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Resiliência e Processos Protetivos de Adolescentes com Deficiência Física e Surdez Incluídos em Escolas Regulares1 1 Financiamento da FAPESP

Resilience and Protective Processes of Adolescents with Physical Disabilities and Deafness Included in Regular Schools

Resumos

O artigo apresenta os resultados de uma pesquisa, realizada em duas cidades de médio porte do estado de São Paulo, cujo objetivo foi identificar e analisar processos protetivos associados à resiliência. Os participantes foram 16 adolescentes, de faixa etária entre 14 e 17 anos, expostos a adversidades. Neste trabalho são apresentados os resultados referentes a quatro adolescentes com deficiência física ou auditiva incluídos em escolas regulares. Foi realizado um estudo exploratório, incluindo entrevistas semiestruturadas e métodos visuais (fotografias e filmagens do cotidiano), os quais foram analisados segundo a Teoria Fundamentada nos Dados (TFD). Foram identificados diversos aspectos relativos: 1) aos processos de resiliência dos participantes, associados à qualidade dos relacionamentos interpessoais estabelecidos entre eles, colegas e profissionais da educação, com destaque para os professores intérpretes; 2) ao uso das tecnologias e mídias sociais no favorecimento da comunicação entre eles, amigos e familiares sem deficiência, e 2) às estratégias de enfrentamento da dor e das limitações físicas visando ao bem-estar a médio prazo. Ressalta-se a necessidade de trabalhar em prol do fortalecimento dos adolescentes com deficiência e de auxiliá-los na promoção de seu caminho em direção à inclusão escolar e social, por meio de reflexões sobre o lugar ocupado pelas escolas em suas vidas, o que pode favorecer os processos de resiliência.

Educação Especial; Resiliência; Surdez; Deficiência física; Inclusão Escolar


The paper presents the results of a survey conducted in two medium sized cities in the state of São Paulo, aimeing to identify and analyze protective processes associated with resilience. The participants were 16 teenagers, aged 14 to 17 years, who were exposed to adversities. This paper presents the results related to 4 adolescents with physical disabilities or deafness who are included in regular schools. An exploratory study was carried out, using semi-structured interviews and visual methods (photographs and videotaped recordings of daily life), which were analyzed according to Grounded Theory. Several aspects were identified regarding: 1) the participants' resilience processes associated to the quality of interpersonal relationships established among themselves, their peers and education professionals, underscoring the teacher interpreters; 2) the use of technology and social media in fostering communication between these students, their friends and family members without disabilities, and 3) the use of coping strategies to deal with pain and physical limitations, aiming for medium term well-being. The paper highlights the importance of working towards promoting a strengthening process for young people with disabilities in order to provide them with a pathway towards educational and social inclusion through reflections on the role played by schools in their lives, so as to promote resilience processes.

Special Education; Resilience; Deafness; Physical Disability; School Inclusion


1 INTRODUÇÃO

A dimensão histórica do conceito de "resiliência" e sua incorporação nos estudos da Psicologia são temas exaustivamente tratados na literatura nacional (JUNQUEIRA; DESLANDES, 2003JUNQUEIRA, M.F.P.S.; DESLANDES, S.F. Resiliência e maus-tratos à criança. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v.19, n.1, p.227-235, 2003.; LIBÓRIO; CASTRO; COELHO, 2006LIBÓRIO, R.M.C.; CASTRO, B.M. Dialogando sobre preconceito, políticas de inclusão escolar e formação de professores. In: SILVA, D. J.; LIBÓRIO, R.M.C. (Org). Valores, preconceito e práticas educativas. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2005. p.73-114.; TROMBETA; GUZZO, 2002TROMBETA, L. H.; GUZZO, R. S L. Enfrentando o cotidiano adverso estudo sobre resiliência em adolescentes. Campinas: Alínea, 2002. 122p.; YUNES, 2003YUNES, M. A M. Psicologia positiva e resiliência: o foco no indivíduo e na família. Psicologia em Estudo, Maringá, v.8, n.esp., p.75-84, 2003.). De acordo com Libório, Castro e Coelho, em 2006 o corpo de conhecimentos acerca do tema encontrava-se em processo de construção, conforme também apontado pela literatura da época (LUTHAR; CICCHETTI; BECKER, 2000LUTHAR, S. S.; CICCHETTI, D.; BECKER, B. The construct of resilience: a critical evaluation and guidelines for future work. Child Development, Reino Unido, v.71, n.3, p.543-562, 2000.; LUTHAR; ZELAZO, 2003LUTHAR, S. S.; ZELAZO, L. B. Research on resilience: An integrative review. In: ______. (Ed) Resilience and vulnerability Adaptation in the context of childhood adversities. Cambridge: Cambridge United Press, 2003. p.510-549.; UNGAR, 2003UNGAR, M. Qualitative contributions to resilience research. Qualitative Social Work, Michigan, v.2, n.1, p.85-102, 2003.; POLETTO; WAGNER; KOLLER, 2004POLETTO, M.; WAGNER, T. M. C.; KOLLER, S. H Resiliência e desenvolvimento infantil de crianças que cuidam de crianças: uma visão em perspectiva. Psicologia: Teoria e Pesquisa, Brasília, DF, v.20, n.3, p.241-250, 2004.).

Nos dias atuais, considera-se que houve uma ampliação do debate sobre o fenômeno de resiliência, do ponto de vista teórico e metodológico e quanto a seu uso em várias áreas do saber. Além disso, o surgimento de termos como "resiliência cultural" (PAIVA; ARAUJO, 2008PAIVA, M.M.; ARAUJO, L.M. Resposta local ao turismo: resiliência cultural e desenvolvimento no povoado do Pontal de Coruripe . In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE TURISMO SUSTENTÁVEL, 2., 2008, Fortaleza. Anais... Fortaleza: 2008. p.1-10.) e "resiliência comunitária" (LANDAU; SAUL, 2002LANDAU, J. ; SAUL, J. Facilitando a resiliência de família e da comunidade em resposta a grandes desastres. Pensando famílias, v.4, n.4, p.56-78, 2002.; MELILLO; OJEDA, 2005MELILLO, A.; OJEDA, E.N.S. Resiliência: descobrindo as próprias fortalezas. Porto Alegre: ARTMED, 2005. 160p.) contribuiu para uma visão voltada a aspectos mais amplos quanto à existência do fenômeno e para discussões sobre como isso se reflete nos indivíduos inseridos em distintos contextos culturais e comunitários. Entretanto, ainda existem pesquisas que enfatizam a avaliação de aspectos internos relacionados à resiliência, tais como características pessoais e atributos de crianças e adolescentes, como se fossem herdados biologicamente e não construídos em articulação com a realidade sociocultural na qual eles se encontram inseridos.

Nesse sentido, atribui-se pouca atenção às dimensões culturais e à proposição de mais investimento e atuação do Estado e das políticas públicas no oferecimento de recursos às populações em situação de risco, fatores que podem favorecer processos de resiliência. De acordo com Libório (2011)LIBÓRIO, R.M.C. Negociando Resiliência: processos protetivos de adolescentes em contextos potenciais de risco. Relatório de Pesquisa não publicado, enviado à FAPESP. 2011. 301p., no que se refere à articulação entre os estudos de resiliência e as populações com deficiência, por exemplo, existe um número ainda pouco expressivo de publicações.

Considerando o grau de complexidade que envolve o conceito, concorda-se com Yunes (2003)YUNES, M. A M. Psicologia positiva e resiliência: o foco no indivíduo e na família. Psicologia em Estudo, Maringá, v.8, n.esp., p.75-84, 2003. quando alerta para que não se incorra no erro de revestir a discussão em torno do problema com um "discurso subordinado", preferindo a adoção de um discurso crítico, também defendido por Mondini (2011)MONDINI, C.E.C. M. Resiliência e medidas sócio-educativas: síntese dialética de múltiplas determinações. 2011. 220f. Dissertação (Mestrado em Educação), Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, Corumbá, 2011.. Segundo Didkowsky, Ungar e Liebenberg (2010a)DIDKOWSKY, N.; UNGAR, M.; LIEBENBERG, L. Using visual methods to capture embedded processes of resilience for youth across cultures and contexts. J. Can. Acad. Child Adolesc Psychiatry, Toronto, v.19, n.1, p.12-18, 2010a., ainda existem lacunas com relação à identificação e ao estudo dos processos de resiliência cultural e contextualmente imbricados com jovens expostos a adversidades.

Em decorrência disso, Ungar e sua equipe de pesquisadores internacionais desenvolveram entre os anos de 2008 e 2009 a pesquisa que deu origem a este artigo, que foi realizada no Canadá, na Índia, na Tailândia, na África do Sul, na China e no Brasil. O objetivo daquela pesquisa foi apresentar as experiências de resiliência de adolescentes em contextos de adversidade, tais como migrações, vivência em comunidades pobres, porte de uma deficiência estando o jovem matriculado em uma escola regular.

A observação de como a cultura promove resiliência foi possibilitada pelo uso de métodos visuais de coleta de dados - sem os quais não poderiam ter sido registradas as práticas culturais (religiosas, escolares, artísticas em interação com as mídias sociais diversas) em que os adolescentes se engajam - e seguida da discussão sobre os significados que denotam processos de resiliência e que são atribuídos à trajetória de vida dos jovens. É pertinente citar que a leitura de textos da Psicologia Cultural que demonstram a importância da participação em práticas culturais para o desenvolvimento e crianças e adolescentes (ROGOFF, 2005ROGOFF, B. A natureza cultural do desenvolvimento humano. Porto Alegre: ARTMED, 2005. 356p.) foi fundamental na condução das análises dos dados obtidos nesta pesquisa.

Na Psicologia Cultural (ROGOFF, 2005ROGOFF, B. A natureza cultural do desenvolvimento humano. Porto Alegre: ARTMED, 2005. 356p.), as diferenças existentes entre os indivíduos e os grupos baseiam-se na história de seus engajamentos em práticas culturais distintas, pois as variações não residem nos traços ou no conjunto de traços particulares de cada um isoladamente; o que distingue um sujeito do outro são as experiências diferenciadas vividas em uma gama ampla de práticas culturais, produzindo diferentes repertórios de práticas. Dessa forma, entende-se que, ao serem ampliadas as possibilidades de participação de crianças e adolescentes em novas práticas culturais, oferecendo-lhes novas oportunidades e espaços para que elas ocorram, podem-se gerar repertórios de atividades antes ausentes ou transformar repertórios já adquiridos por crianças, adolescentes ou adultos.

O conceito de "práticas culturais" empregado por Rogoff (2005)ROGOFF, B. A natureza cultural do desenvolvimento humano. Porto Alegre: ARTMED, 2005. 356p. baseia-se na definição de Goodnow, Miller e Kessel (1995)GOODNOW, J.; MILLER, P.; KESSEL, F. Cultural practices as contexts for development. San Francisco: Jossey-Bass Publishers, 1995.: ações significativas do cotidiano de crianças e adolescentes, compartilhadas amplamente com membros de seu grupo, expressando expectativas sobre como se deve agir em determinadas comunidades.

Em articulação com o conceito de "práticas culturais", vale apontar que as comunidades culturais são definidas como grupo coordenado de pessoas com algumas tradições e compreensões em comum e que perpassam várias gerações, com variados papéis e práticas, envolvendo mudanças contínuas nos participantes das comunidades assim como transformações nas práticas dessas comunidades (ROGOFF; GUITIERREZ, 2003ROGOFF, B.; GUITIERREZ, K. D Cultural ways of learning: individual traits or repertoires of practices. Educational researcher, Tallahassee, v.32, n.5, p.19-25, 2003.). Quando se levam em conta a cultura e as comunidades culturais, é imprescindível não se negligenciar as análises históricas, sociopolíticas e econômicas.

Fundamentando a abordagem de Rogoff, a concepção do desenvolvimento dos processos psicológicos humanos assenta-se na premissa de que esses processos emergem da participação dos indivíduos em atividades e práticas cultural e historicamente mediadas, envolvendo ferramentas culturais.

Considerando essa perspectiva, acredita-se que a construção da resiliência se relaciona com as atividades nas quais os adolescentes se engajam em suas comunidades e ocorre na articulação entre indivíduos (e seus relacionamento interpessoais), práticas culturais, comunitárias e institucionais.

Souza (2009)SOUZA, F. O jogo de mãos: um estudo sobre o processo de participação orientada na aprendizagem musical infantil. 2009. 221f. Dissertação (Mestrado em Música), Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2009. apresenta a estratégia metodológica dos planos de análise, proposta por Rogoff (2005)ROGOFF, B. A natureza cultural do desenvolvimento humano. Porto Alegre: ARTMED, 2005. 356p., a qual sugere que, para observar e compreender o desenvolvimento tendo como base a participação em práticas culturais deve-se considerar três planos de análise que são indissociáveis:

  1. Plano de análise no nível da comunidade: abrange as pessoas e sua participação com outros em atividades culturalmente organizadas e as contribuições das tradições institucionais formais e informais (escola, famílias, projetos, sistema político) e das ferramentas culturais (arte, esporte, dança, por exemplo);

  2. Plano interpessoal de análise: foca em como as pessoas se comunicam, coordenam esforços e interagem lado a lado;

  3. Plano de análise pessoal: centra-se nos processos de transformação do indivíduo por meio de sua participação em uma ou outra atividade considerada como prática cultural.

O desenvolvimento de crianças e adolescentes ocorre no processo de participação ativa nos contextos socioculturais, processo esse que os leva a se transformarem, de forma que o as mudanças que ocorrem no indivíduo fundem o sujeito e as atividades socioculturais com as quais ele está envolvido.

O referencial teórico de Rogoff (2005)ROGOFF, B. A natureza cultural do desenvolvimento humano. Porto Alegre: ARTMED, 2005. 356p.permitiu a compreensão de que o motor da promoção da resiliência reside na participação dos adolescentes em práticas culturais valorizadas em seu meio social e se constrói na intersecção inseparável entre o indivíduo e processos inter-relacionais e comunitários. Em combinação, esses processos potencializam a autonomia e mobilizam os participantes na busca de recursos e estratégias fortalecedores e promotores de maior inclusão escolar e social.

Com relação à discussão sobre resiliência associada à deficiência, Young, Green e Rogers (2008)YOUNG, A.; GREEN, L.; ROGERS, K. Resilience and deaf children: a literature review. Deafness and Education International, Leeds, v.10, n.1, p.40-55, 2008., após realizar uma revisão bibliográfica sobre os estudos do tema, apontaram as lacunas na produção de conhecimento sobre esse fenômeno relacionado à surdez, mais especificamente. Os autores criticam a ênfase individualizante que perdurou durante muitos anos nesses estudos e denunciam a "indústria das pesquisas em resiliência" que negligenciaram a área das deficiências em geral e, em particular, a surdez. Os autores ainda questionam o porquê de se associar surdez a risco e, nesse caso, como é vista a resiliência nas famílias e na criança. Um dos aspectos associados à resiliência da pessoa com surdez para esses autores relaciona-se aos movimentos de resistência à conformidade, muitas vezes imposta pela sociedade aos surdos, como, por exemplo, a atitude de querer normalizá-los por meio da oralização. De acordo com os mesmos autores, resistir à normalização e à conformidade é uma indicação da existência de processos de resiliência. Essa discussão leva a problematizar as políticas sociais de inclusão e a persistência da discriminação de pessoas com diferenças significativas, dando indicativos da necessidade de esse contexto macroestrutural ser questionado, caso se pretenda pensar sobre as possibilidades de construção da resiliência nessa população.

Portanto, outros estudos que visem identificar processos favorecedores de resiliência em adolescentes com deficiência vão ao encontro dos objetivos das políticas que se preocupam com uma inclusão efetiva na escola, e não só com a mera inserção das pessoas com deficiência nos espaços escolares. A inclusão de crianças e adolescentes nas escolas regulares, como é o caso dos participantes desta pesquisa, pode ser entendida como uma importante oportunidade para iniciar o processo de sua inclusão social mais ampla (LIBÓRIO; CASTRO, 2005LIBÓRIO, R.M.C.; CASTRO, B.M. Dialogando sobre preconceito, políticas de inclusão escolar e formação de professores. In: SILVA, D. J.; LIBÓRIO, R.M.C. (Org). Valores, preconceito e práticas educativas. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2005. p.73-114.).

2 METODOLOGIA

O estudo do qual derivou este artigo tem caráter exploratório e intercultural e fez uso de entrevistas semiestruturadas e métodos visuais para a coleta de dados.

A opção pelos métodos visuais deu-se em função de suas potencialidades, considerando tratar-se de uma pesquisa com adolescentes, conforme apontado por Didkowsky, Ungar e Liebenberg (2010aDIDKOWSKY, N.; UNGAR, M.; LIEBENBERG, L. Using visual methods to capture embedded processes of resilience for youth across cultures and contexts. J. Can. Acad. Child Adolesc Psychiatry, Toronto, v.19, n.1, p.12-18, 2010a., 2010bDIDKOWSKY, N.; UNGAR, M.; LIEBENBERG, L. The negotiating resilience project - research report. Relatório de Pesquisa não publicado. Dalhousie University: Halifax, 2010b.). Dentre essas potencialidades, destacam-se: a obtenção das dimensões culturais envolvidas na construção dos processos de resiliência, um maior compartilhamento de poder entre pesquisador e pesquisados e a possibilidade de as fotografias e os vídeos revelarem processos originais de resiliência, ao tornar visíveis estruturas e dinâmicas de instituições culturalmente relevantes para a sua produção, o que não seria possível somente por meio de entrevistas.

2.1 PARTICIPANTES

Participaram da pesquisa original um total de 16 adolescentes brasileiros, com idades entre 14 e 17 anos, residentes em duas cidades paulistas de médio porte e expostos a situações de adversidades, dentre as quais, abuso sexual, trabalho infantil, exclusão social, porte de uma deficiência física ou surdez, estando os jovens incluídos em escolas regulares.

Os dados apresentados e analisados neste artigo referem-se à participação de dois adolescentes com deficiência física, um do sexo masculino cadeirante e outro do sexo feminino, e dois com surdez desde o nascimento, de ambos os sexos e com 17 anos na época da realização do estudo.

Os critérios de inclusão na pesquisa foram: 1) ter entre 14 e 17 anos na época da gravação do vídeo e da obtenção das fotografias; 2) possuir uma deficiência e estudar em escola regular; 3) ter recebido avaliação de "crescimento satisfatório" por profissionais da escola, mesmo estando sob adversidades; 4) ter pais ou responsáveis que consentissem participar da pesquisa com o adolescente.

2.2 PROCEDIMENTOS

Para a coleta de dados foram utilizados gravador de voz, câmeras filmadoras e máquinas fotográficas descartáveis, bem como roteiros prévios de entrevistas semiestruturadas. Antes de seu início, o projeto passou pela avaliação do CEP da Unesp, tendo sido aprovado na íntegra. Cuidados éticos foram imprescindíveis nesta pesquisa, em razão da visibilidade gerada pelos vídeos e fotos. Resumidamente os procedimentos da pesquisa estão descritos a seguir.

  • a) Primeira fase: identificação dos participantes e obtenção dos Termos de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) deles e dos responsáveis.

  • b) Segunda fase: pré-filmagem e preparação das famílias. Realização de uma primeira entrevista semiestruturada visando ao levantamento de informações sobre a realidade e as experiências dos participantes.

  • c) Terceira fase: contextualização da vida dos participantes por meio de fotografias. Com o uso da técnica de coleta de dados "evocação fotográfica - "photo elicitation" (HARPER, 2002HARPER, D. Talking about pictures: A case for photo elicitation. Visual Studies, Reino Unido, v.17, n.1, p.13-26, 2002.), os adolescentes tiveram a oportunidade de fotografar pessoas, espaços e situações de sua vida, centrando-se em aspectos positivos e negativos de seu cotidiano e em formas de enfrentamento de desafios, com posterior entrevista semiestruturada, com foco nas fotografias reveladas.

  • d) Quarta fase: primeira interação de filmagem "um dia de sua vida" - "a day in the life" - baseado em Gillen et al. (2007)GILLEN, J. et al. 'A Day in the Life': Advancing a methodology for the cultural study of development and learning in early childhood. Early Child Development and Care, Nottingham, v.177, n.2, p.207-218, 2007.. Ida a casa ou outro local, como a escola ou clínica de tratamento, com data e horário definidos em conjunto para a realização das filmagens do cotidiano dos adolescentes e das anotações do campo. Captação de oito a 12 horas de filmagens, incluindo sessões em mais de um dia e em diversos locais.

  • e) Quinta fase: seleção dos vídeos. As filmagens foram examinadas pelos pesquisadores e auxiliares de pesquisa, que selecionaram os trechos mais significativos de cada filme, associados a situações favorecedoras de resiliência. Das oito a 12 horas captadas, foram selecionados entre seis e oito segmentos dos dias dos adolescentes, com duração de cinco a seis minutos cada, totalizando aproximadamente 30 minutos de filmagem. Os segmentos foram compilados e editados com o uso do software Pinnacle, versão 1.1.

  • f) Sexta fase: próximo momento interativo. Após conferir a compilação/edição dos clipes, os pesquisadores se reuniram com os adolescentes para assistir juntos aos clipes selecionados, e, seguindo um roteiro de entrevista semiestruturada, eram estimulados comentários sobre cada clipe selecionado.

  • g) Sétima fase: análise do material compilado. As análises foram realizadas com base em um conjunto de dados bastante vasto, incluindo as três entrevistas semiestruturadas, o conteúdo das fotografias e filmagem e as anotações de campo.

Para a análise dos dados foi adotada TFD (Grounded Theory Methodology), tendo como base Charmaz (2009)CHARMAZ, K. A construção da teoria fundamentada - guia prático para análise qualitativa. Porto Alegre: Artmed, 2009. 266p., Liebenberg, Didkowsky e Ungar (2012)LIEBENBERG, L.; DIDKOWSKY, N.; UNGAR, M. Analysing image-based data using grounded theory: The negotiating resilience project. Journal of Youth Studies, Reino Unido, p.59-74, 2012. e Souza (2003)SOUZA, M. T. S. A resiliência na terapia familiar: construindo, compartilhando e ressignificando experiências. 2003. 210f. Tese (Doutorado em Psicologia), Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2003..

Charmaz (2009)CHARMAZ, K. A construção da teoria fundamentada - guia prático para análise qualitativa. Porto Alegre: Artmed, 2009. 266p.apresenta a proposta da TFD, criada por Glaser e Strauss em 1967, os quais defendiam o "desenvolvimento de teorias a partir da pesquisa baseada em dados" (CHARMAZ, 2009, p.17CHARMAZ, K. A construção da teoria fundamentada - guia prático para análise qualitativa. Porto Alegre: Artmed, 2009. 266p.), sendo imprescindível a adoção de estratégias sistemáticas para a prática da pesquisa qualitativa. Liebenberg, Didkowsky e Ungar (2012)LIEBENBERG, L.; DIDKOWSKY, N.; UNGAR, M. Analysing image-based data using grounded theory: The negotiating resilience project. Journal of Youth Studies, Reino Unido, p.59-74, 2012. foram fundamentais na explicitação do uso da TFD na análise das imagens produzidas pelos adolescentes por meio das fotos e dos filmes, tendo sido priorizadas interpretações subjetivas de suas realidades e experiências.

Do ponto de vista do processo formal da análise, após a transcrição literal de todas as entrevistas, a análise das fotografias, o exame e a compilação dos DVDs e a transcrição dos trechos de diálogos selecionados presentes nos clipes, procedeu-se à codificação inicial e à criação de memorandos, inicialmente feitas pelos pesquisadores.

O objetivo das entrevistas com os adolescentes era descobrir com eles os significados das imagens (fotos e vídeos) e fazer com que, por meio destas, aqueles pudessem contar sobre suas vidas - aspectos positivos, dificuldades enfrentadas, formas de lidar com elas etc. A partir das interpretações sobre as fotos e os clipes durante as entrevistas, foram criadas codificações também por parte dos adolescentes, incorporadas aos demais códigos criados pelos pesquisadores, como resultado da análise das imagens visando à descoberta de informações explícitas e implícitas. Os próprios adolescentes, ao interagir com seus vídeos e fotos e comentá-los, envolveram-se com os dados e participaram na codificação inicial, confirmando ou desafiando os códigos elaborados pelos próprios pesquisadores.

Em seguida, procedeu-se à codificação focalizada proposta por Charmaz (2009)CHARMAZ, K. A construção da teoria fundamentada - guia prático para análise qualitativa. Porto Alegre: Artmed, 2009. 266p., quando se usaram os códigos iniciais mais significativos ou frequentes para filtrar quais, dentre eles, eram mais adequados para a categorização ampla dos dados, os quais possibilitariam sentidos analíticos. Os memorandos - comentários, insights - auxiliaram nesse momento de decisões. Enquanto se trabalhou com os dados codificados, que inicialmente foram construídos separadamente (cada adolescente em separado), conexões entre os códigos e as subcategorias (havia um grupo de subcategorias por adolescente) se tornavam evidentes, e os memorandos sobre essas conexões eram cruciais para a análise que estava sendo feita, pois geravam codificações detalhadas, que possibilitavam a criação de categorias mais abrangentes a partir da reunião das subcategorias.

3 RESULTADOS

Como resultados do processo de análise emergiram cinco categoriais, descritas a seguir, no interior das quais foram identificados processos protetivos associados à resiliência dos quatro participantes da pesquisa.

3.1 CONSTRUINDO A INCLUSÃO SOCIAL POR MEIO DO ENFRENTAMENTO DAS BARREIRAS E DO ESTABELECIMENTO DE RELAÇÕES INTERPESSOAIS DE QUALIDADE

Nesta categoria, deve ser ressaltada a qualidade dos relacionamentos interpessoais que se estabelecem entre os adolescentes, seus familiares, amigos e profissionais, bem como a forma de os adolescentes conceberem a deficiência ou a surdez, que se relaciona à percepção das barreiras atitudinais e arquitetônicas existentes na luta pela inclusão. Constatou-se que as estratégias usadas pelos adolescentes se manifestam em diferentes níveis e que alguns desses jovens têm mais consciência quanto às barreiras.

O caminho pela inclusão não se encontra acabado e nem é fácil para os adolescentes, havendo variações entre eles: há desde o adolescente surdo que rompe cotidianamente os limites da comunicação até o adolescente com deficiência física que utiliza cadeira de roda e diariamente solicita de sua mãe que o deixe fazer sozinho algumas atividades da vida diária, explicando que é capaz de fazê-las. Em trechos das filmagens do adolescente surdo, observam-se sua gesticulação e o uso de software de computador para explicar acontecimentos de seu cotidiano para a pesquisadora que não domina Libras. O adolescente com deficiência física, ao ser perguntado sobre como enfrenta desafios cotidianos, fala em sua entrevista: "Não ficando triste... e tentando fazer as coisas sozinho: comer, escrever, trocar de roupa".

A boa qualidade das relações interpessoais pôde ser observada em trechos dos clipes de três adolescentes, bem como em suas falas quando viram as fotos e filmagens de seu cotidiano. Dentre as fotografias do adolescente com deficiência física, estão, em sua maioria, fotos tiradas dele e de seus colegas na escola, nas quais todos aparecem alegres; em clipes de seu vídeo, pôde ser observado ainda o bom vínculo entre ele e os colegas de sala durante o horário de lanche e em atividades dentro da classe. Quanto à adolescente surda, foram captadas imagens muito ricas da relação entre ela e sua melhor amiga, vizinha de casa, nas quais elas se comunicam por meio de alguns sinais e do uso de celulares, com digitação das mensagens, favorecendo a comunicação. As duas riem muito e demonstram carinho uma com a outra. Além dessas imagens, verificou-se o bom vínculo estabelecido entre a adolescente surda e demais colegas surdos durante uma aula no Atendimento Educacional Especializado (AEE), que ocorre na própria escola. Com relação ao adolescente surdo, constatou-se, pelas filmagens, seu esforço para estabelecer comunicação com a pesquisadora-ouvinte, fazendo gestos, escrevendo no computador, mostrando mapas. Durante as entrevistas, ele destacou a importância de seu irmão sempre convidá-lo para passear com seus amigos.

3.2 FORTALECIMENTO PELA PARTICIPAÇÃO EM PRÁTICAS CULTURAIS VALORIZADAS PELO GRUPO SOCIAL

Nesta categoria foi incluída a participação dos adolescentes em diversas práticas culturais (ROGOFF, 2005ROGOFF, B. A natureza cultural do desenvolvimento humano. Porto Alegre: ARTMED, 2005. 356p.), tais como: atividades domésticas (limpeza e manutenção da casa, bem como práticas de cuidado com familiares ou animais domésticos); o uso de recursos de tecnologia, dentre eles, as redes de relacionamentos sociais (como Orkut, Facebook eMSN), outras ferramentas (como Google Maps eYoutube) e o telefone celular. Outras práticas observadas foram o ensino de Libras a familiares, o treino de Libras por meio do Youtube e a alta frequência no atendimento clínico, no caso dos adolescentes com deficiência física.

Participando das práticas culturais reconhecidas e valorizadas pelo grupo familiar, comunidade e amigos, os adolescentes desenvolvem estratégias de fortalecimento ao sentirem-se pertencentes aos grupos e incluídos em atividades que são partilhadas por todos. Seus familiares e amigos não os colocam em um lugar de vítimas, pois foi claramente evidenciado que os adolescentes não eram poupados de colaborar com a família, apesar de suas condições físicas ou sensoriais. A importância do uso das tecnologias como ferramentas ampliadoras da comunicação entre os surdos foi constatada durante as filmagens, nas quais se visualizaram os esforços dos dois adolescentes na relação com os ouvintes, mediada pelos celulares e computadores.

3.3 RECONHECIMENTO DAS TRANSFORMAÇÕES EM SUAS CAPACIDADES, FAVORECIDAS PELA APRENDIZAGEM E PELO RELACIONAMENTO COM OS PROFISSIONAIS DA ESCOLA

Esta categoria é fundamental ao mostrar o importante lugar ocupado pela escola na vida dos adolescentes surdos e com deficiência física, na medida em que a instituição é significada como local de proteção, associado a acolhimento e adequação às necessidades físicas do adolescente. Deve ser destacado o papel imprescindível da aprendizagem de Libras, oferecida pela escola regular (que era contrária a oralização dos surdos) quando os adolescentes tinham por volta de 11 anos. O acesso às Libras promoveu um grande avanço no desenvolvimento cognitivo e na ampliação da linguagem dos adolescentes, dando-lhes mais condições de se relacionarem com pessoas na família e na escola e de compreenderem melhor as disciplinas pedagógicas com auxílio da professora intérprete e das atividades da sala de AEE (SILVA, 2007SILVA, A. Deficiência auditiva - AEE - pessoa com surdez. São Paulo: MEC/SEESP, 2007.).

Ressalta-se que, no caso dos adolescentes com deficiência, o tema da inclusão escolar é central na literatura da área, e se a escola é percebida como um lugar acolhedor e que responde às necessidades específicas dos jovens, tanto as famílias como os adolescentes atribuem à instituição um valor significativo no processo de inclusão escolar e social mais amplo, assumindo um lugar de proteção em suas vidas e constituindo-se como relevante no processo de resiliência.

Durante as entrevistas, os adolescentes referiram-se à presença de professores e amigos - com ou sem deficiência - empáticos e solidários, que auxiliavam o jovem cadeirante na locomoção e os adolescentes surdos nas explicações e nos trabalhos conjuntos em sala de aula.

3.4 ENFRENTAMENTO DOS DESAFIOS, BUSCANDO ESTRATÉGIAS PARA MINIMIZAR A EXCLUSÃO

As maiores dificuldades enfrentadas pelo grupo dos adolescentes com deficiência são específicas à sua condição. No caso dos surdos, envolve a questão da comunicação, a dificuldade na leitura e escrita em português e, em decorrência disso, dificuldades para estudar e fazer provas na escola. No enfrentamento desses desafios, usam algumas estratégias: aprendem, aperfeiçoam e ensinam Libras (para ouvintes, familiares e amigos); procuram sala de AEE e estudam com a professora intérprete; buscam auxílio por meio da tecnologia e da ajuda dos amigos, demonstrando uma atitude ativa, de negociação por recursos que os beneficiam.

No que se refere aos adolescentes com deficiência física, seus desafios englobam a superação da dor e das limitações físicas. Para seu enfrentamento, usam as seguintes estratégias: frequentam as sessões de fisioterapia e persistem no tratamento apesar das dificuldades motoras e físicas; constroem bons vínculos com amigos e profissionais das instituições que utilizam; e desenvolvem persistência e força de vontade, estimulados pelos profissionais e seus familiares. Outros desafios enfrentados referem-se ao método escolar de ensino e avaliação, à adaptação a aparelhos, aos problemas financeiros e ao desinteresse e desmotivação, principalmente quando a instituição escolar não consegue trabalhar com eles e os negligencia.

3.5 ASSUMINDO DECISÕES E BUSCANDO AUTONOMIA PESSOAL

Os dados empíricos obtidos demonstraram que o desejo por autonomia e independência nas relações interpessoais e nas atividades atuais e futuras está presente na vida dos quatro participantes, o que se manifesta em uma diversidade de situações. Embora com variações quanto às formas de autonomia buscada e quanto às estratégias para acessá-las, os adolescentes com deficiência expressaram essa busca por meio do desejo de independência na realização de atividades cotidianas básicas; do poder de decisão sobre a frequência ao atendimento fisioterápico; da proposição de atividades a serem desenvolvidas na sessão de fisioterapia; da participação na escolha do local e dia das filmagens; do uso de estratégias eficazes de comunicação com ouvintes, buscando aperfeiçoar-se; e da iniciativa em ensinar Libras aos familiares e amigos.

4 DISCUSSÃO

Os resultados proporcionaram a reflexão sobre aspectos relevantes que podem subsidiar ações de profissionais de diversas áreas, como Educação, Educação Especial e Inclusiva e Psicologia, a fim de favorecer o processo de resiliência em adolescentes com deficiência.

Como a resiliência dessa população encontra-se bastante articulada com a problemática da inclusão social e escolar, com o reconhecimento de sua condição e com a identificação de estratégias de enfrentamento das barreiras encontradas, constatou-se que o sentido da inclusão para os adolescentes perpassa as atitudes expressas pelas pessoas com os quais convivem e pela participação efetiva deles em práticas culturais. Com relação às tais atitudes, posturas contrárias à vitimização dos adolescentes e à superproteção assumem um lugar de destaque, na medida em que sinalizam aos próprios adolescentes suas capacidades que são reconhecidas pelos familiares, amigos e profissionais.

Nesse quesito também se encontraram variações nas formas de as mães, especialmente, relacionarem-se com os adolescentes, pois há desde aquela família que atua de forma protetora, não deixando o adolescente pegar ônibus ou sair para fazer compras desacompanhado, até aquela que solicita uma contribuição mais efetiva nas atividades domésticas, indicando que não vê o jovem como incapaz de participar da dinâmica familiar. Foram constatadas, portanto, variações nos níveis de proteção das famílias quanto à atribuição de responsabilidades aos adolescentes, implicando ainda diferentes graus de orientação e supervisão.

Um aspecto importante dos processos de resiliência nos participantes refere-se ao fato de que a deficiência física e a surdez não são usadas como justificativas, nem pelos adolescentes nem por suas famílias, para esquivarem-se de certas responsabilidades ou para amenizarem os comportamentos inadequados ou problemáticos. Disso depreende-se que a superproteção não está associada a processos protetivos e resiliência, devendo ser evitada pelos familiares e profissionais da educação.

As interações sociais com amigos e familiares variam em termos da frequência e qualidade de vínculos. Há surdos cujos irmãos os incluem em todas as atividades de lazer e aqueles com quem os irmãos pouco interagem. A presença de pais que motivam e elogiam os adolescentes e acreditam neles, além de familiares que os incluem em atividades lúdicas e de lazer com amigos e família expandida, dando indicativos de que aceitam a diferença representada pela condição dos adolescentes, também se configuram como um importante processo protetivo. Ainda como importante aspecto da inclusão social e, portanto, indicador de proteção, verificou-se o senso de pertencimento tanto no grupo dos ouvintes - por meio do convívio com familiares e amigos, do ensino de Libras, da percepção das relações de mútua ajuda, solidariedade e empatia com os amigos - como no grupo de surdos - por meio da participação em comunidades surdas pela internet e do convívio com outros amigos surdos na escola. No caso do adolescente com deficiência física, o indicador de pertencimento é sua participação em aulas na escola regular e sua eficiente interação com amigos que não possuem deficiência nesse espaço. Os adolescentes surdos demonstram constantemente o desejo de incluir-se em vários contextos, com a consciência de que para isso a melhora em sua capacidade de comunicar-se é fundamental, de forma que vivem criando estratégias para ampliar essa capacidade.

De acordo com Young, Green e Rogers (2008)YOUNG, A.; GREEN, L.; ROGERS, K. Resilience and deaf children: a literature review. Deafness and Education International, Leeds, v.10, n.1, p.40-55, 2008., a não resignação é importante na resiliência, quando se considera a população com deficiência. Isso pôde ser observado nos adolescentes surdos ao frequentarem a escola regular e a sala de recursos e ao ensinarem Libras para amigos e familiares, não se abatendo; e no caso dos adolescentes com deficiência física, ao não desistirem das sessões de fisioterapia.

A boa qualidade dos vínculos estabelecidos entre os adolescentes, seus amigos e os profissionais que os atendem, seja nas clínicas ou nas escolas, tem papel de destaque, pois, como afirma Cyrulnik (1999), o vínculo e o apego com pelo menos uma pessoa significativa, denominada por ele de "tutor de resiliência", com a qual é estabelecida uma relação empática que estimula a autoconfiança, autoestima e perspectiva positiva de futuro, associam-se aos processos de resiliência.

Com relação à participação em práticas culturais (ROGOFF, 2005ROGOFF, B. A natureza cultural do desenvolvimento humano. Porto Alegre: ARTMED, 2005. 356p.) valorizadas pelo grupo social, como atividades domésticas e de cuidados, que podem ser vistas como contribuição à família (THERON et al., 2011THERON, L. et al. A 'day in the lives' of four resilient youths: Cultural roots of resilience. Youth and Society, v.20, n.10, p.1-20, 2011.; UNGAR; THERON; DIDKOWSKY, 2011UNGAR, M.; THERON, L.; DIDKOWSKY, N. Adolescents' precocious and developmentally appropriate contributions to their families' well-being and resilience in five countries. Family Relations, v.60, n.2, p.231-246, 2011.), ocorre com três adolescentes, embora haja variações quanto a frequência, tipo de responsabilidade delegada e características da atividade desenvolvida. As atividades em família que são partilhadas por todos os membros são uma forma de inclusão que fortalece o senso de pertencimento.

A relação com a escola é relevante, entretanto, é importante destacar que ela vem carregada de controvérsias e ambiguidades quanto a seu papel protetivo. A escola é entendida como proteção quando oferece sala de recursos que garante o ensino de Libras e AEE, no caso dos surdos; quando a relação com a professora de Libras é sentida como emancipatória, por tirá-los do isolamento social e ampliar suas estratégias de comunicação; quando existem professores intérpretes na sala de aula; e quando os amigos são pacientes e os ajudam. Portanto, a escola é vista como importante indicador de proteção e gerador de resiliência quando promove atividades acadêmicas que funcionam como motores do desenvolvimento cognitivo dos alunos, ampliando e diversificando seu pensamento e seu conhecimento científico.

Apesar desses aspectos positivos, verificou-se também um sentido oposto, quando essa instituição recebe avaliação negativa por ser feia e por não atender as necessidades de comunicação dos adolescentes surdos; quando não investe no desenvolvimento de companheirismo; quando é desmotivadora e não promove participação dos alunos e dos profissionais, gerando acomodação. A introdução de Libras, ensinada pela escola somente no segundo ciclo do Ensino fundamental, mostrou a ausência de políticas de inclusão escolar no que se refere às séries iniciais da escolarização, considerando a realidade dos dois adolescentes surdos.

O enfrentamento dos desafios é compreendido pelos adolescentes como uma tarefa cotidiana e contínua, pois eles visualizam barreiras que poderão encontrar na sua vida futura, devido às suas condições. Os resultados indicam que a resiliência deles se constrói na intersecção das relações interpessoais e nas práticas culturais que envolvem receber, buscar e oferecer apoio. Subjacente às estratégias de enfrentamento usadas pelos adolescentes com deficiência física e surdez, percebeu-se que o desejo de avançar no sentido da inclusão, rompendo com a exclusão, é significativo. Constatou-se que o processo de rompimento com a exclusão não é rápido, ele é permanente e não se dá de forma isolada nem depende exclusivamente dos adolescentes. O caminho em direção à inclusão, associada aos processos de resiliência, ocorre na conjunção de três variáveis: o próprio adolescente (o sujeito) no interior das relações interpessoais (relacionamentos interpessoais); os recursos presentes em suas comunidades (propiciados por políticas públicas na área da educação e inclusão escolar); e a participação desses jovens em práticas culturais valorizadas pelos grupos sociais dos quais fazem parte.

Também foi observada a existência de consciência social por parte dos adolescentes, expressa nas entrevistas e fotografias pela preocupação com o meio ambiente e a poluição, pelo gosto em realizar passeios em parques e estar em contato com a natureza e pela preocupação, por residirem em bairro violento com assaltos, com irmãos que estudam à noite. Além disso, são capazes de perceber desafios que podem encontrar para efetivar sua inclusão social futura. Esses desafios se relacionam às oportunidades de emprego e à formação profissional, como, por exemplo, frequentar uma universidade; e à falta de recursos do governo para garantir a inclusão escolar e social das pessoas com deficiência, que resulta, por exemplo, na falta de acessibilidade nas ruas da cidade.

Um aspecto relativo à independência relaciona-se com os níveis de autonomia que os adolescentes têm quando se locomovem sem seus familiares, autonomia que apresenta variações entre aos quatro adolescentes de acordo com as dificuldades pessoais e a educação recebida por parte dos pais.

Com base na riqueza dos dados obtidos com os adolescentes, constatou-se que o "sentir-se incluído" em vários âmbitos da sociedade associa-se à resiliência e permite que os jovens se percebam como pertencentes aos grupos sociais. O processo de inclusão, portanto, permeado pela participação em práticas culturais, mas também por obstáculos que vão sendo enfrentados cotidianamente de forma compartilhada com as pessoas significativas nas vidas dos adolescentes, possibilita a construção de estratégias e recursos cada vez mais eficazes de enfrentamento das barreiras físicas, preconceito e práticas discriminatórias, ou seja, de superação das adversidades vividas.

5 CONCLUSÃO

Conclui-se que os processos protetivos e a resiliência na população estudada caracterizam-se pelo esforço compartilhado dos adolescentes com pessoas muito significativas em seu contexto, visando a sua trajetória em direção à inclusão social. Esse caminho passa, inicialmente, pela consciência social dos adolescentes quanto às barreiras físicas e atitudinais que dificultam sua inclusão mais efetiva e, posteriormente, pelo enfrentamento das dificuldades por meio da motivação pessoal, das relações interpessoais significativas e das atitudes ativas de busca por recursos que eles percebem como necessários.

Os quatro adolescentes evitam uma posição passiva frente aos desafios maiores enfrentados - referentes à comunicação (para os surdos) e à dor e às limitações na autonomia (para os adolescentes com deficiência física) -, visando à minimização da exclusão e ampliando as oportunidades de crescer bem. Nesse percurso participa ativamente, ao lado dos adolescentes, um grande número de pessoas, como seus pais, irmãos, fisioterapeutas, professor intérprete e amigos que se dedicam a colaborar nesse processo de inclusão social. Paralelamente, há a participação dos adolescentes em práticas culturais significativas e valorizadas em suas famílias, comunidades e grupo de pares. Essas práticas culturais, que ocorrem cotidianamente, oferecem subsídios e estratégias que assumem um papel muito importante no enfrentamento da exclusão, auxiliando na minimização de barreiras e limitações e no desenvolvimento do sentimento de partilha e pertencimento.

Os espaços onde se propiciam as transformações nas capacidades dos adolescentes e que lhes dão mais instrumentos para o enfrentamento da exclusão social são os espaços formais, tais como escolas regulares e clínicas de fisioterapia que ampliam as possibilidades de movimentação e autonomia física aos que possuem deficiência física. Quanto aos espaços informais, destacam-se os contextos promotores de desenvolvimento, tais como o ambiente familiar e o convívio com amigos. Portanto, os fundamentos dos processos protetivos associados à resiliência nos adolescentes com deficiência física e surdez encontram-se vinculados com seu caminho em direção à inclusão social, desejada e buscada ativamente por eles; com os relacionamentos interpessoais de qualidade com pessoas importantes em suas vidas; e com sua participação nas práticas culturais diárias, dentre as quais, aquelas oferecidas pelas escolas se mostram como imprescindíveis.

Nesta pesquisa, constatou-se que práticas escolares sérias, com envolvimento dos profissionais da educação e sensibilização dos colegas, que não sejam vitimadoras nem paternalistas, podem facilitar a inclusão social e, assim, promover processos de resiliência. A motivação e a capacidade dos adolescentes com deficiência estudados nesta investigação podem ser fortalecidas pela presença de políticas públicas que visem à ampla inclusão dos jovens em vários espaços e igualmente pela atuação das áreas de educação e saúde, que devem ampliar o acesso a bens culturais, esporte, lazer e a formação para o trabalho e oferecer importantes redes de apoio, que possam ser acionadas mediante as necessidades dos adolescentes.

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  • 1
    Financiamento da FAPESP

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    04 Set 2014
  • Revisado
    03 Mar 2015
  • Aceito
    05 Mar 2015
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