Open-access PRÁTICAS INCLUSIVAS NA FORMAÇÃO DE PEDAGOGAS(OS): DIÁLOGOS EMANCIPATÓRIOS1

INCLUSIVE PRACTICES IN PEDAGOGUE’S TRAINING: DIALOGUES FOR EMANCIPATION

RESUMO

O objetivo deste estudo foi investigar o conhecimento de licenciandas(os) em Pedagogia de uma instituição pública do norte do Estado do Rio de Janeiro sobre práticas inclusivas na concepção do Desenho Universal. Trata-se de uma pesquisaação de natureza qualitativa e cunho formativo, cuja principal referência teórica e metodológica foi a dialogicidade proposta por Paulo Freire. Para o desenvolvimento da pesquisa, foram realizados dois grupos focais e três encontros dialógicos formativos, com temáticas definidas com as participantes ao longo do processo. Entre os resultados alcançados, percebeu-se que as estudantes apresentaram uma compreensão modesta sobre as práticas inclusivas na concepção do Desenho Universal, porém demonstraram potentes reflexões sobre a importância da participação de todas as pessoas na sociedade. Elas questionaram os processos de exclusão vividos em sua história pessoal e observados em seu cotidiano, evidenciando seu pensar crítico-problematizador. Em uma perspectiva freiriana, considera-se que, embora as estudantes não apresentassem conhecimentos aprofundados sobre a temática dos encontros, elas demonstraram o desejo de “ser mais”, com abertura para a transformação da realidade educacional e para a construção de uma educação libertadora para todas as pessoas. Destacaram, também, a metodologia dos encontros, evidenciando a potência transformadora da experiência formativa.

PALAVRAS-CHAVE:
Educação inclusiva; Direito à; educação; Formação; Pedagogia; Desenho Universal.

ABSTRACT

The aim of this study was to investigate the knowledge of Pedagogy pre-service teaching undergraduate students from a public institution in the northern region of the State of Rio de Janeiro, Brazil, about inclusive practices in the conception of Universal Design. This is an action research of a qualitative nature with a formative scope, whose main theoretical and methodological reference was the dialogicity proposed by Paulo Freire. To develop the research, two focus groups and three formative dialogical encounters were held, with themes defined with the participants throughout the process. Among the results achieved, it was noticed that the students presented a modest understanding of inclusive practices within the conception of Universal Design, but they demonstrated potent reflections on the importance of the participation of all people in society. They questioned the processes of exclusion experienced in their personal history and observed in their daily lives, highlighting their critical-problematizing thinking. From a Freirean perspective, it is considered that, although the students did not have in-depth knowledge about the theme of the encounters, they demonstrated the desire to “be more”, with an openness to the transformation of the educational reality and to the construction of a liberating education for all people. They also highlighted the methodology of the encounters, emphasizing the transformative potency of the formative experience.

KEYWORDS:
Inclusive education; Right to education; Training; Pedagogy; Universal Design.

1 INTRODUÇÃO

Frente ao desafio de assegurar o direito à educação para todas as pessoas no âmbito das políticas públicas, é importante destacar que a conjuntura nacional contemporânea é constituída por inúmeras barreiras e entraves que intensificam as diferenças sociais e econômicas, potencializando a desigualdade e a opressão da população historicamente marginalizada, em especial pobres, negros, pessoas com deficiência, mulheres e população LGBTQIAP+5.

O direito à educação está alicerçado em legislações, e estas decorrem dos enfrentamentos vividos pelos movimentos sociais e da influência de documentos e acordos internacionais dos quais o Brasil é signatário. Entre elas, podemos destacar o Decreto nº 6.949, de 25 agosto de 2009, que promulgou a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova Iorque, em 30 de março de 2007, com status de emenda constitucional. Vale ressaltar, ainda, que, nesse Decreto, a concepção de Desenho Universal se torna regra de caráter geral, devendo se tornar referência para o estabelecimento de políticas públicas em todos os níveis, inclusive no âmbito educacional.

O Desenho Universal é uma proposta que surgiu no campo da Arquitetura com o objetivo de criar serviços, produtos e ambientes acessíveis a todas as pessoas. Na educação, essa proposta torna-se ainda mais importante e tem sido difundida como Desenho Universal para a Aprendizagem (DUA). Conforme Romano et al. (2023), trata-se de uma “abordagem teórico-metodológica” que

visa o acesso ao currículo para todos/as, mesmo que de maneiras variadas, pois sua prática considera a heterogeneidade da sala de aula nos seus modos diversificados de aprender, valorizando a maneira como os estudantes expresam seus conhecimentos e a melhor forma para estarem envolvidos e motivados no aprendizado. (p. 102)

Assegurar o direito à educação vai muito além de garantir o acesso ao currículo de forma acessível. Diz respeito à promoção de uma real participação para todas as pessoas, combatendo principalmente as barreiras atitudinais que separam os indivíduos e impedem o desenvolvimento, a aprendizagem e a emancipação das pessoas com deficiência. Esse é o paradigma inclusivo no qual este artigo se fundamenta.

Considerando a importância da atuação docente na luta pela garantia do direito à educação para todas as pessoas, acreditamos que esse paradigma inclusivo precisa estar presente em todo o currículo da formação de professores, de forma integrada e transversal. Em outras palavras, entendemos que a perspectiva inclusiva deve perpassar toda a formação da(o) pedagoga(o), de forma que se ampliem as possibilidades de discussão e reflexão sobre essa temática, culminando na transposição de paradigmas excludentes sobre a educação das pessoas com deficiência.

Para isso, é fundamental que se questione sob quais perspectivas se fundamenta essa formação. Consideramos que a concepção do Desenho Universal e o modelo social da deficiência, alicerçados nos saberes do campo da Educação Especial, poderão trazer novas perspectivas para esse processo formativo. Compreendemos, tal como Pletsch (2020), a Educação Especial como “uma modalidade de ensino com técnicas e recursos especializados próprios” (p. 66) e como uma “área interdisciplinar de pesquisa”, destacando o seu caráter transversal à Educação Básica e Superior.

Tendo em vista os documentos nacionais que versam sobre a formação de pedagogas(os), identificamos alguns modestos avanços, mas há de apontarmos alguns retrocessos. Segundo Barreto (2010), o estudo da temática “educação inclusiva” já era insuficiente no curso de Pedagogia desde as Diretrizes Curriculares Nacionais de 2006 (Resolução nº 1, de 15 de maio de 2006), o que podia ser observado na realidade com currículos com poucas disciplinas que abordavam a educação das pessoas com deficiência e sem muito aprofundamento.

Também importa considerar o grande retrocesso que a Resolução no 2, de 20 de dezembro de 2019, representou para a formação de pedagogos, seja pela falta de divulgação e debate em sua construção, seja na desconstrução do documento orgânico para a formação de professores, proposto pela Resolução nº 2, de 1º de julho de 2015. A Resolução no 2/2019 foi marcada pela retomada da proposta neoliberal de formação por competências e habilidades, pragmática e padronizada (Gonçalves et al., 2020).

As propostas dessa Resolução pouco se aproximaram da Meta 4 do Plano Nacional da Educação - PNE (Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014) no que diz respeito à redução das desigualdades e à valorização da diversidade. A estratégia apontada no item 4.16 dessa Meta 4 versa exatamente sobre a importância da temática inclusão escolar nos cursos de formação inicial e continuada de professores, com vistas à universalização do acesso à educação básica pelas pessoas com deficiência e demais sujeitos que representam o público da Educação Especial.

Observamos que as diretrizes propostas em seu texto buscam uma organização detalhada do currículo, padronizando os cursos, limitando e precarizando a formação docente, apresentando-se como um retrocesso para as propostas de inclusão escolar, sobretudo se analisarmos sob a concepção do Desenho Universal. As diretrizes não levam em conta as diferentes formas de aprender nem a importância da garantia da acessibilidade em todo o processo educacional, tampouco consideram o protagonismo das pessoas com deficiência nas discussões e propostas de inclusão escolar.

Frente aos desafios, encontramos na obra de Paulo Freire respostas sobre caminhos possíveis para a formação de pedagogas(os). Com esse autor, compreendemos que a(o) pedagoga(o) tem o papel social de não se acomodar e se adaptar diante das desigualdades, mas, sim, acreditar em um sonho possível de mudança e transformação por uma sociedade menos excludente. Destacamos, aqui, como característica do papel social da(o) pedagoga(o), a disponibilidade para o diálogo, que prevê o respeito às diferenças.

A dialogicidade é a essência da educação emancipatória, sendo ela um ato de criação, transformação e reflexão, que se torna um meio pelo qual as pessoas constroem uma consciência crítica sobre o mundo, desenvolvendo, em comunhão, uma troca de ideias que possibilitam a aprendizagem (Freire, 2001, 2006, 2021). Além disso, a partir de Freire (2021), consideramos que a investigação de caráter conscientizador é pedagógica, pois a educação autêntica é investigação do pensar.

Nessa direção, realizamos uma pesquisa-ação de natureza qualitativa e de cunho formativo, cuja principal referência teórica e metodológica foi a dialogicidade proposta por Paulo Freire. Este artigo apresenta um relato dessa pesquisa, que parte da dissertação de mestrado intitulada Práticas inclusivas na concepção do Desenho Universal: diálogos com licenciandas(os) em Pedagogia (Rodrigues, 2023), de uma instituição pública do Norte do estado do Rio de Janeiro, realizada no ano de 2022 com estudantes do 3º período de Pedagogia.

Ressaltamos que o objetivo desse estudo foi investigar o conhecimento dessas(es) licenciandas(os) em Pedagogia sobre práticas inclusivas na concepção do Desenho Universal. Nesta pesquisa, entendemos práticas inclusivas como práticas de ensino-aprendizagem que têm como finalidade assegurar o direito à educação de todas as pessoas.

A referida investigação partiu de nossas inquietações acerca da necessidade de refletir e compreender a relevância de práticas inclusivas na formação inicial de pedagogas(os), a fim de oportunizar reflexões sobre a atuação dessas(es) trabalhadoras(es) no processo de escolarização do público da Educação Especial e, mais especificamente, das pessoas com deficiência. Com base em pesquisas anteriores e observações do cotidiano escolar, levamos em conta os desafios em assegurar o direito à educação das pessoas com deficiência e, ainda, as inseguranças de muitas(os) trabalhadoras(es) da educação com relação a essa temática.

Para o desenvolvimento da pesquisa, foram realizados dois grupos focais e três encontros dialógicos formativos, com temáticas definidas com as participantes e o participante ao longo do processo. Para a realização dos encontros formativos, partimos da ideia de que a realização de práticas inclusivas pressupõe uma educação dialógica, como prática de liberdade, tal como defendida por Paulo Freire. Compreendemos que essa educação é pautada pelo protagonismo de todas as pessoas, de forma que elas possam ocupar espaços de decisão, tenham liberdade e o direito de ser e estar em todos os espaços com acessibilidade, conforme preconizam os princípios do Desenho Universal.

A seguir, apresentamos os aspectos metodológicos da pesquisa.

2 A DIALOGICIDADE COMO METODOLOGIA

Para a realização do presente trabalho, desenvolvemos uma pesquisa-ação de natureza qualitativa (Bogdan & Biklen, 1994), de cunho formativo, que teve como principal referência teórica e metodológica a dialogicidade proposta por Paulo Freire (2001, 2006, 2021).

Ao pensarmos sobre como poderíamos concretizar essa pesquisa-ação de cunho formativo, entendemos que é função da educação problematizar os conteúdos, não os dissertar ou entregá-los como algo pronto (Freire, 2001). Destacamos que, na prática problematizadora dialógica, os conteúdos não são apresentados de forma estanque; eles são constituídos a partir da visão de mundo das(os) educandas(os). Por esse motivo, esses conteúdos são sempre renovados e ampliados no processo (Freire, 2021).

A dialogicidade proposta por Freire (2021) tornou-se nossa escolha metodológica por acreditarmos que a ação transformadora da educação se encontra no diálogo e na práxis que, a partir da experiência de ação e reflexão, possibilita ao sujeito assumir o compromisso da mudança. A dialogicidade propõe a participação ativa, a colaboração e a comunhão como forma de aprendizagem (Freire, 2001). Desse modo, a comunicação dialógica implica reciprocidade, e nela não há sujeitos passivos (Freire, 2001). Ao mesmo tempo, as pessoas devem se sentir como “sujeitos do seu pensar” (Freire, 2021, p. 141). Consideramos ainda, segundo essa perspectiva, que “toda investigação temática de caráter conscientizador se faz pedagógica e toda autêntica educação se faz investigação do pensar” (p. 142).

Partindo dessas premissas e das proposições de Freire (2001, 2006, 2021) sobre a dialogicidade, construímos nosso caminho metodológico considerando os seguintes passos norteadores: os pesquisadores devem iniciar a investigação construindo um clima de confiança com as(os) participantes, explicitando os objetivos envolvidos. Posteriormente, criam situações para que os sujeitos falem sobre sua visão de mundo, seus anseios e suas esperanças. Nesse sentido, é fundamental que as(os) participantes pensem criticamente sobre sua forma de ser e estar no mundo.

A partir daí, identificam-se os temas geradores, sobre os quais se sustentará a ação formativa. A definição de temas deve ser elaborada almejando-se uma totalidade, evitando seu tratamento de forma esquemática. Durante o processo formativo, os sujeitos são estimulados a incidir sua reflexão crítica sobre as situações existenciais e sobre a realidade. Para tanto, cabe ao investigador desafiá-los, problematizando as situações apresentadas e as suas próprias respostas. De acordo com a necessidade, os pesquisadores poderão incluir alguns temas que não foram sugeridos, além de indicar sugestões bibliográficas e outros recursos didáticos. Essas trocas potencializam a dialogicidade do processo. Ao final, os pesquisadores discutem sistematicamente os achados, em uma perspectiva interdisciplinar.

No que se refere ao contexto e às participantes e ao participante, a pesquisa foi realizada em uma universidade pública da região Norte do estado do Rio de Janeiro, especificamente com 17 estudantes do curso de Licenciatura em Pedagogia, que cursavam o 3º período no turno noturno e que estavam matriculadas(os) na disciplina denominada “Educação Inclusiva e Direito”. Vale destacarmos que o grupo de 17 estudantes era composto por 16 mulheres e um homem, com idades variando entre 19 e 59 anos. A média de idade foi de 25 anos. Mais da metade já havia atuado profissionalmente na educação, mas a maioria estava cursando a primeira graduação. Também importa registrar a presença de uma estudante com deficiência na turma (cega).

Para a concretização da pesquisa-ação, foram realizados dois grupos focais e três encontros dialógicos formativos, com temáticas definidas com as participantes e o participante ao longo do processo. Vale destacarmos que adotamos a observação, o uso de caderno de bordo e a gravação das falas das participantes e do participante para coletarmos dados durante todo o processo da investigação. Ressaltamos que, no primeiro grupo focal, foram utilizadas cinco questões norteadoras, visando conhecer as expectativas das participantes e do participante em relação à formação e à sua percepção em relação às seguintes temáticas: práticas inclusivas, Desenho Universal, direito à educação e inclusão escolar de estudantes com deficiência. No segundo grupo focal, realizado ao término dos encontros formativos, buscamos compreender a avaliação das participantes e do participante acerca dos encontros formativos dialógicos.

Submetemos a pesquisa ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) com Seres Humanos e obtivemos Parecer Consubstanciado favorável. Esclarecemos às participantes e ao participante os objetivos da pesquisa, e a adesão foi voluntária, sob assinatura de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Para garantir o sigilo sobre a identidade das participantes e do participante, escolhemos pseudônimos, conforme constam nos resultados mais adiante.

2.1 OS ENCONTROS DIALÓGICOS COM AS(OS) ESTUDANTES

Antes do contato com as(os) estudantes, realizamos visitas à universidade para observar compreensivamente o seu cotidiano, as interações e a comunicação entre as pessoas. Os encontros com as(os) educandas(os) ocorreram no ambiente da universidade, no período de setembro a novembro de 2022. Para a realização desses encontros, foi de fundamental importância o espaço concedido pela professora da disciplina “Educação Inclusiva e Direito”.

No nosso primeiro contato com as(os) estudantes, elas(es) foram convidadas(os) a participarem da pesquisa, sendo explicitados os objetivos envolvidos, iniciando o processo de construção da confiança mútua, tal como preconizado por Freire (2021). Para descrever o processo de investigação, destacamos que a pesquisa-ação de cunho formativo se deu em três etapas: na primeira, realizamos um grupo focal para identificar as expectativas das(os) estudantes sobre a formação a ser desenvolvida, bem como suas inquietações e percepções em relação às temáticas: práticas inclusivas, Desenho Universal, direito à educação e inclusão escolar de estudantes com deficiência, a partir de um roteiro com cinco perguntas norteadoras. Os dados resultantes desse grupo focal foram fundamentais para o planejamento e a construção do curso de formação para as participantes e o participante a partir de sua visão de mundo.

Assim como Freire (2001), consideramos que a dialogicidade na educação pressupõe considerar um prévio conhecimento sobre as aspirações, a percepção e a visão de mundo das(os) educandas(os). Como já mencionado, a partir desse grupo focal, foram elencados os temas dos encontros formativos (com abertura para reformulação ao longo do processo). Os temas geradores “contêm em si a possibilidade de desdobrar-se em outros tantos temas que, por sua vez, provocam novas tarefas” (Freire, 2021, p. 130).

Na segunda etapa, foram realizados três encontros formativos, organizados em três eixos interdependentes: educação para todas as pessoas, direito à educação das pessoas com deficiência e Desenho Universal, desdobrando-se nos seguintes temas transversais: educação como direito; educação como prática da liberdade; protagonismo da pessoa com deficiência; e condições para serem e estarem no mundo. Além disso, importa esclarecermos que buscamos tratar desses temas transversais de forma dialógica, inspirados nos círculos de cultura freirianos (Freire, 1992), com perguntas norteadoras que foram problematizadas e debatidas com as participantes e o participante e com os pesquisadores. Desde o primeiro contato com os sujeitos, esclarecemos que todos tinham espaço e oportunidade para falar o que desejassem, considerando a importância de falarem e escutarem uns aos outros.

Na terceira etapa, realizamos um grupo focal avaliativo com o propósito de as participantes e o participante compartilharem suas percepções sobre a proposta de formação da qual fizeram parte e tecerem críticas e sugestões sobre o processo vivenciado por elas/ele.

A seguir, apresentamos mais detalhes dos encontros formativos, considerando a sua importância para a pesquisa.

2.2 ENCONTROS FORMATIVOS DIALÓGICOS

Os encontros de formação foram realizados em sala de aula, com a duração aproximada de 12 horas no total. Esses encontros foram caracterizados pela escuta e pelo diálogo. As considerações das participantes e do participante eram acompanhadas de novos questionamentos e problematizações durante todo o processo.

No primeiro dia de formação, realizamos uma roda de conversa, inspirada nos círculos de cultura freirianos (Freire, 1992). A pergunta norteadora foi: “Com quem?”. Ao longo desse encontro, as estudantes foram incentivadas assim como o estudante a falarem sobre o que pensavam sobre inclusão e exclusão no espaço escolar e na sociedade. A intenção foi problematizar o pensamento do senso comum no que diz respeito às pessoas com deficiência, à inclusão, ao direito à educação para todas as pessoas, à compreensão sobre o que é Educação Especial e qual é o seu público.

Ao final do primeiro encontro, as alunas e o aluno receberam o livro Educação especial inclusiva: conceituações, medicalização e políticas, organizado por Victor et al. (2017), com indicação da leitura do capítulo dois, intitulado “Sobre alunos ‘incluídos’ ou ‘da inclusão’: reflexões sobre o conceito de inclusão escolar” (Mendes, 2017). Também receberam uma cópia encadernada da Lei Brasileira de Inclusão - LBI (Lei n° 13.146, de 6 de julho de 2015). Vale mencionarmos que todos os materiais disponibilizados pelos pesquisadores também foram incluídos no Ambiente Virtual de Aprendizagem Google Classroom da turma.

No segundo encontro de formação, realizado uma semana após o primeiro, foi escolhida a pergunta norteadora: “Onde estamos?”. Após a acolhida às estudantes e ao estudante, o encontro seguiu com a leitura do texto “Não precisamos ser colocados em caixas e guetos”, do livro Desatando os nós (Melo, 2021). Após breve apresentação do autor, as participantes e o participante partilharam suas inquietações sobre o texto, considerando a pergunta inicial. Nesse encontro, os sujeitos aprofundaram reflexões sobre preconceito e exclusão, o direito de ser das pessoas com deficiência, julgamentos sociais e interseccionalidade. Também foi possível retomar a LBI (Lei nº 13.146, 2015).

Incentivamos as estudantes e o estudante a elegerem palavras que mais se destacavam na referida lei, segundo suas opiniões. Essas palavras “geradoras” foram escritas em uma lousa e, posteriormente, foram discutidas uma a uma por elas/ele, com a mediação dos pesquisadores, considerando os princípios do Desenho Universal e a realidade da escola regular e da universidade. Entre as palavras apresentadas pelas estudantes e pelo estudante, destacamos: acessibilidade, direito, inclusão, igualdade, acesso, comunicação, participação, permanência, políticas públicas, dignidade e respeito.

Para finalizar o encontro, foi realizada uma dinâmica na qual as estudantes foram incentivadas assim como o estudante a expressar, a partir de massinha de modelar, algo que as/o representasse. Após a produção de símbolos e objetos, cada educanda/o compartilhou com o grupo o que fez.

Ao término do encontro, distribuímos exemplares do livro Acessibilidade e Desenho Universal da Aprendizagem (Pletsch et al., 2021) para que as participantes e o participante dessem continuidade e aprofundassem a temática problematizada.

O último encontro dialógico ocorreu após um intervalo de 15 dias do segundo. A pergunta norteadora foi: “O que fazer para que a escola, a universidade, a educação sejam promotoras de liberdade para todas as pessoas?”. Nesse terceiro encontro, iniciamos com a música “Tente outra vez”, cantada por Raul Seixas (Seixas et al., 1975). As estudantes foram incentivadas assim como o estudante a falarem sobre o que deixaram de tentar naquela semana ou nos últimos tempos. Após a partilha de cada pessoa, o coletivo cantava junto o refrão: “Tente outra vez”. Posteriormente, o encontro seguiu com a leitura do texto “The principles of Universal Design” (Connell et al., 1997), com tradução nossa. As estudantes e o estudante refletiram juntos sobre cada um desses princípios, com a mediação dos pesquisadores.

É importante relembrarmos que todos os encontros foram gravados mediante autorização prévia dos sujeitos e, posteriormente, transcritos na íntegra. Para a análise dos dados oriundos dos encontros com as estudantes e o estudante, realizamos uma leitura exaustiva do material, seguida da identificação dos conteúdos mais recorrentes entre os relatos dos sujeitos, inspirados no método de Paulo Freire (Araújo Freire, 2018), segundo o qual nos orientamos pelo percurso investigação-tematização-problematização, de forma a extrair, das falas das participantes e do participante, temas centrais de suas reflexões.

A seguir, apresentamos as percepções e as vivências das estudantes e do estudante, que evidenciam o seu pensar crítico-problematizador.

3 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os encontros com as licenciandas e o licenciando em Pedagogia buscaram ser um momento privilegiado de diálogo, escuta e partilha, de modo que cada participante tivesse um espaço protegido para “dizer a sua palavra” e ser acolhido sem julgamentos e críticas. “Se dizer a palavra verdadeira, que é trabalho, que é práxis, é transformar o mundo, dizer a palavra não é privilégio de alguns homens, mas direito de todos os homens” (Freire, 2021, p. 109).

Entendemos que o diálogo é a essência da educação como prática de liberdade, e é no encontro dialógico que as pessoas refletem, se solidarizam e pronunciam o mundo, buscando a sua transformação, pois o diálogo é o encontro dos homens para “ser mais” (Freire, 2021, p. 105). Nessa direção, buscamos investigar o conhecimento das licenciandas e do licenciando em Pedagogia sobre práticas inclusivas na concepção do Desenho Universal. Percebemos que os sujeitos não conheciam o termo “Desenho Universal”, nem os seus princípios. A maioria apresentava, no início da formação, uma modesta compreensão do que entendemos como práticas inclusivas. Entretanto, foram unânimes ao reconhecerem a importância de refletirem sobre o assunto e aprenderem mais sobre ele.

É importante ressaltarmos que algumas alunas já trabalhavam na área da educação por terem concluído o curso normal de formação de professores de nível médio e, por isso, relataram muitas situações vivenciadas no encontro com pessoas com deficiência em contextos educacionais, seja durante a formação, nos estágios, seja no trabalho. Segundo Freire (2001), a tomada de consciência resulta da defrontação dos sujeitos com a realidade concreta, nas suas relações com o mundo e com os outros. Nesse sentido, desejamos compreender como as(os) educandas(os) concebiam a realidade da qual faziam parte. A fala de uma estudante mostra a sua percepção sobre práticas que não são inclusivas. Ela questionou as ações de outros educadores e algumas das ações realizadas por ela anteriormente:

[...] na época dos estágios [...] a maioria dos professores, eles não querem, por exemplo, a pessoa ter deficiência. Ok, só que acaba excluindo dos outros alunos. Passam atividades que são diferentes, assim, um contexto diferente, [...] passam atividades mais fáceis, porque fulano tem isso. E é uma coisa que não tem necessidade. Isso já está velho, não tem mais isso. Existem vários recursos que dá para a gente utilizar, mas eu fiz muito isso no estágio, porque não só com as pessoas com deficiência... mas como a colega estava falando, pessoas que são de desigualdade social. É sempre assim, deixa fulano num cantinho para fazer uma tal coisa, deixa fulano fazer isso, fazer aquilo, não se importar em tratar, fazer um planejamento adequado, adequado ao curso. (Lótus)

Ao pensarem sobre a inclusão escolar, as estudantes também refletiram sobre os processos de exclusão. Ao falarem sobre as suas experiências, trouxeram indignações e inquietações sobre a exclusão de estudantes com deficiência, como também fez a estudante Arthemisia em sua fala:

[...] meu primeiro estágio, eu cheguei, tinha um autista na sala. Eu estava no primeiro ano, eu não sabia o que era, aí a professora virou para mim e falou assim: “Ah não, ele fica mais reservado em outra sala, porque ele não bate muito bem na cabeça”, ela falou essas palavras. Aí, eu falei “caraca!”. [...]. E eles tratavam essa criança com tanto desprezo, como se ela não fosse um indivíduo, um indivíduo de direitos... horrível! (Arthemisia)

Violeta, por sua vez, compartilhou com o grupo uma experiência vivenciada por ela em uma instituição de ensino da rede particular. Ao falar sobre o assunto, ela também problematizou a realidade e, assim como Arthemisia, denunciou processos de exclusão e o aviltamento do direito à educação com qualidade para estudantes com deficiência:

[...] é uma inclusão mascarada. As crianças estão na sala, mas não participam em nenhuma dessas atividades, até tem uma atividade para eles. Essa professora pega, meio que a força, porque no meio do trabalho, são crianças autistas, então a criança não tem, ela não gosta muito de contato. A professora vai meio que a força, coloca a criança para fazer a atividade e tira foto, porque a escola tem todo esse trabalho de marketing, então tem que ter a foto para provar [...]. (Violeta)

As narrativas anteriores refletem o que afirma Melo (2021): em geral, os profissionais da educação e, mais especificamente, as(os) licenciandas(os) dos cursos de formação de professores aprendem o que não é inclusão por meio de práticas excludentes, falas e comportamentos estigmatizantes, o que torna urgente uma formação que valorize os fundamentos da Educação Especial.

Além de relatos de ações capacitistas em ambientes educacionais, emergiram discussões sobre outros processos de exclusão, como o racismo. Essa foi a principal experiência de exclusão vivida pelas estudantes, que apareceu em muitas falas. Vitória Régia relatou uma grave violência sofrida na escola:

Eu era a única menina negra da minha turma. Eu tinha cabelinho cacheado, era totalmente diferente, as professoras me tratavam diferente, os alunos me tratavam diferente. Até o episódio que eu contei aqui, que eles amarraram a corda no meu pescoço, puxaram e foi aí a gota d’água que minha mãe tirou da escola e nem a polícia fez nada, falou que era só problema de criança. (Vitória Régia)

Margarida, que também sofreu com o racismo, denunciou que o racismo estrutural está presente em outros espaços sociais para além do espaço escolar:

Como mulher negra, a gente tem essa experiência [de exclusão] não só no âmbito escolar, mas em outros ambientes também, como loja que você entra, a vendedora te olha de um jeito... fica assim... você entra na loja e já sente como se você não pudesse usar nada daquela loja. Então é lógico que você entra e às vezes se sente dessa forma. Supermercado você entra e às vezes a pessoa pode nem te olhar de um jeito, mas você já tem aquele gatilho de se policiar de certas coisas. Então, desde pequena, nossa mãe me fala: não mexe na bolsa, não abra a bolsa, não entra com a bolsa aberta, não entra com outra coisa no mercado... (Margarida)

Freire (2006) rejeita, de forma veemente, qualquer forma de discriminação: “A prática preconceituosa de raça, de classe, de gênero ofende a substantividade do ser humano e nega radicalmente a democracia” (p. 36). As práticas inclusivas defendidas na presente pesquisa são aquelas que contemplam todas as pessoas; por isso consideramos a importância dessa problematização interseccional. Segundo Farias et al. (2022, pp. 97-98), “experiências de desigualdade cotidianamente vivenciadas por pessoas com deficiência se potencializam, quando somados a outros marcadores, a exemplo do sexismo e de inúmeras formas de opressão como raça, pobreza, entre outras”.

Durante os encontros dialógicos, falas foram ditas com muita emoção e significado. A participação de todas as pessoas possibilitou que juntos refletíssemos que a luta antirracista e anticapacitista deve ser de todas as pessoas, da mesma forma que as demais lutas das minorias no combate às diferentes formas de opressão. Nessa direção, Beche (2024) defende a luta anticapacitista, no âmbito da educação, como necessária e transformadora no processo de ruptura das estruturas historicamente segregacionistas, apontando as reflexões interseccionais e interdependentes como caminho emancipatório.

Na medida em que as discussões avançavam nos encontros e que as participantes e o participante tinham contato com textos na formação, elas e ele ampliavam suas ideias sobre a inclusão escolar, tal como expressou a estudante Margarida:

[...] a escola devia de ser para todas as pessoas, inclusive a inclusão é exatamente isso. A inclusão é o direito de todas as pessoas estarem na escola. E para isso a escola tem que ter a estrutura adequada para receber essas pessoas, então ela acaba não sendo para todas as pessoas a partir do momento em que ela não oferece para todas as pessoas a condição de permanecer na escola. (Margarida)

Considerando os princípios do Desenho Universal, Flora inicialmente afirmou nunca ter ouvido o termo “Práticas inclusivas na concepção do Desenho Universal”, mas, na medida em que foi conhecendo mais o tema, apresentou a seguinte opinião:

Eu acho que no caso dessa proposta, os direitos seriam mais garantidos a todos, e todos teriam as mesmas condições e possibilidades dentro do campo escolar, porque teria uma adaptação, não a limitações específicas, mas pensando na limitação de todos no geral. (Flora)

Pensar a educação para todas as pessoas, conforme reivindicam as participantes em suas narrativas, corrobora as ideias de Guimarães (2021), que reforçam o caráter transformador da participação e do protagonismo das pessoas com deficiência no contexto escolar e acadêmico, exigindo um “fazer com”, em substituição ao “fazer para”. Em outras palavras, defendemos uma educação com todas as pessoas, na perspectiva dos Direitos Humanos e do Desenho Universal.

Tal como Romano et al. (2023), legitimamos que:

Estratégias pedagógicas universais são aquelas que proporcionam apoios e desafios flexíveis que veiculam ambientes de aprendizagem com acessibilização, ou seja, ambientes livres de barreiras. Nessa perspectiva, não se valorizam limitações ou diagnósticos dos/as alunos/as. Enfatiza[m]-se múltiplas formas de apresentação dos conteúdos, associados aos diversos meios de engajamento e estímulo para variadas formas de demonstrar o aprendizado com diferentes ações e expressões dos/as alunos/as, favorecendo os potenciais de desenvolvimento, conforme o modo de aprender de cada aluno/a. (p. 112)

Ainda analisando como os encontros auxiliaram na construção do conhecimento sobre práticas inclusivas, outra estudante compartilhou a sua opinião:

[...] para mim, agregou mais conhecimento pelo fato de não ser só texto, gente. [...]. Durante os encontros isso foi bem... não foi assim “ah, tem que fazer assim e assim”. Não! Mas vocês deram tipo um passo a passo, né? [...]. Para a gente conseguir tratar, entender as diferenças de cada indivíduo, não só por questões de deficiência ou de etnia, enfim. Mas entender que cada indivíduo tem uma personalidade, uma particularidade, e todos devem ser respeitados e merecem ter o direito de aprender como todo mundo. Acho que isso foi muito importante. (Begônia)

No último grupo focal, ao serem incentivadas a avaliarem a experiência, as participantes e o participante destacaram vários aspectos da formação que consideraram relevantes. Ao falar sobre sua experiência nos encontros, Rosa destacou a fluidez dos encontros dialógicos:

[...] o que mais me impactou foi a fluidez [...], a gente conseguia enxergar o intuito do curso, mas de uma forma realmente inclusiva. [...]. Não falava de pessoas com determinada deficiência, e sim de pessoas. Então foi muito importante que a gente conseguisse compreender também, nos colocando, as nossas experiências, mesmo a gente não sendo pessoa com deficiência, por exemplo. Então foi muito interessante. Eu realmente me surpreendi de como a gente conseguiu ter essa compreensão de uma forma tão natural e tão fluida, tão comunicativa mesmo. Foi muito importante, eu gostei muito [...]. (Rosa)

Hortência, outra estudante, teve muita participação ao longo das rodas de conversa, trazendo sua história de vida e seus desafios para conseguir chegar até o curso superior já aos 50 anos de idade e realizar o sonho de se tornar profissional da educação. Ela se emocionou ao falar de seu processo e da profissional que ela quer se tornar, ou seja, do seu desejo de ser mais. Ela também expressou o impacto do diálogo com um dos pesquisadores, que é pessoa com deficiência:

[...] o que me surpreendeu é que todas as vezes que você faz uma pergunta, não sei se acontece aí com vocês, o coração bate mais forte, é como se conseguisse mexer lá dentro do nosso emocional/inconsciente, em tudo aquilo que está guardado mesmo. A gente conseguiu se sentir à vontade de colocar para fora, de expressar sentimentos e coisas que nos incomodavam, que nos machucavam. [...] a gente vem da cultura que o professor fala e o aluno ouve, o professor detém o conhecimento e o aluno aprende. E eu percebi que aqui a gente estava aprendendo, não só com você, mas aprendendo uns com os outros. (Hortência)

Segundo Guimarães (2021), a convivência com pessoas com deficiência em escolas e universidades representa uma oportunidade formativa transformadora para as demais pessoas, uma vez que possibilita encontros emancipatórios e anticapacitistas, removendo estigmas e rompendo barreiras segregacionistas. Para Beche (2024), a interdependência, experienciada entre pessoas em contextos educacionais, proporciona aprendizagens plurais que tornam a convivência digna e humanizadora.

Outras estudantes apresentaram falas imbuídas de esperança e do desejo de “ser mais”. Destacamos a fala de Cravo, que, ao avaliar os encontros dialógicos, também revelou a transformação vivida graças à experiência oportunizada pelos pesquisadores:

[...] eu me senti muito à vontade para falar aqui na sala de aula... eu acho que tem muito a ver com o método de ensino que vocês trouxeram, com a parada muito de diálogo com aluno. Eu gostei. [...]. Fazia tempo que eu não me sentia tão provocado num ambiente, como fui provocado aqui, e isso tem muito a ver também com quem eu quero ser no futuro. O profissional que eu quero ser, quem eu quero ser para as pessoas que eu vou ter contato, tanto agora, como também no futuro, mas eu estou falando como profissional, e eu, particularmente, sou muito grato por ter vivido isso. Acho que é aquelas experiências na vida que a gente acaba tendo a oportunidade de viver, e são experiências únicas. (Cravo)

O relato de Cravo denota a liberdade de expressão nos encontros dialógicos orientados pela perspectiva do Desenho Universal. As outras falas supracitadas evidenciam que os encontros dialógicos possibilitaram transformações nessas pedagogas e nesse pedagogo em formação, que tiveram a oportunidade de repensar suas concepções e seus compromissos consigo, com a educação e com o mundo.

Reafirmando Freire (2001), acreditamos que

quanto mais se voltam criticamente para suas experiências passadas e presentes em e com o mundo, que vêem melhora agora porque o revivem, mais se dão conta de que este não é para os homens um beco sem saída, uma condição intransponível que os esmaga. (p. 84)

Assim como as opiniões apresentadas, foram relatadas muitas outras avaliações positivas por parte das estudantes e do estudante, que identificaram a experiência como um “divisor de águas” de sua formação docente, acreditando ter sido uma experiência que realmente poderá transformar a sua práxis. Sobre as avaliações positivas, o maior destaque deve ser conferido às mudanças vivenciadas pelas licenciandas e pelo licenciando, sua implicação com as injustiças sociais e seu compromisso renovado com a educação para todas as pessoas. O relato seguinte evidencia o caráter transformador das experiências vivenciadas:

[...] o que a gente pode fazer é desconstruir a nossa forma de pensar hoje, pra gente tentar isso adiante, pra futuramente existirem mais pessoas que conseguem ter uma visão ampliada de como vão ver as coisas, de poder realizar essa mudança, porque muitas vezes as minorias, elas não conseguem fazer as mudanças necessárias no momento, mas a minoria, ela pode se tornar a maioria, e futuramente a gente vê realmente as mudanças significativas na prática. (Amora)

Ao longo da formação, percebemos que as estudantes e o estudante ampliaram sua percepção sobre participação social e sobre o seu papel na realização do direito de ser e estar para todas as pessoas, com destaque aos ambientes educacionais. Para Freire (2021), é fundamental que pensemos criticamente sobre a nossa forma de estar, mas também atuemos sobre a situação em que nos encontramos. Nesse sentido, entendemos que a pedagoga e o pedagogo podem e devem ser agentes de mudança.

Experienciar práticas inclusivas na concepção do Desenho Universal, em articulação com os saberes que fundamentam a Educação e, mais especificamente, conhecimentos do campo da Educação Especial, consolida a formação de licenciandas e licenciandos em Pedagogia para o exercício da docência que favorece uma educação com e para todas as pessoas.

4 CONCLUSÕES

Na experiência da pesquisa, foi possível identificar que, para tratar do direito à educação para todas as pessoas, foi necessário criar possibilidades a fim de que as estudantes e o estudante refletissem também sobre seus próprios direitos. Foi a partir da liberdade de expressão, do diálogo e da valorização do protagonismo dos sujeitos que puderam aprender uns com os outros, falando e escutando, na medida em que traziam suas experiências e problematizavam os temas.

Inicialmente, a compreensão das educandas e do educando sobre práticas inclusivas na concepção do Desenho Universal era limitada. Contudo, seus conhecimentos foram ampliados a cada encontro. Foi interessante perceber que, embora os encontros trouxessem discussões sobre a inclusão escolar e o direito à participação e à aprendizagem das pessoas com deficiência, as participantes e o participante ampliaram suas percepções sobre si mesmas(o), ainda que não se considerassem pessoa com deficiência, com exceção de uma aluna com deficiência. Percebemos, inicialmente, um desvelamento frente às barreiras e dificuldades enfrentadas por elas, por ele e pelos outros nos espaços educacionais e demais espaços sociais, com destaque aos processos de exclusão.

Na medida em que as discussões avançavam, as educandas e o educando passaram a compreender o lugar ocupado por elas, por ele e pelas minorias no cenário social. Também ampliaram sua percepção sobre seus direitos e sobre os direitos das pessoas com deficiência, assim como o seu papel frente ao desafio de promover práticas inclusivas, de modo a colaborar para a garantia do direito de ser e estar de todas as pessoas.

Frente ao exposto, acreditamos que a realização de uma pesquisa-ação norteada pela dialogicidade proposta por Paulo Freire foi uma escolha fundamental para que conseguíssemos alcançar o objetivo da pesquisa. Na experiência dos encontros formativos dialógicos, a liberdade de expressão e o protagonismo das estudantes e do estudante trouxeram maior autonomia, autenticidade, conscientização e esperança para elas e ele. Acreditamos que essa formação despertou nessas educandas e nesse educando o desejo de ser mais e de mudança, trazendo as pessoas para um novo modo de pensar sobre a educação das pessoas com deficiência.

Esperamos, com este artigo, promover reflexões sobre a importância do diálogo e da discussão sobre práticas inclusivas na concepção do Desenho Universal na formação de pedagogas e pedagogos, favorecendo e incentivando novas pesquisas sobre a temática e um maior engajamento das(os) futuras(os) trabalhadoras(es) da educação na busca por uma educação para todas as pessoas.

  • 5
    Lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, queer, intersexuais, assexuais, pansexuais e outras identidades de gênero e orientações sexuais não listadas explicitamente.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Jul 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    09 Abr 2024
  • Revisado
    25 Jul 2024
  • Aceito
    26 Jan 2025
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