Open-access BARREIRAS E ESTRATÉGIAS DE ACESSO NAS TRAJETÓRIAS DE PESSOAS COM DEFICIÊNCIA (PCD) NO ENSINO SUPERIOR: UMA LEITURA A PARTIR DO CONCEITO DE TERRITORIALIDADES1

BARRIERS AND ACCESS STRATEGIES IN THE TRAJECTORIES OF PERSONS WITH DISABILITIES (PWD) IN HIGHER EDUCATION: A READING BASED ON THE CONCEPT OF TERRITORIALITIES

RESUMO

Neste artigo, objetiva-se compreender as trajetórias construídas por pessoas com deficiência (PcD) no desenvolvimento de cursos de graduação, analisando barreiras à acessibilidade, estratégias de acesso e avaliação das ações institucionais para inclusão. Apresentam-se resultados de pesquisa descritiva qualitativa, realizada por meio de entrevista narrativa com oito estudantes de duas universidades da região leste do estado de Minas Gerais. As narrativas elaboradas pelos participantes mostram que, apesar de as duas universidades possuírem núcleos de inclusão e implementarem ações no sentido da acessibilidade, persistem barreiras arquitetônicas, pedagógicas e atitudinais que dificultam a implementação de políticas de inclusão efetivas. A pesquisa revela, também, que os estudantes com deficiência, nesse contexto, frequentemente assumem a responsabilidade por informar suas necessidades e propor soluções para as situações nas quais há barreiras à acessibilidade, e que os docentes não estão devidamente preparados para a docência com PcD. O estudo foi realizado a partir de uma abordagem interdisciplinar, pelo diálogo entre a educação inclusiva e os estudos territoriais, e os processos vivenciados pelos estudantes foram analisados na perspectiva da construção de territorialidades. A partir desse referencial, conclui-se que a condição de PcD no Ensino Superior corresponde à de territorialidades estrangeiras, que avançam no enfrentamento de barreiras e conduzem ao cruzamento de fronteiras.

PALAVRAS-CHAVE:
Educação Especial; Pessoa com deficiência; Ensino Superior.

ABSTRACT

This article aims to understand the trajectories built by persons with disabilities (PWD) in the development of undergraduate courses, as it analyzes barriers to accessibility, strategies for access, and evaluation of institutional actions for inclusion. It presents the results of a qualitative descriptive study carried out through narrative interviews with eight students from two universities in the eastern region of Minas Gerais, Brazil. The narratives produced by the participants show that, although both universities have inclusion centers and implement actions towards accessibility, architectural, pedagogical and attitudinal barriers persist that hinder the implementation of effective inclusion policies. In this context, the research also reveals that students with disabilities often take responsibility for informing people of their needs and proposing solutions to situations where there are accessibility barriers, and it shows that professors are not adequately prepared to teach PWD as well. The study was carried out from an interdisciplinary approach, through dialogue between inclusive education and territorial studies, and the processes experienced by the students were analyzed from the perspective of the construction of territorialities. Based on this framework, it was concluded that the condition of PWD in Higher Education corresponds to that of foreign territorialities that advance in the confrontation of barriers and lead to the crossing of borders.

KEYWORDS:
Special Education; Persons with disability; Higher Education.

1 INTRODUÇÃO

A educação inclusiva é um paradigma educacional cujos fundamentos remontam à Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, e estão delineados, no âmbito mundial, por documentos como a Declaração Mundial de Educação para Todos, de 1990, a Declaração de Salamanca, de 1994 e a Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Pessoa Portadora de Deficiência, de 1999. Refere-se a ações políticas, culturais, sociais e pedagógicas que justificam e estabelecem, por fim, o direito de todos os alunos aprenderem juntos, sem qualquer discriminação (Decreto Legislativo nº 186, de 9 de julho de 2008).

Esse conceito passou a marcar fortemente o debate educacional a partir da última década do século XX, estimulando o desenvolvimento de propostas voltadas para a democratização do acesso e da permanência de públicos anteriormente excluídos dos sistemas de ensino. A ideia da inclusão associou-se fortemente ao debate da Educação Especial, direcionando políticas de inserção do público dessa modalidade nas escolas regulares (Piccolo, 2023). Nessa perspectiva, valores educacionais e metodologias de ensino devem proporcionar que grupos historicamente alijados dos processos de educação escolar tenham acesso à escola e ao Ensino Superior, com seus saberes e vivências.

No Brasil, a inclusão da pessoa com deficiência nos diferentes níveis do sistema de ensino é um direito inerente à Constituição da República Federativa do Brasil (1988). A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996) considera a Educação Especial como modalidade de educação escolar oferecida preferencialmente na rede regular de ensino, a fim de atender alunos com deficiências, transtornos globais de desenvolvimento e altas habilidades/superdotação.

Em conformidade com a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva - PNEPPEI (Ministério da Educação, 2008), regulamentada pelo Decreto nº 7.611, de 17 de novembro de 2011, a Educação Especial perpassa todos os níveis, etapas e modalidades, por meio do Atendimento Educacional Especializado (AEE), da disponibilização de recursos e serviços e de orientação quanto à sua utilização nos processos de ensino e aprendizagem. A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência - Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015 - visa assegurar e promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais pelas PcD, visando sua inclusão social e cidadania.

Em seu desenvolvimento histórico, as discussões sobre educação inclusiva focalizaram inicialmente a educação de crianças e adolescentes nos níveis fundamental e médio. À medida que se ampliaram as possibilidades de PcD cursarem trajetórias escolares mais longas, as demandas pela educação inclusiva dirigem-se também ao Ensino Superior e mobilizam diferentes atores envolvidos no planejamento e na execução das políticas educacionais nesse nível de ensino.

Valdés et al. (2022) apresentam resultados de revisão sistemática da literatura sobre educação inclusiva produzida na América Latina, revisando 101 artigos empíricos de 2016 a 2020. Os resultados indicam que há progressivo interesse pelo tema no âmbito acadêmico. Se, até há alguns anos, o “lugar de existência” da inclusão era a escola, atualmente é possível observar que a educação inclusiva no Ensino Superior se transforma em um profícuo campo de estudos. Consequentemente, as formas de organização curricular, as práticas de ensino e avaliação, a estrutura física, os papéis de docentes e discentes, entre outros aspectos da prática pedagógica das Instituições de Ensino Superior (IES), são questionados a partir da perspectiva da educação inclusiva, com demandas pela ampliação das possibilidades de acesso e de permanência das PcD.

A inclusão das PcD no Ensino Superior constitui, assim, um desafio contemporâneo, expresso nas políticas e nos modelos de organização institucional, na formação de docentes e técnicos, nos currículos e nas práticas cotidianas (Neves et al., 2019; Oliveira et al., 2020). Esse contexto justifica o desenvolvimento de estudos que permitam conhecer as perspectivas das PcD sobre seus processos educacionais no Ensino Superior, ampliando olhares sobre realidades diferentes que compõem o mosaico da inclusão no Ensino Superior no Brasil.

O presente estudo foi realizado em perspectiva interdisciplinar, por meio do diálogo entre os campos da Educação Inclusiva e dos estudos territoriais. Parte do seguinte problema de pesquisa: Como as trajetórias de estudantes com deficiência podem ser compreendidas a partir da perspectiva de territorialidades?

De acordo com Haesbaert e Limonad (1999), homem e território são interdependentes, na medida em que o sujeito, ao situar-se em determinado espaço, interagindo por meio das relações sociais, está construindo o seu território, no qual o espaço material se torna uma mediação na construção das relações de poder.

O território não deve ser confundido com a simples materialidade do espaço socialmente construído nem com um conjunto de forças mediadas por esta materialidade. O território é sempre, e concomitantemente, apropriação (num sentido mais simbólico) e domínio (num enfoque mais concreto, político-econômico) de um espaço socialmente partilhado. (Haesbaert & Limonad, 1999, p. 10)

O conceito de territorialidade refere-se ao “conjunto de práticas sociais e meios utilizados por distintos grupos sociais para se apropriar ou manter certo domínio (afetivo, cultural, político, econômico, etc.) sobre/através de uma determinada parcela do espaço geográfico” (Haesbaert & Limonad, 1999, p. 11). Ao exercer tais práticas, os indivíduos controlam o espaço, na medida em que exercem ou adaptam suas territorialidades.

Conforme Raffestin (1993), a territorialidade pode ser definida como um conjunto de relações que se originam de um sistema tridimensional sociedade-espaço-tempo, sendo a soma das relações mantidas por um sujeito com o seu meio. Sack (1986) destaca que a territorialidade é socialmente construída, depende de um desejo e envolve diferentes níveis de razão e significados. Esse conceito se adequa à ideia de que indivíduos e grupos têm estabelecido diferentes graus de acesso às oportunidades, incluindo algumas pessoas e excluindo outras (Corrêa, 2022). Territorialidade está ligada ao território vivido e aos processos de sua apropriação pelos sujeitos (Nunes, 2021) e à construção de modos de vida (Souza et al., 2022). Corresponde, essencialmente, à dimensão simbólica do território (Champollion & Balduzzi, 2020). Para Haesbaert e Limonad (1999), o território pode ser pensado a partir do “grau de fechamento e/ ou controle do acesso que suas fronteiras impõem, ou seja, seus níveis de acessibilidade” (p. 15).

Os estudos territoriais oferecem, assim, possibilidades de reflexão pertinentes à discussão da educação inclusiva, ao tratar dos diversos aspectos envolvidos na constituição dos territórios, da ação dos sujeitos na imposição de barreiras e na luta por acessos. Permitem também considerar as relações pessoais, coletivas e espaciais do sujeito no território em que ele atua como produto e produtor (Sousa et al., 2021). A adoção do conceito de territorialidade como categoria para análise de realidades do campo da Educação Inclusiva constitui uma proposta inovadora.

Uma consulta no portal de periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Periódicos CAPES), por exemplo, adotando os descritores “territorialidade” no campo “título” e “educação” em “qualquer campo”, leva a 121 artigos que abordam temas diversos, como educação ambiental ou do campo, movimentos sociais e luta pela terra, identidade e diversidade cultural, mas não revela nenhum trabalho nos campos da Educação Especial ou da Educação Inclusiva.

Assim sendo, a pesquisa que fundamenta este artigo teve como objetivo compreender as trajetórias de estudantes com deficiência de duas universidades da região leste do estado de Minas Gerais no desenvolvimento de cursos de graduação, no que se refere às barreiras, estratégias de enfrentamento e avaliação das ações institucionais para inclusão. Essas trajetórias foram analisadas como processos de construção de territorialidades vivenciadas nos acessos permitidos, negados e conquistados às possibilidades acadêmicas e profissionais do Ensino Superior.

2 MÉTODO

Nesta seção, apresenta-se o percurso metodológico adotado, estruturado em três partes: inicialmente, descreve-se o campo de pesquisa, especificando as instituições envolvidas no estudo; em seguida, caracterizam-se os participantes da pesquisa, detalhando os critérios de seleção e perfil dos estudantes entrevistados; por fim, explicam-se os procedimentos adotados para a coleta e análise de dados, destacando as estratégias metodológicas utilizadas na interpretação das narrativas.

2.1 CAMPO DE PESQUISA

A pesquisa foi desenvolvida em duas universidades da região leste do estado de Minas Gerais. A Universidade A é uma instituição federal, cujo campus foi implementado em 2012. À época da realização da pesquisa, contava com um Grupo de Trabalho formado por professores, técnicos administrativos e discentes de diferentes cursos, criado para apoiar os processos de inclusão. As ações de apoio aos estudantes e professores eram realizadas com o suporte de projetos de extensão e monitoria, contando com a atuação de discentes de diferentes áreas.

A Universidade B é uma instituição privada de caráter comunitário. Na ocasião da realização da pesquisa, tinha 54 anos de funcionamento. Contava com um Núcleo de Promoção de Acessibilidade, coordenado por professores de diferentes áreas do conhecimento, que promovia ações de apoio à inclusão de PcD na instituição e buscava sensibilizar e formar docentes, técnicos e discentes em relação à acessibilidade e à superação de barreiras arquitetônicas, acadêmicas e atitudinais. Seu plano institucional de inclusão e acessibilidade visava à articulação necessária ao aprimoramento da infraestrutura organizacional para a promoção de um ambiente educacional inclusivo e de respeito às diferenças.

A escolha dessas universidades como campo de pesquisa justifica-se por sua importância no contexto regional em que se situam. São responsáveis, tanto em número de estudantes quanto em produção de pesquisa e extensão, pela maior parte do Ensino Superior na região. O contato com as universidades foi realizado inicialmente com seus dirigentes (diretoria de campus da Universidade A e reitoria da Universidade B) para solicitação de autorização para a realização do estudo. Após essa autorização e a aprovação do projeto de pesquisa em Comitê de Ética, foi feito contato com as coordenações dos setores responsáveis pelas ações de inclusão, às quais foi solicitada a informação sobre o número de estudantes PcD.

2.2 PARTICIPANTES DA PESQUISA

No momento da realização da pesquisa, de acordo com informações obtidas junto aos setores responsáveis pelas ações de inclusão das duas universidades, havia 44 estudantes com deficiência na Universidade A e 33 na Universidade B. Participaram da pesquisa oito estudantes, quatro de cada universidade, definidos por sorteio a partir das listagens fornecidas pelas IES. O primeiro contato com os participantes foi realizado por meio do encaminhamento de e-mail com o convite, e um segundo contato, caso o e-mail não fosse respondido, por mensagem de WhatsApp.

Nas situações em que os estudantes não aceitaram participar, foram feitos novos sorteios até ser atingido o número de oito participantes. O projeto de pesquisa previa que, após a realização dessas oito entrevistas, seria avaliada a necessidade de abordagem de outros sujeitos, o que se daria, também, por sorteio. Posteriormente, considerando o critério de saturação, a equipe de pesquisa avaliou que o material fornecido por essas entrevistas oferecia elementos suficientes para a construção de uma resposta ao problema de pesquisa.

A fim de preservar o anonimato, os participantes foram designados por nomes fictícios. Da Universidade A participaram Miguel, PcD auditiva, com 22 anos, cursando o 8º período do seu curso; Rodrigo, PcD auditiva e física, com 44 anos, cursando o 6º período; Antonella, com 23 anos, PcD auditiva, cursando o 7º período; e José, PcD visual, com 28 anos, no 6º período do curso. Os participantes da Universidade B foram Laura, diagnosticada com dislexia e comorbidades, com 21 anos e cursando o 2º período do seu curso; Ana, PcD física, com 27 anos, cursando o 3° período do curso (sua segunda graduação); Helena, com 54 anos, PcD auditiva, cursando o 6º período; e Vitória, PcD física, com 25 anos, cursando o 10º período.

Optou-se por não revelar os cursos realizados pelos estudantes, a fim de preservar o anonimato, uma vez que essa informação poderia levar à sua identificação. A pesquisa não permitiu identificar a influência da área de conhecimento do curso sobre as análises que os estudantes fazem de suas trajetórias. Buscou-se aprofundar as análises com base nos relatos individuais dos participantes, visando a uma compreensão mais detalhada da trajetória dos estudantes com deficiência, tendo como pano de fundo os processos de construção de territorialidades.

2.3 COLETA E ANÁLISE DE DADOS

Realizou-se uma pesquisa descritiva do tipo qualitativa, e o método de coleta de dados foi a entrevista narrativa (Flick, 2012). O foco da narrativa solicitada foi o desenvolvimento do curso de graduação, desde o processo seletivo até o momento da coleta de dados. As entrevistas foram realizadas nos meses de agosto e setembro de 2022 e iniciadas com a questão gerativa narrativa, baseada em Flick (2004): “Conte-me, por favor, sobre sua trajetória na realização de seu curso de graduação. Gostaria de saber sobre diferentes momentos dessa trajetória. Tudo o que você se lembrar será importante”. A partir dessa pergunta, as intervenções da pesquisadora foram feitas no sentido de estimular a narrativa, demonstrando interesse por todos os aspectos que os entrevistados consideraram importantes.

As entrevistas ocorreram em horário combinado com os participantes. Algumas foram realizadas em salas cedidas pelas universidades; outras, em atendimento à solicitação dos estudantes, foram conduzidas pela plataforma Google Meet. Para as entrevistas com os respondentes que possuíam deficiência auditiva, não foi necessário Tradutor e Intérprete de Língua Brasileira de Sinais (Libras), pois todos compreendiam o que era falado por meio de leitura labial. Foram seguidos os procedimentos éticos indicados no projeto aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, como a leitura e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e os cuidados para evitar prejuízos ou desconfortos aos participantes.

As entrevistas foram gravadas em áudio, e as gravações transcritas. A análise das narrativas foi realizada mediante leituras sucessivas, visando identificar, nas falas dos participantes, aspectos relacionados às barreiras encontradas na realização do curso, às estratégias desenvolvidas para enfrentá-las e à avaliação dos estudantes acerca das iniciativas institucionais.

3 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Ao produzirem os relatos de suas vivências no Ensino Superior, os estudantes participantes da pesquisa abordaram também a trajetória escolar anterior, as relações familiares e os recursos de acessibilidade aos quais tiveram acesso ao longo da vida. Aspectos relacionados às experiências escolares pregressas, bem como redes de apoio familiar e social nas instituições e nos espaços de vivência, contribuem para a percepção positiva ou negativa sobre a vivência no Ensino Superior (Santos & Souza, 2021).

Tomados individualmente, esses relatos expressam configurações específicas, histórias que variam em função do tipo de deficiência, das condições sociais e familiares, da acessibilidade e das barreiras encontradas ao longo do percurso escolar. Alguns expõem vivências de preconceito e de falta de acessibilidade; outros, trajetórias escolares menos expostas a essas dificuldades. Varia também a adesão dos participantes em relação às pautas da luta pela inclusão e a maneira como se relacionam com as universidades, demandando ações e posturas coerentes com a educação inclusiva.

Ainda que a trajetória escolar anterior ao Ensino Superior não faça parte dos objetivos da pesquisa, é interessante observar que essa pluralidade pode ser compreendida como um elemento da construção de territorialidades, uma vez que, como afirma Saquet (2010), os territórios e as territorialidades são substantivados por relações e vivenciados de formas distintas, envolvendo homogeneidades e heterogeneidades, integração e conflito, localização e movimento.

Os relatos indicam necessidades e desafios para a inclusão de PcD no Ensino Superior, revelando que os estudantes participantes da pesquisa não encontraram as condições de acessibilidade como dadas, organizadas anteriormente de forma satisfatória para o atendimento às suas necessidades. Eles participam, ao longo da realização da graduação, da construção das ações de inclusão das universidades.

Destaca-se, desses relatos, o que os estudantes indicam como barreiras à acessibilidade, estratégias desenvolvidas para enfrentá-las e sua avaliação sobre iniciativas institucionais de inclusão.

3.1 BARREIRAS

Os relatos dos estudantes permitem identificar barreiras que persistem em desafiar a acessibilidade durante suas trajetórias nos cursos de graduação. As barreiras arquitetônicas prejudicam especialmente os estudantes com deficiência física. Ana falou da dificuldade em utilizar o laboratório, além da falta de banheiros e outros espaços adaptados:

Tudo é muito alto e eu não consigo fazer muita coisa e isso tem me deixado bem chateada… [...] não sei se na instituição teve algum cadeirante que tenha feito o curso que eu faço, então eles fizeram como se fosse só pra pessoas que andam, estrutura pra quem fica de pé… mesmo que não tenha um cadeirante, acho que não custa nada fazer adaptado, vai que um dia apareça um. (Ana)

A turma de Vitória havia sido alocada no terceiro andar do prédio da universidade, e ela tinha dificuldades para acessá-la pelas escadas e pela rampa. Requisitou a mudança da turma para uma sala de aula no andar térreo e foi atendida pela instituição.

Foram relatadas também barreiras atitudinais. Laura identificou falta de empatia de professores e colegas:

As pessoas às vezes me excluem… olham meio torto pra mim… quando eu quero perguntar alguma coisa na sala para o professor… quero ter uma curiosidade sobre algo ou quero conhecer alguma coisa, eu recebo olhar torto… então isso eu ainda recebo… alguns professores não se colocam no meu lugar... eles não querem entender a minha dificuldade. (Laura)

A estudante identificou posturas capacitistas por parte de professores, profissionais e estudantes. Ao falar do relacionamento com colegas, ela afirmou que não se sentia considerada de forma adequada e, muitas vezes, era cobrada por “erros” em trabalhos, por exemplo, que se devem à dislexia. Ela declarou:

Tudo que eu faço, eu preciso explicar da minha condição… e eles têm preguiça disso… [...] eu entendo a minha condição de saúde… eu entendo a minha condição, mas o outro não entende porque ele olha pra mim e pensa que eu sou perfeita… fisicamente falando. Então, como eles não olham isso, não são empáticos a ponto de tentar enxergar o que está dentro de mim, acabam usando palavras pejorativas. (Laura)

Rodrigo relata, igualmente, posturas preconceituosas de colegas em relação à sua condição de estudante que acessou o Ensino Superior por política de reserva de vagas para PcD. Miguel afirma ter enfrentado menos preconceito no Ensino Superior do que no Ensino Médio.

Barreiras pedagógicas foram apontadas pelos participantes no despreparo dos professores para trabalhar com estudantes com deficiência, de modo a garantir o acesso às atividades acadêmicas. Tais dificuldades se expressam, por exemplo, no desconhecimento das posturas que facilitam a leitura labial durante as aulas para estudantes com deficiência auditiva, na elaboração de recursos didáticos pouco acessíveis às PcD visual e na dificuldade em adaptar as atividades no laboratório para PcD física.

Laura observou que os professores têm dificuldade em compreender suas necessidades e adaptar metodologias de ensino e de avaliação. Ela refletiu sobre a visibilidade da deficiência:

Eles não são preparados para receber gente como a gente, eles não são preparados para nos entender… e, principalmente, deficiências que não são visíveis. Aquelas pessoas que eles não veem a deficiência, eles não acreditam e fazem pouco caso muitas vezes. (Laura)

Como demanda relativa às práticas pedagógicas durante as aulas em seu curso, José citou a qualidade de imagem dos slides. Quando essa qualidade é baixa, ele tem dificuldade para enxergar o conteúdo.

Antonella relatou obstáculo em compreender a fala de seus professores quando se locomovem muito na sala ou não utilizam material visual como apoio. Ela identificou falta de preparo da instituição e do corpo docente para planejar e executar propostas pedagógicas inclusivas, o que piora a condição de aprendizagem das PcD auditiva:

Então assim… eu ainda estou tendo essa dificuldade em relação a conseguir acompanhar as aulas da forma como os meus colegas… só que eu também sei que eu não consigo acompanhar justamente por causa disso… porque é muito simples chegar na sala de aula, falar… só escutar e tal… mas tem várias formas de você aprender a matéria, né… e às vezes a forma como os professores colocam a matéria na aula não é a forma pela qual você consegue aprender… é uma luta diária pra você conseguir se manter dentro do que os professores esperam também. (Antonella)

Em relação às opções metodológicas para ensino e avaliação vivenciadas no curso superior, Antonella apontou a dificuldade com a apresentação de trabalhos e lamentou que não haja flexibilidade na escolha dessas práticas.

Antonella comparou as condições de acessibilidade entre as aulas presenciais e aquelas que ocorreram no Ensino Remoto Emergencial, implementado em função da pandemia de covid-19, e afirmou que as aulas gravadas permitiam pausar, voltar e anotar: “No presencial eu não consigo fazer isso... é como se... é isso pronto e acabou!”. Ela avaliou que muitos professores não estão preparados para incluir pessoas surdas oralizadas em suas aulas. Isso gera ansiedade e prejudica seu aprendizado, sua inclusão e sua participação. Na opinião de Antonella, ainda são necessários avanços na formação docente.

Para Miguel, ao contrário, o Ensino Remoto Emergencial implementado na universidade trouxe vários obstáculos:

As aulas remotas foram uma batalha! Uma batalha do início ao fim [...] para as pessoas com deficiência auditiva, “foi como se elas tivessem sido chutadas para fora da universidade”; tipo assim: a universidade vai rolar e você se vira aí. (Miguel)

Miguel afirmou que, para garantir a acessibilidade de todos os estudantes às aulas remotas, adaptações e cuidados deveriam ter sido adotados pelos professores:

Como eu faço leitura labial, preciso ver muito bem a boca, e o ensino remoto para um deficiente auditivo depende de várias circunstâncias. Depende dessa iluminação, depende da câmera, depende da entrada de áudio, do microfone, depende da saída do meu computador, depende da internet dele, depende da velocidade da minha internet, depende da plataforma estar estável ou não, depende da qualidade da gravação, porque algumas gravações ficam com áudio separado do vídeo. Depende de muitas coisas, se o professor não tiver a manha vai ser horrível. (Miguel)

No retorno às aulas presenciais, o uso de máscaras representou para Miguel uma barreira comunicacional praticamente intransponível. Ele considerou que a alternativa da proteção de plástico transparente, que os professores tentaram utilizar a fim de atender sua necessidade, era desconfortável e afirmou: “Eu preferia não estar na sala, deixar que ele desse a aula normalmente, do que ver a pessoa passar aquele sofrimento, para poder dar a aula…”.

Rodrigo afirmou que, ao iniciar o curso, observou falta de preocupação da instituição com a acessibilidade pedagógica:

Eles abriam para que o aluno com alguma limitação entrasse no curso, mas lá todo mundo era tratado igual, assim “que se dane”! A prova era igual para todos…Vi que a maioria dos estudantes com deficiência estavam para trás…e eu entrei em desespero! (Rodrigo)

As posturas mais ou menos inclusivas dos docentes dependem de sua sensibilidade e abertura, como características pessoais, e não como fruto de uma política institucional. Os relatos de Miguel, Antonella e Laura expressam a dificuldade em transmitir aos docentes suas necessidades. Ficava a cargo dos estudantes indicarem o que precisava ser feito para que tivessem acesso pleno às aulas e atividades. Tais relatos demonstram, inclusive, que os alunos se sentiram desconfortáveis quando foram atendidos em algumas de suas necessidades, por perceberem a insatisfação de outros colegas ou dos professores. As barreiras estão presentes, portanto, na vivência dos estudantes nas duas universidades e são transpostas, na maior parte das vezes, a partir de iniciativas deles mesmos.

Outros estudos sobre a inclusão de PcD em IES revelam processos dificultados por barreiras arquitetônicas, comunicacionais, pedagógicas e atitudinais (Almutairi, 2023; Beyene et al., 2023). Silva e Pimentel (2022) analisaram o ponto de vista dos/as estudantes com deficiência visual sobre seu ingresso e permanência na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e identificaram barreiras físicas, pedagógicas e atitudinais.

Diniz e Silva (2021) pesquisaram os elementos que constituem barreiras e/ou facilitadores, sob a perspectiva de estudantes universitários com deficiência de universidades públicas de Mato Grosso do Sul, e identificaram barreiras arquitetônicas, atitudinais, comunicacionais e pedagógicas. Pereira et al. (2020) afirmam a urgência da produção de conhecimento apropriado voltado para o planejamento de ações para a participação plena do estudante com deficiência no Ensino Superior, considerando especialmente o ponto de vista desse discente.

De acordo com Raffestin (1993), a territorialidade reflete a multidimensionalidade do vivido territorial. Por permear dimensões sociais, históricas, políticas e geográficas, a compreensão do conceito de território está imbricada na manifestação relacional entre essas dimensões e em como o sujeito atua e interfere sobre elas. Isso se dá em simultaneidade com a relação de dominação entre uma ou mais pessoas sobre outras, em um movimento contínuo de continuidade ou descontinuidade (Saquet, 2007). As experiências vivenciadas a partir das barreiras encontradas no curso de graduação são elementos constitutivos dos processos de construção de territorialidades pelos estudantes. Marcam e orientam suas trajetórias, ao indicarem possibilidades e limites que têm vinculação com sua condição de PcD. Segundo Raffestin (1993, p. 162), “a análise da territorialidade só é possível pela apreensão das relações sociais recolocadas no seu contexto sócio-histórico e espaço-temporal” (p. 162).

É necessário, portanto, para compreender as territorialidades das PcD no Ensino Superior, considerar a falta de acessibilidade como uma condição que persiste e afeta radicalmente as experiências vivenciadas nesse contexto.

3.2 ESTRATÉGIAS DE ENFRENTAMENTO

As narrativas obtidas revelam movimentos estratégicos desenvolvidos pelos estudantes para combater as barreiras de acesso e permanência no Ensino Superior. Realizar o curso exige, para todos os participantes da pesquisa, um esforço e um trabalho além dos necessários para as pessoas sem deficiência: esforço para entender as aulas, enxergar slides, acessar equipamentos de laboratório ou ambientes, tomar a iniciativa de apresentar suas necessidades aos docentes. As narrativas indicam que todos os estudantes entrevistados precisam traçar e executar formas de superar as barreiras que dificultam sua permanência e aprendizagem no Ensino Superior.

As estratégias apresentadas nas narrativas podem ser classificadas em dois grupos, que se diferenciam pelo grau de exposição e enfrentamento: alguns estudantes relataram situações nas quais apresentam suas demandas a colegas, professores e gestores institucionais; outros buscam solucionar as dificuldades sem expor suas necessidades e tentam ao máximo evitar que suas demandas e sua condição de PcD sejam percebidas pelos colegas e professores.

As estratégias de enfrentamento construídas ao longo da escolaridade nos níveis anteriores são adaptadas às condições encontradas durante o curso de graduação e constituem uma atualização das formas de vivenciar sua condição em um sistema de ensino excludente. Sack (1986) destaca as funções de contenção, restrição ou exclusão da lógica territorial e afirma que as territorialidades podem ser compreendidas como estratégias para afetar, influenciar e controlar. Como afirmam Costa Junior et al. (2022), os sujeitos territorializam o espaço por meio de práticas estratégicas e táticas, recriando seu cotidiano.

Paiva e Gesser (2024) ressaltam que o acesso de PcD ao Ensino Superior ainda é permeado por barreiras; é um espaço de poder e de disputa, em que os atravessamentos de raça, classe, gênero e deficiência são relevantes na definição de quem terá mais ou menos poder na hierarquia social. Ao empregar estratégias para enfrentar as barreiras encontradas no curso de graduação, os estudantes da pesquisa criam movimentos que impactam e afetam as instituições e as condições de acessibilidade.

De acordo com Piccolo (2023), o conceito de acessibilidade vem influenciando as discussões sobre educação inclusiva, promovendo uma “nova gramática de uma sociedade democrática e justa” (p. 1) e realçando a necessidade da transformação do ambiente de forma a atender a todos, com equidade. O autor reafirma a necessidade de “transformações que se mostram inadiáveis e que fundem uma nova geografia do espaço escolar, a qual permita a todos participarem de maneira paritária na plêiade de relações que compõem esse universo” (pp. 2-3). A presença de estudantes com deficiência no ambiente educacional implica avanços nas perspectivas de todas as pessoas envolvidas nos processos educativos, enriquecendo o universo das relações interpessoais.

3.3 AVALIAÇÃO DAS INICIATIVAS INSTITUCIONAIS

As iniciativas das IES nas quais os participantes da pesquisa realizam seus cursos não foram destacadas de forma espontânea em seus relatos. Os sujeitos falavam das barreiras que encontravam e das estratégias desenvolvidas para enfrentá-las, quase sempre de forma pessoal, como tarefa e responsabilidade próprias. Igualmente, o apoio de professores e colegas aparece nos relatos de forma individual, não como elemento de uma política institucional efetiva.

Quando a entrevistadora perguntou sobre a ação dos núcleos de acessibilidade, os estudantes da Universidade A comentaram sobre a atuação do Grupo de Trabalho, reconhecendo ações que facilitavam e apoiavam o desenvolvimento das atividades acadêmicas. Destacaram como positiva a participação de estudantes, alguns PcD, na equipe do Grupo de Trabalho. A inserção de alunos como protagonistas das ações de inclusão aparece, portanto, como um aspecto positivo, que aumenta a efetividade das ações institucionais.

Miguel relatou com satisfação sua participação nas ações adotadas pela universidade, que incluíram a elaboração de procedimentos operacionais para orientação dos docentes. José afirmou que as ações organizadas pelo Grupo de Trabalho no Ensino Remoto Emergencial durante a pandemia de covid-19 foram benéficas, embora tenham sido interrompidas: “Eles estavam orientando a gente e explicando quanto às questões de limitação, entrando em contato… orientavam onde eu deveria recorrer e quando recorrer”.

Os estudantes da Universidade B, quando estimulados pela pesquisadora a falar sobre tais ações, citaram o núcleo que promove ações de inclusão na instituição. Apesar das dificuldades vivenciadas, Vitória observou que a instituição está caminhando em relação à acessibilidade, mas que é necessária uma “mudança atitudinal, até mesmo de postura, promovendo um ensino igualitário e efetivo para todas as pessoas, incluindo as pessoas com deficiência”.

Os relatos dos entrevistados revelam que as ações de inclusão implementadas pelas duas instituições não eram, ainda, suficientes para criar um ambiente institucional inclusivo. Diferentes estudos indicam a importância das atitudes e da formação da comunidade acadêmica do Ensino Superior, com ênfase no papel dos docentes. A efetividade das ações que visam à promoção da acessibilidade no Ensino Superior depende da formação das equipes pedagógica e docente, bem como do envolvimento de toda a comunidade acadêmica nas discussões sobre as práticas educacionais inclusivas. Ações de formação contínua para estudantes, professores e funcionários de IES são imprescindíveis para a compreensão plena das necessidades de acessibilidade das PcD (Furlan et al., 2020; Martins et al., 2021; Neves et al., 2019).

Paz-Maldonado et al. (2023) reforçam o desafio da formação docente ao propor a consideração da necessidade do trabalho conjunto para experiências de aula mais democráticas. Casagrande e Mainardes (2021) e Diniz e Silva (2021) indicam, da mesma forma, a importância da contribuição dos agentes da comunidade acadêmica para a educação inclusiva, garantindo condições para que estudantes com deficiência possam permanecer e pertencer ao Ensino Superior. Guimarães et al. (2021) indicam o envolvimento dos professores como necessário para a efetividade da inclusão de PcD no Ensino Superior.

As observações realizadas a partir das narrativas acerca de barreiras, estratégias de enfrentamento e avaliação das ações institucionais remetem a questões que não são pontuais, demandando uma transformação ampla no sentido da educação inclusiva. As dificuldades encontradas pelos estudantes entrevistados para permanecer em seus cursos, aprender e se desenvolver acadêmica e profissionalmente não se referem a determinados professores ou gestores, mas ao conjunto de sua experiência na universidade. Essa observação está presente em outros estudos sobre a inclusão no Ensino Superior. Trata-se de “uma mudança no modus operandi de uma instituição no seu fazer tradicional, tanto no ensino, na pesquisa e na extensão, quanto na infraestrutura oferecida a toda a comunidade docente, discente e administrativa” (Guerreiro et al., 2014, p. 33). É imperiosa a reinvenção das universidades, “nas dimensões das estruturas físicas, pedagógicas e didáticas, visando eliminar as barreiras que impedem e/ou limitam a permanência dessas pessoas” (Neves et al., 2019, p. 445). Almutairi (2023) observa a necessidade de mudanças conceituais e atitudinais relacionadas às condições de acessibilidade ao Ensino Superior.

Há, todavia, estudos que indicam resultados positivos alcançados a partir de iniciativas institucionais de acessibilidade, demonstrando que já é possível observar avanços na conscientização da comunidade acadêmica e na promoção das condições de permanência e sucesso acadêmico de estudantes com deficência (Gonçalves & Teixeira, 2022; Tomelin et al., 2018).

Retomando os dados da pesquisa, entende-se que as duas universidades pesquisadas deram passos iniciais importantes no sentido da educação inclusiva, ao reconhecerem a necessidade de promoção da acessibilidade e buscarem formas institucionais de tornarem-se mais inclusivas. A continuidade desse caminho depende das políticas institucionais e da mobilização da comunidade acadêmica.

4 CONCLUSÕES

Este trabalho visou à compreensão das trajetórias de estudantes com deficiência de duas universidades de Minas Gerais no desenvolvimento de cursos de graduação, no que se refere a barreiras, estratégias de acesso e avaliação das ações institucionais para inclusão, por meio de entrevistas narrativas com oito estudantes com deficiência. A partir do relato dos estudantes participantes da pesquisa, foi possível conhecer suas trajetórias individuais, as quais guardam entre si distâncias e diferenças, pois se forjam em condições sociais, culturais e escolares diversas. Os relatos permitiram também uma leitura das narrativas como um conjunto, dada a centralidade da condição de pessoa com deficiência.

Apesar das diferenças nas estratégias de enfrentamento e do reconhecimento das ações institucionais desenvolvidas, a identificação das barreiras ainda é o aspecto dominante das narrativas. As duas universidades pesquisadas instituíram núcleos voltados especificamente para a inclusão, mas não eram ainda capazes de implementar políticas de inclusão reconhecidas e efetivadas pelo corpo docente e técnico. Nesse sentido, encontrou-se, nas universidades pesquisadas, a mesma situação relatada em pesquisas feitas em outras IES: ações ainda iniciais de construção de acessibilidade, com dificuldades na sensibilização e formação de docentes e do corpo técnico para atuarem nos processos educacionais com PcD.

Nas narrativas dos participantes desta pesquisa, chama atenção a responsabilidade dos estudantes por informar aos docentes e às instituições suas necessidades e propor soluções. Ainda que a participação das PcD na construção de acessibilidade seja um aspecto positivo, poder-se-ia esperar que os cursos de graduação estivessem melhor preparados e fossem capazes de antecipar algumas soluções de acessibilidade. Um dos pontos mais importantes nos relatos é a falta de preparo dos professores. Os entrevistados não criticaram os docentes diretamente, mas revelaram que não havia uma preparação prévia, que poderia fazer parte da formação desses professores ou de iniciativas das instituições em prepará-los. Os relatos indicam, portanto, que as soluções são construídas depois do surgimento dos problemas. Dessa forma, consideramos pertinente questionar se é possível realmente falar em ações de inclusão, uma vez que os estudantes se sentem, em certa medida, desconfortáveis no ambiente acadêmico.

A adoção dos conceitos de território e territorialidade na perspectiva cultural dos estudos territoriais (Haesbaert & Limonad, 1999; Sack, 1986) apresenta uma possibilidade de leitura dessa condição. Ao utilizar esses conceitos para compreender a educação inclusiva, pode-se entender que as PcD fazem movimentos para se organizarem no espaço escolar, por meio das relações nele vivenciadas. Tais movimentos podem ser compreendidos como territorialidades, que constituem modos de enfrentamento das dificuldades, superação dos desafios e vivência das interações e relações de poder. A produção de territorialidade é, como afirma Saquet (2007), resultante do processo cotidiano de apropriação e domínio social e inscreve-se no estabelecimento das relações socioespaciais. Segundo o autor: “Os processos sociais e naturais, e mesmo nosso pensamento, efetivam-se na e com a territorialidade cotidiana. É aí, neste nível, que se dá o acontecer de nossa vida e é nesta que se concretiza a territorialidade” (p. 58)

No contexto da educação inclusiva, a construção de territorialidades acontece a partir dos movimentos dos sujeitos no processo de inclusão nas instituições de ensino e das relações que envolvem a busca pela garantia de acesso efetivo à educação e aos direitos sociais, na construção de acessibilidade em diferentes planos. Conclui-se que é “nas contradições entre a exclusão e a inclusão que sujeitos constroem a consciência inclusiva que orienta suas atitudes na sociedade em que vivem” (Neves et al., 2019, p. 460).

Adotando essa chave de leitura, pode-se afirmar que o Ensino Superior é um território apenas parcialmente acessível às PcD. A adoção do conceito de territorialidade permite compreender as trajetórias dos estudantes com deficiência como vivências de estrangeiros que cruzam uma fronteira. Aqui, toma-se o estrangeiro como aquele que resulta de uma das faces do sentimento de pertencimento, a que se caracteriza pela exclusão, uma vez que o estrangeiro é aquele que é estranho ao grupo (Corrêa, 2022).

Por um lado, o Ensino Superior os convida a seus processos seletivos, inclusive, em alguns casos, com a reserva de vagas para PcD. Por outro lado, quando atendem a esse convite, são confrontados com o fato de que, para permanecer nesse território, precisam exigir e participar da construção das condições que possibilitem sua efetiva participação nos processos de aprendizagem. Seus processos de territorialidade constituem-se a partir da necessidade constante de conquistar, convencer e demonstrar que pertencem a esse território e podem usufruir do que ele encerra: conhecimento, habilitação profissional, desenvolvimento pessoal e social.

O diálogo interdisciplinar com os estudos territoriais agrega ao campo da Educação Inclusiva perspectivas de análise que podem ampliar a compreensão dos processos vivenciados no contexto de instituições de ensino.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Jul 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    03 Jun 2024
  • Revisado
    14 Out 2024
  • Aceito
    04 Jan 2025
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