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A Concepção de Deficiência na Política de Educação Especial Brasileira (1973-2016)

The Concept of Disability in the Brazilian Special Education Policy (1973-2016)

RESUMO:

o estudo teve como objetivo principal identificar e analisar a concepção de deficiência e os fundamentos teóricos que embasam as políticas públicas de Educação Especial no Brasil (1973-2016) para os alunos do Ensino Fundamental. Analisamos os documentos normativos e orientadores das políticas de Educação Especial, identificando a forma como é definido o público-alvo nas políticas, bem como as justificativas técnicas, teóricas e políticas para essa definição. A investigação foi desenvolvida por meio de análise documental de fontes nacionais e internacionais e está sustentada nos pressupostos teóricos e metodológicos do materialismo histórico e dialético, explicitando os conflitos que representam as forças sociais em disputa num movimento de contradição dialética. Dessa análise, depreendemos que a concepção de deficiência presente nas políticas educacionais, desde a década de 1970 até os dias atuais, se mantém dentro de uma perspectiva tecnicista e funcionalista. Todavia, esse tecnicismo foi sendo reconfigurado com outros discursos nos períodos analisados. A análise permitiu perceber que não há ruptura com uma perspectiva baseada na dicotomia entre normal e patológico e não há mudança da racionalidade hegemônica da concepção de deficiência, mas há variações de estratégias para justifica-las. O princípio do normal e patológico, que estava presente na racionalidade moderna, foi redefinido numa perspectiva pós-moderna. Assim, temos, hoje, o normal e o patológico definidos em termos de diferença e diversidade ou multiplicidade cultural como algo que enriquece o ser humano.

PALAVRAS-CHAVE:
Educação Especial; Política Educacional; Aluno com Deficiência; Ensino Fundamental; Trabalho e Educação

ABSTRACT:

The study aimed to identify and analyze the concept of disability and the theoretical grounds that support the public policies for Special Education in Brazil (1973-2016) for elementary school students. We analyzed the Special Education policies normative and guiding documents, identifying how the target audience is defined in policies as well as the technical, theoretical and political justifications for this definition. The research was developed through document analysis of national and international sources and is supported by the theoretical and methodological assumptions of the historical and dialectical materialism, explaining the conflicts that represent social forces in dispute in a movement of dialectical contradiction. From this analysis, we can deduce that the concept of disability, from the 1970s to present days, is maintained within a technical and functional perspective. Nevertheless, this technicality has been reconfigured with other discourses along the analyzed periods. The study revealed that there is no rupture with an approach based on the dichotomy between normal and pathological, and there is no change of the hegemonic rationality of the conception of disability, but there are variations in the strategies to justify them. The principle of normal and pathological, which was present in the modern rationality, was redefined in a postmodern perspective. Thus, today, we have the normal and pathological defined in terms of difference and diversity or cultural diversity as something that enriches human beings.

KEYWORDS:
Special Education; Educational Policies; Students with Disability; Basic Education; Work and Education

1 Introdução

Este artigo tem como tema a concepção de deficiência contida nos documentos representativos das políticas de educação especial do ensino fundamental3 3 Utilizamos essa expressão ao longo do texto com base na Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que, no artigo 32, estabelece que "o ensino fundamental, com duração mínima de oito anos, obrigatório e gratuito na escola pública, terá por objetivo a formação básica do cidadão" (BRASIL, 1996), considerando as alterações feitas pela Lei nº 11.274, de 6 de fevereiro de 2006, nos artigos 29, 30, 32 e 87 da Lei nº 9.394, dispondo sobre a duração de nove anos para o ensino fundamental, com matrícula obrigatória a partir dos seis anos de idade (BRASIL, 2006). Levamos em conta que, desde a década de 1970 até os dias atuais, ocorreram mudanças na ampliação da faixa etária e na denominação dessa etapa de ensino, como, por exemplo, na Lei nº 5.692 de 1971, que em seu artigo 20 definia essa fase como ensino de 1º grau obrigatório dos sete aos 14 anos (BRASIL, 1971). no Brasil a partir da década de 1970 até os dias atuais. Entendemos que a definição ou a forma de compreender a deficiência constitui uma inteligibilidade sobre o modo de organizar os processos educacionais para os alunos com deficiência. Ao mesmo tempo, a concepção de deficiência presente nas políticas públicas para a educação especial no país é um elemento constitutivo dos processos de incorporação dos sujeitos com deficiência ao sistema de ensino, visando sua inserção no mercado de trabalho. Desse modo, tal discurso está permeado pelos preceitos da teoria do capital humano, segundo a qual, pela inclusão educacional "é possível agregar ao indivíduo maior capital social e humano, o que possibilitaria, conforme essa crença, inclusão no mercado ou, pelo menos, melhores condições de manejo da governabilidade por meio de políticas de alívio à pobreza" (LEHER, 2009LEHER, R. Educação no capitalismo dependente ou exclusão educacional? In: MENDONÇA, S.G.L.; SILVA, V.P.; MILLER, S. (Org.). Marx, Gramsci e Vigotski: aproximações. Araraquara, SP: Junqueira & Marín, 2009. p.223-251., p. 227-228).

Nesses termos, a investigação acerca da concepção de deficiência nas políticas públicas de educação especial no Brasil é compreendida como expressão das relações sociais nas suas múltiplas determinações, apreendida neste estudo como fundada na articulação trabalho/educação em um contexto da periferia do capital.

Tomamos do campo teórico, como pressuposto, que a deficiência é um fenômeno social e biológico (VYGOTSKI, 1997VYGOTSKI, L.S. Obras escogidas: fundamentos da defectologia. Tomo V. Tradução de Julio Guilhermo Blanck. Madrid: Visor, 1997.). Todavia, a questão fundamental é como os pesquisadores vêm discutindo a relação entre esses dois aspectos. Consideramos que há diferenças na compreensão do que seja o social, do social da deficiência e da contextualização ou não da deficiência como um fenômeno efetivamente social e histórico.

As pessoas com deficiência são identificadas, ao longo da história, em "virtude de características intrínsecas, diferentes da maioria da população e, portanto, necessitam de processos especiais de educação" (BUENO, 2004BUENO, J.G.S. Educação especial brasileira: integração/segregação do aluno diferente. 2. ed. São Paulo: Educ, 2004., p.37). Dessa forma, temos como premissa que as políticas de educação especial têm subjacentes uma concepção de deficiência e a proposição de um modelo de atendimento para os alunos com deficiência do ensino fundamental sustentada nessa compreensão.

Alguns autores têm se dedicado a estudar o tema da concepção de deficiência, questionando a perspectiva abstrata e dicotômica ou ainda questionando que a deficiência é tratada unicamente do ponto de vista terminológico (JANNUZZI, 1985JANNUZZI, G. A luta pela educação do "deficiente mental" no Brasil. São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1985.; BUENO, 2004BUENO, J.G.S. Educação especial brasileira: integração/segregação do aluno diferente. 2. ed. São Paulo: Educ, 2004.). Segundo Jannuzzi (2004a, p. 15)JANNUZZI, G. A educação do deficiente no Brasil. Campinas: Autores Associados, 2004a., a questão terminológica perdeu a sua relevância na medida em que se aprofundava na problemática da deficiência mental, porque "a substituição de um termo por outro só amorteceu temporariamente a sua pejoratividade".

Um dos aspectos na definição da deficiência ou excepcionalidade e, portanto, de um modelo de atendimento proposto para às pessoas consideradas deficientes, é a compreensão analisada de forma abstrata, dicotomizada e polarizada: a segregação x integração ou exclusão x inclusão. Esse tipo de análise no modo de compreender o normal e o patológico tem repercussão no modelo de atendimento aos sujeitos com deficiência e traz como proposição um processo de integração/inclusão ao sistema educacional e/ou social.

A partir dos anos 2000 observamos, nas pesquisas, a incidência de uma análise ainda mais fragmentada e o esvaziamento da concepção de deficiência, "como se o significado das palavras estivesse ligado somente aos aspectos linguísticos, sem relação com a realidade concreta em que esses termos passaram a ser utilizados" (BUENO, 2004BUENO, J.G.S. Educação especial brasileira: integração/segregação do aluno diferente. 2. ed. São Paulo: Educ, 2004., p.40).

Percebemos que a educação especial na perspectiva inclusiva4 4 Demarcamos como educação especial na perspectiva inclusiva as políticas de educação especial a partir de 2003, no Brasil, momento em que foi amplamente divulgada em todo o território nacional a relação entre educação dos alunos com deficiência e a perspectiva inclusiva. Todavia, cabe explicar que a perspectiva inclusiva, em termos de inserção dos alunos com deficiência no espaço social e no mercado de trabalho, já se encontra presente desde as bases da institucionalização da educação especial no Brasil na década de 1970. anuncia a proposta de organização de escola afirmada como novo paradigma da concepção de deficiência, com um novo modo de planejar, acompanhar e avaliar o processo de ensino e aprendizagem. Todavia, parece-nos que essa nova maneira não apresenta, na sua essência, nada de novo, pois a concepção de deficiência e a proposição da organização da escola estão sustentadas na valorização das diferenças como reconhecimento da nossa própria condição humana. Temos como hipótese que a proposição de serviços para os alunos com deficiência está ancorada num modelo de atendimento especializado, que tem como base o diagnóstico médico e/ou psiquiátrico5 5 A relação psicologia-pedagogia se inscreve no horizonte médico-psiquiátrico desde o início do século XX, com a criação dos serviços de saúde escolar pela medicina e da higiene mental pela psiquiatria. Não é o nosso objetivo aqui aprofundar essa questão, porém, interessa-nos deixar claro que, por trás da educação especial na perspectiva inclusiva, existe uma concepção de deficiência ou de normalização, segundo a qual ocorre o fenômeno da psiquiatrização do social (SCHNEIDER, 1993) ou da medicalização da sociedade (MOYSÉS, 2009), que é o fenômeno de transformação de questões sociais e humanas em questões biológicas. desde a década de 1970 até os dias atuais.

2 Método do trabalho

O estudo teve como objetivo identificar e analisar a concepção da deficiência e os fundamentos teóricos que embasam as políticas públicas de educação especial no ensino fundamental no Brasil (1973-2016). Para cumpri-lo, extraímos a concepção de deficiência dos documentos representativos da política de educação especial, acessando a forma como foi definido o público-alvo6 6 Definimos como público-alvo da educação especial aqueles sujeitos para quem se dirigem as políticas de educação especial, ou seja, os sujeitos identificados no âmbito da política nacional. E o conceito de deficiência expressa a forma como são definidos os sujeitos desse público-alvo, o que envolve um conjunto de vocabulários técnicos e políticos para justificar os serviços a eles propostos. , bem como as justificativas técnicas, teóricas e políticas para essa definição. Partimos do pressuposto de que na definição do público-alvo estão expressas ou implícitas concepções de deficiências, de subjetividade humana, de modelo de atendimento e de processos educacionais para os alunos com deficiência.

Nosso trabalho está sustentado nos pressupostos teóricos e metodológicos do materialismo histórico e dialético, por entendermos as políticas educacionais num contexto de práticas sociais vivenciadas por sujeitos concretos. À vista disso, procuramos apreender e explicitar esses conflitos, que representam as forças sociais em disputa, num movimento de contradição dialética.

Apoiamos nossas considerações acerca das transformações de significados que acompanham as bases das políticas educacionais no pensamento de Gramsci (1989)GRAMSCI, A. Maquiavel, a política e o Estado moderno. 7. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989., notadamente em relação ao espaço de disputa que perpassa uma intelectualidade no campo teórico. Consideramos que esse processo de desenvolvimento político está ligado a uma dialética intelectual massa, na busca de uma hegemonia que pressupõe "indubitavelmente que se deve levar em conta os interesses e as tendências dos grupos sobre os quais a hegemonia será exercida" (GRAMSCI, 1989GRAMSCI, A. Maquiavel, a política e o Estado moderno. 7. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989., p.39). Nessa direção, entendemos a relação da política e da linguagem da política em termos de produção de consciência e de racionalidade hegemônica.

Dessa forma, temos a história como categoria epistemológica (THOMPSON, 1981THOMPSON, E.P. Miseria de la teoría. Barcelona: Editorial Crítica, 1981.). Isso significa dizer que os dados empíricos intencionais podem ser estudados pela história, com objetividade. Por conseguinte, as fontes essenciais são interrogadas várias vezes, "não somente em busca de novas informações, mas também obedecendo a um diálogo com estas para formular novas perguntas" (THOMPSON, 1981THOMPSON, E.P. Miseria de la teoría. Barcelona: Editorial Crítica, 1981., p.50).

Nesse sentido, nossa prática de pesquisa foi induzida a fazer questões e suposições provisionais de caráter epistemológico, levando em conta que todo dado empírico que manejamos tem "uma existência real (determinante), independentemente de sua existência nas formas de pensamento, que esta evidência é testemunha de um processo histórico real e que este processo (ou alguma compreensão aproximada dele) é o objeto do conhecimento histórico" (THOMPSON, 1981THOMPSON, E.P. Miseria de la teoría. Barcelona: Editorial Crítica, 1981., p.51, grifo do autor).

Ao fazermos a análise dos documentos no período em que foram gestados, tivemos presente que é possível fazer uma intelecção da racionalidade que os sustenta como conhecimento objetivo. Portanto, uma investigação da história como sucessão "de acontecimentos ou desordem racional, acarreta noções de causação, de contradição, de mediação e de organização (por vezes estruturação) sistemática da vida social, política, econômica e intelectual" (THOMPSON, 1981THOMPSON, E.P. Miseria de la teoría. Barcelona: Editorial Crítica, 1981., p.73, grifo do autor).

Na análise dos documentos, procuramos os projetos em disputa na concepção hegemônica de deficiência com o objetivo de verificar se há predominância de uma concepção de deficiência atrelada aos interesses de um modelo de sociedade e de subjetividade. A classe dominante no poder em cada momento histórico, formada por grupos de empresários, políticos, organismos internacionais, partidos políticos, defendem determinados interesses e se organizam em função deles, subordinando a educação e a educação especial em função dos mesmos. Todavia, esses elementos, que podemos apreender nos documentos das políticas educacionais, não estão claramente expostos e assumidos; precisam ser lidos nas entrelinhas, no que é dito e não dito, nas expressões e vocabulários usados e omitidos, nas justificativas técnicas e teóricas que norteiam os projetos educacionais e de formação humana.

Nossa proposta metodológica para este estudo envolveu análise documental dos documentos orientadores que contêm as diretrizes para os processos de escolarização dos alunos com deficiência no ensino fundamental em âmbito nacional a partir da década de 1970, fazendo o cotejamento com os documentos publicados pelos organismos multilaterais para os países centrais e periféricos. Buscamos apreender as mudanças conceituais na concepção de deficiência na perspectiva de compreendê-la em suas relações políticas e econômicas face aos ajustes necessários para a manutenção do modo de produção capitalista.

Para tanto, foi necessário analisar as relações entre os contextos global (internacional) e local das políticas educacionais, verificando qual concepção de deficiência é difundida pelos organismos nacionais e internacionais nos documentos referentes às políticas de educação especial. Analisamos também como tais definições orientam um modelo de atendimento para os alunos com deficiência no ensino fundamental, bem como a relação de tais concepções com os movimentos do capital.

Organizamos nossa análise em três momentos históricos: 1º momento (1973 a 1988), começando com a criação do Centro Nacional de Educação Especial (Cenesp), como um marco do processo de institucionalização da educação especial em todo o território nacional, até 1988, com a aprovação da Constituição Federal, numa época de importantes e significativas mudanças em termos de políticas educacionais e de modelo de desenvolvimento econômico; 2º momento (1988 até 2002), período em que ocorreu no Brasil a entrada do discurso dos direitos humanos estendidos às pessoas com deficiência: o aluno deficiente como sujeito de direitos e o discurso do combate à discriminação da deficiência; 3º momento: (2003 até 2016) quando se consolidou em todo o país uma política de educação especial na perspectiva inclusiva e uma concepção de deficiência relacionada ao direito à diferença.

Importa salientar o quanto é difícil a tarefa de periodizar, pois, como adverte Saviani (2007, p. 12)SAVIANI, D. História das idéias pedagógicas no Brasil. Campinas: Autores Associados, 2007., a "questão da periodização é, sem dúvida, umas das mais relevantes e também das mais complexas e, por isso mesmo, das mais controvertidas no campo dos estudos históricos". A periodização, como exigência de compreensão do objeto, é "uma questão teórica que se põe para o historiador ao enfrentar a tarefa de organizar os dados visando a explicar os fenômenos que se propôs a investigar" (SAVIANI, 2007SAVIANI, D. História das idéias pedagógicas no Brasil. Campinas: Autores Associados, 2007., p. 12). Sendo assim, apresenta uma série de possibilidades de recortes que cada pesquisador faz a partir de um arcabouço teórico-metodológico, tendo como foco o objetivo da pesquisa com suas variáveis de análise.

Existem muitas formas de inquirição e periodização. A que escolhemos foi resultado do nosso processo de análise e exploração dos documentos das políticas de educação e de educação especial, tendo como foco a concepção de deficiência neles contida. Articulamos os documentos, apoiados no próprio objeto de estudo, tendo como eixo de análise a racionalidade que está na base das políticas. Portanto, não é uma periodização formal em termos de política de integração e inclusão.

3 A concepção de deficiência nos documentos das políticas de educação especial no Brasil: 1973 a 1988

Esse primeiro período foi caracterizado pela institucionalização da educação especial em termos de políticas públicas em todo o território nacional, o que ocorreu dentro de um contexto político e econômico de influência dos acordos entre o Ministério da Educação do Brasil (MEC) e a United States Agency for International Development (Usaid)7 7 Série de acordos produzidos, nos anos 1960, entre o MEC e a Usaid, visando estabelecer convênios de assistência técnica e cooperação financeira à educação brasileira. Entre junho de 1964 e janeiro de 1968, período de maior intensidade nos acordos, foram firmados 12, abrangendo desde a educação primária (atual ensino fundamental) ao ensino superior. O último dos acordos firmados foi em 1976. Os MEC-Usaid inseriam-se num contexto histórico fortemente marcado pelo tecnicismo educacional da teoria do capital humano, isto é, pela concepção de educação como pressuposto do desenvolvimento econômico. Nesse contexto, a ajuda externa para a educação tinha por objetivo fornecer as diretrizes políticas e técnicas para uma reorientação do sistema educacional brasileiro, à luz das necessidades do desenvolvimento capitalista internacional. Os técnicos norte-americanos que aqui desembarcaram, muito mais do que preocupados com a educação brasileira, estavam ocupados em garantir a adequação de tal sistema de ensino aos desígnios da economia internacional, sobretudo aos interesses das grandes corporações norte-americanas (MINTO, 2006). e das determinações da Organização das Nações Unidas (ONU) para a área da educação e da educação especial. Portanto, a institucionalização de uma política de educação especial no país foi resultado dessa correlação de forças políticas e econômicas e de um projeto de educação especial que já vinha sendo realizado no Brasil por instituições privadas assistenciais, incorporando o modelo e a racionalidade desses organismos.

A concepção de deficiência presente nas políticas de educação especial no Brasil foi sendo delineada numa arena de disputa e jogos de interesses na qual figuravam, por exemplo, a Sociedades Pestalozzi, a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae) e os organismos internacionais. Tal concepção já estava sendo difundida nos documentos que antecederam o decreto de criação do Cenesp em 1973 (BRASIL, 1973BRASIL. Decreto nº 72.425, de 3 de julho de 1973. Cria o Centro Nacional de Educação Especial (CENESP). Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 4 jul. 1973, Seção 1, p. 6426.). Destarte, o modo como a política incorporou uma concepção hegemônica estava fundamentado numa racionalidade dicotômica entre normal e patológico. A reflexão sobre tais elementos levou a considerar que a incorporação dessa racionalidade nos processos escolares para os alunos com deficiência no ensino fundamental, implantada em todo o território nacional, seguiu uma sistemática de trabalho educacional dentro de uma perspectiva integracionista que já estava posta desde a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) de 1961 (BRASIL, 1961BRASIL. Lei nº 4.024, de 20 de dezembro de 1961. Fixa as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 27 dez. 1961. Seção 1, p.11429.) e a Constituição Federal do Brasil de 1967 (BRASIL, 1967BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (1967). Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 24 jan. 1967. Seção 1, p.953.) que contemplava a educação dos excepcionais.

Desde o início, o Cenesp, com suas atividades supervisionadas pela Secretaria Geral do Ministério da Educação e Cultura, mantinha ações conjuntas com a iniciativa privada, com a proposição de auxiliar "as entidades públicas e particulares na racionalização de esforços, incentivando-as em suas iniciativas e prestando toda assistência técnica e financeira quando necessário" (BRASIL, 1974BRASIL. Ministério de Educação e Cultura. Centro Nacional de Educação Especial. Diretrizes básicas para a ação do Centro Nacional de Educação Especial. Brasília, DF: Cenesp, 1974.).

Em termos de concepção de subjetividade, em consonância com os interesses do movimento do capital, nesse momento histórico os documentos difundiam a defesa de uma homogeneização das singularidades e, ao mesmo tempo, de uma seletividade social para favorecer a ascensão cultural dos mais aptos. Esse projeto foi liderado por uma elite orgânica formada por empresários, intelectuais e militares, representantes de interesses financeiros multinacionais e associados. Eles exerceram seu poder de classe, tendo como estratégia ditatorial e psicossocial a busca de uma consciência coletiva homogênea como forma de legitimação do regime e da manutenção da ordem social.

Nesse contexto, os militares e a elite no poder, praticando um modelo econômico para o Brasil subordinado ao capital mundial, elegeram a educação como estratégia psicossocial na conquista dos indivíduos no plano da subjetividade. Colocaram em prática a ideologia de segurança nacional que justificou a permanência das forças armadas no controle repressivo e ideológico da nação. Instituíram a disciplina Educação Moral e Cívica em todos os níveis de ensino. Assim, a educação respondia aos pressupostos do binômio segurança e desenvolvimento e era convocada a respaldar a ordem e o controle social (ALMEIDA, 2009ALMEIDA, D.L. Educação moral e cívica na ditadura militar: um estudo de manuais didáticos. 2009. 182f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade de São Carlos, São Carlos, 2009.). Havia, portanto, a defesa da educação como uma instância básica na internalização dessa moral, com objetivo de conformar um novo homem, supostamente dignificado, com a internalização de valores de não-contestação e não-conflitos com o regime.

A educação dos deficientes e a concepção de deficiência também ficaram atreladas atrelada a esse projeto de homogeneização da sociedade, tendo como objetivo integrá-los à sociedade, com o propósito de racionalização dos recursos e de torná-los úteis ao modo de produção capitalista.

Portanto, a educação especial vem desde o seu momento de institucionalização com um sistema paralelo de serviços, misturando a esfera do público e do privado e dentro de uma lógica assistencial filantrópica. Nesse contexto, foram definidas as diretrizes de ações e os princípios para orientar a educação especial em todo o país. A educação dos alunos com deficiência no ensino fundamental tinha então como bases os princípios da racionalização, da integração e da normalização.

A lógica do conceito de integração era "aplicável não só na inter-relação dos recursos de educação especial, como também destes com o sistema geral de ensino e com os da comunidade em geral" (BRASIL, 1978BRASIL. Ministério de Educação e Cultura. Centro Nacional de Recursos Humanos. Análise dos principais problemas da educação brasileira. Brasília, DF: CNRH, 1978., p.178-179). A perspectiva da integração do sujeito com deficiência tinha como objetivo a normalização e a adaptação dos indivíduos:

Ao indivíduo cabe modificar-se; à sociedade, cabe adaptar. Ou seja, existe um liame entre a normalização do indivíduo (ou adaptabilidade) e a imutabilidade da sociedade (naturalismo). E a educação, com auxílio das correntes psicológicas, cujas raízes calcam-se no pensamento positivista, amolda-se aos seus objetivos de socialização (ou integração) e adaptabilidade (normalização) do indivíduo (CAMBAÚVA, 1988CAMBAÚVA, L.G. Análise das bases teórico-metodológicas da educação especial. 1988. 132f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, São Paulo, 1988., p. 45, grifos do autor).

Com referência à definição do público-alvo das políticas de educação especial, encontramos uma variedade de acepções que correspondem a várias disciplinas. O que as unifica é uma conotação relacionada a noções de subdotado e diminuído ― elementos relativos a uma categorização discriminatória entre aqueles que estão acima ou abaixo da média. Essas definições têm como base uma compreensão de deficiência baseada em status ou escalas psicométricas nas quais os processos de aprendizagem e de desenvolvimento da personalidade estão sustentados numa compreensão inatista e biologizante, por conseguinte, numa responsabilização individual do aluno nos processos escolares.

A posição oficial de preferência pelo ensino dos deficientes na rede regular de ensino visava à integração desses alunos na comunidade, porém, previa apoio financeiro às entidades privadas que fossem dedicadas a essa especialidade de atendimento. Os conteúdos foram reformulados e adaptados, com necessidades explícitas de estratégias especiais e a adoção de vocabulário básico específico, o que gerava dificuldades à apropriação deles pelos professores de classes comuns (BUENO, 2004BUENO, J.G.S. Educação especial brasileira: integração/segregação do aluno diferente. 2. ed. São Paulo: Educ, 2004.). Os recursos e estratégias de ensino do aluno com deficiência tinham como foco o atendimento especializado com base em um diagnóstico médico ou psiquiátrico.

Assim, a organização dos processos escolares dos sujeitos com deficiência foi fundamentada em uma concepção médica positivista associada à doença, à patologia. Esse foi um dos determinantes para que os processos escolares dos alunos com deficiência se constituíssem subordinadamente aos diagnósticos clínicos. Por outro lado, não podemos desconsiderar a importância da medicina para a área da educação especial no que se refere a uma racionalidade que esclarece o problema de deficiência no seu aspecto físico, assim como as intervenções clínicas e terapêuticas necessárias para os alunos com deficiência. A nossa crítica se direciona à relação de subordinação dos processos pedagógicos à medicina positivista e funcionalista, cuja racionalidade dicotômica conduz a um processo de patologização dos processos escolares.

Percebemos que a concepção de deficiência nos documentos das políticas educacionais, nesse primeiro período, foi incorporando novos vocabulários e definições. As denominações e conceitos mudaram: deficiência, excepcionalidade, pessoas portadoras de deficiência. Ademais, ocorreram mudanças na definição de quem é excepcional/deficiente e, com isso, a ampliação ou redução do público-alvo das políticas de educação especial, mas permaneceu em sua essência a compreensão da deficiência associada ao desvio da média, da normalidade, da norma.

4 A concepção de deficiência nos documentos das políticas de educação especial no Brasil: 1988 a 2002

O segundo período analisado foi marcado pelo contexto político da Nova República e caracterizado pelas reformas da década de 1990. Nessa época, o Estado de cunho liberal ganhou mais aliados, o que favoreceu a realização das grandes reformas a serviço dessa racionalidade. Ao mesmo tempo ocorreu a entrada do discurso dos direitos humanos nas políticas de educação especial e a divulgação dos direitos universais, então estendidos aos alunos com deficiência.

Apesar de todas as mobilizações sociais organizadas nesse período, das quais destacamos o movimento das pessoas com deficiência8 8 O livro História do movimento político das pessoas com deficiência no Brasil foi compilado por Mário Cléber Martins Lanna Júnior e editado em 2010 pela Secretaria de Direitos Humanos/Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência e retrata em grande medida a história da luta do movimento das pessoas com deficiência (LANNA JÚNIOR, 2010). , a proposta vitoriosa na Constituinte de 1988 foi do Estado atrelado aos interesses do grande capital, por conseguinte, ao empresariado e aos conservadores. Embora tais direitos não tenham sido desenvolvidos no período anterior, tal proposta reduziu as conquistas de cunho universalizante no âmbito da nova Constituição. Em vista disso, os direitos universais formais foram reduzidos à expressão mínima, fragmentando cada situação de direitos, tornando-se alvo imediato de forma singularizada ou "através da concessão de benefícios parciais" (FONTES, 2010FONTES, V. O Brasil e o capital-imperialismo: teoria e história. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2010., p. 326, grifo nosso).

As reformas liberais atreladas à reconfiguração do movimento do capital exigiram uma nova subjetividade delimitada pelas relações do "modo histórico peculiar de organizar a vida social que impõe o econômico como dimensão central" (FONTES, 2010FONTES, V. O Brasil e o capital-imperialismo: teoria e história. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2010., p. 305). Ocorreram ações do Estado na difusão de uma nova cultura cívica, no sentido da propagação de um projeto burguês de sociabilidade, ou de um novo homem coletivo, "com vistas à formação de uma subjetividade neoliberal" (NEVES, 2005NEVES, L. A nova pedagogia da hegemonia. São Paulo: Xamã, 2005., p. 106).

O capital precisava de indivíduos mais competitivos, voltados aos interesses privados, e também mais solidários e tolerantes com as diferenças. Tratava-se de um projeto de homem coletivo com base numa ambiguidade: individualista e solidário ao mesmo tempo, pois essas são as habilidades e qualidades do cidadão compatível com o projeto político-ideológico do neoliberalismo, pelo qual as relações humanas ficam subsumidas ao modo de produção capitalista e à forma alienada da universalização das relações de mercado (MARX, 2011MARX, K. O capital. Livro 1. 29. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.).

Verificamos que, enquanto na ditadura civil-militar havia um projeto de homogeneização, na década de 1990 prevalecia a defesa de uma subjetividade diversa e a valorização das diferenças para contemplar qualquer tipo de aprendizagem. Em outras palavras, cada pessoa tem diferentes necessidades básicas de aprendizagens, bem como distintos acessos a diferentes competências e domínios teóricos. A burguesia necessita de uma estratificação social e educacional, como força de trabalho a ser explorada e como exército de reserva (MARX, 2011MARX, K. O capital. Livro 1. 29. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.).

No campo das políticas de educação especial, até o início dos anos 2000, tínhamos como proposta a integração gradual e contínua, sob um enfoque sistêmico, no qual a educação especial integrava o sistema educacional. O modelo de atendimento estava sustentado na base filosófico-ideológica da normalização/integração. A concepção de deficiência estava definida como incapacidade ou como a impossibilidade temporária ou permanente de executar determinadas tarefas, como decorrência de deficiências, interferindo nas atividades funcionais do indivíduo (BRASIL, 1994BRASIL. Ministério da Educação e Desportos. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Educação para todos: a Conferência de Nova Delhi. Brasília, DF: Inep, 1994.).

Entretanto, a proposta integracionista foi sendo, aos poucos, nesse segundo período, substituída pela proposta inclusivista. O Brasil fez a opção por um sistema educacional inclusivo a partir da aprovação das Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica (BRASIL, 2001aBRASIL. Parecer CNE/CEB nº 17 de 03 de jul. 2001. Estabelece as diretrizes nacionais para a educação especial na educação básica.Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 17 ago. 2001a, Seção 1, p.460.; BRASIL, 2001bBRASIL. Resolução CNE/CEB nº 2, de 11 de setembro de 2001. Institui Diretriz Nacional para a Educação Especial na Educação Básica. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 14 set. 2001b, Seção 1E, p.39-40.), concordando com a Declaração Mundial de Educação para Todos, em consonância com os postulados produzidos em Salamanca. Nos fundamentos da educação especial contida nessas diretrizes, ela é definida como uma modalidade de educação escolar e dos pressupostos e da prática pedagógica social da educação inclusiva.

Foi na esteira das prescrições de Jomtien e Salamanca que as políticas de educação para todos foram incorporadas nos documentos de educação e de educação especial. A concepção de aprendizagem foi apresentada de forma difusa, relacionada à satisfação das necessidades básicas de aprendizagem, descaracterizando, assim, a especificidade da relação entre ensino e aprendizagem com apropriação dos conhecimentos escolares. Em vez da relação ensino/aprendizagem, os "conhecimentos incluem informações sobre como melhorar a qualidade de vida ou como aprender a aprender" (UNESCO, 1990UNESCO. Declaração mundial de educação para todos. Plano de ação para satisfazer as necessidades básicas de aprendizagem. Tailândia, 1990.).

Dessa forma, a concepção de deficiência estava definida também em termos de necessidades educativas especiais. Todavia, em consonância com o texto da LDB/1996, as Diretrizes de 2001 articularam a educação especial à organização de uma proposta pedagógica com currículos, métodos, técnicas, recursos educativos; porém, essa concepção de deficiência ampliada não se expressou na elaboração de propostas curriculares ou de serviços. Por conseguinte, a essência do modelo não mudou muito em relação às diretrizes de 1994, pois a proposta era de recursos e serviços educacionais especiais, organizados institucionalmente para apoiar, complementar, suplementar e, em alguns casos, substituir os serviços educacionais comuns (BRASIL, 2001aBRASIL. Parecer CNE/CEB nº 17 de 03 de jul. 2001. Estabelece as diretrizes nacionais para a educação especial na educação básica.Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 17 ago. 2001a, Seção 1, p.460.; 2001bBRASIL. Resolução CNE/CEB nº 2, de 11 de setembro de 2001. Institui Diretriz Nacional para a Educação Especial na Educação Básica. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 14 set. 2001b, Seção 1E, p.39-40.).

Do mesmo modo, ocorreu uma disputa dos sujeitos no âmbito da subjetividade e da concepção de deficiência mais favorável ao cenário do movimento do capital, bem como uma disputa na direção de uma concepção de deficiência que passou a ser definida dentro da diversidade (cultural, étnica e social) e das diferenças sociais decorrentes das desigualdades sociais, numa dicotomia entre incluídos e excluídos. Tais proposições foram estabelecidas em um horizonte mais amplo de alívio da pobreza, como recomendações dos organismos multilaterais para os países periféricos (LEHER, 2009LEHER, R. Educação no capitalismo dependente ou exclusão educacional? In: MENDONÇA, S.G.L.; SILVA, V.P.; MILLER, S. (Org.). Marx, Gramsci e Vigotski: aproximações. Araraquara, SP: Junqueira & Marín, 2009. p.223-251.). O avanço da pobreza ameaça o processo de governança num contexto global e local. A inclusão é a outra face da exclusão (SHIROMA, 2001SHIROMA, E.O. A outra face da inclusão. Revista TEIAS, Rio de Janeiro, v.2, n.3, p.1-11, 2001.), que mascara o conceito de pobreza e privação, deslocando a unidade de análise de uma desvantagem socialmente estruturada para o foco no individual, na família ou na comunidade local.

A concepção de deficiência e a definição de público-alvo da educação especial se ampliaram, pois, em vez de focalizar na deficiência, o foco se direcionou para as formas e condições de aprendizagens que têm que se organizar para as diferentes necessidades especiais, apontando "para a escola o desafio de ajustar-se para atender à diversidade de seus alunos" (BRASIL, 2001aBRASIL. Parecer CNE/CEB nº 17 de 03 de jul. 2001. Estabelece as diretrizes nacionais para a educação especial na educação básica.Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 17 ago. 2001a, Seção 1, p.460., p.15).

A concepção hegemônica de deficiência apropriada pelas políticas de educação especial continuou sendo expressa com base em padrões de dificuldades, limitação, vinculada ou não a uma causa orgânica específica, ou relacionada a condições, disfunções e/ou limitações nos sujeitos com deficiência, com exceção dos superdotados (BRASIL, 2001bBRASIL. Parecer CNE/CEB nº 17 de 03 de jul. 2001. Estabelece as diretrizes nacionais para a educação especial na educação básica.Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 17 ago. 2001a, Seção 1, p.460.). Em sua essência, a concepção de deficiência estava definida em termos de carência, limitação, muito embora sob um discurso de reconhecimento da heterogeneidade ou das diferenças que se expressam num sistema hierarquizado entre os diferentes atendimentos ofertados.

Nesse segundo período, a concepção de deficiência deixou de ser relacionada à homogeneização, como padrão a ser alcançado; pelo menos não mais abertamente defendido. Ocorreu uma reconfiguração do discurso, com a inclusão de novos elementos, como a celebração das diferenças ou da diversidade, relacionados à deficiência. A dicotomia entre normal e patológico foi metamorfoseada por um discurso da celebração das diferenças que definiu deficiência como diversidade cultural e social.

5 A concepção de deficiência na política educacional brasileira: 2003 a 2016

O terceiro momento da nossa análise da concepção de deficiência é caracterizado pela difusão, em todo o território nacional, do Programa educação inclusiva: direito à diversidade, a partir do qual o governo brasileiro divulgou a proposição das salas de recursos multifuncionais em municípios-polo. A primeira iniciativa nesse sentido, em 2004, foi um programa de formação, tendo como público-alvo gestores e educadores nas redes de ensino em todo o país, com o objetivo de disseminar a política de construção de sistemas educacionais inclusivos e apoiar o processo de implementação nos municípios brasileiros (BRASIL, 2004BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Educação inclusiva: direito a diversidade: a fundamentação filosófica. Brasília, DF: SEESP, 2004.).

A chamada perspectiva inclusiva passou a ser largamente divulgada nos anos 2000, mediante eventos internacionais como a Convenção de Guatemala (2001) e a Convenção de Nova Iorque (2006). No Brasil foi amplamente difundida a construção de um sistema nacional inclusivo (BRASIL, 2004BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Educação inclusiva: direito a diversidade: a fundamentação filosófica. Brasília, DF: SEESP, 2004.; BRASIL, 2005BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Programa educação inclusiva: direito à diversidade, documento orientador. Brasília, DF: SEESP, 2005.; BRASIL, 2007a BRASIL. Edital nº 1 de 26 de abril de 2007. Lança o programa de implantação de salas de recursos multifuncionais. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 27 abr. 2007a, Seção 3, p. 53.; BRASIL, 2007bBRASIL. Portaria normativa nº13, de 24 de abril de 2007. Dispõe sobre a criação do programa de implantação de salas de recursos multifuncionais. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 26 abr. 2007b, Seção 1, p. 4.; BRASIL, 2008BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Política nacional de educação especial na perspectiva da educação inclusiva. Brasília, DF: SEESP, 2008.; BRASIL, 2015BRASIL. Lei nº 13.146, de 06 de julho de 2015. Institui a lei brasileira de inclusão da pessoa com deficiência (Estatuto da pessoa com deficiência). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 7 jul. 2015.), como uma suposta nova perspectiva consolidando-se como concepção hegemônica. Entretanto, temos desde a década de 1970, nas políticas de educação especial, uma estratégia de inserção social dos sujeitos com deficiência, primeiro numa versão integracionista e depois numa versão inclusivista. Agora, a perspectiva de inserção social constitui uma estratégia mais globalizada, sistêmica, multissetorial e relacionada às políticas de assistência social, educação e saúde.

Em julho de 2015, após 15 anos de tramitação, foi instituída a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146 - Estatuto da Pessoa com Deficiência), tendo como base a Convenção da ONU sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência e tendo em vista assegurar e promover, "em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais da pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania" (BRASIL, 2015BRASIL. Lei nº 13.146, de 06 de julho de 2015. Institui a lei brasileira de inclusão da pessoa com deficiência (Estatuto da pessoa com deficiência). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 7 jul. 2015.). A aprovação dessa Lei é um importante passo na luta por condições de igualdade das pessoas com deficiências nas diversas esferas (saúde, educação, moradia, trabalho, assistência social), porém, ela reitera a proposta do sistema nacional inclusive9 9 Art. 27. A educação constitui direito da pessoa com deficiência, assegurado sistema educacional inclusivo em todos os níveis e aprendizado ao longo de toda a vida, de forma a alcançar o máximo desenvolvimento possível de seus talentos e habilidades físicas, sensoriais, intelectuais e sociais, segundo suas características, interesses e necessidades de aprendizagem. [...] Art. 28. Incumbe ao poder público assegurar, criar, desenvolver, implementar, incentivar, acompanhar e avaliar: I - sistema educacional inclusivo em todos os níveis e modalidades, bem como o aprendizado ao longo de toda a vida" (BRASIL, 2015). .

O que pudemos verificar, nas análises dos documentos desse período, é que as reformas políticas do governo Lula da Silva tiveram por objetivo dar continuidade às reformas estruturais para a manutenção da mesma política monetária do seu antecessor, Fernando Henrique Cardoso. Quando assumiu o governo, o presidente Lula não se contrapôs à nova agenda política da classe dominante em escala nacional e internacional, tendo-a incorporado, subalternizando "os setores populares em uma agenda de cunho democrático-filantrópico a qual substituiu o tema da igualdade pelo tema da pobreza como foco a partir dos anos 1990" (COUTINHO, 2000 apud NEVES, 2005NEVES, L. A nova pedagogia da hegemonia. São Paulo: Xamã, 2005., p.114, grifos nossos). Segundo Martins (2007, p.231)MARTINS, A.S. Burguesia e a nova sociabilidade: estratégias para educar o consenso no Brasil contemporâneo. 2007. 293f. Tese (Doutorado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2007., o governo Lula admitiu "não haver alternativas ao movimento de financeirizacão do capital, sendo impossível alterar a política neoliberal no país". Então, a alternativa seria encaminhar reformas focais dentro do universo político estabelecido pela plataforma de valorização financeira internacional.

Nesse cenário, o governo petista, em relação ao anterior, construiu políticas sociais de distribuição de renda mais substantivas na perspectiva da inclusão dos grupos em situação de vulnerabilidade. Embora essas proposições apresentem uma roupagem humanitária, não mexem nas questões essenciais dos problemas da educação pública brasileira, propondo reformas de políticas focais e compensatórias de alívio da pobreza, com vistas à governabilidade.

Ocorreram também ações do Estado no sentido de consolidar o novo padrão de sociabilidade do capital, indispensável ao projeto neoliberal de Terceira Via (NEVES, 2005NEVES, L. A nova pedagogia da hegemonia. São Paulo: Xamã, 2005.). A ênfase do discurso, no âmbito do ensino fundamental, foi marcada pela conversão das escolas em lócusdas políticas assistenciais. Além disso, foram propostas as reformas educacionais que visavam, do ponto de vista técnico, à formação de um homem empreendedor, e do ponto de vista ético e político, de um sujeito colaborador.

Percebemos, na concepção de deficiência nas políticas de educação especial na perspectiva inclusiva a partir de 2003, a consolidação do deficiente como o diferente. Além disso, o termo deficiência perdeu terreno no discurso político, sendo substituído por expressões como diferença, diversidade e multiplicidade.

A educação especial, desde então, vem sendo divulgada com o discurso da inclusão e do reconhecimento da igualdade de acesso para todos, inclusive para as pessoas com deficiência. Os conceitos de escola e de sociedade inclusiva são tomados como alternativas para a promoção da igualdade, termo que ao longo do período foi sendo substituído por equidade. Percebemos também que, atrelado ao conceito de inclusão, tal como divulgado nas políticas de educação e de educação especial, está subjacente um modelo de subjetividade compatível com o modelo de sociedade proposto. A base dessa proposição está sustentada na concepção de direitos humanos, educação inclusiva e diversidade ― três conceitos imbricados na concepção de deficiência a partir de 2003.

Verificamos, nesse terceiro momento histórico, as proposições de uma subjetividade compatível com os interesses do capital ― um indivíduo solidário, tolerante, com espírito empreendedor ―, de uma cultura da paz e da coesão social e, ao mesmo tempo, de uma subjetividade relacionada ao conceito de diversidade, como algo que enriquece o ser humano, sendo este relacionado à estratégia de disseminar a construção de sistemas educacionais inclusivos e a educação inclusiva.

A educação especial na perspectiva inclusiva contempla esses elementos no discurso, sendo apresentada como uma proposta totalmente nova. Entretanto, verificamos que aconteceu uma reconfiguração dos conceitos, quando novos elementos foram acrescentados ao discurso.

Esse é um momento em que se observa, nas políticas de educação especial brasileira, o uso político de um discurso baseado nos direitos humanos. Nessa esteira, há a proposição de um sistema educacional inclusivo para o acolhimento da diversidade ou multiplicidade, termos que vão substituindo a expressão deficiência. Quanto à definição de público-alvo das políticas, reitera-se a medicina positivista e funcionalista na organização do atendimento educacional especializado. À vista disso, observamos uma dicotomia entre normal e patológico metamorfoseada por um discurso da celebração das diferenças e que define deficiência como diversidade ou multiplicidade cultural e social, subsumindo seus aspectos físicos. No entanto, para a organização das salas de recursos multifuncionais, a concepção de deficiência é estabelecida em termos de normalidade e patologia, com exceção das altas habilidades/superdotação.

A ambiguidade na concepção de deficiência é evidenciada porque, por um lado, a deficiência está definida em termos de necessidades educacionais especiais ou diversidade, o que serve de base filosófica para a escola comum inclusiva, sendo também relacionada à ideia de direitos humanos, diversidade, justiça social e inclusão. Em síntese, é uma concepção ampla, na qual o modelo proposto é um sistema educacional inclusivo para o acolhimento da diversidade. Por outro lado, na proposição do modelo de serviços, a concepção de deficiência retoma aquela estabelecida em termos de normalidade e patologia.

Ademais, a concepção de deficiência relacionada à diversidade, justiça social e inclusão está inserida no contexto discursivo de desenvolver políticas e práticas inclusivas, numa relação antinômica entre o par inclusão e exclusão. As proposições redefinem a problemática da educação das classes populares no capitalismo dependente, como ocorre no Brasil, assente em elementos e em um contexto nos quais são omitidas ou reconceitualizadas as palavras-chaves da história das lutas sociais, tais como classe, contradição, expropriação, exploração e acumulação.

6 Considerações finais

Este artigo teve como objetivo analisar a concepção de deficiência contida nos documentos representativos das políticas de educação especial do ensino fundamental no Brasil a partir da década de 1970. Desenvolvemos a ideia de que essa concepção, desde a década de 1970 até os dias atuais, está sustentada numa dicotomia entre o normal e patológico que, apesar de ter sofrido alterações ao longo do período analisado, permanece na base da concepção em estudo e não guarda mudanças essenciais.

Os documentos das políticas de educação especial a partir dos anos 2000 apresentam uma crítica ao conceito de normalidade para defender a deficiência como expressão de diversidade cultural, o que acaba dicotomizando a relação entre biológico e social ao criticar a medicina. Contraditoriamente, utilizam-se da medicina para fazer o diagnóstico e o encaminhamento para o atendimento educacional especializado. Por isso, a pretensa crítica ao modelo médico e ao diagnóstico clínico, que orienta o modelo de atendimento aos alunos com deficiência, não resultou em mudanças na base da concepção pela educação especial na perspectiva inclusiva. A deficiência continua sendo definida em relação a sujeitos que desviam para mais e para menos em termos de padrões físico, social, comportamental e que precisam de serviços especializados.

Percebemos mudanças, disputas e polarizações em torno da concepção de deficiência ao longo do período analisado, no qual o discurso foi sendo rearticulado e reconfigurado nas políticas de educação especial brasileira, tal como aconteceu com a política educacional de modo geral, conforme os interesses políticos da burguesia. Do mesmo modo, o modelo de atendimento sofreu alterações atreladas a essas disputas, mas a essência do modelo de atendimento permanece ancorada na lógica e na racionalidade de uma dicotomia entre normal e patológico e de subordinação dos processos escolares dos alunos com deficiência no ensino fundamental a elas. Trata-se de uma perspectiva tecnicista e funcionalista que está na base do que Jannuzzi (2004b)JANNUZZI, G. Algumas concepções de educação do deficiente. Rev. Bras. Ciência e Esporte, Campinas, SP, v.25, n.3, p.9-25, 2004b. chama de vertente médico-pedagógica que persiste até hoje.

Esse tecnicismo foi sendo reconfigurado com/por outros discursos nos períodos analisados. Outros conceitos e expressões surgiram nos documentos das políticas educacionais, assim como outros componentes de justificativas desse discurso foram incorporados aos documentos para justificar e dar sustentação a essa racionalidade. Porém, não há ruptura na dicotomia entre normal e patológico; não há mudança da racionalidade hegemônica da concepção de deficiência, mas sim variações de estratégias para justificá-las.

Observamos uma rearticulação das explicações do que seja normal e patológico, mas sem perder a base de sua manutenção e a dicotomia. Esse princípio que estava presente na racionalidade moderna foi redefinido numa perspectiva pós-moderna10 10 Usamos o termo pós-moderno no sentido de um pensamento "tal como manifesto por seus primeiros representantes - que, de modo geral, asseveravam a derrota do projeto iluminista de emancipação, a mentira do progresso histórico, a fragilidade do sujeito, a impossibilidade da verdade, a negação do real, a recusa de fundamentos, rejeitavam as grandes narrativas, denunciavam a ciência e a racionalidade ocidental como imbricadas à estrutura de poder, à razão instrumental e à dominação -, é nítida a sobrevida de facetas da agenda pós-moderna como, por exemplo, suas vertentes culturalistas e neopragmáticas" (MORAES, 2004, p. 340). . Assim, temos, hoje, o normal e o patológico definidos em termos de diferença e diversidade ou multiplicidade cultural, como algo que enriquece o ser humano. Por um lado, descaracteriza-se a própria base biológica da deficiência à medida que todos se igualam pela diferença. Por outro lado, no modelo de atendimento, temos como foco principal das políticas de educação especial o atendimento educacional especializado específico para os alunos da educação especial, organizados no contraturno do ensino regular e que tem como base o diagnóstico médico e psiquiátrico.

Dessa forma, resgata-se a concepção de deficiência do modelo médico positivista. Essa racionalidade foi rearticulada nos períodos analisados mediante a incorporação de outros elementos de justificativas do discurso político, porém, na essência, não houve ruptura de racionalidade acerca do tema nos documentos analisados.

  • 3
    Utilizamos essa expressão ao longo do texto com base na Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que, no artigo 32, estabelece que "o ensino fundamental, com duração mínima de oito anos, obrigatório e gratuito na escola pública, terá por objetivo a formação básica do cidadão" (BRASIL, 1996BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 23 dez.1996. Seção 1, p.12.), considerando as alterações feitas pela Lei nº 11.274, de 6 de fevereiro de 2006, nos artigos 29, 30, 32 e 87 da Lei nº 9.394, dispondo sobre a duração de nove anos para o ensino fundamental, com matrícula obrigatória a partir dos seis anos de idade (BRASIL, 2006BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 23 dez.1996. Seção 1, p.12.). Levamos em conta que, desde a década de 1970 até os dias atuais, ocorreram mudanças na ampliação da faixa etária e na denominação dessa etapa de ensino, como, por exemplo, na Lei nº 5.692 de 1971, que em seu artigo 20 definia essa fase como ensino de 1º grau obrigatório dos sete aos 14 anos (BRASIL, 1971BRASIL. Lei nº 5.692, de 11 de agosto de 1971. Fixa diretrizes e bases para o ensino de 1º e 2º graus, e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 12 ago.1971. Seção 1, p.6377.).
  • 4
    Demarcamos como educação especial na perspectiva inclusiva as políticas de educação especial a partir de 2003, no Brasil, momento em que foi amplamente divulgada em todo o território nacional a relação entre educação dos alunos com deficiência e a perspectiva inclusiva. Todavia, cabe explicar que a perspectiva inclusiva, em termos de inserção dos alunos com deficiência no espaço social e no mercado de trabalho, já se encontra presente desde as bases da institucionalização da educação especial no Brasil na década de 1970.
  • 5
    A relação psicologia-pedagogia se inscreve no horizonte médico-psiquiátrico desde o início do século XX, com a criação dos serviços de saúde escolar pela medicina e da higiene mental pela psiquiatria. Não é o nosso objetivo aqui aprofundar essa questão, porém, interessa-nos deixar claro que, por trás da educação especial na perspectiva inclusiva, existe uma concepção de deficiência ou de normalização, segundo a qual ocorre o fenômeno da psiquiatrização do social (SCHNEIDER, 1993SCHNEIDER, D.R. Implicações da ideologia médico psiquiatra na educação. 1993. 208f. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 1993.) ou da medicalização da sociedade (MOYSÉS, 2009MOYSÉS, M.A.A. A medicalização do não-aprender-na-escola e a invenção da infância anormal. In: REUNIÃO ANUAL DA ANPED, 30., 2009, Caxambu. Anais eletrônicos... Caxambu, ANPED, 2009. Disponível em:<www.anped.org.br>. Acesso em: 28 out. 2009.
    www.anped.org.br...
    ), que é o fenômeno de transformação de questões sociais e humanas em questões biológicas.
  • 6
    Definimos como público-alvo da educação especial aqueles sujeitos para quem se dirigem as políticas de educação especial, ou seja, os sujeitos identificados no âmbito da política nacional. E o conceito de deficiência expressa a forma como são definidos os sujeitos desse público-alvo, o que envolve um conjunto de vocabulários técnicos e políticos para justificar os serviços a eles propostos.
  • 7
    Série de acordos produzidos, nos anos 1960, entre o MEC e a Usaid, visando estabelecer convênios de assistência técnica e cooperação financeira à educação brasileira. Entre junho de 1964 e janeiro de 1968, período de maior intensidade nos acordos, foram firmados 12, abrangendo desde a educação primária (atual ensino fundamental) ao ensino superior. O último dos acordos firmados foi em 1976. Os MEC-Usaid inseriam-se num contexto histórico fortemente marcado pelo tecnicismo educacional da teoria do capital humano, isto é, pela concepção de educação como pressuposto do desenvolvimento econômico. Nesse contexto, a ajuda externa para a educação tinha por objetivo fornecer as diretrizes políticas e técnicas para uma reorientação do sistema educacional brasileiro, à luz das necessidades do desenvolvimento capitalista internacional. Os técnicos norte-americanos que aqui desembarcaram, muito mais do que preocupados com a educação brasileira, estavam ocupados em garantir a adequação de tal sistema de ensino aos desígnios da economia internacional, sobretudo aos interesses das grandes corporações norte-americanas (MINTO, 2006MINTO, L.V. MEC-USAID. In: LOMBARDI, J.C.; SAVIANI, D; NASCIMENTO, N.I.M (Org.). Navegando na história da educação brasileira. Campinas: Graf.FE: HISTEDBR, 2006.).
  • 8
    O livro História do movimento político das pessoas com deficiência no Brasil foi compilado por Mário Cléber Martins Lanna Júnior e editado em 2010 pela Secretaria de Direitos Humanos/Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência e retrata em grande medida a história da luta do movimento das pessoas com deficiência (LANNA JÚNIOR, 2010LANNA JÚNIOR, M.C.M. (comp.). História do movimento político das pessoas com deficiência no Brasil Brasília: Secretaria de Direitos Humanos/Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência, 2010.).
  • 9
    Art. 27. A educação constitui direito da pessoa com deficiência, assegurado sistema educacional inclusivo em todos os níveis e aprendizado ao longo de toda a vida, de forma a alcançar o máximo desenvolvimento possível de seus talentos e habilidades físicas, sensoriais, intelectuais e sociais, segundo suas características, interesses e necessidades de aprendizagem. [...] Art. 28. Incumbe ao poder público assegurar, criar, desenvolver, implementar, incentivar, acompanhar e avaliar: I - sistema educacional inclusivo em todos os níveis e modalidades, bem como o aprendizado ao longo de toda a vida" (BRASIL, 2015BRASIL. Lei nº 13.146, de 06 de julho de 2015. Institui a lei brasileira de inclusão da pessoa com deficiência (Estatuto da pessoa com deficiência). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 7 jul. 2015.).
  • 10
    Usamos o termo pós-moderno no sentido de um pensamento "tal como manifesto por seus primeiros representantes - que, de modo geral, asseveravam a derrota do projeto iluminista de emancipação, a mentira do progresso histórico, a fragilidade do sujeito, a impossibilidade da verdade, a negação do real, a recusa de fundamentos, rejeitavam as grandes narrativas, denunciavam a ciência e a racionalidade ocidental como imbricadas à estrutura de poder, à razão instrumental e à dominação -, é nítida a sobrevida de facetas da agenda pós-moderna como, por exemplo, suas vertentes culturalistas e neopragmáticas" (MORAES, 2004MORAES, M.C.M. O renovado conservadorismo da agenda pós-moderna. Cadernos de Pesquisa, v.34, n.122, p.337-357, 2004., p. 340).

Referências

  • ALMEIDA, D.L. Educação moral e cívica na ditadura militar: um estudo de manuais didáticos. 2009. 182f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade de São Carlos, São Carlos, 2009.
  • BRASIL. Lei nº 4.024, de 20 de dezembro de 1961. Fixa as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 27 dez. 1961. Seção 1, p.11429.
  • BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (1967). Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 24 jan. 1967. Seção 1, p.953.
  • BRASIL. Lei nº 5.692, de 11 de agosto de 1971. Fixa diretrizes e bases para o ensino de 1º e 2º graus, e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 12 ago.1971. Seção 1, p.6377.
  • BRASIL. Decreto nº 72.425, de 3 de julho de 1973. Cria o Centro Nacional de Educação Especial (CENESP). Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 4 jul. 1973, Seção 1, p. 6426.
  • BRASIL. Ministério de Educação e Cultura. Centro Nacional de Educação Especial. Diretrizes básicas para a ação do Centro Nacional de Educação Especial Brasília, DF: Cenesp, 1974.
  • BRASIL. Ministério de Educação e Cultura. Centro Nacional de Recursos Humanos. Análise dos principais problemas da educação brasileira Brasília, DF: CNRH, 1978.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2017

Histórico

  • Recebido
    20 Out 2016
  • Revisado
    06 Jun 2017
  • Aceito
    13 Jun 2017
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