Open-access ANARQUEOLOGIA E EDUCAÇÃO ESPECIAL: POSSIBILIDADES DE ENCONTRO COM A DIFERENÇA EM ESPAÇOS NORMATIVOS1

ANARCHEOLOGY AND SPECIAL EDUCATION: POSSIBILITIES OF ENCOUNTERING DIFFERENCE IN NORMATIVE SPACES

RESUMO

Como professoras de Educação Especial, intencionamos refletir sobre as condições de produzir outras práticas discursivas na área que rompam com a perspectiva de representação da deficiência como algo negativo, a ser compensado, corrigido, normalizado e curado. Buscamos apresentar um modo de fazer diagnóstico do presente e produzir subjetividades que se recusem a ser governadas e rejeitem a lógica imposta pelo neoliberalismo, de esfacelamento dos corpos para que caibam na caixa da norma - subjetividades que apostam no encontro com a diferença. Operadores conceituais/metodológicos, como a anarqueologia, de Michel Foucault, possibilitaram manter a firmeza em termos metodológicos e epistêmicos, dando-nos, sobretudo, condições de ampliar a discussão e criar possibilidades de vidas em nós (e nos outros). Trata-se, portanto, de uma escrita sobre o presente, sobre a luta para sermos de outros modos; principalmente, trata-se de uma denúncia de um viver contemporâneo de acentuadas práticas violentas, opressoras e excludentes. Ao buscarmos a relação entre Educação Especial e anarqueologia, propomos uma materialidade discursiva composta por nossa relação com a docência, e é nesse trabalho sobre nós mesmas que encontramos as brechas para borrar as linhas prescritivas da normalidade e defender a escola, porque acreditamos que nela há espaço potente para o encontro com a diferença.

PALAVRAS-CHAVE:
Cuidado de si; Educação Especial; Práticas de liberdade; Escola; Inclusão escolar.

ABSTRACT

As Special Education teachers, we aim to reflect on the conditions for producing discursive practices in this area that break with the perspective of representing disability as something negative, to be compensated, corrected, normalized, and cured. We sought to present a way of diagnosing the present and producing subjectivities that refuse to be governed and reject the neoliberalism-imposed logic of dismembering bodies to fit them into the box of the norm - subjectivities that embrace the encounter with difference. Conceptual/methodological operators, such as anarchaeology in Michel Foucault, have enabled us to remain firm in methodological and epistemic terms, especially by providing us with conditions to broaden the discussion and create possibilities of life within ourselves (and others). Therefore, this writing is about the present, about the struggle to be different; above all, it is a denunciation of a contemporary life marked by strikingly violent, oppressive, and exclusionary practices. By addressing the relationship between Special Education and anarchaeology, we propose a discursive materiality shaped by our relationship with teaching, and it is through this work on ourselves that we have found gaps to blur the prescriptive lines of normality and to defend the school, as we believe it to be a powerful space for encountering difference.

KEYWORDS:
Care of the self; Special Education; Practices of freedom; School; School inclusion.

1 INTRODUÇÃO

Nesta escrita, buscamos dar conta de um exercício metodológico e conceitual para pensarmos nossas docências em Educação Especial. Em um movimento de caráter biográfico, trazendo a constituição de existências marcadas por lutas e militâncias como professoras de Educação Especial em escola e universidade públicas, partilhamos trechos dessas caminhadas. Sem a intenção de sermos descritivas e/ou narrativas, queremos marcar as encruzilhadas em que nos percebemos ao longo dessas docências e, com isso, tensionar as condições de possibilidade para a produção de práticas de liberdade na escola e seus efeitos na suspensão de verdades/discursos universalistas que limitam o encontro com a diferença na escola comum, principalmente na relação com a docência em Educação Especial. Portanto, mediante uma reflexão teórico-metodológica, problematizamos a relação da docência com as práticas de liberdade no campo da Educação Especial. Olhar para as relações com o outro em Educação Especial como prática de liberdade é a inspiração e o contexto para pensar esta escrita.

Refletir a docência em Educação Especial e as condições de produzir outras práticas discursivas nessa área de conhecimento é urgente para que possamos romper com a perspectiva de representação da deficiência como algo negativo, a ser compensado, corrigido, normalizado, curado. É essa matriz de pensamento a condição de olhar para si mesmo e para o outro como potência, que se dá pela diferença. Defendemos que, na Educação Especial, tomar a diferença como potência humana, e não como sinônimo de deficiência, é necessário para pensar a si mesmo e aos outros, em um movimento de técnicas de si, compreendendo-as, junto com Gallo (2017), como as que tornam possíveis as ações do sujeito sobre ele mesmo:

Que puede, a partir de su condición, construirse, hacer de su vida una ‘obra de arte’. Si los sujetos son sometidos por los poderes, las luchas contra la sujeción son también constituyentes del sujeto, siendo estas las luchas más importantes de nuestros días. (p. 53)

Trata-se, portanto, de uma escrita sobre o presente, sobre a luta para sermos de outros modos; sobretudo, trata-se da denúncia de um viver contemporâneo de acentuadas práticas violentas, opressoras e excludentes. Uma escrita para dar visibilidade a professoras de Educação Especial que buscam não ser as mesmas, que tentam romper com a condição de quem deve avaliar, separar, corrigir/compensar e normalizar. Uma escrita para defender que devemos seguir a esmo, apostando no que podem a vida e os encontros - seguir como na canção “Vias de Fato”, do álbum Metá Metá, cantada por Kiko Dinucci, Juçara Marçal e Thiago França4, da qual destacamos o trecho que segue:

Linha reta, caminhar sem saber onde vai dar. No breu sigo só. E o corpo no espaço é bom. Me alimento desse breu. Já nem sinto quem sou eu. Noturno, fugaz. Já não sei se sou capaz de parar. Bifurcação, entroncamento, contramão. São ruas sem fim. Vias de fato aos pés de quem desrespeitou sinais e atravessou ileso. Decidiu flutuar, quis se plantar de peso. Quando a noite cansar e a luz brotar a esmo. Sigo o meu caminhar, nunca amanheço o mesmo. (Dinucci et al., 2011)

Este artigo, que estabelece a relação da docência com as possibilidades de outras verdades em Educação Especial, é para “se desintoxicar, sucatear ideias, muitas vezes entrar numa fria e malograr. Para aprender a tensionar o discurso e desmanchar-se em lágrimas, sem que o gesto pareça sentimental. Para recepcionar um corpo sofrido que pede socorro e espaço para viver” (Preciosa, 2010, p. 21).

Apresentamos uma escrita para mostrar e ressaltar as brechas na relação da Educação Especial e o pensamento teórico-metodológico da anarqueologia em Michel Foucault. Um corpus arbitrariamente criado, a ser analisado, foi tomado como a potência de escrita. Fazemos, portanto, um exercício de pensamento sobre os modos como fomos conduzindo a nós e aos outros, em um movimento anarqueológico, pensando:

Como se faz, numa sociedade como a nossa, que o poder não possa se exercer sem que a verdade se manifeste, e se manifeste na forma da subjetividade? E, de outra parte, espera-se nessa manifestação da verdade sob a forma de subjetividades efeitos que estão para além da ordem do conhecimento, mas que são da ordem da salvação e da libertação para cada um e para todos. (Foucault, 2011, p. 67)

Dessa forma, ao longo desta defesa, empreendemos uma analítica dos modos como nos subjetivamos professoras de Educação Especial que, no decorrer dos anos de atuação em escola pública de Santa Maria e na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), no Rio Grande do Sul, buscam produzir práticas de liberdade.

2 O QUANTO DE VONTADE DE VIDA HÁ NO ENCONTRO COM A DIFERENÇA?

A pergunta que inicia esta seção permite-nos problematizar nossas vivências, existências/experiências de docência em escola e universidade pública como professoras de Educação Especial que lutaram (e lutam) para não capturar a diferença na lógica da representação, que não pretendem corrigir ou recuperar, mas, sim, tensionar as condições de possibilidade de pensar a escola como espaço para produção de sujeitos livres.

Também, com essa pergunta, podemos pensar, de modo sintetizado, o histórico da Educação Especial como área de saber que se ocupou de produzir conhecimentos alicerçados e alinhados aos campos da psicologia e psicopedagogia. A formação, em geral, é pautada em um trabalho pedagógico que parte do aluno deficiente - considerado anormal, que precisaria ser normalizado por meio de técnicas, metodologias e didáticas especiais de domínio do especialista nessa área. Mesmo as tramas discursivas a favor da inclusão escolar, que circulam nos documentos oficiais atualmente, apontam quem é o diferente, aquele que deverá ser valorizado por meio de políticas de diversidade na escola inclusiva. E o diferente é o oposto do normal: o negro, a mulher, o deficiente. Entendemos que essa é a perigosa lógica moderna da dicotomia normal/anormal, incluído/excluído.

A diferença como algo mensurável e passível de ser representado pela linguagem dá o tom ao discurso oficial, naturalizando a inclusão escolar e a valorização da diferença, como se, com isso, tudo se resolvesse. Anos, séculos de exclusão escolar e social resolvidos nas pautas da década de 1990 em prol de políticas de inclusão escolar? Não nos interessa fazer crítica ou juízo de valor quanto a esse movimento histórico/político, mas, sim, alertar para o risco de um pensamento tão linear, que naturaliza conceitos importantes e dá a sensação de que avançamos em paradigmas, deixando para trás todos os efeitos danosos do paradigma anterior. Para Rech (2011):

A inclusão, vista como antônimo da exclusão, gera na população uma ideia de mudança plena, de comprometimento com as melhorias exigidas pela sociedade. Ela passa a ser entendida como a “salvação educacional”, como a única forma de aceitar, respeitar e conviver com o outro. (p. 27)

Entendemos a importância dessa problematização, não para dizer se o paradigma da inclusão é bom ou ruim, mas por acreditarmos, com Veiga-Neto (2008), que a naturalização de conceitos “trava nosso entendimento e pode travar nossas ações, pois nos mantém presos a significados e representações que, mesmo tendo sido inventados, são tomados como eternos, imutáveis e fora do nosso alcance” (p. 22).

Pretendemos tensionar e problematizar a inclusão partindo da noção de in/exclusão. Portanto, pensamos inclusão e exclusão não mais como antagônicas, mas compreendendo, com Lunardi (2001), que “inclusão/exclusão são faces da mesma moeda, ou seja, elas operam simultaneamente, não se resolvem dialeticamente, fazem parte de um mesmo sistema de representação, ou seja, fazem parte de uma mesma matriz de poder”. Assim, olhamos para as práticas discursivas operadas no contexto educacional brasileiro que foram nos subjetivando professoras de Educação Especial.

Compreendemos que, no jogo que se dá por meio de mecanismos de poder, foram produzidos os sujeitos que aprendem e os que não aprendem, os que podem estar na escola regular e os que devem estar em “algum lugar mais adequado a eles”. Todo um conjunto de enunciados coloca em funcionamento a maquinaria escolar moderna, que, muitas vezes, mais do que incluir, segue marcando o negativo das condições de existência por sua diferença e, dessa maneira, mantém práticas de exclusão. Por isso, aliançadas na perspectiva dos estudos foucaultianos em educação, buscamos pensar na forma como tomamos a diferença e seus efeitos em nossas relações - professor-professor, professor-aluno, professor-consigo, aluno-aluno e aluno-consigo - e, por fim, a produção de práticas mais livres e mais éticas de cuidado de si e cuidado dos outros, no sentido que Foucault (2017) apresenta no terceiro volume da História da sexualidade como “um princípio válido para todos, todo o tempo e durante toda a vida” (p. 62).

É assim, por intermédio de “exercícios de pensamento para pensar e ver o mundo de outra maneira, para atentar e habitar de outras formas o mundo comum” (Larrosa, 2017, p. 80-81), que propomos pensar a inclusão escolar como uma potente estratégia para a universalização dos direitos humanos e a escola como produto central da modernidade, como espaço privilegiado para a formação de sujeitos, produtos e produtores da lógica que busca ordenar o caos e organizar a sociedade. Então, a escola moderna é tomada por “maquinaria implicada na fabricação tanto do sujeito moderno quanto da própria modernidade”, e práticas escolares são vistas como “tecnologias disciplinares cujo resultado foi a produção de uma intrincada rede de novos saberes e de novas economias de poder” (Veiga-Neto, 2000, p. 179).

É no enredo da relação mútua de produção entre escola e modernidade que ensaiamos o exercício de inspiração no conceito de Michel Foucault, a anarqueologia, percebendo-nos capturadas por essa maquinaria, sendo produzidas e produzindo práticas discursivas como professoras de Educação Especial. Nesse contexto, devemos pensar em uma posição analítica que possa consistir em um gesto de transgressão ao poder da escola moderna. Pretendemos problematizar a manutenção e/ou reconfiguração do imperativo inclusivo no país, a partir de nossas vivências em escola regular, no sentido “não de buscar o indizível, não de revelar o oculto, não de dizer o não dito, mas de captar, pelo contrário, o já dito; reunir o que se pôde ouvir ou ler, e isso com uma finalidade que nada mais é que a constituição de si” (Foucault, 2017, p. 145).

Propomos, assim, construir uma analítica desses discursos em tempos de inclusão como imperativo. Intencionamos problematizar como estamos conduzindo e sendo conduzidos na produção de um modo de vida alinhado ao neoliberalismo, buscando criar um modo de estar na escola que resista e que, em uma relação ética e política, crie outro modo de vida: não estanque, fechado, fixado na matriz da identidade; por isso, um novo modo de vida que não pode ser explicado, apenas vivido. Desejamos analisar a produção da inclusão como verdade e, como Menezes (2011), tomar “a linguagem naquilo que ela tem de produtivo para entender como, por práticas de subjetivação, fomos sendo produzidos como sujeitos convencidos a olhar para a inclusão de forma naturalizada, sem questionar motivos, intenções e efeitos dessa política” (p. 50).

Portanto, interessa-nos realizar um diagnóstico do (nosso) presente para pensar e discutir: educação escolar para quê? Para quem? Acreditamos que podemos ser de outras formas, menos violentas, opressoras e desiguais, e, em Educação Especial, um caminho interessante é tensionar práticas naturalizadas, que pouco ou nada problematizam a produção discursiva de sujeito. Ainda com Menezes (2011), queremos olhar para as questões de subjetivação por meio da “análise anarqueológica foucaultiana” e, assim, “compreender que, nessa relação entre a busca pela verdade (e pelas manifestações da verdade) e os processos de subjetivação, discursos sobre o investimento em si se fortalecem, fortalecendo, assim, a verdade da potência do indivíduo” (p. 115).

Interessa-nos, pois, destacar a potência que a educação e a escola contemporânea têm como possibilidades de viver de outras formas, que não as estimuladas pelo neoliberalismo como estilo de vida, em que concorrência, consumo e competição podem ser dispositivos de processos violentos de exclusão e opressão. Foi pensando em como, em quais condições nos produzimos sujeitos deste tempo, que compreendemos a possibilidade de criar outros modos de estar na escola, mais alinhados com o conceito da anarqueologia como condição de pesquisa, docência e existência.

Considerando que anarqueologia é uma atitude e uma postura intelectual que inverte a posição tradicional da filosofia em relação à verdade, retomamos a pergunta: O quanto de vontade de vida há no encontro com a diferença? Talvez um caminho para pensar seja de forma estética, como um cuidado de si, como aquele de quem cria outros modos de vida e produz a vida como obra de arte, resistindo a valores e normas dominantes e a verdades absolutas. Assim, constituímo-nos a cada encontro, de modo aberto e disponível à diferença. Sobre o cuidado de si, ressaltamos que, para Foucault (2017):

Não é possível cuidar de si sem se conhecer. O cuidado de si é certamente o conhecimento de si, mas também é o conhecimento de um certo número de regras de conduta ou de princípios que são simultaneamente verdade e prescrições. Cuidar de si é se munir dessas verdades: nesse caso a ética se liga ao jogo da verdade. (p. 262)

É na prática de cuidado de si que observamos a potência da escola como espaço de encontros, como espaço que pode ser condição de produção de práticas de liberdade quando rompemos com “o risco de dominar os outros e de exercer sobre eles um poder tirânico” (Foucault, 2017, p. 266), percebendo que “isso decorre precisamente do fato de não ter cuidado de si mesmo e de ter se tornado escravo de seus desejos” (p. 266). Inspiradas na ideia de Foucault (2013) sobre corpo utópico, tomamos a escola como grau zero. Como diz Foucault (2017):

Se você sabe quais são as coisas das quais deve duvidar e aquelas das quais não deve duvidar, se sabe o que é conveniente esperar e quais são as coisas, pelo contrário, que devem ser para você completamente indiferentes, se sabe, enfim, que não deve ter medo da morte, pois bem, você não pode a partir desse momento abusar do seu poder sobre os outros. Não há, portanto, perigo. (p. 266)

A escola, como espaço comum, republicano e produtor de outros modos de vida, pode romper com as malhas da normatividade, sob a forma de contraconduta ao neoliberalismo como estilo de viver. Pode produzir práticas discursivas que tensionam o apagamento do escolar, seus efeitos na democratização do tempo livre e a suspensão da ordem desigual natural, como trazem Masschelein e Simons (2014). Com base no pensamento de Michel Foucault, para quem as formulações discursivas são “constituídas a partir de regras que podem ser alteradas, dependendo de quem fala, em que contextos e com que intenções” (Menezes, 2011, p. 51), consideramos que,

para nós, que defendemos os argumentos de Foucault, assumir uma perspectiva implica, ao contrário, um ato de liberdade considerável: significa rebelar-se contra um conhecimento imposto, tirar proveito e assumir os riscos da decisão e de seus próprios pontos de vista. (Dussel & Caruso, 2003, p. 36)

É assim que, pensando no quanto de vontade de vida há no encontro com a diferença, olhamos para o que a literatura nos apresenta sobre práticas de Educação Especial no Brasil. Tais práticas foram constituídas, inicialmente, por ações isoladas direcionadas ao atendimento de pessoas com deficiência visual e surdez, com a criação do Instituto dos Meninos Cegos em 1854 e do Instituto dos Surdos-Mudos em 1857, por meio de decretos imperiais. Sobre os Institutos, é interessante pensar com Lilia Lobo (2008), em Os infames da história:

Não passaram, pois, de pequenos abrigos com alguma prática pedagógica, dirigidos a uma ínfima minoria de alunos pobres. Com a disseminação, na década de 1930, das redes regulares de ensino público, gradativamente deixaram de ser pequenos espaços de separação para cumprir mais extensivamente o seu destino: a partir dos anos 1940-50, transformaram-se em grandes abrigos. (427-428)

Nesta escrita, interessa-nos pensar como fomos produzindo e fortalecendo, no Brasil, paralelamente à emergência da escola moderna, a invenção de uma área de saber responsável pelo atendimento de pessoas que não aprendem na escola. Nesse sentido, destaca-se que foi apenas nas décadas de 1920/1930 que, de acordo com Jannuzzi (1992), sob a influência do ideário do movimento educacional Escola-Nova, tivemos reformas na educação brasileira. Tais reformas referiam-se à necessidade de expansão da escolaridade às classes populares e à busca pela transformação de um sistema de ensino que se adequasse às mudanças sociais.

Em relação à Educação Especial, o destaque está na vinda de vários professores psicólogos europeus para o Brasil, que ofereceram cursos para os professores brasileiros. Dentre esses psicólogos, percebe-se a grande influência da russa Helena Antipoff, responsável pela criação de serviços de diagnósticos, classes e escolas especiais no Brasil. Ela contribuiu para a formação de um número significativo de profissionais, que mais tarde foram trabalhar na área da Educação Especial, e foi responsável pela fundação, em 1932, da primeira instituição para atender deficientes mentais, a Sociedade Pestalozzi de Minas Gerais.

Parece-nos que ainda produzimos e sustentamos o discurso escolar em relação ao que pode ter mobilizado toda essa produção da área da Educação Especial como responsável por determinado perfil de sujeito. Trata-se da compreensão de que há um único jeito válido de aprender. E, assim, em relação ao sujeito, uns são inventados como quem não aprende e, muitas vezes, podem ser alvos de discursos que defendem que esses sujeitos que não aprendem precisam estar em espaços mais adequados a eles. Quais seriam esses espaços? A escola regular é só para quem aprende? E quem aprende? Essas questões atravessam o dia a dia da/na escola, pois são práticas discursivas que têm efeitos nas práticas pedagógicas e no desenvolvimento dos sujeitos.

Conforme já mencionamos, Helena Antipoff chegou ao Brasil em 1929, e a formação de professores que atendia aos preceitos defendidos pelos escolanovistas encontrou grande respaldo em seu trabalho, pois adotava uma corrente que valorizava a organização do ambiente de trabalho, a metodologia usada pelo professor e a psicologia infantil. Drabach (2009) aponta que, em relação ao ideário Escola-Nova, no Brasil, “há muitas críticas realizadas a esta tendência pedagógica, como a produção de um processo de psicologização da criança” (p. 18).

O início do século XX é marcado pelo desenvolvimento, por toda a Europa, de centros especializados no tratamento de diferentes tipos de deficiência; em função disso, alguns autores chamam essa fase de “Era das Instituições”. O surgimento dos centros especializados criou a necessidade de selecionar quem vai frequentar esses espaços ou não. É nesse sentido que se destacam os estudos de Alfred Binet e Théodore Simon, por exemplo. No início desse século, estimulados principalmente pelos estudos de Binet, generalizaram-se os testes mentais, ou seja, testes psicométricos, com o intuito de “medir a inteligência” e determinar quem aprende e pode estar em sala de aula e, consequentemente, quem não aprende e precisa retirar-se. As salas de aula deveriam ser homogêneas - portanto, quem não aprendia não poderia estar nesses espaços.

No Brasil, em 1935, Antipoff já havia influenciado a criação de 22 instituições para atendimento de sujeitos com deficiência. Miranda (2008) observa:

Com isso, o ensino regular destinado aos “anormais” ficou isento da incômoda presença de alunos com deficiência mental que, segundo os preceitos da época, atrapalhavam o rendimento dos outros alunos. Ainda hoje é possível presenciar esse discurso por parte de alguns pais e até mesmo de professores de nossas escolas. Helena Antipoff teve ainda uma participação ativa no movimento que resultou na criação da primeira Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais, em 1954. (p. 33)

Assim, por meio das reformas ocorridas em decorrência do movimento Escola-Nova, pode-se perceber que as classes populares começam a tomar a escola como possibilidade de ascensão social. Aqui, é interessante pensar que foi justamente por trazermos os pobres para a escola que passamos a inaugurar, em velocidade vertiginosa, as instituições especiais e as classes especiais. Foi nesse contexto que, de acordo com Jannuzzi (1992), a concepção de deficiência mental passou a englobar diversos tipos de crianças que tinham em comum o fato de apresentarem comportamentos divergentes daqueles esperados pela sociedade e pela escola. Portanto, segundo a autora, os alunos que não aprendiam na escola, considerados deficientes mentais, eram alunos indisciplinados, com aprendizagem lenta, abandonados pela família, portadores de lesões orgânicas, com distúrbios mentais graves, enfim, qualquer aluno considerado fora dos padrões de normalidade. Percebe-se que, no

deslocamento do discurso da medicina para o espaço da psicologia, vê-se configurar um campo que a partir do século XX, é regido pelos saberes da psicometria e da genética. Com uma ligação direta com o terreno da educação, a psicometria e a genética vêm-se constituir um dos campos onde mais se marcou e se produziu a distinção entre normalidade/anormalidade, ou seja, através da psicologia experimental, a Educação Especial foi capturando e inventando os sujeitos alvos de sua prática. (Lunardi, 2004, p. 25)

Portanto, marcada pela lógica moderna de produção de sujeitos, a área da Educação Especial passa a operar na lógica da norma do poder disciplinar e do biopoder, que,

a partir dos processos de regulação sobre o corpo individual e de regulamentação sobre o corpo múltiplo, institui a sociedade de normalização. Desta forma, podemos perceber o quanto o poder disciplinar e o biopoder não se anulam ou se excluem, mas que, pelo contrário, se complementam e se entrecruzam, por meio dos processos normalizadores do sujeito - intervenção individual - e controladores da sociedade - intervenção coletiva. (Lockmann & Henning, 2010, p. 78)

Voltamos à questão que tem mobilizado nosso pensamento enquanto professoras de Educação Especial: Quanto de vontade de vida há no encontro com a diferença? Neste breve resgate dos aspectos históricos e conceituais na produção da área da Educação Especial, percebe-se que a diferença, tomada como algo negativo, como um problema a ser resolvido, foi algo a ser afastado e excluído. E na escola inclusiva? O quanto de vontade de vida há no encontro com a diferença? Essa escola é aqui tomada como espaço normativo, na qual “a inclusão foi/é uma invenção que objetiva colocar a sociedade em ordem, civilizar, disciplinar, autogovernar” (Lockmann & Henning, 2010, p. 79).

É importante ressaltarmos que tomamos a inclusão escolar “como processo datado advindo dos muitos movimentos sociais, econômicos e culturais produzidos na história da Modernidade”, tendo sido “inventada como

uma necessidade primordial do nosso tempo” (Lopes & Fabris, 2013, p. 9). Dessa forma, a escola inclusiva constitui-se como possibilidade para a emergência do discurso que captura a diferença na lógica binária e dicotômica da modernidade. Assim, a inclusão escolar pode ser entendida como um mecanismo de controle que a sociedade de normalização coloca em funcionamento a partir da atuação do poder disciplinar e do biopoder. O discurso da inclusão torna-se um projeto de proteção e ordem, como um projeto de defesa social, criando diferentes estratégias de gerenciamento/prevenção do risco causado pela anormalidade. (Lockmann & Henning, 2010, p. 75)

Portanto, propomos pensar a produção de sujeitos a partir da lógica binária que constitui a modernidade e dos efeitos disso nas práticas escolares e/ou consideradas inclusivas, pois se trata de um exercício necessário para produzir práticas de liberdade. É preciso tensionar a invenção da escola moderna no Brasil, para compreender como a educação escolar pode se constituir em uma prática social que se ocupa de não realimentar relações de colonização de algumas vidas sobre outras e de romper com “categorias binárias, oriente-ocidente, primitivo-civilizado, irracional-racional, mágico/mítico-científico e tradicional-moderno” que “justificam a superioridade e a inferioridade - razão e não razão, humanização e desumanização (colonialidade do ser)” (Walsh, 2009, p. 15). Assim, em um movimento anarqueológico, em uma atitude metodológica, rompe-se com as malhas da normatividade, que tanto nos afastam da diferença.

3 ANARQUEOLOGIA E EDUCAÇÃO ESPECIAL

Com a anarqueologia, Michel Foucault aferiu grau de complexidade às suas pesquisas, culminando no que mais adiante se formulou no tema estética da existência. Com auxílio dos estudos de ética em Foucault, destacamos que esse é o campo que possibilitou ao filósofo francês apresentar os estudos do sujeito e os processos de subjetivação. Dada a complexidade nesse domínio dos estudos de Foucault, salientamos a ressalva feita por Gallo (2017):

No, la concepción que el filósofo tiene de ética no corresponde a la tradicional; para él, ética es el campo de las relaciones que el sujeto establece consigo mismo, que permiten un ‘trabajo de sí sobre sí mismo’; en otras palabras, un proceso de subjetivación a través del cual uno se constituye a sí mismo como sujeto. (p. 44)

É assim, em um trabalho sobre nós mesmas, que fomos encontrando as brechas para borrar as linhas prescritivas da normalidade e passar a defender a escola, porque acreditamos que nela há espaço potente para o encontro com a diferença. A partir dessas experiências, como professoras que já não acreditam que podem mudar o mundo, mas sabem que podem - e devem - mudar a si próprias, defendemos um diagnóstico do presente para a transformação de nós mesmas e dos outros. Entendemos, com a anarqueologia de Foucault, que:

Producir saber es siempre una descreencia, una reacción a los poderes instituidos. Es tal el acto de desacreditación que debe ser buscado en una investigación anarqueológica que une así, herramientas de excavación arqueológica con herramientas genealógicas de investigación de las relaciones de poder, pero ambas transformadas una vez que su objeto es el sujeto, son los procesos de producción de subjetividad. (Gallo, 2017, p. 62-63)

Manter a suspensão de quem somos, abrir-nos às possibilidades de ser de outras formas e, assim, pensar a invenção da escola moderna no Brasil para compreender como a educação escolar pode se constituir em uma prática social que se ocupa em não realimentar relações de colonização de algumas vidas sobre outras é um movimento anarqueológico, que se faz possível por meio de perguntas. Entendemos que perguntas se apresentam como um meio eficaz de mobilizar o pensamento e, com isso, o corpo, a vida.

Esta escrita foi possível por meio das questões que nos atravessam ao longo da docência em Educação Especial. Questões usadas de modo retórico, para aumentar as brechas, os respiros, as frestas. São perguntas retóricas que têm centralidade na defesa da relação entre Educação Especial e anarqueologia, pois são perguntas que “soam como perguntas-convite… convite para forçar o pensamento a pensar; a fazer(se) perguntas, sem a preocupação de respondê-las. Convite para suspender o já conhecido, movimentando saberes e certezas e, quiçá, estranhar, arriscar, inventar” (Souza et al., 2018, p. 25)

São questões que fazem circular o ar quando as dúvidas sufocam - o famoso “para não sufocar”, de Deleuze sobre Foucault. Perguntar de modo retórico, especialmente a nós mesmas, representou uma possibilidade de respirar, de abrir espaços por onde o ar pudesse passar, com a possibilidade de sermos de outras formas. Nas palavras de Deleuze (1992), “um pouco de possível, senão eu sufoco” (p. 131).

Para nós, esse foi e seguirá sendo um modo de fazer diagnóstico do presente e produzir subjetividades alinhadas ao tensionamento da escola que produz e sustenta as frágeis questões sociais de discriminação, violência e desigualdade. Ainda, será uma maneira de defender, na estética da existência, a escola como espaço para práticas de liberdade na relação da docência em Educação Especial e o movimento da anarqueologia. Como aponta Deleuze (2013), o que interessa

essencialmente a Foucault não é um retorno aos gregos, mas o nós de hoje: quais nossos modos de existência, nossas possibilidades de vida ou nossos processos de subjetivação; será que temos maneiras de nos constituirmos como ‘si’, em como diria Nietzsche, maneiras suficientemente ‘artistas’, para além do saber e poder?. (p. 128)

Isso nos mobiliza a problematizar o sentido da educação escolar na contenção das injustiças sociais, bem como a captura da diferença. Problematizar a produção dos sujeitos a partir da lógica binária, produzida pela modernidade, e olhar para outros modos de vida que podem ser colocados em operação nessa relação ética da existência, seja na escola pública, seja na vida.

Assim, a relação da Educação Especial com a anarqueologia ocorreria por meio da valorização e do reconhecimento do efêmero, do novo, das perguntas, da diferença. Nessa relação, seria possível abrir-se para a porosidade, para o encontro com a diferença, para viver a escola e estar à espreita, para se perguntar: O que faz com que a escola seja uma escola?

A partir da complexidade e profundidade que há nessa questão, inspirada na obra Em defesa da escola, de Masschelein e Simons (2014), podemos sentir nossos corpos se abrindo, entendendo que:

O corpo é o ponto zero do mundo, lá onde os caminhos e os espaços se cruzam, o corpo está em parte alguma: ele está no coração do mundo, este pequeno fulcro utópico, a partir do qual eu sonho, falo, avanço, imagino. Percebo as coisas em seu lugar e também as nego pelo poder indefinido das utopias que imagino. (Foucault, 2013, p. 14)

Capturadas pelo deleite deste exercício, tomamos a relação da anarqueologia com a Educação Especial como um convite para reinventar a escola e a nós mesmas. Assim, podemos produzir subjetividades que se recusem a ser governadas e que rejeitem a lógica imposta pelo neoliberalismo, que institui o esfacelamento de corpos para que caibam na caixa da norma. Subjetividades que apostem no encontro com a diferença. Esse movimento é da ordem de “sair do conforto dos sofás epistemológicos e nos lançar na encruzilhada da alteridade, menos como mecanismos de compreensão apenas (normalmente estéril) e mais como vivência compartilhada” (Simas & Rufino, 2018, p. 19).

As perguntas continuam: Quais são as possibilidades de viver de forma atenta, interessada em nós e nos outros? O que a escola poderia ter a ver com tudo isso? Qual a relação disso com a vida? Inspiradas em Larrosa (2017), na obra denominada Elogio da escola, entendemos ser produtiva a compreensão dos efeitos da busca pelo ordenamento do caos empreendida pela escola moderna. Isso para que possamos ir além, estabelecer outras relações e produzir outros modos de ser sujeitos, não para responder às questões que circulam esta escrita, mas para sustentar possibilidades de existir, pois:

Trata-se de afirmar a vida de um sujeito como exercício, um trabalho de si sobre si por parte de quem não quer ser governado pelo outro ou pelos dispositivos de biopoder...São exercícios de atenção para alimentar uma vida atenta, à espreita, uma espécie de atletismo escolar, um expor-se para estar preparado à exposição, uma vida estudantil de experimentos e exercícios com outros, de exercícios de pensamento para pensar e ver o mundo de outra maneira, para atentar e habitar de outras formas o mundo comum. (p. 80-81)

4 CONCLUSÕES

Na tentativa de pensar e ver o mundo de outras maneiras, as perguntas abrem brechas e permitem que o ar passe. Operadores conceituais/metodológicos, tais como a anarqueologia em Foucault, possibilitaram manter firmeza em termos metodológicos e epistêmicos; sobretudo, deram-nos condições de ampliar a discussão e de criar outras possibilidades de vida e novas práticas discursivas em Educação Especial, que defendem o encontro com a diferença. Para Gallo (2017), essa ideia nos faz “tomar los conceptos como herramientas que pueden poner em operación, hacer funcionar, que produzcan efectos en el pensamiento y hagan posible un pensamiento nuevo” (p. 50).

Em relação às primeiras fases do pensamento de Foucault, Gallo (2017) destaca que “el filósofo ha producido importantes operadores conceptuales a lo largo de su trabajo: discurso; archivo; episteme; saber-poder; disciplina; biopoder; dispositivo, para citar apenas algunos de los más significativos” (p. 51). Já em relação aos estudos posteriores na estética da existência, com a investigação nas fases mais finais, em relação às produções de subjetividades, o professor afirma:

En mi lectura del Foucault investigador del sujeto, de sí mismo y de los modos de subjetivación, pienso que los siguientes operadores conceptuales están entre los más significativos: técnicas de sí; inquietud (cuidado) de sí (epimeleia heautou); hablar verdadero (parrhesía); psicagogía; aleturgia; ontología del presente. (p. 51)

Compreendemos que, em termos metodológicos, a anarqueologia é mais que um conceito, pois faz parte do deslocamento da relação saber-poder para o governo dos homens pela verdade, isto é, é um operador metodológico. Ao buscar a relação entre Educação Especial e anarqueologia, propomos uma materialidade discursiva composta por nossa relação com a docência. Portanto, não se trata de juízo de valores nem de modelo a ser seguido. Tomamos a escola como um meio sem um fim, um veículo sem um destino determinado, um centro: lugar que compreende todas as direções e que se ocupa com a abertura do mundo e para o mundo (Masschelein & Simons, 2014).

Por isso, não se quer dar receitas de como devem ser estabelecidas as docências em Educação Especial. Trata-se de um modo de olhar para as questões que envolvem o escolar e de práticas que apostam no encontro com a diferença, ou seja, do modo como fomos percebendo as condições de reconhecer e exercitar uma docência em Educação Especial. Trata-se, enfim, de como conseguimos deslocar o olhar para os sujeitos, de como podemos perceber a violência gerada pelos marcadores da identidade, bem como a violência da estrutura normativa fundante de tudo que é o escolar.

Esse é um modo de tomar a escola como uma questão pública, que promove o acontecimento/evento; que faz pensar; que desperta o interesse em si e no outro; que infunde na nova geração a atenção com o mundo; que torna possível a produção de práticas de condução de si e dos outros que sejam mais livres e mais éticas no contexto da educação contemporânea; e que rompe com a produção dos sujeitos a partir da lógica binária produzida pela modernidade, colocando em funcionamento outros modos de vida operados pela educação escolar, sobretudo pelo discurso educacional republicano.

A estética da existência é atribuída à fase em que o filósofo Michel Foucault se dedica a compreender como nos produzimos como sujeitos de uma dada época, por meio da relação ética que estabelecemos com nós mesmos e com os outros, por meio do vínculo com o poder, determinante da relação do sujeito com a verdade. É uma estética, um movimento de vida cotidiano e diário; para Gallo (2017), “es en las prácticas concretas y cotidianas que se deben investigar las relaciones de los sujetos con los poderes las cuales implican relaciones con la verdad de sí mismo y con su constitución subjetiva misma” (p. 64).

Nesta escrita, buscamos apresentar a problematização de como chegamos a ser como somos, interessadas em ser de outros modos, em transformar nossas existências, para resistir às verdades universais, aos essencialismos e fundamentalismos. Defendemos modos de vida que são uma luta contra os microfascismos que nos habitam; em uma atitude ética, buscamos existir por meio de uma “postura metodológica”, como desenvolve Gallo (2017) ao falar do sociólogo Nildo Avelino:

El sociólogo brasileño Nildo Avelino defiende que la anarqueología es una “postura metodológica” propuesta por Foucault para enfrentar las cuestiones relativas a saber cómo se producen la sumisión y la obediencia de los individuos en la forma de actos de verdad que han llevado a un cierto tipo de gobierno de los hombres, en el cual ellos son conducidos a manifestar aquello que son. (p. 59)

Como é possível colocar em funcionamento outros modos de vida na relação com a docência em Educação Especial? Sendo outras? Isso é preciso? Como isso é possível? Seguem as perguntas de vida que só podem ser apresentadas por meio de uma conversa repleta de perguntas, já que a cada fala sobre ela, já a faz diferente do que era. Com Larrosa e Skliar (2011), compreendemos que:

A vida e a palavra são esses dons que nunca se têm. Viver é desviver-se por aquilo que nunca se poderá possuir e falar é dizer o que não se diz e não dizer o que se diz. O homem seria então o falante que pode experimentar a fala como fala, isto é, que não pode saber o que diz e que não pode dizer o que quer dizer, mas, ao mesmo tempo, diz o que não sabe dizer e o que não quer dizer, o que está além de seu saber, de seu poder e de sua vontade. (p. 295)

Por fim, na relação da Educação Especial com a anarqueologia, defendemos que, mais do que operar conceitos, nesta escrita, procuramos aceitar o convite de conversar. Uma conversa que, antes de qualquer coisa, se deu com nós mesmas, pois, com Souza et al. (2018), entendemos que:

Conversar, pareceu-nos, poderia ser uma linha de fuga às normativas da pesquisa científica. Conversar foi possibilitando, então, em nossas ações investigativas, a atenção às diferenças e à diferenciação; à alteridade e à singularidade constitutivas do próprio encontro. Encontro(s) com o(s) outro(s) e com cada um(a) de nós. (p. 29)

Dessa forma, este foi um exercício de transformar a nós mesmas e, com inspiração em Foucault (2010), de desenvolver uma escrita de si, que, de acordo com o filósofo, é uma atitude ética, experimentada como prática de liberdade. Nesta conversa como exercício metodológico, fomos desenvolvendo a escrita de si “entendida como um cuidado de si e também como abertura para o outro, como trabalho sobre o próprio eu num contexto relacional, tendo em vista reconstituir uma ética do eu” (Rago, 2013, p. 50).

Fomos estranhando e interrogando o conhecido, o dado, o essencial e o absoluto. Buscamos nos abrir às experimentações e à surpresa de sermos outras e defender outras práticas discursivas e produções de subjetividades em Educação Especial. Essa problematização, em relação à produção de subjetividades, foi possível por meio do que Gallo (2017) chamou de “operador metodológico” ao se referir à anarqueologia:

Noción que implica que el pensamiento, la filosofía, son actividades productivas, que producen interferencias concretas en la realidad [...] podemos también pensar al modo de Foucault, esto es, utilizar sus herramientas metodológicas para pensar cosas que él no pensó, para dedicarnos a nuestros problemas investigativos. (p. 50)

Essas foram as condições de possibilidade de transformarmos a nós mesmas e, na experimentação da Educação Especial com uma postura anarqueológica, de sentirmos “uma possibilidade que se abre, talvez, no coração do impossível, uma possibilidade que se remete ao porvir” (Larrosa & Skliar, 2011, p. 295).

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Jul 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    12 Ago 2024
  • Revisado
    15 Out 2024
  • Aceito
    28 Mar 2025
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