons and carpenters, were the ones who dominated the techniques of reading and writing.

Key words: slavery; written knowledge; degrees of literacy

RESUMEN

En este artículo se busca analizar las relaciones que se establecen entre esclavos y ex cautivos (libertos) con la cultura escrita, a partir de un recorte de larga duración (1731-1750) y de un levantamiento cuantitativo de documentos producidos en la Comarca de Rio das Mortes, Minas Gerais. Las firmas fueron elevadas al estatuto de fuentes para inferir los grados de letramiento de aquellos que son capaces de firmar sus nombres. Las capacidades autográficas fueron recogidas en procesos de crímenes y testamentos, habiendo sido los sellos originales calificados con el auxilio de una escala de formas. Otras fuentes analizadas fueron las noticias de venta o fuga de esclavos, publicadas en un periódico de los ochocientos, una vez que algunos periódicos informaban si los esclavos sabían leer y escribir. A lo largo del período analizado, se nota una continuidad en la posesión de las tecnologías de lectura y escrita por parte de los hombres que ejercían oficios especializados, como los sastres, albañiles y carpinteros.

Palabras claves: esclavitud; cultura escrita; grados de letramiento

Na década de 1870, período em que a escravidão no Brasil mostrava sinais de sua fragilidade, intelectuais sistematizaram estudos sobre o fim desse modelo de organização social. As interpretações raciais ganharam força, sendo a questão da mestiçagem racial considerada importante para pensar possíveis alternativas para a construção de um projeto de nação. Para grande parte de nossos estudiosos, "os mestiços exemplificavam [...] a diferença fundamental entre as raças e personificavam a `degeneração' que poderia advir do cruzamento de `espécies diversas'" (Schwarcz, 2004, p. 56).11 A noção de "raça" foi incorporada de diferentes modos pelos intelectuais brasileiros de finais do XIX, mas é importante reter que esse termo pressupõe que existem diferenças físicas, morais e intelectuais que são transmitidas hereditariamente entre os diversos grupos humanos. Entre as "raças" que compunham a população que vivia no Brasil (portugueses, índios e negros), a "raça negra", de acordo com Raimundo Nina Rodrigues, era considerada inferior e "por maiores que tenham sido os seus serviços a nossa civilização [...] há de constituir sempre um dos fatores de nossa inferioridade como povo" (1982, p. 7). Essa representação da "raça negra" como inferior resiste até os dias atuais, apesar de combatida por Gilberto Freyre em Casa grande & senzala, obra cuja primeira publicação data de 1933.22 O conceito de "representação" é aqui utilizado como uma "ferramenta" para analisar o conjunto de discursos construídos sobre o mundo social que, embora aspirem à neutralidade e universalidade, "são sempre [determinados] pelos interesses de grupos que [os] forjam". Essas "percepções do social [...] produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade à custa de outros" (Chartier, 1990, p. 17). A "representação" não é uma cópia fiel da realidade vivida, pois remete à função de apresentar novamente à consciência uma "coisa" ou objeto ausente, reconstruído a partir dos signos. A noção de "apropriação" também utilizada ao longo do texto refere-se a "uma história social das interpretações, remetidas para as suas determinações fundamentais (que são sociais, institucionais, culturais)" (Chartier, 1990, p.26). Desse modo, a construção de sentido é considerada intrinsecamente ligada à inserção sociocultural dos sujeitos em análise. Freyre critica abertamente as teorias raciais e aponta caminhos inéditos para a pesquisa sobre a história dos africanos que foram trazidos como escravos para a América portuguesa. Considera a diversidade da cultura dos africanos superior à dos indígenas e à dos portugueses, em aspectos como a arte e as técnicas agrícolas, pastoris, comerciais etc.

A partir de uma maior institucionalização das universidades no Brasil, foram construídos outros modos de abordar o tema escravidão. Na década de 1960, tem-se a tradição inaugurada pelos trabalhos do grupo denominado Escola Sociológica Paulista. Segundo essa perspectiva, havia um processo de "coisificação" subjetiva e/ou social dos escravos no Brasil, ou seja, tanto a sociedade (respaldada legalmente) quanto os próprios escravos consideravam os cativos como mercadorias. Estes só conseguiriam romper esse processo de "coisificação" a partir do momento em que se rebelassem violentamente contra o sistema escravista, fugindo dos cativeiros, formando quilombos. A visão de Florestan Fernandes sobre os escravos era de que eles se encontravam "à margem da vida nacional" (1965, p. 29).

A partir da década de 1980, pesquisadores têm buscado rever esses estereótipos e relativizar a dicotomia "coisa" versus "quilombola". Consideram que nem sempre o que é previsto legalmente é vivido nas relações sociais. Não se pretende negar o caráter violento da escravidão, mas sim reconhecer que a violência, sozinha, não poderia manter o escravismo funcionando de forma dinâmica. Busca-se uma aproximação de "um mundo criado pelos escravos na sua permanente negociação com os senhores" (Fonseca, 2002, p. 16). Parte-se do pressuposto de que, mesmo sendo os escravos considerados legalmente propriedade de seus senhores, as relações sociais são extremamente complexas e as formas de negociação pela liberdade (nem sempre sinônimo de alforria), estabelecidas de múltiplas maneiras. Os africanos possuíam identidade e cultura próprias, eram capazes de reelaborar essas identidades (individual e/ou coletivamente), de ter sua própria visão da escravidão, mesmo que limitada pelas imposições de seus proprietários. Assim, de acordo com Sheila de Castro Faria (1994), não se pode dar uma única resposta à pergunta: o que era ser escravo?

A questão do hibridismo volta à tona no fim do século XX, mas com novas roupagens. Não se trata mais de procurar estudar a mestiçagem racial. A questão em foco passa a ser o hibridismo cultural, considerando que culturas diferentes não são inferiores e podem, em convivência, apropriar ou incorporar elementos umas das outras, a partir de "mediadores culturais". Admite-se a possibilidade de "superposição de culturas", ou seja, de culturas diversas coexistirem no espaço geográfico sem se misturarem, mantendo o que se denomina também "impermeabilidade cultural". Essa perspectiva é adotada por historiadores como Serge Gruzinski (2001, 2004) e Ernestine Carreira (1997), que não pensam o mundo colonial de forma estanque, mas em constante comunicação. Colônias e metrópoles estariam integradas a partir do comércio de objetos, do tráfico de escravos, da introdução e utilização de alimentos oriundos de continentes distintos, da utilização de técnicas européias e materiais das colônias na edificação de construções, do uso de mão-de-obra nativa, da tradução de línguas ou da circulação de crenças - características desse mundo de constantes trocas e em movimento contínuo. A idéia da existência do tráfico de escravos africanos e fluxo de mercadorias circunscrito às Américas, à África Ocidental e à Europa ("comércio triangular") não se sustenta perante os indícios documentais nos quais essa perspectiva de análise se baseia.33 Um exemplo de trabalho ancorado na idéia de "comércio triangular" em Adékòyà (1999).

Desde a década de 1980 há pesquisadores que se ocupam de estudar a maneira como se constituíam as famílias escravas e as relações de compadrio, outros que se preocupam com as maneiras como os africanos criavam uma identidade social ou mantinham suas tradições culturais no Brasil e ainda os que buscam entender como se davam as negociações entre escravos e senhores, as fugas etc. Mais recentemente, assiste-se a essa produção acerca do movimento de mundialização e mestiçagem referido, mas poucos se têm dedicado à procura de registros que permitam estabelecer como eram as relações dos escravos ou libertos que viviam no Novo Mundo com a cultura escrita. Tentando preencher essa lacuna, o objetivo do presente texto é analisar as relações estabelecidas entre escravos e forros com o escrito em suas variadas formas, em um período no qual não se pretendia constituir políticas para a escolarização desses sujeitos. Assim, o presente trabalho justifica-se por abordar um tema, um período e um espaço geográfico pouco estudados pela história da educação no Brasil. Procura-se entender como determinados agentes históricos superaram a condição de "iletrados", conseguindo se apropriar e utilizar as tecnologias de ler e escrever.

O recorte cronológico foi, em certa medida, imposto pela própria documentação, que é mais abundante no período tomado como referência. As fontes mais antigas que permitiram que este estudo fosse factível datam de 1731. O extenso recorte temporal (1731-1850) justifica-se pelo fato de que, segundo Justino Magalhães (1994) e Maria do Céu Alves (2003), no mundo da cultura, no curto prazo, as permanências são mais perceptíveis do que as mudanças. Dessa maneira, os estudos na longa duração permitem que as rupturas e os retrocessos também sejam identificados e analisados. Até a segunda metade do XIX, as aprendizagens de leitura e escrita davam-se em momentos dissociados. Tanto no espaço doméstico, quanto nas aulas de professores particulares ou nas "aulas públicas", aprendia-se, primeiramente, a técnica da leitura - em estágios que variavam entre um e dois anos de prática. Depois, caso houvesse possibilidades, aprendia-se a escrever e, por fim, as quatro operações básicas da matemática (Viñao Frago, 1993). Essa dissociação de tempos de aprendizado da leitura e da escrita até meados do século XIX é de extrema importância para o presente estudo, fato que será explorado mais detidamente no decorrer do texto. Além de considerar-se o ensino não simultâneo da leitura e da escrita, deve-se atentar para o fato de que apenas no período pós-1860 é que a escolarização começa a ser vista como uma questão fundamental para a adaptação dos ex-escravos à nova sociedade que principiava a ser esboçada no Brasil, com base no trabalho livre. A escolarização dos filhos de escravos passa a constituir uma atribuição legal em 1871, com a Lei do Ventre Livre. As relações estabelecidas entre os descendentes de africanos com a escola fogem ao tema proposto pelo artigo que ora se apresenta; as iniciativas de escolarização dessa população foram um tema muito bem explorado por Fonseca (2002).

No que se refere ao recorte geográfico privilegiado pelo artigo, a Comarca do Rio das Mortes destacou-se, no cenário das Minas Gerais, desde o final do século XVIII, primeiramente do ponto de vista econômico. No momento em que as antigas áreas mineradoras buscavam equilibrar-se economicamente, passando por dificuldades com o fim do boom da extração aurífera, a região já se encontrava "alicerçada", produzindo gêneros alimentícios e buscando novos mercados para que esses produtos fossem comercializados. Havia, além do comércio de alimentos, a produção e mercantilização de produtos como o tabaco, especialidade de Baependi, e o algodão, muito cultivado no norte de Minas e exportado para outras províncias através dos caminhos que cortavam a comarca em questão (Lenharo, 1979). A Vila de São João del-Rei era a sede administrativa da Comarca do Rio das Mortes e um dos meios urbanos mais ativos das Minas Gerais. Caracterizava-se por sua posição geográfica privilegiada, por ser próxima do Rio de Janeiro e entrecortada por importantes estradas, o que favorecia o comércio. A partir do século XIX, a praça comercial de São João del-Rei exercia a função de entreposto, pois era um dos principais centros de exportação dos produtos mineiros e de redistribuição das mercadorias trazidas da Corte (Graça Filho, 2002). Possuía ainda vida política e cultural em intensa atividade, pois nela funcionavam várias associações, como a Sociedade Defensora da Liberdade e Independência Nacional e instituições musicais. Contava, ainda, com uma biblioteca pública e uma imprensa periódica bastante significativa no cenário brasileiro do Oitocentos (Silva, 2002; Morais, 2002). Uma região com tamanha importância cultural, econômica e política gerou grande quantidade de documentos, que se encontram organizados e à disposição dos pesquisadores que lidam com os diversos temas da história. Atualmente têm sido realizadas pesquisas sobre história econômica, política e demografia, mas é pequena a produção sobre a história da educação.

Na historiografia brasileira, de forma indireta, alguns pesquisadores dão a ver indícios acerca da capacidade de utilização da palavra escrita por africanos no Brasil, como Nina Rodrigues em O animismo fetichista dos negros baianos (1935). O autor refere-se a uma rebelião de escravos ocorrida em Salvador, no ano de 1835, na qual foram encontrados amuletos nos corpos dos revoltosos mortos. Esses amuletos continham papéis escritos em árabe, produzidos por escravos muçulmanos e utilizados com a finalidade de proteger quem os portava. O levante em questão, conhecido como Revolta dos Malês, é também citado por Gilberto Freyre em Casa grande & senzala, ao sugerir que "nas senzalas da Bahia de 1835 havia talvez maior número de gente sabendo ler e escrever do que no alto das casas grandes" (2005, p. 382). Ao retomar a história dos revoltosos de 1835, João José Reis, em Rebelião escrava no Brasil (2003), descreve a utilização desses amuletos para fins de proteção entre os malês e outros escravos, mesmo que não islamizados, e torna pública a existência de outros dois importantes documentos da época do levante: um "livrinho malê" de 7,4 x 5cm, contendo 102 folhas (94 escritas em árabe) e um documento avulso de 41 x 32,2cm. Ambos se encontram sob a guarda do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e trazem em suas linhas orações islâmicas ou passagens do Corão. Não cabe aqui analisar as motivações que levaram esses escravos a insurgirem-se em 1835 na Bahia, mas para o presente texto os dados referentes à utilização da palavra escrita por parte de escravos africanos são relevantes. Não se pode comprovar a idéia de Freyre, de que havia na Bahia do século XIX mais escravos do que livres letrados, mas pelos depoimentos de alguns escravos como Gaspar, Pedro e do liberto Pompeu, Reis sugere que, em muitos casos, essa escrita religiosa era aprendida pelos africanos "antes de vir de sua terra" (2003, p. 179-180).44 A edição utilizada, de 2003, traz nas páginas 185-188, 190, 194 e 195 fotos dos papéis encontrados dentro dos amuletos dos malês em 1835. Nas páginas 199 e 204 há reproduções do "livrinho malê" e o documento avulso contendo versos da Sura "O Sol" pode ser visto na página 207. Esses depoimentos dão mostra de que os africanos que foram trazidos para cá não pertenciam a sociedades desorganizadas, iletradas, e eram capazes, do ponto de vista intelectual. Tais fatos desmistificam, portanto, um olhar sobre as culturas africanas que insiste em resistir aos nossos dias.

Mais recentemente é que se percebe a constituição de estudos que têm como objetivo central entender como eram as possíveis relações de africanos escravos, forros e seus descendentes - mestiços ou não mestiços - com a palavra escrita. Destacam-se os trabalhos de Sarita Moysés (1995), Maria Cristina Wissenbach (2002), Marcus V. Fonseca (2002) e Eduardo F. Paiva (2003), os três primeiros privilegiando como recorte cronológico a segunda metade do século XIX.

Moysés deixa claro que, mesmo havendo proibições legais que impediam os escravos de freqüentar as escolas públicas, existia uma "diversidade de produções e apropriações culturais, com a invenção - segundo Certeau - de várias maneiras de ler desses grupos sociais" (1995, p. 53).

A partir de um conjunto de sete cartas ditadas pela escrava Theodora (que não sabia ler nem escrever) ao "escravo de ganho". Claro, que exercia o ofício de pedreiro, Wissenbach (2002) faz uma análise das relações estabelecidas por escravos com o mundo da palavra escrita. Chega à conclusão de que, mesmo não sendo leitores nem escritores, os escravos sabiam como e em que circunstâncias deveriam utilizar os códigos escritos.

Fonseca (2002) afirma que, durante a primeira metade do XIX, os escravos geralmente aprendiam a ler e a escrever em espaços não escolares. Ao analisar os anexos e relatórios dos ministros da Agricultura, Comércio e Obras Públicas entre os anos de 1867 e 1889, o pesquisador tenta buscar nessa documentação a maneira como foram criadas, pelos homens livres e proprietários, iniciativas para a abolição da escravidão e de que modo essas iniciativas se vinculavam a propostas de educação escolar.

Paiva (2003) destaca o hibridismo cultural que ocorria a partir da convivência próxima de escravos com brancos livres. A leitura oralizada, para o autor, teve papel fundamental para que o trânsito cultural entre o mundo dos letrados e o dos iletrados pudesse ocorrer - apesar de admitir as possibilidades de impermeabilidade cultural. Descreve diversos casos de escravos que aprenderam a ler e escrever, assumindo assim lugares de destaque na sociedade da época, como o crioulo Cosme Teixeira Pinto de Lacerda, que ocupou o cargo de escrevente de cartório em Paracatu e Sabará e construiu soluções para resolver pessoalmente os problemas legais até conseguir sua liberdade (2003, p. 4). Revela, a partir de disposições deixadas em testamentos, as preocupações de pais e mães escravos ou forros com a educação de seus filhos, buscando inseri-los do mundo das letras a partir da contratação de professores particulares.

A partir da leitura do que foi produzido, percebe-se que é pequena, na historiografia brasileira, a produção sobre a relação de escravos e ex-escravos com o mundo letrado, ressaltando-se o fato de que, até o presente momento, poucos debruçam sobre o século XVIII e a primeira metade do XIX. Na tentativa de contribuir para a superação dessa tendência, procura-se, no presente texto, pensar a educação como um processo amplo, pois no período abordado pela pesquisa a maioria da população brasileira era iletrada e a rede pública de ensino, incipiente. Grande parte dos letrados da época possuía formação autodidata ou aprendera a ler, escrever e contar em espaços não escolares; o mundo vivido pelos escravos era ainda mais marcado por esses aprendizados ocorridos em espaços exteriores ao mundo da escola (Fonseca, 2002). Assim, o conceito de letramento55 A noção de letramento é utilizada para entender os usos sociais cultural e historicamente atribuídos à palavra escrita. Sobre esse conceito, cf: Magalhães (1994, 1999, 2001), Kleiman (1995) e Soares (1995, 1998). é considerado o mais adequado ao tema desta pesquisa, sendo essa noção aqui redefinida para além do espaço escolar.

Uma das possíveis explicações para o pouco interesse dos pesquisadores brasileiros sobre o recorte cronológico privilegiado pelo presente artigo pode ser a inexistência de fontes diretas que tragam indícios sobre as relações estabelecidas entre os agentes históricos e a cultura escrita. Por essa razão, esses indícios devem ser buscados de maneira indireta, em fontes que não foram produzidas originalmente para indicar as marcas de alfabetismo. Pensando assim, as assinaturas podem ser elevadas ao estatuto de fontes, uma vez que possuem valor historiográfico, conforme demonstrou Magalhães ao utilizar "como recurso e por via indirecta a capacidade para assinar o próprio nome, como elemento de informação, relativamente à capacidade alfabética" (1994, p. 311). As assinaturas deixadas por aqueles que viveram em períodos anteriores à massificação da escolarização têm sido utilizadas para tentar perceber a intimidade de sociedades circunscritas com a cultura escrita. Mas é importante considerar que as taxas de assinaturas não permitem que se meça com exatidão a população que somente sabia ler, pois a partir do que se sabe sobre os tempos dissociados de aprendizado da leitura e da escrita, deve-se ter em mente que os índices de assinaturas sempre subestimam o número dos que se encontravam reduzidos ao papel de leitores. Essa situação é muito comum entre as mulheres, em virtude dos "perigos morais" que poderiam resultar do contato do sexo feminino com a escrita, conforme ressalta Antonio Viñao Frago (1993, p. 34). No caso brasileiro, a condição dos escravos deve ser levada em consideração, pois saber ler e, principalmente, saber escrever poderia propiciar aos cativos uma liberdade perigosa aos olhos de seus proprietários.

Mesmo entre os que são capazes de assinar, atualmente se admite que esses poderiam ter habilidades literácitas distintas. Mesmo entre os que são capazes de assinar, atualmente se admite que esses poderiam ter habilidades literácitas distintas. Os historiadores da alfabetização utilizam-se comumente de escalas de assinaturas para medir essas habilidades diferenciadas, ou seja, os graus de letramento dos assinantes. Essa metodologia também foi empregada na presente pesquisa. A partir da coleta das assinaturas originais nos testamentos de ex-escravos, passou-se à análise de seus traços com a ajuda de uma escala.

No presente estudo, utiliza-se a escala de assinaturas proposta por Justino Pereira de Magalhães, pois, entre as diversas oferecidas, é a que permite análises mais refinadas. Além disso, nossa tradição de escrita está intimamente ligada à portuguesa, pois foram os lusitanos que trouxeram de além-mar a palavra escrita para os territórios americanos. Para estabelecer níveis de letramento em Portugal, Magalhães estabelece uma escala de assinatura com cinco níveis de chancela.66 Nível 1: não assinatura (siglas, sinais); nível 2: assinatura imperfeita, rudimentar, de "mão guiada"; nível 3: assinatura normalizada, completa (podendo ser abreviada); nível 4: assinatura caligráfica, estilizada; nível 5: assinatura pessoalizada, criativa (Magalhães, 1994, p. 317-319).

Além da referida metodologia para qualificação das assinaturas, foram consideradas outras questões, que se relacionam ao contexto da época em tela. Faz-se importante ressaltar que, no século XIX, alguns marcos legais indicam mudanças no modo como educação e escravidão passaram a ser vistos pelos legisladores no Brasil. Em 1827 é promulgada a primeira e única lei geral sobre educação primária no período imperial brasileiro, conhecida como Lei de 15 de Outubro, a qual estabelecia que fossem inauguradas escolas de primeiras letras em todas as vilas e todos os lugares mais povoados, privilegiando a população masculina. Em Minas Gerais, no ano de 1835, os escravos são legalmente proibidos de freqüentar as escolas públicas. Essa medida pode ser considerada fruto do temor das elites quanto ao acesso à instrução por parte da população cativa, uma vez que o aprendizado das tecnologias de leitura/escrita por parte dos escravos poderia gerar uma perda de controle das "massas perigosas". Isso não quer dizer que os escravos não freqüentassem as aulas públicas, uma vez que a fiscalização provincial era significativamente ineficaz. No Oitocentos, os próprios professores produziam seus "mapas de freqüência de alunos" e relatórios exigidos pela Presidência da Província. Além disso, o costume da época admitia a possibilidade de a educação de um filho, livre ou forro, ou de um escravo ainda pequeno ser confiada a um mestre artesão ou professor particular. Os professores particulares lecionavam nas residências dos pupilos ou em locais organizados pelos próprios mestres. Essa foi a alternativa encontrada pela africana forra Antonia Soares Rodrigues, que, de acordo com Paiva, encaminhou seus filhos para o mundo das letras provavelmente com o intuito de lhes garantir um futuro melhor (2003, p. 7). Numa correspondência enviada a'O Astro de Minas, um pai de família afirma ter-se mudado para São João del-Rei com seus dois filhos para que eles pudessem ser educados na Escola do Ensino Mútuo, inaugurada em 28 de março de 1827, e se refere à vila da seguinte maneira:77 A correspondência foi publicada com pseudônimo, fato comum para o período. Como não se sabe a autoria do texto, pode-se levantar a hipótese de que teria sido escrito e publicado pelos editores do periódico. Essa poderia ser uma estratégia utilizada pelos responsáveis do jornal para chamar a atenção dos leitores para o assunto em tela, o que não invalida a utilização dessa fonte.

Carregou a fama nas ligeiras azas, e espalhou por este sombrio retiro, onde habito, que a Villa de S. João d'El-Rei era a melhor da Provincia, e em fim o Paraizo das Minas; que nella havião magnificos templos, soberbos edificios, casa de Misericordia, Biblioteca, Imprensa [...] huma aula de Grammatica Latina, e outra de Ensino mutuo, pagas pelos cofres da Naçã.

Mas, no que diz respeito à escola pública, afirma:

Não so os Pais de família abastados, mas ainda os indigentes tem tirado desta Aula os seos filhos, que hoje aprendem com Guilherme José da Costa, homem pardo casado, de boa vida, e costumes, e [...] Antonio Dias Pereira, homem creoulo casado, e de igual procedimento, em cujas Aulas se contao mais de cem discipulos. (O Astro de Minas, n. 14, 20 dez. 1827, p. 2-3)

Essa informação sobre o número de alunos que freqüentavam as aulas dos professores particulares torna-se preciosa quando comparada ao número de alunos que estudavam na escola pública, uma vez que, tanto na documentação da Câmara Municipal quanto em O Astro de Minas, observa-se que havia descontentamento da população local com a Escola do Ensino Mútuo. Quanto ao número de alunos, informava o responsável pela escola pública, o cadete José Queiroga de Vasconcelos e Ataíde, que o número de matrículas "escede muito a 90, e seria muito maior, se falsos boatos" e a "ignorância dos pais de alguns meninos" não os fizessem abandonar a escola. Outro motivo alegado pelo cadete/professor para explicar a evasão dos alunos era a existência dos mestres particulares, "que apesar de sua demasiada brutalidade, se consideram oráculos infalíveis da ciência e da Razão [...] e não cessam de desacreditar [a Escola do Ensino Mútuo] para angariar a suas Escolas os meninos daquela". E finaliza seu relato afirmando que "é público [...] que mais da metade dos meninos por mim matriculados freqüentam as duas escolas particulares desta Villa; e donde nasce isto" (Cartas e Editais da Câmara de SJDR, CAED 68, fl. 164v-165). O modo como o cadete se refere aos mestres particulares permite que se tenha uma idéia do quanto eles eram bem-sucedidos e procurados pelos pais de família. Ressalta-se o fato de os dois professores particulares citados pela correspondência publicada em O Astro de Minas serem mestiços, o que parecia não desmerecer a posição de mestres que ocupavam naquela sociedade.

Ao tomar os processos-crime em que escravos ou forros estiveram envolvidos, foram contabilizadas as seguintes cifras no que se refere à suas capacidades de assinar:

Nem sempre a capacidade de assinar dos escravos ou forros era questionada. Entre os 144 envolvidos, acham-se 54 réus e ofendidos que foram perguntados se sabiam assinar, dentre os quais dois responderam positivamente: forros que figuram nos processos como réus. Um deles era Antônio Prudente de Paula, crioulo forro, solteiro, 25 anos, pedreiro, acusado de causar ofensas físicas a outro escravo em 1830 (processo-crime, 1830, cx. 06-02). O outro, Martinho da Paixão Paiva, brasileiro, natural de São Gonçalo do Brumado, negro, forro, solteiro, 22 anos, alfaiate, processado por ter arrombado e furtado uma loja em São João del-Rei (processo-crime, 1856, cx. 11-03). Não foi possível ter acesso às assinaturas dos réus em virtude do fato de o arquivo possuir os "traslados" dos processos e não seus originais. Acredita-se que os silêncios ou as lacunas dos documentos também podem ser historicizados. O fato de não argüir os escravos ou forros sobre suas capacidades de assinar merece ser olhado de modo mais atento. Possivelmente os homens que escreviam partiam do pressuposto de que aqueles escravos ou libertos que ali chegavam como réus ou ofendidos não sabiam ler nem escrever. Dessa forma, seria uma perda de tempo perguntar para alguém inferior em capacidade intelectual sobre algo que, a priori, não pertencia a seu universo cultural.

Afinal de contas, desde o século XVI foi construída entre os portugueses que chegavam ao continente africano uma representação negativa acerca das capacidades intelectuais daqueles povos "primitivos". Apesar de poucas etnias africanas terem desenvolvido uma cultura escrita própria, essa não era inexistente. O "Estado" islamizado do Mali, espalhado ao sul do continente africano, possuía um intenso comércio de livros e uma cidade universitária: Tomboctu, conforme António Luís Ferronha (1996, p. 20). Outro exemplo é a criação de uma escrita contábil rudimentar pela mãe de dom Afonso, "rei" do Congo, no início do século XVI, e a apropriação, por parte do "Estado" congolês, de instituições culturais disseminadoras da cultura escrita, como escolas de primeiras letras e compras constantes de artigos portugueses como livros (Ferronha, 1996, p. 24 e 26). A representação dos povos africanos como iletrados pode ser percebida a partir dos relatos de João de Barros, em suas Décadas. Ao descrever a região conhecida como Monomotapa, ele afirma haver uma fortaleza "e sobre a porta do qual edifico está um letreiro que alguns mouros mercadores que ali foram ter homens doutos não souberam ler nem dizer que letra era". Afirma que "a gente da terra não tem letras nem há entre eles memória disso" e conclui que eram os africanos dessa região muito bárbaros e que as inscrições só poderiam ter sido feitas pelos gregos, uma vez que esses, sim, eram letrados (Ferronha, 1994, p. 34-35).

De volta aos casos encontrados nos processos-crime produzidos na Comarca do Rio das Mortes, pode-se ainda levantar a hipótese de que aos forros e, principalmente, aos escravos, não era vantagem, no momento em que se encontravam prestando contas à Justiça, revelar suas capacidades de ler e escrever, que poderiam ser vistas como a posse de uma "ferramenta" perigosa nas mãos de sujeitos que não as deviam portar.

Entre os anúncios de venda ou fuga de escravos pesquisados no periódico O Astro de Minas, foram coletados 76 casos (71 homens e 5 mulheres). No que se refere àqueles capazes de ler e/ou escrever, foram identificados apenas homens. O primeiro a que se dá destaque é o "escravo pardo de nome Vicente". Tinha como ocupação ser "official de alfaiate, sabe ler, e escrever, tem a cor clara, os cabellos pretos, o braço esquerdo seco e os dedos quase encolhidos" (O Astro de Minas, n. 144, 18 out. 1828, p. 4, grifos meus). Outro escravo fugido que possuía algum grau de letramento era "hum pardo escuro de idade de 15 annos, boa estatura, feição miuda, os dedos dos pes abertos, tem falta de unha em hum dos dedos dos pes, bem feito, bons dentes, sabe ler" (grifos meus). Não há referência ao nome do escravo, apenas ao de seu proprietário, o ajudante Joaquim Desiderio de Paula, cadete no Rio de Janeiro à época da fuga (O Astro de Minas, n. 292, 1 out. 1829, p. 4).

Esses casos vão ao encontro dos resultados obtidos por Wissenbach (1998, 2002), Paiva (2003), Magalhães (1994) e Villalta (1999), uma vez que se pode identificar pelos seus estudos uma estreita ligação entre a inserção na cultura escrita e as ocupações daqueles que aprendiam a ler e escrever. Os escravos com maior possibilidade de tornarem-se letrados eram os que exerciam trabalhos especializados, como nos casos dos carapinas e escreventes citados por Paiva (2003), os "escravos de ganho" estudados por Wissenbach (1998) ou os encontrados nos processos-crime da Comarca do Rio das Mortes: os oficiais de alfaiate Martinho e Vicente. O primeiro afirma ser capaz de assinar o nome. Do segundo diz-se saber ler e escrever. Além desses, o outro escravo acusado como réu que afirmava saber assinar seu nome, Antônio Prudente de Paula, possuía o ofício de pedreiro. Por possuírem profissões especializadas, certamente lidavam cotidianamente com os códigos numéricos. Por causa de seus ofícios, possuíam a capacidade de decifrar números e de utilizá-los como forma de medição, o que denota grau bastante significativo de letramento. Além desses casos, apesar de não ser mencionada explicitamente a capacidade de leitura e/ou escrita, nos anúncios de fugas, foi identificado mais um escravo crioulo que tinha como profissão ser "official de ferreiro de nome Joaquim", além de outros dois alfaiates, de nomes "Desiderio cabra" e "Jose Cabral crioulo" e ainda quatro oficiais de sapateiro: "Camilo crioulo [...] nasceo com seis dedos em cada mão", "Manoel cabra", "Manoel Nação monjolo" e "Ivo cabra" (respectivamente: O Astro de Minas, n.369, 30 mar. 1830, p. 4; n. 211, 25 mar. 1829, p. 4; n. 294, 6 out. 1829, p. 4; n. 311, 14 nov. 1829, p. 4; n.323, 12 dez. 1829, p. 4; n. 379, 24 abr. 1830, p. 4; n. 395, 1 jun. 1830, p. 4). Todos possuidores de ofícios nos quais se utilizavam códigos numéricos ou algum meio de medição e cálculo. Esses dados são relevantes, pois, de acordo com Viñao Frago:

[...] uma concepção mais ampla da alfabetização [letramento] deveria contemplar também a capacidade para decifrar/decodificar outros signos diferentes dos alfabéticos, especialmente os do mundo da imagem, do número e das formulações algébricas [ou ainda o] código da música. (1993, p. 42)

Seguindo as orientações de Viñao Frago, pode-se ainda considerar outros dois casos de escravos fugidos que, conforme os anúncios publicados, conheciam os códigos musicais, um tipo de letramento bastante especializado. Um deles era o "crioulo de nome Joaquim Machado" e o outro "oficial de sapateiro e muito tocador de viola, instrumento que sempre traz consigo", de nome Manoel (O Astro de Minas, n. 327, 22 dez. 1829, p. 4; n. 401, 15 jun. 1830, p. 4).

Na documentação analisada destacam-se ainda dois sujeitos: o escravo João, pertencente a Bento José de Carvalho, fugido em 1828; e o escravo Adão, fugido em 1829. Segundo o anúncio que se refere a João, o cativo, "quando fugio, furtou huma carta de alforria de Thomaz escravo que foi de Venancio Modesto de Toledo". O anúncio informa ainda que "a carta esta passada a 28 annos, e elle apresenta como sua" (O Astro de Minas, n. 262, 23 jul. 1829, p. 4). Já em 1829, publicou-se o aviso de Pedro Pires da Silveira, dizendo que havia fugido de sua morada em Pouso Alto:

[...] hum crioulo muito fula, nariz chato, bons dentes, baixo, e grosso, sem barba, de 18 a 20 annos de idade, avieiro, seo proprio nome he Adão; porem por subterfugios apanhou hum passaporte do Juiz Ordinario da Villa de Baependy, no qual se faz chamar pelo nome de Jeronimo: segundo algumas noticias desconfia-se esteja para a parte da Franca. (O Astro de Minas, n. 302, 24 out. 1829, p. 4, grifo meu)

No caso de João, pode-se levantar a hipótese de que esse escravo não conseguia ler o que havia na carta de alforria, já que utilizava um documento escrito há muitos anos. Deve-se ainda atentar para o fato de que, mesmo que não soubessem ler (o que não fica explícito nos anúncios), João e Adão entendiam a importância daqueles documentos escritos para a sociedade em que viviam. João sabia identificar o que era uma carta de alforria e ambos os escravos fugidos souberam muito bem utilizar os documentos escritos da forma que desejaram.

Passando a analisar as assinaturas em testamentos, no universo de 1.612 documentos produzidos entre 1731 e 1850, há 36 casos de testamenteiros forros: 19 homens e 17 mulheres que possuíam as capacidades de leitura e escrita distribuídas conforme o quadro que se segue.

A documentação permite ainda qualificar os dados levantados, na medida em que dá sinais para que se entendam melhor os motivos pelos quais alguns testamentos não foram assinados. Havia tanto os que não podiam quanto os que não sabiam assinar. Entre os que não puderam assinar, encontram-se José de Souza Freitas, pardo, que afirma: "declaro que querendo assignar, e não podendo por estar com a mão direita muito inchada e assigna a meo rogo o meo sobrinho João da Costa Valle" (testamento, 1824, cx. 54), e Juliana da Silva, preta forra, que dita a seguinte observação: "e por não poder escrever pedi e roguei ao Segundo Tabelião Francisco de Paula Siqueira que este por mim fizesse e a meo rogo assignasse" (testamento, 1826, cx. 127). Tais casos trazem indicativos do poder simbólico que adquiriam os assinantes. O fato de os sujeitos afirmarem que eram capazes de assinar, apesar de não conseguirem fazê-lo naquelas circunstâncias, revela o quanto eles podiam, a partir do momento em que sabiam assinar, aumentar seu status numa sociedade basicamente iletrada.

Dos nove homens e duas mulheres que se encontram no nível 1, ou seja, não assinam mas fazem siglas ou sinais, todos fizeram uma cruz. Esses não eram capazes de ler nem escrever, o que é comprovado por várias declarações, entre elas a de Maria de Almeida, preta forra, que em 1760 declara: "e por não saber ler nem escrever roguei a Miguel Carneiro de Miranda que por mim o escrevesse e como testemunha assinaçe e eu me asignei com hua cruz sinal de que uzo ao depois de me ser lido" (testamento, 1764, cx. 149). Antônio José, outro crioulo forro, também faz uma cruz em 1810, sinal que o representava após a feitura de seu testamento:

Entre quatro homens assinantes, a partir da tabela proposta por Magalhães, pode-se dizer que todos se encontravam no nível 2, uma vez que suas assinaturas são abreviadas, imperfeitas, rudimentares, havendo em todos os casos a necessidade de procurar em outras partes do documento o nome completo dos testamenteiros, uma vez que não se consegue decifrar o que foi escrito. As letras são postas no papel de modo inseguro, trêmulo, desorganizado, não conseguindo os assinantes seguir uma linha reta. Os traços mostram-se como de "mão guiada". Entre os quatro assinantes que se encontram no nível 2, pode-se ver o exemplo de João da Silva Abreu (Figura 2), cuja assinatura traz as características descritas.


De acordo com Magalhães (1994), os que se encontravam nesse nível de assinatura são capazes de ler e escrever mal, ou escrever o nome. Em 1825, Francisco Rodrigues Guimarães corrobora a análise do historiador, ao assinar de forma insegura e afirmar ter lido seu testamento: "escrito a meo rogo pelo Alferes Francisco da Cunha Barros e assignado por mim depois de o ler e o achar conforme o dictei" (testamento, 1831, cx. 59, grifo meu).

Apesar de muitos testamenteiros declararem não saber ler nem escrever, alguns asseveram ter ouvido ler seus testamentos, o que indica que a prática da "leitura de outiva" no período em análise era bastante difundida, conforme ressaltam Paiva (2003) e Villalta (1999). Entre esses, encontram-se quatro mulheres e três homens. Em 1807, Antônia Martins Ferreira, preta forra Angola, ao afirmar que "por ser molher e não saber ler nem escrever pedi ao Reverendo João Luiz Coelho que este testamento por mim fizesse e a meu rogo assignace depois de elle me ser lido e o achar conforme o dictei" (testamento, 1815, cx. 47). Já Domingos Gomes de Nação Benguela, que também não sabia ler nem escrever, assegurou que "depois de me ser lido duas vezes estas minhas ultimas dispoziçoens que em tudo achei conforme" (testamento, 1834, cx. 56).

A partir desse estudo, pode-se afirmar que, mesmo buscando perceber rupturas ou mudanças de padrão ao longo do tempo, foram encontradas apenas continuidades na longa duração. As mulheres escravas ou forras não foram identificadas, na documentação levantada, como assinantes. Nas fontes produzidas na Comarca do Rio das Mortes, não se obtiveram indícios de estratégias de utilização do escrito por parte das mulheres, mesmo as iletradas, ao contrário dos homens. Com relação ao grupo masculino, observa-se que os graus de letramento se adequavam muito às ocupações dos escravos ou forros. O mundo do trabalho tornou-se, nos casos abordados, o espaço possível de mediação entre os sujeitos em análise e a cultura escrita. A posse das habilidades de leitura e/ou escrita transformava-se, no caso das fugas, em um instrumento capaz de lhes dar condições de autonomia. Os indícios aqui levantados são relevantes para que se possa historicizar os diversos usos atribuídos ao escrito entre a população cativa e liberta no período abordado, mesmo entre aqueles que não foram identificados como leitores diretos ou capazes de escrever, mas que souberam utilizar a palavra escrita em seu favor, quando necessário.

Fontes primárias

Arquivo da Câmara Municipal de São João del-Rei

Cartas e editais da Câmara (CAED 68: 1823-1831).

Arquivo do Museu Regional de São João del-Rei

Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

Processos-crime: Antônio Prudente de Paula, 1830, cx. 06-02; Martinho da Paixão Paiva, 1856, cx. 11-03.

Testamentos e inventário: João da Silva Abreu, 1791, cx. 01; Antônio José, 1818, cx. 06; Antônia Martins Ferreira, 1815, cx. 47; Domingos Gomes, 1834, cx. 56; Francisco Rodrigues Guimarães, 1831, cx. 59; João Gonçalves Freire, 1769, cx. 57; invent. 1768, cx. 522; José de Souza Freitas, 1824, cx. 54; Juliana da Silva, 1826, cx. 127; Maria de Almeida, 1764, cx. 149.

O Astro de Minas, São João del-Rei, n. 144, 18 out. 1828, p. 4; n. 211, 25 mar. 1829, p. 4; n. 262, 23 jul. 1829, p. 4; n. 292, 1 out. 1829, p. 4; n. 294, 6 out. 1829, p. 4; n. 302, 24 out. 1829, p. 4; n. 311, 14 nov.

1829, p. 4; n. 323, 12 dez. 1829, p. 4; n. 327, 22 dez. 1829, p. 4; n. 369, 30 mar. 1830, p. 4; n. 379, 24 abr. 1830, p. 4; n. 395, 1 jun. 1830, p. 4; n. 401, 15 jun. 1830, p. 4.

Recebido em outubro de 2006

Aprovado em maio de 2007

CHRISTIANNI CARDOSO MORAIS, doutoranda em história pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), é professora do Departamento de Educação da Universidade Federal de São João del-Rei. Publicou: Para o aumento da instrução da mocidade da nossa pátria: estratégias de difusão do letramento na Vila de São João del-Rei (1824-1831) (In: GOUVÊA, Maria Cristina Soares de; VAGO, Tarcísio Mauro (Orgs.). Histórias da educação: histórias de escolarização. Belo Horizonte: Horta Grande, 2004. p. 37-52); Aprender o método industrioso de ler com análise: o projeto de criação da Sociedade Phylopolytechnica de São João del-Rei (Minas Gerais, 1824-1828) (Educação em Revista, n. 39, p. 101-120, jul. 2004). Atualmente desenvolve a tese de doutorado intitulada Estratégias de acesso ao ler/escrever/contar, usos das palavras escritas e graus de letramento da população da Vila e Termo de São João del-Rei, Minas Gerais (1750-1850), sob orientação do professor doutor Luiz Carlos Villalta. E-mail: tiannimorais@hotmail.com; tianni@ufsj.edu.br

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  • WISSENBACH, Maria Cristina. Sonhos africanos, vivências ladinas São Paulo: Hucitec, 1998.
  • 1
    A noção de "raça" foi incorporada de diferentes modos pelos intelectuais brasileiros de finais do XIX, mas é importante reter que esse termo pressupõe que existem diferenças físicas, morais e intelectuais que são transmitidas hereditariamente entre os diversos grupos humanos.
  • 2
    O conceito de "representação" é aqui utilizado como uma "ferramenta" para analisar o conjunto de discursos construídos sobre o mundo social que, embora aspirem à neutralidade e universalidade, "são sempre [determinados] pelos interesses de grupos que [os] forjam". Essas "percepções do social [...] produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade à custa de outros" (Chartier, 1990, p. 17). A "representação" não é uma cópia fiel da realidade vivida, pois remete à função de apresentar novamente à consciência uma "coisa" ou objeto ausente, reconstruído a partir dos signos. A noção de "apropriação" também utilizada ao longo do texto refere-se a "uma história social das interpretações, remetidas para as suas determinações fundamentais (que são sociais, institucionais, culturais)" (Chartier, 1990, p.26). Desse modo, a construção de sentido é considerada intrinsecamente ligada à inserção sociocultural dos sujeitos em análise.
  • 3
    Um exemplo de trabalho ancorado na idéia de "comércio triangular" em Adékòyà (1999).
  • 4
    A edição utilizada, de 2003, traz nas páginas 185-188, 190, 194 e 195 fotos dos papéis encontrados dentro dos amuletos dos malês em 1835. Nas páginas 199 e 204 há reproduções do "livrinho malê" e o documento avulso contendo versos da
    Sura "O Sol" pode ser visto na página 207.
  • 5
    A noção de
    letramento é utilizada para entender os usos sociais cultural e historicamente atribuídos à palavra escrita. Sobre esse conceito, cf: Magalhães (1994, 1999, 2001), Kleiman (1995) e Soares (1995, 1998).
  • 6
    Nível 1: não assinatura (siglas, sinais); nível 2: assinatura imperfeita, rudimentar, de "mão guiada"; nível 3: assinatura normalizada, completa (podendo ser abreviada); nível 4: assinatura caligráfica, estilizada; nível 5: assinatura pessoalizada, criativa (Magalhães, 1994, p. 317-319).
  • 7
    A correspondência foi publicada com pseudônimo, fato comum para o período. Como não se sabe a autoria do texto, pode-se levantar a hipótese de que teria sido escrito e publicado pelos editores do periódico. Essa poderia ser uma estratégia utilizada pelos responsáveis do jornal para chamar a atenção dos leitores para o assunto em tela, o que não invalida a utilização dessa fonte.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Out 2007
    • Data do Fascículo
      Dez 2007

    Histórico

    • Aceito
      Maio 2007
    • Recebido
      Out 2006
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