RESUMO
Este artigo objetiva apresentar a proposta de ensino especial desenvolvida pela educadora suíça Alice Descoeudres, a partir da análise de uma de suas principais obras: A educação das crianças retardadas: seus princípios, seus métodos (2ª edição brasileira/tradução da 4ª edição original), publicada em 1968 pela Sociedade Pestalozzi de Minas Gerais. A pesquisa segue uma abordagem historiográfica ao investigar a obra em seu contexto histórico e sua introdução no Brasil. Ao partir das inquietações sobre a natureza do livro e a proposta educacional apresentada, utilizou-se a técnica de análise de conteúdo por meio de categorias temáticas. Os resultados estão organizados em duas categorias: a primeira aborda questões gerais sobre a organização do ensino especial, dividida em quatro subseções que abarcam aspectos históricos, organização dos sistemas escolares, princípios fundamentais e formação do professor para o ensino especial; e a segunda categoria versa sobre as questões pedagógicas desse ensino, abordando a educação psico-sensório-motora, educação prática e manualidades, educação das linguagens e educação moral. A proposta de Descoeudres para o ensino especial enfatiza a individualização e a adaptação aos interesses e às necessidades dos estudantes, além de propor um ensino prático, lúdico e flexível, com vistas ao desenvolvimento holístico do sujeito e sua integração social como principal função.
PALAVRAS-CHAVE:
Alice Descoeudres; Ensino especial; História da Educação Especial.
ABSTRACT
This article presents the special teaching proposal developed by the Swiss educator Alice Descoeudres, based on the analysis of one of her key works: A educação das crianças retardadas: seus princípios, seus métodos (The education of retarded children: its principles, its methods, 2nd Brazilian edition/translation of the 4th original edition), published in 1968 by the Pestalozzi Society of Minas Gerais. The research follows a historiographical approach by examining the book in its historical context and its introduction in Brazil. Based on questions about the nature of the book and the educational proposal it outlines, content analysis was carried out through thematic categories. The results are organized into two main categories: the first category adresses general issues concerning the organization of special teaching, divided into four subsections covering historical aspects, the organization of school systems, fundamental principles, and teacher training for special teaching; and the second category deals with pedagogical issues, focusing on psycho-sensory-motor education, practical education and manual activities, language education, and moral education. Descoeudres’ proposal for special teaching emphasizes individualization and the adaptation to students’ interests and needs, while also advocating a practical, playful, and flexible approach to instruction, aimed at the holistic development of the individual and at social integration as its primary function.
KEYWORDS:
Alice Descoeudres; Special teaching; History of Special Education.
1 INTRODUçãO
Este estudo tem como foco o livro da educadora suíça Alice Descoeudres (1877-1963), A educação das crianças retardadas: seus princípios, seus métodos (Figura 1). A relevância dessa obra está na significativa contribuição para o desenvolvimento e consolidação do ensino especial no Brasil, entre 1930 e 1970, a partir das experiências da psicóloga e pesquisadora russo-brasileira Helena Antipoff (1892-1974). Descoeudres foi a principal referência de Antipoff no campo da Educação Especial (Domingues, 2011).
Alice Descoeudres, da capa do livro ‘L’Education des enfants anormaux’ (1916) e da capa da tradução brasileira de 1968
Formada em Pedagogia e Doutora Honoris Causa pela Universidade de Neuchâtel (1948), Descoeudres dedicou-se à educação das crianças com deficiência (Cleopazzo, 1996). Sua trajetória faz parte da história da Educação Especial, destacando-se tanto pelo seu engajamento como educadora quanto por sua produção intelectual (Ruchat, 2012). Antipoff (1968) afirma que, “na galeria de mulheres célebres, Alice Descoeudres merece um lugar de destaque pela quantidade de obras realizadas a serviço da cultura e do bem” (p. 5).
Descoeudres iniciou sua vida profissional dando aulas em escolas particulares de Genebra. Entre os anos de 1908 e 1937, trabalhou no Departamento de Instrução Pública dessa cidade e atuou na École de Malagnou, que se dedicava a crianças retardadas (Borges, 2015a; Lourenço, 2022; Ruchat, 2012). Para ela, a criança retardada era o principal público de atenção do ensino especial e seria aquela que “apresenta um grau de fraqueza mental, de instabilidade psíquica ou de inaptidão intelectual para reagir normalmente às excitações fornecidas pelo meio educativo e pedagógico ordinário” (Descoeudres, 1968, p. 25). Além das crianças retardadas, as bem-dotadas e as com deficiências físicas/sensoriais também compunham o público de atenção do ensino especial da época.
Antes de iniciar seu trabalho nas classes especiais, Descoeudres passou quatro meses em Bruxelas, na Bélgica, estagiando com o médico e educador Ovídio Decroly6 (1871-1932). Nessa ocasião, Descoeudres observou as classes especiais e aprendeu sobre o método de ensino para as crianças com deficiência (Descoeudres, 1968). A convite de Édouard Claparède7 (1873-1940), trabalhou no Instituto Jean Jacques Rousseau (IJJR), de 1912 a 1947. Foram 35 anos atuando como educadora e pesquisadora do IJJR, período em que realizou diversas pesquisas sobre o desenvolvimento infantil (Cleopazzo, 1996; Lourenço, 2022).
No IJJR, Descoeudres foi responsável pela oferta de um curso sobre Educação Especial, baseado em seus estudos e experiências, no qual Helena Antipoff foi sua aluna (Borges, 2015a). Posteriormente, tornaram-se colegas de trabalho no mesmo instituto, onde Antipoff foi professora na Maison de Petits8 em 1913/1914 e, posteriormente, assistente de Édouard Claparède entre 1926 e 1929.
No prefácio redigido por Antipoff à primeira edição brasileira da obra analisada, é possível observar sua grande admiração por Descoeudres, cujo nome foi atribuído à primeira classe especial anexa ao laboratório de psicologia da Escola9 de Aperfeiçoamento de Professores de Belo Horizonte, dirigido por Antipoff (Borges, 2015b). Elas também compartilharam a responsabilidade e o crédito por matérias publicadas na Revista do Ensino10 (Petersen & Jinzenji, 2023). Descoeudres foi colaboradora dos periódicos Archives de Psychologie, L’Educateur e L’Intermédiaire des Educateurs. Segundo Antipoff (1968), simultaneamente ao magistério, Descoeudres desenvolveu pesquisas científicas e escreveu diversos livros e artigos sobre Educação Especial (Descoeudres, 1909, 1910, 1911a, 1911b, 1915, 1916).
A obra de Descoeudres - L’éducation des enfants anormaux - foi editada quatro vezes e traduzida para sete línguas (alemão, inglês, húngaro, russo, japonês, espanhol e português). Nas duas primeiras edições, o livro se chamava A educação das crianças anormais; já, nas duas últimas, teve seu título modificado para A educação das crianças retardadas, conforme mostrado na Figura 1 anteriormente, aparentemente por influência de Helena Antipoff. Essa autora evidenciava preferência pela denominação “excepcionais” para
se referir a indivíduos que se desviam acentuadamente para cima ou para baixo da norma de seu grupo em relação a uma ou várias características mentais, físicas ou sociais, ou quaisquer dessas, de forma a criar um problema essencial com referência à sua educação, desenvolvimento e ajustamento ao meio social. (Antipoff, 1992b, p. 271)
Descoeudres (1968) justifica a alteração de nome do livro dizendo que “longe de humilhar o jovem por medidas de exceção, cumpre reerguê-lo de sentimento de inferioridade que as suas imperfeições lhe causam. Não é com o termo ‘anormal’ que se chegará a esses fins” (p. 2).
A primeira edição em português da obra analisada foi traduzida por Arduíno Bolivar11 (1873-1952) e Naytres Rezende12 (?-1954) e publicada pela Sociedade Pestalozzi de Minas Gerais (SPMG), em 1936, após Descoeudres ceder os direitos autorais para Antipoff. Contudo, “os capítulos saíram primeiro na Revista do Ensino para depois serem reunidos no volume do livro” (Borges et al., 2020, p. 45). Como parte de suas atividades para promover a formação e capacitação dos professores na educação das crianças excepcionais, a SPMG publicou 1.000 exemplares do livro, sendo 500 distribuídos nas escolas pela Secretaria de Educação e 500 destinados à Sociedade Pestalozzi para venda (Antipoff, 1992b).
Essa obra de Descoeudres foi bem recebida no contexto das reformas educacionais brasileiras por estar em sintonia com os princípios da Escola Nova, que as fundamentaram. Segundo Lourenço Filho13 (1961), os pilares centrais do movimento escolanovista estavam na centralidade do aluno como protagonista do processo educativo, na individualização do ensino e na flexibilidade pedagógica. Em consonância com essas ideias, Descoeudres propunha metodologias que priorizavam atividades práticas e lúdicas, estimulando os interesses e as necessidades específicas dos estudantes. Além disso, a autora enfatizava a importância de adaptar o currículo às realidades concretas da vida, promover o desenvolvimento integral do aluno e favorecer sua integração social.
A obra é organizada em 15 capítulos: generalidade; organização; princípios e programas; educação dos sentidos e da atenção; ginástica; trabalho manual; o desenho; centros de interesses; a linguagem; a leitura; ortografia; na vida; o cálculo (I); o cálculo (II); educação moral. Concordamos com Antipoff quando diz que o livro de Descoeudres “é um tesouro para quem quisesse ter uma ideia geral de como conhecer pormenores das aplicações práticas de certos processos que ela própria criou com tanto engenho ou que ela recomenda entre os dos outros autores” (Antipoff, 1992a, p. 65).
Este artigo está estruturado em três seções. A primeira apresenta o método de pesquisa adotado, estabelecendo o rigor científico do estudo; a segunda explora a proposta de Descoeudres para o ensino especial, destacando os aspectos gerais que norteiam sua abordagem; e a terceira foca nas orientações pedagógicas específicas para esse ensino. Essa estrutura objetiva detalhar a proposta de ensino especial desenvolvida por Descoeudres, justificando-se pela relevância histórica e pedagógica de sua obra no contexto da educação brasileira, especialmente no período de 1930 a 1970.
2 MéTODO
Este estudo fundamenta-se na abordagem da pesquisa historiográfica descritiva, que tem como objeto documentos que transmitem ao historiador a realidade do passado ou a possibilidade de reconstruir fatos históricos (Massimi et al., 2008), e se debruça sobre o livro A educação das crianças retardadas: seus princípios e seus métodos, de Alice Descoeudres, cuja análise de conteúdo foi realizada por meio de categorias temáticas, seguindo a orientação de Bardin (2016). Para essa autora, a análise de conteúdo consiste em “classificar diferentes elementos nas diversas ‘gavetas’ segundo critérios susceptíveis de fazer surgir um sentido dentro de uma ‘confusão’ inicial” (Bardin, 2016, p. 43). Nesse sentido, organizamos duas categorias de análise, cada uma subdividida em quatro, conforme demonstram o Quadro 1 e 2 a seguir.
Por meio dessa metodologia, foi possível não apenas descrever, mas também interpretar e contextualizar as ideias e as práticas pedagógicas apresentadas por Descoeudres, proporcionando uma visão mais aprofundada sobre o ensino especial em sua perspectiva.
3 ASPECTOS GERAIS DA PROPOSTA DE DESCOEUDRES PARA O ENSINO ESPECIAL
Esta categoria de análise abrange as questões gerais do ensino especial na perspectiva de Descoeudres, pois aborda aspectos históricos, conceituações e identificações; a organização dos sistemas escolares e medidas de encaminhamento pós-escolar; os princípios e a formação do professor para o ensino especial.
3.1 GENERALIDADES: ASPECTOS HISTóRICOS, CONCEITUAIS E IDENTIFICAçõES
Descoeudres apresenta o histórico do atendimento às pessoas com deficiência, desde os primeiros asilos até a criação das primeiras classes especiais14, ressaltando o caráter recente das preocupações com as crianças consideradas retardadas (aquelas com menos comprometimentos do que as destinadas aos asilos).
A autora aponta a necessidade da existência das classes especiais para os retardados a fim de melhor atender ao princípio da individualização do ensino e destaca que os processos educativos para esses estudantes seguiam a perspectiva da pedagogia renovada15 (menos palavras, mais movimento, mais trabalho manual e a intuição levada a sério). Segundo Descoeudres (1968), “se o ensino se tornasse cada vez mais individual, poderiam suprimir-se, sem inconveniente, as classes especiais” (p. 21). Assim, o objetivo dessas classes não era inferiorizar os estudantes, mas possibilitar um ensino próprio ao desenvolvimento destes.
Conforme Descoeudres (1968), o estudante retardado seria aquele que “apresenta um grau de fraqueza mental, de instabilidade psíquica ou de inaptidão intelectual para reagir normalmente às excitações fornecidas pelo meio educativo e pedagógico ordinário” (p. 25). A autora utiliza as classificações de Binet16 (1857-1911) e Simon17 (1873-1961), que incluem as categorias de idiota18, imbecil19 e débil20 e esclarece que o foco do ensino especial seria apenas as duas últimas categorias, enquanto a primeira, devido ao grau mais severo de comprometimento, ficaria a cargo dos internatos.
Descoeudres propõe um método abrangente para a detecção e avaliação dos quadros nosológicos em crianças, enfatizando a necessidade de um exame tríplice - pedagógico, psicológico e médico - para garantir um diagnóstico preciso, especialmente em casos em que as diferenças em relação às crianças sem deficiência são sutis. Por isso, ela pontua que “nunca seriam demasiadas as nossas precauções para a escolha das crianças” para as classes especiais (Descoeudres, 1968, p. 26).
O exame pedagógico conduzido pela escola avalia o desenvolvimento cognitivo da criança, considerando a aquisição de conhecimentos básicos ao longo do tempo. Descoeudres cita como instrumentos para essa avaliação as atividades que abordam leitura, escrita, cálculo e ortografia. Também menciona os testes de Binet e Simon para leitura, escrita e cálculo, além dos testes de aptidão de Claparède. Além disso, salienta que um indicativo de avaliação eram as crianças que ficavam dois anos retidas na mesma série e que essa avaliação só tinha valor se a escola oferecesse um ensino de qualidade.
O exame psicológico deveria ser realizado por um especialista - psicologista -, que avaliava o nível de inteligência das crianças em relação a um padrão estabelecido para a idade, como na escala Binet-Simon21, que foi significativamente aprimorada na revisão feita em 1911.
Por fim, o exame médico se concentrava na identificação de sinais anatômicos, fisiológicos e patológicos que poderiam influenciar o nível intelectual da criança. Por meio desse exame, buscava-se detectar condições médicas subjacentes que pudessem afetar o desenvolvimento cognitivo e comportamental. Descoeudres (1968) enfatiza que, após o tríplice exame para identificar as crianças, deveria ser organizada uma ficha médico-pedagógica com informações dos pais, diagnóstico clínico e observações pedagógicas e psicológicas. Contudo, a autora ressalta que o essencial não era apenas registrar os dados, mas estabelecer uma colaboração contínua e próxima entre médico e pedagogo, visando ao bem-estar da criança.
Sobre a inteligência, Descoeudres a define como a capacidade de uma criança reagir e se adaptar aos estímulos do ambiente. Para ela, a inteligência abrange habilidades cognitivas e a capacidade de interação sensorial, motora e emocional com o meio. A autora destaca que a inteligência pode ser estimulada por meio de atividades práticas e educativas que permitam à criança agir, experimentar e aprender.
Para Descoeudres, em muitos casos, comportamentos ou níveis de inteligência considerados atípicos podem resultar de influências externas e não de características inerentes ao indivíduo. Isso sugere que, ao melhorar o ambiente social, também se poderiam ampliar as oportunidades de desenvolvimento intelectual para todos.
Em consonância com essa visão, Descoeudres entende o ensino especial como aquele que se concentra na individualização e adaptação aos interesses e às necessidades específicas dos estudantes. Em sua perspectiva, o ensino especial deve ser prático, lúdico e flexível, valorizando as potencialidades dos alunos, com vistas ao seu desenvolvimento holístico e à sua integração social como principal função.
3.2 ORGANIZAçãO DOS SISTEMAS ESCOLARES E MEDIDAS DE ENCAMINHAMENTO PóS-ESCOLAR
A organização dos sistemas escolares na época incluía internatos e externatos. Segundo Descoeudres (1968), nos internatos, que funcionavam em casas de campo com regime familiar, cada mestre assumia o papel de pai de família para um grupo de dez crianças. O público-alvo era constituído por aqueles com debilidade física e causas patológicas de retardamento, e o foco estava no cuidado e na assistência. O internato deveria ser “uma vida criada para a criança, nada de tarefas acima de sua idade e de suas forças” (Descoeudres, 1968, p. 36). Nos externatos, as classes especiais anexas às escolas elementares eram organizadas em dois ou três grupos para garantir a homogeneidade do ensino. O público-alvo era diversificado: crianças bem-dotadas, retardados e aquelas com problemas comportamentais, com até 15 alunos por sala. Nessas classes, a instrução combinava ensino didático e ginástica psicológica.
Existiam também classes autônomas que funcionavam como semi-internatos e classes específicas para alunos com dificuldades auditivas, conhecidas como classes para duros de ouvido. Essas últimas atendiam surdos ou aqueles com perda auditiva acentuada, com um máximo de 12 alunos por sala, e enfatizavam o ensino da leitura labial. Cada modelo buscava atender às necessidades específicas dos alunos.
A autora apresenta a organização do ensino especial como flexível, variando conforme a idade, circunstâncias locais, condições sociais ou o próprio regime (internato ou externato). Nas classes especiais, “o programa não pode ser uma simples redução do das classes elementares” (Descoeudres, 1968, p. 56), porque, segundo ela, as crianças retardadas diferem das outras, mesmo tendo o mesmo nível de desenvolvimento. Descoeudres (1968, p. 57) pontua que as classes especiais requerem um ensino diferenciado, em que se possa “combinar um programa de instrução didática, destinado a transmitir ao aluno os conhecimentos indispensáveis à vida, com um programa de ginástica psicológica no intuito de exercitar as diferentes funções mentais e suas reações recíprocas”.
O programa do ensino especial deveria incluir uma variedade de atividades, como trabalhos manuais, excursões e lições de desenho, além de horários flexíveis, atividades previamente planejadas, tempo para o descanso e horários livres para que a criança pudesse fazer o que quisesse. A proposta de Descoeudres abarca os “centros de interesses”, em alusão a Decroly, que destacam a necessidade de observar os interesses das crianças e trabalhar com atividades da vida real.
Outro aspecto relevante refere-se ao acompanhamento dos alunos após o término dos estudos nas classes especiais, em obras extraescolares como uma medida de apoio aos retardados. A autora menciona a criação de “Associações de Patronato ou de proteção às crianças retardadas”, que encaminhavam os alunos e os acompanhavam nas colônias de trabalho22, oficinas de costura, serraria, sapataria, entre outras. Essas associações forneciam assistência, como a distribuição de roupas e remédios aos mais necessitados. Era comum designar um padrinho para cada criança, que velasse pelo seu bem físico, intelectual e moral.
A organização dos sistemas escolares, conforme descrita por Descoeudres, enfatiza a necessidade de um ambiente educacional adaptável que atenda às diversas necessidades dos alunos. Na próxima subseção, exploramos os princípios fundamentais para o ensino especial, detalhando as premissas básicas para o funcionamento pedagógico desses sistemas, sobretudo das classes especiais.
3.3 PRINCíPIOS FUNDAMENTAIS PARA O ENSINO ESPECIAL
Descoeudres (1968) apresenta cinco princípios fundamentais para o ensino especial, projetados para oferecer uma estrutura educacional que promova a autonomia, a interação sensorial, a conexão com a vida prática, a individualização do ensino e a aplicação dos conhecimentos adquiridos.
O primeiro princípio é a atividade própria do aluno, que consiste na possibilidade de a criança agir corporal, manual e intelectualmente, “ter liberdade de agir por si mesmo e achar por si mesmo” (Descoeudres, 1968, p. 51); criar diferentes oportunidades para a atividade da criança. Não se trata de uma disciplina rígida, mas sim de oferecer um ambiente adequado para atividades variadas, em que “as crianças não devem permanecer imóveis nos bancos durante muitas horas” (p. 52). Elas deveriam excursionar pela cidade, aproveitar os jardins, pátios e outros ambientes. A autora destaca que esse princípio enfatiza a importância de proporcionar às crianças experiências e aprendizagens por meio de suas próprias ações, seja no âmbito corporal, manual ou intelectual.
O segundo princípio que rege o ensino especial é a educação sensorial e a intuição. Para a autora, as crianças das classes especiais, mais do que as crianças das classes comuns, precisam de um ensino intuitivo intenso. Conforme Descoeudres (1968), é necessário propor atividades sensoriais variadas que estimulem todos os sentidos, pois essas ginásticas especiais são “portas de entrada da inteligência” (p. 53). As experiências sensoriais ajudam as crianças a entenderem conceitos de forma mais concreta e a promover o desenvolvimento de habilidades cognitivas e emocionais.
O terceiro princípio refere-se à união estreita com a vida, partindo das necessidades da criança e criando diferentes possibilidades de aproximá-la da vida. Isso envolve utilizar plantas, animais, minerais e objetos cotidianos, procurando aproximar-se ao máximo de tudo que é concreto e funcional. Descoeudres enfatiza a importância de conectar o ensino às experiências concretas e funcionais do cotidiano das crianças e defende que o processo educativo deve partir das necessidades e dos interesses delas, aproximando o máximo possível do que é tangível e prático em seu ambiente. Esse enfoque visa integrar a educação às realidades vivenciadas pelas crianças, facilitando a aplicação prática do que é ensinado.
O quarto princípio refere-se à individualização do ensino. Não se trata de o professor estar a sós com a criança, mas de planejar o ensino considerando as necessidades individuais de cada aluno. Em vez de ensinar todos da mesma maneira, é necessário considerar as diferenças físicas, intelectuais e emocionais de cada criança e planejar as aulas de modo que cada uma possa atingir seu potencial máximo.
O quinto princípio refere-se ao caráter utilitário do ensino: descobrir em cada criança suas aptidões, desenvolvê-las e orientá-las para aplicações práticas. “Cumpre ter em vista a utilização imediata, na vida prática, das noções adquiridas durante o ensino” (Descoeudres, 1968, p. 55). Esse princípio sugere que o ensino deve identificar as aptidões e as habilidades individuais de cada criança para desenvolvê-las. O objetivo é que, além de acadêmico, o aprendizado possa ser aplicado imediatamente em situações práticas e reais.
3.4 A FORMAçãO DO MESTRE-ESPECIAL (PROFESSOR)
Descoeudres aborda a complexidade e os desafios da formação de professores para o ensino especial, por ela denominados mestres-especiais. A autora salienta que, embora reconhecesse que a formação de professores para o ensino especial fosse ainda um desafio não resolvido, ela argumenta que esse trabalho deveria ser escolhido, e não imposto, pois requeria uma personalidade adequada. Isso não diminuía a importância da preparação que, para ser adequada, devia ser composta por três elementos principais: o científico, o técnico e a prática.
O primeiro elemento é a formação científica do professor: necessidade de que os professores de ensino especial tivessem conhecimento em áreas científicas relevantes para o entendimento das necessidades e características dos alunos com deficiência. Isso incluía noções básicas de psiquiatria, psicologia e pedagogia e permitia que desenvolvessem estratégias de ensino individualizadas. O professor deveria estar ciente das leis e regulamentações relacionadas ao ensino especial para garantir que suas práticas estivessem em conformidade com elas.
O segundo elemento refere-se à formação técnica: envolvia trabalho manual e trabalhos froebelianos23, que, para Descoeudres (1968), eram fundamentais para o ensino especial. Tratava-se de competências práticas que permitiam aos professores ensinarem habilidades manuais aos alunos. Isso poderia incluir atividades como artesanato, carpintaria ou qualquer outro tipo de atividade que envolvesse o uso das mãos. O objetivo era promover a coordenação motora, a criatividade e a concentração dos estudantes.
O terceiro elemento é a formação prática: envolvia estágios em classes especiais e internatos, nos quais os professores poderiam interagir diretamente com alunos com deficiência, o que lhes permitia desenvolver habilidades de adaptação e observação, essenciais para lidar com a diversidade de desafios do ambiente escolar. A experiência prática era fundamental para consolidar a preparação científica e técnica, garantindo que os professores estivessem bem equipados para atender às necessidades únicas de seus alunos.
4 ASPECTOS PEDAGóGICOS DA PROPOSTA DE DESCOEUDRES PARA O ENSINO ESPECIAL
Esta categoria de análise versa sobre as questões pedagógicas do ensino especial na perspectiva de Descoeudres, ao abordar a educação psico-sensório-motora, a educação prática e manualidades, a educação das linguagens e a educação moral.
4.1 A EDUCAçãO PSICO-SENSóRIO-MOTORA
Descoeudres (1968) propõe atividades psico-sensório-motoras, como jogos e brincadeiras, para integrar e desenvolver as habilidades motoras, sensoriais e cognitivas das crianças. Ela destaca a importância da atenção nesse processo, especialmente para crianças atípicas, que têm dificuldade em mantê-la. Por isso, criou atividades que estimulassem os sentidos e melhorassem a atenção visual, auditiva e motora. A autora argumenta que os exercícios sensoriais também treinam a atenção, desenvolvendo a percepção, a observação e a inteligência. Inspirada em Decroly, Descoeudres apresenta exercícios para educar o sentido visual, utilizando imagens, formas geométricas e materiais concretos. Essas atividades incluem dominó de cores e formas, jogo das sombras, memória, mímicas e sons, sendo especialmente úteis em momentos de fadiga.
Descoeudres (1968) descreve várias atividades para a educação do sentido auditivo, tais como: jogo de discriminação dos sons, que requer reconhecer, de olhos fechados, em que matéria está batendo o martelo; e passeio dos sons, no qual é necessário discriminar a voz do colega que está cantando de costas, entre outros. Segundo a autora, a educação musical também se agrega à educação desse sentido, e é relevante que toda classe especial tenha ao menos um instrumento para explorar com as crianças.
A referida educadora destaca que as crianças do ensino especial apresentavam lacunas acentuadas no desenvolvimento tátil, assim como em outros sentidos, o que demandava atividades específicas para seu estímulo. Por isso, ela propôs cerca de 20 exercícios viso-motores voltados para a educação do sentido tátil e muscular. Entre os exemplos mencionados estão o jogo do objeto secreto, o emparelhamento de tecidos e a classificação de objetos, todos focados na discriminação tátil e realizados de olhos vendados. Também são relatados o jogo dos parafusos e os cilindros de Montessori.
Exercícios para o desenvolvimento dos sentidos gustativo e olfativo também são destacados por Descoeudres. Esses exercícios ajudavam a evitar sabores e odores desagradáveis, além de contribuir para o enriquecimento do vocabulário relacionado a esses sentidos. A autora exemplifica o uso de atividades de reconhecimento de alimentos pelo gosto e de frutas, legumes e condimentos pelo olfato, sem a intervenção de outros sentidos, como a visão e o tato, para promover a compreensão sensorial.
No que diz respeito ao desenvolvimento motor, Descoeudres ressalta o papel essencial da ginástica para crianças com deficiência, enfatizando seus benefícios físicos, intelectuais e morais. A autora argumenta que o exercício sistemático dos músculos e sentidos favorecia o desenvolvimento cognitivo. A ginástica era subdividida em natural e metódica. A ginástica natural incluía recreios, corridas, jogos com bolas, esconderijos, canções dramatizadas, jardinagem e tarefas cotidianas, como fechar janelas ou mover cadeiras. A ginástica metódica englobava a ginástica sueca, com movimentos simples e precisos, e a ginástica rítmica, que envolvia marchas ritmadas, canto, dança e dramatização ao som de música, promovendo alegria e emoção. Descoeudres também sugeria exercícios especiais de atenção e vontade, como os propostos por Binet24, e ginástica para as mãos, com brincadeiras que envolviam movimentos variados.
Descoeudres (1968) argumenta que os exercícios propostos especificamente são uma rica fonte de atividades. Ela observa a dificuldade em delimitar o trabalho manual da ginástica das mãos, pois os exercícios de um poderiam se assemelhar aos do outro. Na subseção seguinte, abordamos de maneira específica o trabalho manual.
4.2 EDUCAçãO PRáTICA E MANUALIDADES
Descoeudres (1968) enfatiza a relevância do trabalho manual no ensino especial, argumentando que atividades dessa natureza são cruciais para o desenvolvimento motor, cognitivo, moral e social das crianças. Essas atividades deviam ser adaptadas às capacidades individuais dos alunos, criando um ambiente educacional inclusivo e estimulante. Além disso, a autora valorizava a abordagem prática e lúdica dos trabalhos froebelianos como uma estratégia importante para o desenvolvimento integral das crianças. Ela também ressaltava que os benefícios da ginástica em relação à motricidade e à inteligência se aplicavam igualmente ao trabalho manual, que oferecia diversas vantagens, a saber:
a) psicológica e fisiológica: contribui para o desenvolvimento das habilidades motoras. Psicologicamente, essas atividades podem aumentar a autoestima e a autoconfiança ao permitir que os alunos vejam resultados concretos de seus esforços, o que é especialmente benéfico para aqueles com deficiência ou outras condições atípicas;
b) moral: pode ensinar valores como paciência, perseverança e responsabilidade. Quando os alunos completam uma tarefa manual, eles aprendem sobre o valor do trabalho árduo e do compromisso, além de desenvolverem um senso de orgulho e satisfação pelo trabalho bem-feito;
c) pedagógica: do ponto de vista educacional, oferece uma maneira prática para aprender, permitindo que os alunos apliquem conhecimentos teóricos em contextos reais;
d) prática/utilitária: prepara os alunos para a vida fora da escola, ensinando habilidades que podem ser usadas em tarefas do dia a dia e em futuras oportunidades de trabalho. Essas habilidades práticas são essenciais para a independência e a integração social dos alunos com necessidades específicas.
Entre as diferentes modalidades de trabalho manual, a autora menciona inúmeras: desabotoar uma roupa, abrir uma caixa, desfazer um nó; modelagem, alinhavos, enfiamento de contas de madeira, recorte/colagem, dobraduras, construção de jogos educativos, de objetos diversos em papel, papelão, carretéis, arames, cordão, caixas de fósforos; tecelagem, bordado, costura, crochê e tricô, cestaria, cartonagem, trabalho com madeira natural e jardinagem.
4.3 EDUCAçãO DAS LINGUAGENS
Descoeudres apresenta diferentes tipos de linguagens como necessárias ao ensino especial: oral, escrita, desenho, geografia e linguagem dos números. A autora enfatiza a importância da linguagem oral no desenvolvimento pedagógico e social das crianças, destacando a necessidade de proporcionar diversas formas de expressão sem causar sentimento de inferioridade em relação a outros alunos. Ela critica o verbalismo excessivo e a imposição de silêncio nas escolas, defendendo o uso de exercícios de respiração e atenção para estimular o desejo de falar. Além disso, a autora sugere jogos de leitura e ortografia que combatiam o verbalismo, mas alerta para não priorizar a ortografia em detrimento da linguagem.
Sobre o ensino da leitura, Descoeudres o analisa a partir de três perspectivas principais. Primeiro, ela aborda os momentos psicológicos envolvidos no processo de leitura, incluindo a percepção de sinais visuais, a percepção auditiva e a fusão de diferentes sentidos, direcionando diversos jogos educativos para cada um desses momentos. Em seguida, reflete sobre os métodos de ensino da leitura, distinguindo o método natural/sincrético, que partia da palavra, e o alfabético/fonético, que partia do som, apresentando jogos adequados a cada abordagem. A autora defende a flexibilidade na escolha dos métodos, adaptando-os ao perfil de aprendizagem de cada criança, e alerta que o ensino da leitura não deve começar cedo demais.
Por último, a autora discute o ensino da leitura para crianças com dificuldades cognitivas, recomendando o uso de jogos visuais antes de introduzir a percepção auditiva, já que as percepções visuais precedem as auditivas no desenvolvimento infantil. Exemplos de atividades incluem jogos sensoriais que ajudam a diferenciar os sons e a promover a atenção auditiva, como o uso de histórias em que as crianças reagem a sons específicos. A autora defende que a combinação de exercícios visuais, auditivos e sensoriais facilita o processo de alfabetização, experiência que ela própria implementou com seus alunos. Descoeudres (1968) reitera que “é mister formar, mesmo em métodos opostos, o que convém aos diferentes tipos intelectuais25” (p. 202).
Descoeudres (1968) também analisa as dificuldades enfrentadas no ensino da linguagem escrita para crianças com deficiência, destacando que elas precisam de um esforço conjunto considerável entre mestre e aluno para aprender letras e produzir textos. As dificuldades estão relacionadas à coordenação, à memória auditiva e ao raciocínio. Para minimizá-las, a autora sugere estratégias como o uso de letras de imprensa em papel sem pauta, materiais concretos e atraentes (jogos de ortografia, desenho e diários de escrita) e letras móveis. Ela também desaconselha a soletração para crianças visuais, enfatizando a importância da observação em vez da compreensão. Quanto à cópia, embora necessária, deve ser utilizada com cautela para evitar que se torne um recurso preguiçoso para o professor. A autora propõe o uso do diário, com correções diárias, como alternativa vantajosa ao ditado e à cópia.
Para Descoeudres (1968), o jogo “é fator de interesse e de alegria para as crianças” (p. 224); permite concretizar noções abstratas para escrever e possibilita o aprendizado com mais exatidão da linguagem. Entre os jogos apresentados, a autora menciona: a classificação com ou sem imagens; o jogo do plural; o jogo dos verbos; o jogo de conjugação; o jogo de pontuação; o jogo preparatório para uso do dicionário; entre vários outros.
A educadora também compartilha exemplos do uso do desenho no ensino da ortografia, como ilustrar frases e realizar autoditados com desenhos, que ajudam a desenvolver a memória visual e espacial dos alunos. Em suas experiências com crianças, Descoeudres (1968) enfatiza o uso do diário e de cartas como formas de “afastarmo-nos dos trilhos do ensino gramatical à velha moda” (p. 232) e de permitir que as crianças expressem livremente seu cotidiano. Ela observa que a “redação livre permite estabelecer o contato entre a escola - esta escola pobre que durante tanto tempo se manteve afastada da vida - e a vida tão rica que cerca por todos os lados” (p. 244).
Descoeudres (1968) destaca o desenho espontâneo como uma forma essencial de linguagem infantil, sendo muitas vezes a primeira maneira pela qual a criança expressa seus pensamentos, o que o torna relevante no ensino especial. O desenho auxilia em trabalhos manuais e exercícios de ginástica das mãos, além de desenvolver a atenção visual, a observação, o senso espacial e a rapidez de percepção. A autora propõe diversas atividades, incluindo desenho livre, de memória, de observação e de histórias, músicas e passeios, bem como técnicas com recortes e colagens.
Outra forma de linguagem era a espacial-geográfica, necessária ao ensino especial. Segundo Descoeudres (1968), “quantas lições interessantes podemos aproveitar na vizinhança: uma casa em construção, uma pesca, a construção de uma rua (...)” (p. 270). A autora destaca a importância de aproveitar lições do ambiente local, permitindo que as crianças explorem, observem e manuseiem objetos ao seu redor. A presença de mapas e plantas na sala de aula é considerada essencial, devendo ser utilizados de forma prática em atividades como visitas e localização de correspondências.
Por último, Descoeudres (1968) aborda a linguagem dos números, ao destacar que a matemática deve ser ensinada de maneira concreta, a partir de situações práticas do cotidiano. Ela sugere atividades como jogos e situações-problema com uso de materiais concretos, aconselhando evitar métodos verbais abstratos no início do aprendizado. Além disso, a autora propõe o uso da ginástica rítmica, do desenho e de atividades manuais, sugerindo jogos variados como recursos valiosos para enfrentar diferentes dificuldades no aprendizado.
Para o trabalho com cálculo, Descoeudres (1968) orienta seguir três estágios: atividades concretas, combinação de concreto e abstrato e, por fim, o estágio abstrato. Para facilitar essa transição, ela sugere o uso da “ginástica dos dedos” e a repetição com variações de recursos, a fim de auxiliar crianças com dificuldades de memória. O ensino de conceitos como tempo, medidas e operações matemáticas deve estar relacionado a situações reais, promovendo habilidades funcionais. Descoeudres incentiva a criação de problemas práticos que estimulem o raciocínio e a criatividade. Ela também destaca a integração de diferentes linguagens e o ensino de valores morais e éticos por meio de vivências e exemplos práticos.
4.4 EDUCAçãO MORAL
Descoeudres (1968) defende que a educação moral deve ser integrada a todas as atividades escolares, promovendo a vivência prática de valores. A moral, segundo a autora, não era apenas teórica, mas está presente nas ações cotidianas, incentivando os alunos a serem membros ativos e conscientes de suas comunidades. Descoeudres (1968) aborda aspectos da educação moral baseando-se em suas próprias experiências com as crianças “retardadas”, assim como nas orientações sugeridas nos demais capítulos da obra. Segundo a autora, “despertar o zelo e o interesse das crianças, eis a educação moral por excelência” (p. 357).
A autora sublinha que temas como educação em valores, alcoolismo, paz e biografias conectam o ensino à vida real, formando cidadãos conscientes. O professor tem um papel crucial, não apenas no conteúdo que ensina, mas na forma como representa moralmente esses valores. Descoeudres (1968) chama atenção para o fato de que o professor deve trabalhar com gosto com as crianças e “que tenha autoridade, mas, em maior grau ainda, alegria e entusiasmo” (p. 353). Para tanto, a autora menciona a influência da personalidade moral do professor sobre as crianças, citando Paul Passy26 (1859-1940): “A reputação do professor é a fonte da vida espiritual na sua escola. A impressão boa ou má que seus alunos recebem, provém menos do que ele diz, que do que ele é” (Descoeudres, 1968, p. 354). Por isso, a verdade, o bem, a justiça, a virtude e o amor deviam ser realidades sólidas e corporificadas na figura do mestre.
5 CONCLUSõES
A análise da obra de Alice Descoeudres revela a profundidade de sua proposta para o ensino especial de sua época. A autora evidencia um modelo de ensino que se distingue por sua abordagem holística e integradora, reconhecendo a complexidade das necessidades das crianças com deficiência ou outras condições atípicas. A introdução de seu trabalho no Brasil destaca a relevância e a aplicação de seus métodos em contextos diversos, adaptando-se às realidades locais e contribuindo para o pioneirismo da Educação Especial no país.
A pesquisa historiográfica realizada com o objetivo de compreender a proposta de ensino especial desenvolvida por Alice Descoeudres oferece uma visão panorâmica e, ao mesmo tempo, específica desse ensino. Ao explorar as questões gerais da organização, o estudo evidencia a necessidade de classes especiais que, embora sigam princípios semelhantes às classes comuns, sejam adaptadas às necessidades específicas dos alunos. Trata-se de um sistema que incorpora princípios fundamentais como a personalização do ensino e a formação especializada de professores.
Nas questões pedagógicas, a obra destaca estratégias que, para a época, podiam ser consideradas inovadoras, como as práticas de educação psico-sensório-motora e manualidades, além de abordar a educação das linguagens e a educação moral. Essas estratégias refletem um entendimento avançado das múltiplas dimensões do aprendizado, enfatizando a necessidade de métodos que engajem os alunos de forma prática e significativa. A ênfase dessas práticas enfoca a importância de valores éticos e sociais na formação dos estudantes, preparando-os para a vida em comunidade.
A introdução das ideias de Descoeudres no Brasil representou um marco importante para o desenvolvimento do ensino especial no país. Sua obra impulsionou práticas pedagógicas que foram adaptadas e aprimoradas ao longo dos anos. A Sociedade Pestalozzi de Minas Gerais desempenhou um papel fundamental nesse processo, ao facilitar a disseminação e a implementação dos métodos de Descoeudres nas escolas brasileiras.
Em suma, a obra de Alice Descoeudres permanece como um ponto de referência essencial na história da Educação Especial, tanto no contexto suíço quanto no brasileiro. Sua abordagem abrangente e centrada no aluno continua a inspirar educadores e pesquisadores na busca por métodos que respeitem e valorizem a diversidade das capacidades humanas.
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Fundado em 1980 para preservar o acervo e a memória de Helena Antipoff. A disponibilização para a pesquisa do acervo documental que pertenceu à educadora está atualmente organizada em duas seções: na Sala Helena Antipoff, na Biblioteca Central da UFMG e na Fundação Estadual Helena Antipoff (FHA), localizada no município de Ibirité, Minas Gerais (Campos, 2018).
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Um dos precursores dos métodos ativos fundamentados no protagonismo do aluno na aquisição de seus conhecimentos com ênfase em seus interesses e em suas necessidades.
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Fundador do Instituto Jean Jacques Rousseau (IJJR). Médico e psicólogo suíço. Referência para os educadores no mundo nas primeiras décadas do século XX (Campos, 2012).
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Uma espécie de escola de aplicação do IJJR, onde eram discutidos e aplicados os conceitos da Educação Nova, baseada em uma psicologia funcional e em busca de uma pedagogia experimental e menos intuitiva (Domingues, 2011).
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Instituída com o objetivo de elevar o nível de formação dos professores primários, atendendo aos movimentos educacionais progressistas do início do século XX (Borges, 2015a).
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Impresso pedagógico oficial criado pelo governo mineiro para disseminar os princípios e as diretrizes da educação da época (Borges et al., 2020).
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Professor, tradutor, juiz de direito e bibliófilo mineiro. Um dos fundadores da Academia Mineira de Letras, cadeira número 6. Na época, membro da SPMG.
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Professora e colaboradora de Antipoff no trabalho de orientação ao uso da ortopedia mental nas classes especiais de Belo Horizonte. Na época, membra da SPMG.
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Manuel Bergström Lourenço Filho (1897-1970) foi um educador, psicólogo e teórico da educação brasileira, reconhecido como um dos principais expoentes do movimento escolanovista no país. Além disso, foi um dos signatários do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, contribuindo de forma significativa para a renovação educacional no Brasil.
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A primeira classe especial foi fundada em Halle, na Alemanha, em 1863, e a primeira classe especial na Suíça, foi aberta em Coire, em 1881 (Descoeudres, 1968).
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Visava a criação de uma educação científica e influenciou grandemente a criação de um sistema de Educação Especial no Brasil a partir dos anos de 1930, principalmente pelas obras de Antipoff.
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Psicólogo francês que se destacou por suas contribuições significativas ao campo da psicologia experimental. Sua contribuição mais notável foi a criação da primeira escala de inteligência, desenvolvida com seu colaborador Théodore Simon, conhecida como a Escala Binet-Simon.
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Médico e psicólogo francês amplamente reconhecido por seu trabalho pioneiro na criação da primeira escala de inteligência em parceria com Alfred Binet.
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18
Pessoas com deficiência intelectual mais grave. As pessoas categorizadas como “idiotas” eram vistas como incapazes de realizar atividades básicas de autocuidado e necessitavam de cuidados constantes.
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Pessoas com deficiência intelectual moderada. As pessoas categorizadas como “imbecis” poderiam aprender algumas habilidades básicas de autocuidado e comunicação, mas ainda precisavam de assistência na vida diária.
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Refere-se às pessoas com deficiência intelectual leve. As pessoas nessa categoria poderiam aprender a ler, escrever e realizar tarefas, e muitas poderiam viver com algum grau de independência.
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Foi desenvolvida no início do século XX por Alfred Binet e Théodore Simon. Criada inicialmente em 1905, foi a primeira tentativa sistemática de avaliar o nível de inteligência humana. Projetada para identificar crianças que necessitavam de assistência educacional especial na França, evoluiu ao longo dos anos e foi a base para o desenvolvimento de testes de QI subsequentes, incluindo a escala de inteligência Stanford-Binet.
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Oferecia oportunidades de trabalho produtivo e educativo para as pessoas com deficiência. Essas colônias tinham como objetivo principal a integração social e econômica dos indivíduos.
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23
Trabalhos são baseados nos princípios do educador Friedrich Froebel (1782-1852), que enfatizava o aprendizado por meio do jogo, da exploração e da atividade prática.
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24
Por exemplo, transportar um recipiente cheio de um lado para o outro, sem derramar; encarar a sério um colega que se esforça para fazer-nos rir etc.
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25
Descoeudres (1968) refere-se à diversidade de perfis de aprendizagem e capacidades intelectuais entre as crianças.
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Linguista francês fundador da Associação Fonética Internacional em 1886. Ele teve participação na elaboração do alfabeto fonético.
Disponibilidade de dados
Todo o conjunto de dados que deu suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
08 Dez 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
21 Nov 2024 -
Revisado
16 Jan 2025 -
Aceito
10 Mar 2025


Nota. Fotografia de Alice Descoeudres extraída de Personnalités marquantes, da