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Discurso médico e discurso pedagógico: interfaces e suas implicações para a prática pedagógica

Medical and pedagogic discourse: interfaces and implications for pedagogic practices

Resumos

O estudo investigou os efeitos do discurso médico no processo de ensino-aprendizagem escolar, particularmente, como ele tem sido apropriado pelo corpo docente e os seus efeitos nas práticas pedagógicas dos educadores. Trata-se de um estudo qualitativo realizado ao longo do período letivo de 2008. Participaram do estudo 17 educadores que trabalham com crianças com paralisia cerebral, com idade entre 6 e 12 anos e acompanhadas pela equipe de reabilitação da Rede Sarah de Hospitais, em Belém. Foram realizadas entrevistas gravadas em áudio no início e no final do período letivo, seguindo o mesmo roteiro. Ao longo do ano, foram realizadas visitas escolares, pela equipe do Sarah, com intervalos de aproximadamente dois meses e com o objetivo de dialogar com os educadores e esclarecer sobre o diagnóstico da criança, seus potenciais, limites e adaptações que favorecessem o processo de inclusão e de aprendizagem. A análise dos dados iniciais revelou a inconsistência teórica dos educadores sobre os conceitos de inclusão e de paralisia cerebral. Indicou o desconhecimento sobre o diagnóstico da criança e a elaboração de práticas pedagógicas orientadas por discursos médicos baseados no senso comum. Ao final do processo, identificou-se que as percepções, as concepções, as práticas e o discurso pedagógico dos educadores haviam se modificado. Foram observadas reelaborações de ações pedagógicas considerando o diagnóstico, aspectos individuais e coletivos da aprendizagem, além dos limites e potenciais de cada criança. Constatou-se assim, o processo de subjetivação discursiva, como resultado da interlocução entre campos de saberes diferentes, no caso, Saúde e Educação, resultando em reelaboração do discurso e das práticas pedagógicas no processo de ensino-aprendizagem das crianças com paralisia cerebral.

educação especial; Discurso; ensino-aprendizagem; Paralisia Cerebral


This study investigated the effects of medical discourse in the teaching-learning process, particularly as it has been appropriated by educators in schools and its effects on these educators' pedagogical practices. The study in question is a qualitative study undertaken during the 2008 school year. Seventeen teachers participated in this study of children diagnosed with cerebral palsy, aged between 6 and 12 years old. The children were observed by the rehabilitation team of the Sarah Hospitals Network in Belém. Using the same guidelines, audio recorded interviews were conducted at the beginning and at the end of the school year. Over the year, there were school visits by Sarah staff, at two month intervals, approximately, in order to talk to the teachers regarding the children's diagnoses, their potentials and limitations, and possible adaptations that could facilitate their inclusion and learning processes. Analysis of the initial data has shown the theoretical inconsistency of educators concerning concepts of inclusion and cerebral palsy. In addition, the analysis pointed out that teachers lacked knowledge about the children's diagnoses; they seemed to prepare pedagogical practices according to medical discourse based on common sense. Changes in perceptions, concepts, practices and pedagogical discourse of the educators were observed at the end of the study. Renewed pedagogical strategies were observed that considered the child's diagnosis, as well as individual and group learning situations, besides the limitations and potential of each child. The study demonstrated that the process of discursive subjectification can come about as a result of exchanges between fields of knowledge, in this case, Health and Education, in order to redraft discourse as well as renewed elaboration of pedagogical practices in the teaching-learning process of children with cerebral palsy.

Special Education; Discourse; Teaching and learning; Cerebral Palsy


RELATO DE PESQUISA

Discurso médico e discurso pedagógico: interfaces e suas implicações para a prática pedagógica

Medical and pedagogic discourse: interfaces and implications for pedagogic practices

Marco Antonio Melo FrancoI; Alysson Massote CarvalhoII; Leonor Bezerra GuerraIII

IDoutor em Ciências da Saúde pela Faculdade de Medicina da UFMG, Professor hospitalar da Rede Sarah de Hospitais de Reabilitação. Belém Pará - mamf.franco@gmail.com

IIPós-Doutor em Psicologia pela University of North Carolina, Orientador do Programa de Saúde da Criança e do Adolescente da Faculdade de Medicina/UFMG - alysson@ufmg.br

IIIDoutora em Biologia Celular pela UFMG, Docente do departamento de morfologia do Instituto de Ciências Biológicas da UFMG. Avenida Antônio Carlos 6627 - Campus Universitário, Pampulha, Belo Horizonte, MG - lguerra@icb.ufmg.br

RESUMO

O estudo investigou os efeitos do discurso médico no processo de ensino-aprendizagem escolar, particularmente, como ele tem sido apropriado pelo corpo docente e os seus efeitos nas práticas pedagógicas dos educadores. Trata-se de um estudo qualitativo realizado ao longo do período letivo de 2008. Participaram do estudo 17 educadores que trabalham com crianças com paralisia cerebral, com idade entre 6 e 12 anos e acompanhadas pela equipe de reabilitação da Rede Sarah de Hospitais, em Belém. Foram realizadas entrevistas gravadas em áudio no início e no final do período letivo, seguindo o mesmo roteiro. Ao longo do ano, foram realizadas visitas escolares, pela equipe do Sarah, com intervalos de aproximadamente dois meses e com o objetivo de dialogar com os educadores e esclarecer sobre o diagnóstico da criança, seus potenciais, limites e adaptações que favorecessem o processo de inclusão e de aprendizagem. A análise dos dados iniciais revelou a inconsistência teórica dos educadores sobre os conceitos de inclusão e de paralisia cerebral. Indicou o desconhecimento sobre o diagnóstico da criança e a elaboração de práticas pedagógicas orientadas por discursos médicos baseados no senso comum. Ao final do processo, identificou-se que as percepções, as concepções, as práticas e o discurso pedagógico dos educadores haviam se modificado. Foram observadas reelaborações de ações pedagógicas considerando o diagnóstico, aspectos individuais e coletivos da aprendizagem, além dos limites e potenciais de cada criança. Constatou-se assim, o processo de subjetivação discursiva, como resultado da interlocução entre campos de saberes diferentes, no caso, Saúde e Educação, resultando em reelaboração do discurso e das práticas pedagógicas no processo de ensino-aprendizagem das crianças com paralisia cerebral.

Palavras-chave: educação especial; Discurso; ensino-aprendizagem; Paralisia Cerebral.

ABSTRACT

This study investigated the effects of medical discourse in the teaching-learning process, particularly as it has been appropriated by educators in schools and its effects on these educators' pedagogical practices. The study in question is a qualitative study undertaken during the 2008 school year. Seventeen teachers participated in this study of children diagnosed with cerebral palsy, aged between 6 and 12 years old. The children were observed by the rehabilitation team of the Sarah Hospitals Network in Belém. Using the same guidelines, audio recorded interviews were conducted at the beginning and at the end of the school year. Over the year, there were school visits by Sarah staff, at two month intervals, approximately, in order to talk to the teachers regarding the children's diagnoses, their potentials and limitations, and possible adaptations that could facilitate their inclusion and learning processes. Analysis of the initial data has shown the theoretical inconsistency of educators concerning concepts of inclusion and cerebral palsy. In addition, the analysis pointed out that teachers lacked knowledge about the children's diagnoses; they seemed to prepare pedagogical practices according to medical discourse based on common sense. Changes in perceptions, concepts, practices and pedagogical discourse of the educators were observed at the end of the study. Renewed pedagogical strategies were observed that considered the child's diagnosis, as well as individual and group learning situations, besides the limitations and potential of each child. The study demonstrated that the process of discursive subjectification can come about as a result of exchanges between fields of knowledge, in this case, Health and Education, in order to redraft discourse as well as renewed elaboration of pedagogical practices in the teaching-learning process of children with cerebral palsy.

Keywords: Special Education; Discourse; Teaching and learning; Cerebral Palsy.

INTRODUÇÃO

Tradicionalmente, a escola aperfeiçoou-se em atender às necessidades educativas comuns. Isso significa que sua especialidade é lidar com crianças e adolescentes que aprendem. No caso de alunos que apresentam déficits cognitivos e/ou motores, a dificuldade pedagógica emerge. Muitos profissionais da educação não se sentem capacitados para atuarem; outros reclamam a falta de condições de trabalho. Na verdade, o aprendiz acaba responsabilizado por não aprender, e muitas vezes, subjugado na sua capacidade e potencialidade. Nesse sentido, o discurso1 1 Os discursos médico e pedagógico podem ser compreendidos como todo discurso produzido por estas instituições, caracterizados por normas, regras, poder e saber. Trazem no seu bojo o "conjunto das funções de observação, interrogação, decifração, registro, decisão, que podem ser exercidas pelo sujeito do discurso (...) (FOUCAULT, 2000, p.206). pedagógico, muitas vezes, busca no discurso médico elementos para justificar o não-aprender de algumas crianças. De maneira indevida, costuma se apropriar de termos e elementos discursivos para tal justificação. São frequentes as confusões entre déficits motores e cognitivos. Muitos costumam fazer diagnósticos e prognósticos e atribuir o não-aprender às dificuldades motoras como se elas fossem, também, cognitivas.

Exemplo dessas dificuldades, pseudodiagnósticos e confusões, muitas vezes, podem ser observados no ensino de crianças com paralisia cerebral. Para Bleck 1987, paralisia cerebral pode ser definida como uma desordem não progressiva do movimento ou postura que se inicia na infância e é causada por um mau funcionamento ou dano no cérebro. Outra definição nos é dada por Bax apud Braga (1995, p.9) como sendo uma "(...) desordem do movimento secundária a uma lesão não progressiva do cérebro em desenvolvimento".

Assim, podemos inferir que, os professores, ao diagnosticarem os alunos sem fundamentação consistente para isso, reforçam as estruturas excludentes dos processos e procedimentos escolares. Utilizam de um discurso médico, do qual não têm conhecimento e propriedade para justificar o não-aprender de crianças que muitas vezes, apresentam distúrbios que dificultam a sua aprendizagem, mas não a impedem.

Ao longo das últimas décadas, presenciamos o crescente movimento de inclusão escolar. Trata-se de um movimento mundial com repercussões importantes. A noção de escola inclusiva ganha força com a Declaração de Salamanca que a compreende como o processo de inclusão de indivíduos com necessidades educacionais especiais ou de distúrbios de aprendizagem deve se dar na rede regular de ensino em todos os seus níveis. Eles devem ser acomodados dentro de uma pedagogia que atenda às suas necessidades e demandas (UNESCO, 1994).

Esse movimento surge como forma de romper com o paradigma até então predominante. O pensamento que socialmente imperou trazia em seu cerne o ideal de padronização e de homogeneização do ensino e, por conseguinte, dos ensinados. Essa concepção foi construída e historicamente legitimada pela concepção de modernidade e implicou em atitudes de exclusão daqueles que fugiam aos padrões de normalidade (SILVA, 2005). Vimos, até os dias atuais, nos cursos de formação docente, o reflexo dessa concepção. Em sua maioria, eles laboram na perspectiva de ensinar a ensinar os alunos que aprendem.

A emergência de novas demandas sociais, concomitantemente com as mudanças dos modelos socioeconômicos mundiais, bem como com o avanço do pensamento intelectual nas últimas duas décadas, colaboraram para o repensar do processo educacional e da necessidade de se construir novos modelos que atendam às demandas sociais de forma mais ampla. Nesse contexto, a perspectiva de uma sociedade mais inclusiva e, consequentemente, de uma educação menos excludente, ganha a pauta nas políticas públicas em governos mundiais.

A PRODUÇÃO DE UM DISCURSO EXCLUDENTE

Entendendo que há uma dificuldade da escola em lidar com as diferenças e, portanto, uma tendência em justificar, de maneira simplória, essa dificuldadepor meio de uma "patologização" dos sintomas (MOYSÉS, 2001) manifestados pelos alunos, acreditamos ser necessária a compreensão desse fenômeno e do discurso utilizado pelos educadores, para tal justificação. Temos claro que não é qualquer discurso que é produzido na instituição escolar e sim um discurso de poder, institucionalizado, no caso, sustentado por uma outra instituição, a medicina, conforme aborda Foucault (1998) em a Ordem do discurso.

Assim, pensar o discurso é pensar a linguagem como elemento de mediaçãoentre o homem e sua realidade. É o lugar do conflito e do confronto ideológico.

A linguagem enquanto discurso não constitui um universo de signos que serve apenas como instrumento de comunicação ou suporte de pensamento; a linguagem enquanto discurso é interação, e um modo de produção social; ela não é neutra, inocente e nem natural, por isso o lugar privilegiado de manifestação da ideologia(BRANDÃO, 2004, p.11).

Sendo a linguagem o elemento de mediação, torna-se necessário compreender os diferentes significados que pode produzir nos variados contextos em que se origina e se constitui. No caso do discurso médico, reproduzido pela escola, é necessário buscar uma análise que permita compreender como esse discurso circula na escola, que apropriação é feita dele, pelos educadores, e como ele se materializa em práticas pedagógicas.

Assim, pensar como o discurso médico circula e é reproduzido no espaço escolar, significa entender, conforme Bakhtin/Volochinov (1929/1999), que a palavra se materializa no processo de comunicação por meio dos signos sociais, que estão diretamente determinados pelo conjunto de leis sociais, culturais e econômicas, construídas em um processo histórico.

Por outro lado, considerá-lo na perspectiva foucaultiana é também, ir para além dos aspectos estruturais da língua, privilegiando os aspectos sociais e históricos das produções discursivas, as leis que as regulam e os campos aos quais se filiam.

Considerando essas abordagens, podemos pensar na constituição do discurso que a escola vem (re)produzindo a respeito das deficiências. Além disso, em como estes circulam nos contextos educacionais e sociais e em como os alunos têm sido estigmatizados por meio de um olhar diagnóstico do educador que, muitas vezes, se baseia em discursos já apropriados pelo senso comum. Muitas vezes imbuídos de autoridade que o discurso médico fornece, costumam diagnosticar de qual mal sofre a criança que não aprende e assim, definir seu percurso acadêmico.

ESPAÇOS DE CIRCULAÇÃO DO DISCURSO: MODOS DE SUBJETIVAÇÃO

O termo "subjetivação" designa, para Foucault, um processo pelo qual se obtém a constituição de um sujeito, ou, mais exatamente, de uma subjetividade (REVEL, 2005, p.82).

Considerando essa colocação, torna-se fundamental tomar o discurso como uma prática social, historicamente determinada, que constitui sujeitos e objetos. No caso deste estudo, essa afirmação nos leva a pensar em espaços de circulação de discurso, na interação discursiva e, particularmente, em como determinados discursos são apropriados pelos sujeitos.

Pensando na relação entre o discurso médico e o discurso pedagógico, tornam-se necessárias algumas considerações sobre as possíveis formas de subjetivação discursiva. Para considerarmos que o professor, muitas vezes, orienta sua prática pedagógica por meio de conhecimentos de domínio médico, faz-se necessário entender como esses conhecimentos chegam ao sujeito professor.

Uma primeira possibilidade está no laudo médico ou no diagnóstico que a família recebe ao consultar a criança. De posse desse diagnóstico, a família costuma encaminhá-lo à escola, que por sua vez, passa a lidar com a criança, sendo orientada pelo laudo.

Uma outra forma de circulação do discurso e, talvez a mais abrangente delas, é a mídia. Com a democratização do acesso aos meios de comunicação, os indivíduos passam a ter acesso mais facilmente a diferentes modelos, à informação, formas de pensamento, entre outros.

Considerando a linguagem como mediadora da interação entre sujeitos e por meio da qual se produz sentido (MOITA LOPES, 1998), podemos pensar a mídia como prática discursiva, produto da linguagem e do processo histórico e assim tentar apreender seu funcionamento (GREGOLIM, 2007). Para tanto, é importante analisar os enunciados e suas formas de circulação, as situações e contextos de produção do discurso bem como os sujeitos e suas posições (sociais, culturais, entre outras). Nesse sentido, o estudo teve por objetivo geral, investigar os efeitos do discurso médico no processo de ensino-aprendizagem escolar, particularmente, que discurso médico sobre paralisia cerebral tem chegado às escolas; sua forma de apropriação pelo corpo docente e os seus efeitos nas práticas pedagógicas dos educadores, por meio da análise. Analisar das práticas pedagógicas dos educadores, antes e após o processo de interlocução entre as equipes de saúde e educação.

MÉTODO

MODELO DE INVESTIGAÇÃO

O estudo realizado adotou uma abordagem qualitativa. De acordo com Santos Filho (1995), a pesquisa qualitativa privilegia o entendimento da verdade como relativa e subjetiva e o entendimento da realidade como socialmente construída, compreendendo o homem como sujeito e ator dessa construção, que é produto da interação.

PARTICIPANTES

A definição dos participantes foi feita em duas etapas. Na primeira, selecionamos pacientes atendidos na Rede Sarah de hospitais de Reabilitação (unidade de Belém) na ocasião de sua inauguração. A seleção da amostra se orientou pelos seguintes critérios:

_ crianças com paralisia cerebral, independente da classificação topográfica;

_ a criança deveria estar inserida no processo de escolarização, independente de estar em escola pública ou particular;

_ crianças na faixa etária entre 6 e 12 anos de idade;

_ escola localizada em Belém e região metropolitana.

Após seguir tais critérios, chegou-se a uma amostra de 16 crianças. O próximo passo foi o de estabelecer contatos com as famílias e propor a participação na pesquisa. Apenas 9 famílias concordaram com a participação. Em seguida foram contatados os profissionais das escolas, em que as crianças encontravam-se matriculadas, chegando assim ao número de 8 instituições participantes.

A próxima etapa constou da seleção dos docentes. Os educadores selecionados estavam de alguma forma, direta ou indiretamente, ligados ao processo de ensino-aprendizagem das crianças. São eles professores e coordenadores pedagógicos que elaboram tanto o programa de ensino da instituição escolar, como constroem as práticas pedagógicas cotidianas da escola. A seguir apresentamos um quadro demonstrativo para melhor compreensão da participação dos educadores, ao longo da pesquisa.

Neste quadro, buscamos descrever, de forma sintética, a participação dos educadores no decorrer da pesquisa. Como é possível observar, alguns tiveram uma participação mais efetiva durante todo o processo e outros por motivos diversos participaram em determinadas etapas.

Como forma de resguardar a identidade dos participantes da pesquisa, usamos aqui pseudônimos para nos referirmos aos mesmos.

PROCEDIMENTOS DE COLETAS DE DADOS

Após contato telefônico inicial com representantes das escolas e professores das crianças, foram agendas as entrevistas. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas (anexo) que aconteceram em dois momentos: início do ano letivo e final do mesmo período. No intervalo entre as entrevistas foram realizadas visitas escolares pela equipe de reabilitação da Rede Sarah de Hospitais. A entrevista inicial aconteceu nos dois primeiros meses de aula. O principal critério para realização dessas entrevistas é que não deveria haver, a priori, qualquer orientação da equipe da Rede Sarah de Hospitais aos profissionais das escolas, quanto ao processo de aprendizagem e inclusão da criança participante da pesquisa.

Posteriormente às entrevistas, foram realizadas as visitas escolares em períodos com intervalos de aproximadamente dois meses. Elas tinham por objetivo dialogar com os educadores sobre o diagnóstico da criança, seus potenciais e limites, adaptações que favorecessem o processo de inclusão e de aprendizagem.

É importante ressaltar que o processo de reabilitação na Rede Sarah de Hospitais é desempenhado por equipe multidisciplinar. Respeitadas as especificidades de cada área de conhecimento, a equipe busca estabelecer uma perspectiva de atuação interdisciplinar na formulação de programas de reabilitação. Uma das particularidades desse programa diz respeito às visitas escolares como forma de acompanhar o processo de inserção, reinserção e inclusão escolar, bem como dialogar com os educadores sobre estratégias de aprendizagem, acessibilidade e outros que favoreçam esta inserção.

Ao final do ano letivo, foram realizadas novas entrevistas com os educadores, seguindo o mesmo roteiro das entrevistas iniciais. Nesse segundo momento, privilegiou-se os resultados advindos das interlocuções promovidas por meio das visitas escolares ao longo do período supra referido.

O registro das entrevistas foi gravado integralmente em aparelho de mp3 e os participantes assinaram, previamente, o termo de consentimento livre e esclarecido, após conhecerem o objetivo e finalidade da pesquisa.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Optamos por fazer um recorte na pesquisa e apresentar um quadro comparativo (Quadro 2) entre os resultados das entrevistas iniciais e finais, tendo, nesse intervalo, acontecido um processo de visitas escolares conforme descrito na metodologia. Nele é possível observar as concepções docentes sobre inclusão, paralisia cerebral e suas práticas pedagógicas no primeiro contato e a reformulação desses conceitos e práticas a partir da interlocução entre os dois campos de saberes, Saúde e Educação.


Selecionamos 5 educadores que estiveram presentes em todas as etapas da pesquisa. Em seguida faremos a discussão ilustrando com falas dos educadores coletadas ao longo das entrevistas.

OS VENTOS QUE SOPRAM, OS CAMINHOS QUE SE FAZEM

Para iniciarmos a análise, entendemos ser importante retomarmos alguns conceitos. Começaremos pelo conceito de inclusão. Conforme Mantoan (1998; 2003), L. Marques (2001), C. Marques (2001), a inclusão pode ser entendida como a modificação de estruturas excludentes, a superação de modelos vigentes e a reorganização de sistemas sociais e educacionais que atendam às necessidades e demandas sociais.

Neste estudo, em uma caminhada de cerca de um ano, observamos que práticas pedagógicas inclusivas foram se constituindo, fruto de interlocuções travadas entre equipes com saberes e práticas diferentes, cujo objeto central foi a criança com paralisia cerebral e suas particularidades.

A princípio, nos primeiros contatos estabelecidos, observamos que muitos educadores disseram estar diante de uma situação nova e que não sabiam muito bem como lidar com ela. Ao final do ano letivo, ao entrevistarmos esses educadores novamente, ouvimos suas posições sobre inclusão conforme pode ser observado nas falas a seguir:

"(...) saber quais as necessidades das crianças e não incluir de somente colocar na sala de aula, mas tentar fazer com que ele tenha a mesma oportunidade de aprendizagem que os demais, apesar da sua deficiência, das suas dificuldades, seja ela corporal ou mental ou de aprendizagem mesmo." (Profa. Beatriz)

"Pra mim inclusão é uma abertura para o novo, do diferente, (...) poder ajudar e poder conhecer essa pessoa e o que ela pode fazer, não limitá-la, mas conhecer suas limitações sem antes conhecer e ir já falando que não pode(...)" (Profª. Nilma)

"Como eu posso dizer, é participar das outras coisas que as pessoas ditas normais participam na escola, no trabalho, no lazer, na sociedade em si." (Profª. Núbia)

"A criança precisa estar incluída numa sociedade igual a todos." "Nós não podemos também, porque ela tem uma limitação, deixar ela a parte." (Profª. Telma)

Essas falas dos educadores indicam o movimento de suas concepções acerca do conceito de inclusão. Quando questionados sobre o que pensavam, foram unânimes em dizer sobre a oportunidade, a participação do deficiente em contextos sociais diversos, independente de suas limitações. Entendemos que esse é um dado importante para que o processo inclusivo de fato aconteça. Embora sejam falas e não práticas, podemos inferir sobre a mudança discursiva dos educadores. Se antes não conseguiam muito bem conceituar inclusão, algo se alterou ao longo da interlocução entre as equipes de saúde e educação.

Não cabe aqui, tratar se chegamos a um nível ideal ou não, mas pensarmos sobre o movimento que se constitui. Identificamos uma preocupação com o não limitar, o não dificultar o percurso de pessoas com deficiência. Embora não observemos um discurso claro, bem fundamentado, com conceitos bem explícitos sobre inclusão, identificamos as alterações.

Oportunizar e participar se traduz em não limitar, em não deixar de fora da participação social. Além disso, nas falas apresentadas, não observamos a busca enfática pela normalidade. Participar, aqui, vem junto com a concepção de respeito aos limites de cada pessoa.

Observamos que não somente o conceito de inclusão se altera na concepção dos docentes, como também, o conceito de paralisia cerebral ganha novas conotações:

"Sei que ele tem uma parte do cérebro afetada, tem um problema [inaudível], então eu tenho um conhecimento rasteiro." (Profª. Nilda)

"Eu consegui ver que a criança adquire algumas dificuldades dependendo da área que é afetada, pode ser coordenação motora, pode ser outras áreas..." (Profª. Flávia)

"Eu vejo que pode ser diferente pela questão da gravura (gravidade) da paralisia, por exemplo, se tiver crianças [ininteligível], tem crianças que são muito mais afetadas, que às vezes não conseguem fazer movimentos, nem falar quase (...) eu acho que devido ao comprometimento da doença, compromete às vezes neste aspecto da aprendizagem." (Prof. Vagner)

"Tem comprometimento motor e cognitivo também. O motor aparece muito mais rápido e o cognitivo, vai aparecer ao longo do crescimento" (Profª. Suzana)

"(...) a psicóloga nossa trouxe material sobre paralisia cerebral, a gente começou a estudar um pouco sobre isso e vimos com vocês e pela nossa experiência também com o Sandro que não é só motora, que tem um lado cognitivo e que também pode ser afetado, mas que com cuidado ou com alguma dinâmica, com alguma metodologia específica ele pode ter uma aprendizagem alcançada também, então isso mudou para a gente, com certeza mudou." (Profª. Beatriz)

Identificamos que as falas produzidas pelos profissionais da educação encontram-se carregadas de elementos de um discurso pouco característico da área pedagógica. "Comprometimento motor", "dependendo da área que é afetada", entre outros, são discursos característicos da área da saúde. Podemos identificar, nessas falas, que a concepção de paralisia cerebral, antes tão distante do universo pedagógico investigado, se apresenta mais consistente. Há um discurso mais fluído sobre o que seja uma pessoa com paralisia cerebral, embora não haja uma conceituação clara ou mesmo, um dizer explícito sobre o diagnóstico de cada criança.

Como dissemos anteriormente, não buscamos analisar se nos aproximamos do ideal e sim os resultados e as subjetivações e apropriações (FOUCAULT, 1999, 2000), acerca dos temas abordados nas interlocuções entre as equipes. Identificamos nas falas dos educadores, mais uma vez, o movimento que nos indica a produção de sujeitos discursivos que se constituem e constituem o discurso em contextos de interação (MOITA LOPES, 1998; BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1929/1999).

Outro aspecto importante observado é que ambas as equipes, reabilitação e educação, mesmo tendo conhecimentos teóricos distintos e atuando em suas áreas orientadas por esses conhecimentos, tinham em comum algo que os possibilitou estabelecerem uma interlocução produtiva. A criança com paralisia cerebral seria, então, o elo das equipes e o objeto que orientou a interlocução. Esse objeto comum possibilitou às equipes falarem do lugar de atuação, das experiências e das práticas de cada um.

Assim, observamos que o significado é produzido a partir de discursos que se convergem em função do desenvolvimento e da aprendizagem de crianças com deficiências. Citando novamente Foucault (2000, p.179)

(...) em uma sociedade como a nossa, mas no fundo em qualquer sociedade, existem relações de poder múltiplas que atravessam, caracterizam e constituem o corpo social e que estas relações de poder não podem se dissociar, se estabelecer nem funcionar sem uma produção, acumulação, uma circulação e um funcionamento do discurso.

Nesse caso, o autor nos auxilia a compreender que a produção de significado se dá em contextos específicos de produção discursiva, sendo o homem objeto e sujeito do conhecimento, que surge na investigação empírica de suas atividades, como aquele que trabalha, que vive, que está vinculado à produção e à linguagem (QUEIROZ, 1999). Reforçamos aqui, que a interlocução se faz produtiva, uma vez que os interlocutores dialogam em função de objetos comuns.

Entendemos assim, que os ventos que semeiam os discursos nos levam a colher o movimento. Os sujeitos produzidos pelo discurso modificam seus pensamentos e suas práticas por aquilo que são tocados, que são subjetivados. No caso dos educadores, identificamos um novo discurso que resulta das interlocuções. Surge então uma questão: as práticas pedagógicas também se modificam ou será que permanecem apenas no campo discursivo? Este tema passa a ser abordado no tópico seguinte. Nele, exemplificaremos, por meio das falas dos educadores, a elaboração ou a reelaboração de práticas pedagógicas condizentes ou não com os seus discursos atuais.

ENTRE DISCURSOS E PRÁTICAS

Um ponto importante a ser abordado refere-se às mudanças na prática pedagógica. Observamos no tópico anterior que os discursos dos educadores se revelam subjetivados por elementos do discurso médico, porém não podemos dizer de uma mudança nas ações como consequência das mudanças discursivas. Não há uma relação direta de causa e efeito entre elas.

A seguir, apresentamos algumas falas que nos ajudam a iniciar a discussão sobre o tema. Elas indicam percepções e ações que os educadores desenvolveram em seu cotidiano escolar.

"Agora, eu vejo assim: ele tem as barreiras para não mandar o movimento certo para ele andar, pro braço dele fazer isso assim, mas eu vejo que para o conhecimento dele, pra adquirir uma leitura, ele consegue. Isso daí, é o nosso trabalho, é esse que é o papel do educador, diferenciar isso [...] aonde a gente acelera, conhecer que ele já cansou realmente, conhecer até aonde a energia dele, aonde ele ta motivado..." (Prof. Vagner)

"Então a gente vai tentar para 2009 trabalhar um pouco a independência desses novos alunos do quinto ano, inclusive do Sandro que vai estar no meio deles, então a gente vai ter que trabalhar um pouco com ele e, ao mesmo tempo, trabalhar com os professores do sexto ano já preparando-os para essa atenção especial que precisa ser dada durante as aulas, durante as explicações, durante as atividades avaliativas que apresentaram maior dificuldade este ano." (Profª. Beatriz)

"Na verdade eu fui buscar muito com a mãe também, porque ela tem esse caminho desde o nascimento. Eu fui conhecer mais pra saber como eu poderia ajudar e não me desesperar. Porque acaba sendo desesperador quando a gente não sabe o que fazer." (Profª. Nilma)

"Porque até então eu deixava ele assim, igual a todos, porque antes eu pensava na inclusão, ele tá aqui, então ele tem que estar igual a todo mundo e tem que sentar igual a todo mundo. Depois eu fui despertada por vocês. Ele tem uma limitação, então a gente tem que ver ele diferente, avaliar ele diferente. Então aí eu fui mudando a minha metodologia me preocupando em fazer a leitura para ele." (Profª. Telma)

Observamos que cada educador apresenta falas específicas do contexto em que atua. O que verificamos de comum entre elas é que indicam mudanças no olhar, na leitura que fazem sobre o processo de aprendizagem da criança, suas limitações e suas potencialidades. Temos aqui, uma mudança significativa nesse olhar que transita do mais visível para o menos visível, ou seja, o foco sobre o aspecto motor vai cedendo lugar ao foco sobre a cognição.

Inicialmente, os educadores tinham o aspecto motor como foco de sua atuação. Seguravam nas mãos de algumas crianças para que elas conseguissem escrever e acreditavam que treino motor faria delas escritores. Podemos identificar que o aspecto cognitivo começa a ganhar ênfase. Os educadores começam a se preocupar com o aprender dessas crianças e com as estratégias que elaborarão para que isso se concretize. Quando o Prof. Vagner acentua que é papel do educador identificar o que a criança é capaz de fazer, ele revela a importância de se compreender o processo de aprendizagem de cada um para melhor atuação docente. Mesmo que seja difícil para ele fazer essas mudanças e adaptações, de certa forma, nos indica o movimento que realizou ao longo do ano letivo. Suas percepções se alteraram na compreensão da criança com paralisia cerebral, no caso, seu aluno.

Outras estratégias importantes também são reveladas na fala da professora Nilma. Ela buscou no conhecimento da família orientações para direcionar a sua prática. Observamos então, a valorização do conhecimento familiar que entendemos ser de fundamental importância. São conhecimentos da prática, do cotidiano da criança que em muito podem ajudar na elaboração de estratégias no espaço escolar. Não podemos desconsiderar que o conhecimento familiar também é atravessado por discursos diversos e, principalmente, o discurso médico. A família, provavelmente, já ouviu por diversas vezes o diagnóstico, já recebeu instruções de como lidar com a criança e já construiu estratégias a partir das orientações médicas e das experiências do dia a dia. Podemos assim, novamente identificar a circulação do discurso na sociedade e a construção de práticas e novos discursos. A linguagem media a produção de sentidos (MOITA LOPES, 1998) e as práticas refletem os significados atribuídos aos discursos em situação de interação.

Identificamos essa perspectiva, também na fala da professora Telma. Ela revela uma prática anterior orientada pela noção de normalidade. Incluir seria, para ela, uma tentativa de tornar a criança normal em um espaço de "normais". Nesse sentido, bastava ao professor promover o espaço da participação e, caso a criança não conseguisse apresentar desempenho como os demais colegas, acabava por ser responsabilizada por seu fracasso. Ao dizer que foi "despertada" para outras possibilidades, ela presta um depoimento evidenciando ter sido tocada por discursos que a fizeram perceber a realidade sobre outro foco. Considerando que ela se refere a um grupo de pessoas específico "vocês" - equipe da Rede Sarah de Hospitais -inferimos a subjetivação da professora pelo discurso produzido por essa equipe ao longo dos acompanhamentos escolares, sendo ele, caracteristicamente o discurso de uma instituição médica.

"Então eu vejo que às vezes a gente acaba passando uma culpa para o aluno que às vezes a gente sabe, que a gente é cheio de falhas; às vezes a gente não tem o conhecimento para estar considerando isso" (Prof. Vagner).

A fala do professor Vagner reforça essa impressão e é também a hipótese inicial deste estudo. Além disso, identificamos a apropriação do discurso demonstrada pela capacidade de relacioná-lo à sua prática e ao cotidiano escolar. Em uma lógica meritória e competitiva (MOURA, 2004), acabamos por responsabilizar a criança por não alcançar ou atingir objetivos para ela desejados. Estabelecemos metas a serem alcançadas e costumamos não considerar as reais capacidades de cada um. Ao lidarmos com crianças com deficiência, particularmente a criança com paralisia cerebral, sabemos que por limitações motoras e, muitas vezes cognitivas, elas apresentarão dificuldades de alcançarem os objetivos que terceiros determinarão para elas. No caso da aprendizagem escolar, as adaptações são de fundamental importância. Porém, essas adaptações acontecerão se o educador identificar os potenciais e limites da criança e elaborar, a partir dessas observações, estratégias para sua aprendizagem.

Nesse sentido, esbarramos no problema da formação acadêmica. Este foi um dos aspectos reclamados pelos educadores. Muitos revelaram que a formação é de fundamental importância, pois o desconhecimento conduz a práticas equivocadas.

Na fala da professora Nilda abaixo, podemos identificar esse aspecto:

"Eu acho de fundamental importância, porque essa formação ela vai instrumentalizando. A partir dessa formação tu vai saber lidar com essa situação desse cidadão que tu pegas na sala de aula, quando tu não tem essa formação fica bem mais difícil".

Sabemos que a formação deve ser um processo contínuo, porém temos claro que nem sempre, ou na maioria das vezes, as condições para uma formação adequada e de qualidade são propícias. Observamos que os educadores trabalhavam no limite de seus conhecimentos e de suas suposições. A partir das observações empíricas, traçam estratégias de atuação docente sem clareza dos possíveis resultados, positivos ou negativos, e, muitas vezes, sem respaldos teóricos consistentes.

O atual discurso produzido pelos educadores, também não revela uma fundamentação teórica consistente na elaboração de suas práticas. Elas são resultados de interlocução entre campos de saberes diferentes que dialogaram em função do desenvolvimento e aprendizagem de um determinado indivíduo. Observamos subjetivações discursivas, mas, salvo algumas poucas situações, houve uma busca do conhecimento para além da interlocução. Podemos aqui situar o caso da professora Nilma que buscou na pós-graduação aporte teórico para sua prática. Professoras como Beatriz, Nubia e Telma, revelaram buscas pelo conhecimento em discussões com colegas de trabalho e alguns estudos esporádicos.

Entendemos ser importante ressaltar que, embora a fundamentação teórica que orienta a prática seja frágil e pouco consistente, o movimento realizado pelos educadores é de suma relevância. Ele é resultado de subjetivações discursivas e de construção de novos olhares sobre os conceitos e as práticas escolares cotidianas.

Outro dado importante são os resultados observados pelos educadoressobre a interlocução entre saúde e educação. É nítida, em suas falas, a importância atribuída a essa interlocução, como por exemplo:

"Eu acho essencial". (Profª. Nilda)

"Sem sombra de dúvida, contribui muito, porque a partir daquilo que eu não sei, [inaudível] eu vou modificando [inaudível] esse indivíduo, e as próprias ações pedagógicas que eu vou estar possibilitando para ele, elas vão estar pautadas nessas relações [inaudível], e sem ela você fica como um cego no tiroteio". (Profª. Nilda)

"Com certeza. Nos ajudou porque a princípio a gente não conhecia nada sobre a paralisia. Imaginávamos que era só o motor [...] E quando vocês começaram a dar aquelas informações de como ele realizava as atividades lá, que era muito bom, a gente começou a perceber que algumas áreas do conhecimento ele tinha dificuldade e outras não." (Profª. Beatriz)

"Com certeza, até mesmo a evolução do trabalho do professor na sala de aula com certeza seria bem melhor." (Profa. Flávia).

Observamos que essas falas são unânimes em considerar importante dialogar sobre a criança, seu processo de aprendizagem, realizar trocas de informações. Porém, se pensarmos na importância de se realizar uma formação docente de qualidade, não podemos deixar que ela seja substituída por uma aproximação entre equipes de áreas diferentes que se propõem dialogar sobre um objeto comum a ambas. O cuidado com a generalização é fundamental. Levantamos essa questão, pois, pode haver uma tendência, a partir da interlocução entre as equipes, de se generalizar procedimentos para crianças que apresentem algum tipo qualquer de deficiência. Não observamos essa perspectiva nas falas dos educadores, porém ressaltamos que essas escolas não recebem muitas crianças com deficiência. Portanto, o risco de generalização pode ser menor. Mas se outras crianças com paralisia cerebral forem matriculadas nessas escolas, será que a prática pedagógica idealizada para um determinado indivíduo não se estenderá a outro?

Entendemos que esse é um risco, assim como em outras situações do universo escolar. Se retomarmos a discussão sobre a constituição de metodologias de ensino (FRADE, 2005), perceberemos que o ensino é pensado para uma situação coletiva (CAGLIARI, 1999), portanto, são adotadas metodologias que possam responder a essa perspectiva. A tendência à generalização é histórica no processo de escolarização. As metodologias são pensadas para o ensino coletivo e não para a aprendizagem individual (CAGLIARI, 1999). Fazer a distinção entre o ensino e a aprendizagem, ou melhor, entre o potencial de aprendizagem, etapa do desenvolvimento, para elaborar estratégias de ensino é uma prática ainda pouco utilizada no campo educacional.

Assim, o cuidado deve ser inerente ao discurso a ser produzido pelos profissionais da saúde no campo pedagógico, considerando os objetivos a serem alcançados. Como o significado é produzido em contextos de interação (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1929/1999) e depende da interpretação dos sujeitos envolvidos, de suas histórias pessoais, experiências, níveis de compreensão, inferências e outros, não é possível exercer um controle sobre os resultados. O controle pode ser exercido sobre o discurso a ser produzido e dele se esperar resultados coerentes, mas não sabemos de fato os seus efeitos. Eles serão visíveis e observáveis nas ações resultantes das práticas discursivas e assim, controláveis à medida que novos discursos forem produzidos.

No caso da interlocução entre as equipes de reabilitação da Rede Sarah de Hospitais e dos educadores, identificamos mudanças. Elas se deram no campo discursivo e nas práticas pedagógicas dos educadores que passaram a se preocupar em oferecer um processo de aprendizagem e de participação no universo escolar de melhor qualidade. Mudaram o foco de seu olhar sobre a criança, procurando compreender suas necessidade e demandas motoras e cognitivas para adequar a prática pedagógica a elas. Porém, entendemos que não é o suficiente para a adoção de práticas mais amplas e generalizadas. A interlocução entre as equipes não se configura em um processo de formação plena. Ele diz respeito ao diálogo sobre uma criança específica, suas características, formas de participação social e escolar, etapas de desenvolvimento entre outros.

CONCLUSÕES

Se inicialmente pressupomos que os educadores utilizam o discurso médico para justificar o não-aprender de crianças com alguma deficiência ou algum distúrbio de aprendizagem, podemos reafirmar essa assertiva nos achados inicias da pesquisa. Por outro lado, constatamos que o discurso médico também pode ser utilizado para repensar o processo de ensino-aprendizagem dessas crianças. Este estudo nos mostrou não somente a presença de elementos do discurso médico no discurso pedagógico, como a reelaboração de práticas pedagógicas com base neles.

Observamos que, quando dois campos de saber estabelecem uma interlocução, tendo como foco um objeto comum a ambos, os resultados podem ser produtivos. Não há um resultado uniforme e sim significados atribuídos aos discursos ou mesmo resultados de práticas discursivas. Não há um controle prévio do significado a ser produzido, do que será ou não subjetivado pelo sujeito.

Se é secular a relação médico-pedagógica, como nos afirmam Patto (1999), Silveira Bueno (2004) e Jannuzzi (2006), e se ao longo do tempo ela pode ter servido de instrumento de segregação e ainda o serve, como podemos observar nos estudos de Collares e Moysés (1996) e Moysés (2001), essa relação, segundo este estudo, também pode ser produtiva. O mesmo discurso que serve para justificar o nãoaprender de crianças com algum distúrbio ou deficiência, pode também servir para orientar a construção de ações pedagógicas que conduzam a aprendizagem.

Recebido em: 22/06/2010

Aprovado em: 04/11/2010

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  • 1
    Os discursos médico e pedagógico podem ser compreendidos como todo discurso produzido por estas instituições, caracterizados por normas, regras, poder e saber. Trazem no seu bojo o "conjunto das funções de observação, interrogação, decifração, registro, decisão, que podem ser exercidas pelo sujeito do discurso (...) (FOUCAULT, 2000, p.206).
  • 2
    Os nomes dos educadores são pseudônimos.
  • 3
    LEGENDA: P = PARTICPOU; NP = NÃO PARTICIPOU ; NA = NÃO ACONTECEU
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Fev 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 2010

    Histórico

    • Aceito
      04 Nov 2010
    • Recebido
      22 Jun 2010
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