Open-access IMPLICAÇÕES DAS CONCEPÇÕES DE DEFICIÊNCIA NA IN/EXCLUSÃO ESCOLAR: NARRATIVAS DE VELHOS1,2

IMPLICATIONS OF CONCEPTIONS OF DISABILITY IN SCHOOL IN/EXCLUSION: NARRATIVES OF OLD PEOPLE

RESUMO

A história registra diferentes formas de tratar as pessoas com deficiência, do extermínio à reclusão, à integração e, mais recentemente, à inclusão desse público em todas as esferas sociais. Entretanto, essas formas não seguem uma progressão linear ou excludente, uma vez que se entrecruzam e, por vezes, há retrocessos. Este estudo resulta de uma pesquisa que objetivou identificar, por meio das narrativas de velhos, a forma de tratar as pessoas com deficiência em suas trajetórias de vida e como tais concepções históricas implicaram - e ainda implicam - a in/exclusão escolar. A pesquisa caracteriza-se como qualitativa e, para o seu desenvolvimento, foram adotadas entrevistas narrativas com nove pessoas acima de 70 anos, residentes no locus deste estudo. As materialidades empíricas oriundas das entrevistas narrativas foram organizadas em agrupamentos temáticos e examinadas por meio da Análise do Discurso, com inspiração foucaultiana. O estudo aponta olhares estigmatizantes acerca das pessoas com deficiência, como a naturalização da não aprendizagem, o que justificaria a exclusão escolar. A pesquisa aponta também que as políticas de inclusão produziram avanços consideráveis nas concepções de deficiência e nas práticas educacionais.

PALAVRAS-CHAVE:
Deficiência; Subjetivação; Efeitos de verdade; Memórias de velhos; In/exclusão escolar.

ABSTRACT

History records different ways of treating people with disabilities, ranging from extermination to confinement, to integration and, more recently, to their inclusion in all spheres of social life. However, these approaches do not follow a linear or exclusive progression, as they often overlap and, at times, reveal setbacks. This study stems from research that aimed to identify, through the narratives of old people, how people with disabilities were treated throughout their life trajectories and how such historical conceptions have shaped - and continue to shape - school in/exclusion. This is a qualitative study, developed through narrative interviews with nine individuals over the age of 70, all residents of the research setting. The empirical material drawn from the interviews was organized into thematic clusters and examined through Discourse Analysis, inspired by Foucault. The findings highlight stigmatizing views toward people with disabilities, such as the naturalization of non-learning, which was used to justify school exclusion. The study also shows that inclusion policies have brought considerable advances in conceptions of disability and in educational practices.

KEYWORDS:
Disability; Subjectivation; Effects of truth; Memories of old people. School in/exclusion.

1 INTRODUçãO

A história registra diferentes formas de compreender a deficiência e as pessoas com deficiência: o extermínio, a reclusão, a integração e, mais recentemente, o movimento pela inclusão, que se mostra um processo multifacetado, embora reconheça a diferença como direito, como uma forma de ser e estar no mundo.

Esses acontecimentos não são lineares, como se fossem uma evolução natural, tampouco excludentes, uma vez que se movimentam e, por vezes, até retrocedem. Thoma e Kraemer (2017) apresentam três momentos da história da educação de pessoas com deficiência (sem limitar o conceito de inclusão), que se manifestam: a) na inclusão como reclusão; b) na inclusão como integração; e c) na inclusão como um direito e imperativo do Estado. As autoras nos provocam a pensar a inclusão como um direito humano inegociável, ao qual todos devem ter acesso, participação e aprendizagem, seja na escola, seja em outros espaços da sociedade. Segundo Veiga-Neto (2011), isso pressupõe a necessidade de gerar conhecimento acerca dos corpos estranhos dos outros, dos anormais, dos excluídos, ou seja, objetiva aproximá-los, familiarizá-los e governá-los. Esse destaque evidencia os efeitos de verdade acerca das pessoas com deficiência em cada tempo histórico e como tais olhares definiram a vida desses sujeitos.

A Declaração de Salamanca (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura [Unesco], 1994), um dos marcos internacionais da inclusão, salienta como princípio a escola inclusiva, na qual todas as crianças podem aprender juntas, visto que é, na escola, espaço comum de convívio, que as diferenças se encontram e se complementam. Apesar da visão amplamente difundida da diferença na escola, como um rico mosaico, um olhar mais atento revelará os desafios e os paradoxos da inclusão em uma sociedade neoliberal que prioriza a competição, a concorrência e a valorização do mérito individual.

Este estudo resulta da dissertação de Mestrado em Educação, intitulada Concepções de deficiência e suas implicações na in/exclusão escolar: narrativas de velhos, da primeira autora deste artigo (Britto, 2024), sob orientação da segunda autora, da Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Unochapecó). A proposta da pesquisa foi conhecer narrativas de velhos acerca de suas concepções sobre deficiência, o que fez emergir os olhares e as memórias que eles trouxeram consigo ao longo de suas vidas, e como essas representações, forjadas ao longo dos séculos, influenciaram/influenciam as práticas de in/exclusão escolar.

A escolha do termo “velhos” é uma forma de indagação e de “[...] enfrentamento de algo que incomoda, que assusta e que muitas vezes tentamos maquiar com termos mais amenos e politicamente corretos” (Rech, 2018, p. 17). De acordo com Beauvoir (1990), “para a sociedade, a velhice aparece como uma espécie de segredo vergonhoso, do qual é indecente falar” (p. 8). É como um fantasma que ninguém quer e/ou não consegue encarar. Assim sendo, recorremos ao termo “velhos”, mesmo que isso inquiete alguns leitores, a fim de quebrar o silêncio, trazer à luz esse fantasma que, para muitos, é o envelhecimento. Poderíamos tê-los chamado de anciões ou de idosos, mas optamos por enfrentar esse estereótipo, ao afirmar que o termo “velhos” é carregado de significados. Salientamos que os velhos entrevistados não foram, na vida pregressa, pessoas com deficiência, embora, na velhice, condições limitadoras ou de deficiência possam estar presentes. Os entrevistados falam, portanto, da deficiência de outras pessoas.

Ao longo da história, assim como a velhice, a deficiência foi e ainda é tratada como um tabu, um assunto que deixa algumas pessoas desconfortáveis, considerando-se que evidencia o mito da normalidade, uma vez que a fragilidade do outro aponta a fragilidade humana. Tessaro et al. (2022) destacam, em seu estudo, que:

A dificuldade de conviver com a diferença é um dos principais aspectos que fundamentam a prática de bullying. (...). A diferença é percebida como estranhamento, como algo que incomoda e desestabiliza. A sociedade estabelece normas e considera normal os que se ajustam às normas estabelecidas. Nessa perspectiva, estudantes com deficiência são compreendidos como alguém a ser corrigido, normalizado e até mesmo inferiorizado. (p. 16)

A prática do bullying, segundo Tessaro et al. (2022), encontra seus fundamentos na dificuldade de conviver com a diferença em relação aos padrões socialmente estabelecidos. A sociedade rotula o corpo que se afasta da norma como estranho em relação ao padrão cultural, social e pedagogicamente aceito. Assim, emerge a ideia de que a deficiência é algo a ser corrigido, normalizado.

A percepção da diferença de um corpo como algo estranho, fora do padrão de normalidade estabelecido pela sociedade, é desafiadora, desestabilizadora e contribui para a marginalização e a exclusão de pessoas com deficiência. Ao estabelecer normas e considerar como normais apenas aqueles que se ajustam aos padrões estabelecidos, a sociedade reforça, por conseguinte, a exclusão daqueles que se distanciam dessas normativas.

Diante do exposto, apresentamos o problema de pesquisa que direcionou a investigação: Como velhos narram as formas de tratar as pessoas com deficiência em suas trajetórias de vida e como tais concepções, historicamente naturalizadas, implicam a in/exclusão escolar? Do problema de pesquisa emergem as seguintes questões: Como pessoas com idade a partir de 70 anos narram suas concepções de deficiência? As políticas inclusivas provocam deslocamentos nessas concepções?

A justificativa para a realização da pesquisa reside no desejo de registrar memórias de velhos em relação à forma como pessoas com deficiência foram tratadas ao longo dos tempos, ou até há algumas décadas, no contexto em que desenvolvemos a investigação - em uma região do Extremo Norte do Rio Grande do Sul, Brasil. A mobilização para pesquisar foram as lembranças da exclusão escolar de crianças com deficiência e o desconhecimento da existência de algumas nas comunidades em décadas passadas. Constatamos que o tema era “fechado”, “proibido”, e as pessoas não eram vistas pela perspectiva de que a diferença é uma condição humana, mas, sim, como uma monstruosidade.

Pessoas com deficiência existiam na comunidade locus da pesquisa, e algumas eram tratadas como “bobos da corte”. Inclusive, havia boatos de que algumas eram abusadas sexualmente. Embora, na época, tais tratamentos fossem naturalizados e não se falasse em bullying, hoje podemos compreender que era disso que se tratava, além, claro, de outras formas de violência. A deficiência era compreendida como algo indesejável e como uma condição de subalternidade. Contudo, Skliar (1999) enfatiza que as diferenças “não devem ser entendidas como um estado não desejável, impróprio, de algo que cedo ou tarde voltará à normalidade. (...) a diferença existe independentemente da autorização, da aceitação, do respeito ou da permissão outorgada da normalidade” (p. 22).

Diante do exposto, o objetivo geral da pesquisa foi identificar, por meio de narrativas de velhos, a forma de tratar as pessoas com deficiência em suas trajetórias de vida e compreender como tais concepções implicam a in/exclusão. Do objetivo geral, derivam-se os seguintes objetivos específicos: analisar como, em anos passados, as pessoas com deficiência eram tratadas e por que eram compreendidas/tratadas daquela forma; verificar como é compreendida a deficiência pelos velhos entrevistados; compreender como a concepção de deficiência reverbera na in/exclusão escolar de estudantes com essa especificidade; e compreender se as políticas de inclusão provocam deslocamentos nessas concepções.

2 MéTODO

Este artigo refere-se a um estudo de abordagem qualitativa, na perspectiva pós-estruturalista, especialmente a partir dos estudos foucaultianos. Por meio de entrevistas narrativas, foram entrevistados nove participantes com idade a partir de 70 anos, residentes no locus da pesquisa.

Meyer e Paraíso (2021) enfatizam que é indispensável, a quem adota a perspectiva pós-estruturalista, reconhecer que as investigações não acessam verdades absolutas, inquestionáveis, mas, sim, proporcionam a descrição, análise, problematização e modificação de verdades dependentes do contexto e/ou da cultura em que os sujeitos estão inseridos, por meio da qual reproduzem certos consensos acerca da sociedade em que vivem. Bujes (2007) afirma que a pesquisa se constitui de uma inquietação. Geralmente, nasce de uma preocupação, de uma insatisfação com respostas existentes e de dúvidas sobre explicações ou crenças antes consideradas inabaláveis.

A pesquisa foi realizada em um distrito de um município localizado no Extremo Norte do estado do Rio Grande do Sul. Os critérios para a participação no estudo foram: ter acima de 70 anos e residir no locus da pesquisa desde aproximadamente o ano de 1988 (período em que a primeira autora frequentava a escola da comunidade). A participação aconteceu mediante convite e aceite.

Cada participante da pesquisa foi identificado como “Participante”, seguido do número que representa a ordem sequencial crescente dos encontros. Participaram da entrevista dois homens e sete mulheres. Contudo, para simplificar a escrita e preservar a identidade dos participantes, foi adotado o termo “o Participante”, sem distinção de gênero.

Quadro 1
Relação dos participantes da pesquisa e sua caracterização

O estudo envolveu a aplicação de entrevistas narrativas gravadas e transcritas na íntegra. De acordo com Andrade (2021), as histórias narradas por meio das entrevistas “não são dados prontos ou acabados, mas documentos produzidos na cultura por meio da linguagem” (p. 178).

Para o procedimento analítico, as narrativas dos entrevistados foram organizadas em agrupamentos temáticos5, considerando a relevância e a recorrência derivadas dos tópicos orientadores, inspirados nas perguntas de estudo e nos objetivos específicos, e examinadas por meio da Análise do Discurso, com inspiração foucaultiana. Segundo Sales (2021), seguindo a perspectiva foucaultiana, a análise do discurso pressupõe compreender por que “aquilo é dito, daquela forma, em determinado tempo e contexto, interrogando sobre as ‘condições de existência’ do discurso” (p. 127). Quando analisamos discursos, segundo a perspectiva de Foucault, “precisamos antes de tudo recusar as explicações unívocas, as fáceis interpretações e igualmente a busca insistente do sentido último ou do sentido oculto das coisas” (Fischer, 2001, p. 198).

Foucault (1986) afirma que “o discurso não tem apenas um sentido ou uma verdade, mas uma história” (p. 146). Diante disso, é necessário compreender que não há uma única interpretação da história narrada pelos pesquisados, que não existe uma única verdade. Assim sendo, por meio da análise foucaultiana do discurso produzido, são destacados enunciados que apontam o que foi tomado por verdade em determinado tempo e contexto, constituindo, desse modo, conjuntos de existência e fragmentos da história. Fischer (2001), amparada em Foucault, destaca que “analisar o discurso seria dar conta exatamente disso: de relações históricas, de práticas muito concretas, que estão ‘vivas’ nos discursos” (p. 198-199).

Assim, salientamos que, com o estudo, não houve a pretensão de fazer qualquer crítica ou julgamento. Diferentemente disso, ao fazer uma análise de discurso com inspiração foucaultiana, buscamos entender, por meio das narrativas, por que aquilo foi dito pelo entrevistado naquele tempo e espaço, sem, com isso, emitir juízo de valor.

3 RESULTADOS E DISCUSSãO - NARRATIVAS DE VELHOS ACERCA DA DEFICIêNCIA E DE PESSOAS COM DEFICIêNCIA

Nesta seção, abordamos três subtítulos que apresentam as narrativas dos velhos entrevistados: a) Deficiência na concepção dos velhos entrevistados; b) Tratamento de pessoas com deficiência no locus da pesquisa: retrospectiva histórica; e c) Concepções de deficiência e reflexos na in/exclusão escolar.

3.1 DEFICIêNCIA NA CONCEPçãO DOS VELHOS ENTREVISTADOS

Iniciamos este subtítulo com uma nuvem de palavras (Figura 1) que emergiram nas falas dos participantes, evidenciando a concepção de deficiência e o tratamento destinado a pessoas com deficiência, que permeiam suas memórias e vivências. Essas palavras, carregadas de significados e contextos, não são apenas reflexos das memórias e vivências pessoais, mas também produtos de complexas relações de poder, que influenciam as percepções sociais da deficiência.

Figura 1
Nuvem de palavras oriundas das narrativas dos participantes

Expressões depreciativas como “bobo”, “retardado”, “desfigurada”, “desprezado”, “sem memória”, “bobocas”, “tudo torto” não são meros termos. Neles ecoam os estigmas que permeiam a história e carregam a marginalização e a exclusão de pessoas com deficiência. Pieczkowski (2014) destaca que “a pessoa com deficiência já foi narrada na perspectiva do mito, da monstruosidade, da genética, da endocrinologia, da filantropia, da economia, da legislação, da normalização” (p. 144). A palavra é um instrumento poderoso, que foi usado para tecer mitos que obscurecem a experiência humana daqueles que se afastam dos padrões de normalidade.

A partir das narrativas dos velhos entrevistados sobre a concepção da deficiência, faz-se necessário refletir sobre o poder das palavras na construção de estigmas e mitos. Segundo Butler (2021), “uma pessoa não está simplesmente restrita ao nome pelo qual é chamada. Ao ser chamada de algo injurioso, ela é menosprezada e humilhada” (p. 13). Portanto, o poder das palavras reside em sua capacidade de ferir tão profundamente quanto ou, por vezes, mais que qualquer lâmina. Além disso, os efeitos das palavras injuriosas podem reverberar na vida de uma pessoa por um longo prazo, por vezes durante toda a sua vida, pois podem ser algo que fere, que destrói.

Os participantes foram convidados a narrar como compreendem a deficiência. Os Participantes 4 e 8 relataram:

No meu ver, deficiência é aquela pessoa que não tem memória. Eu acho que é a memória que falta para ele, né? (Participante 4)

Deficiência tu fica bobo, não? Tu fica meio bobo, né? Outra coisa, eu não sei. Acho que é isso. (Participante 8)

Essa compreensão acerca da deficiência nos remete ao que Lobo (2015) descreve no livro Os infames da história. A autora aborda frágeis existências, reais, esquecidas, invisíveis na história, vidas infames em meio a uma “multidão de outras, igualmente infelizes, sem nenhum valor” (p. 13), que pouco falaram por si e viveram descritas com estigmas e rótulos que as marginalizaram ao longo do tempo.

Pieczkowski (2014) ressalta a disseminação desses rótulos pejorativos por parte da família, destacando a naturalização de termos como “bobos”, “retardados”, “doentes” e outros. Essa naturalização, segundo Foucault (2008), é parte do processo de normalização, em que certos padrões são estabelecidos como normais, enquanto outros ficam fora dos protótipos da normalidade. Já o Participante 5, ao falar sobre sua compreensão de deficiência, relatou: “O que eu entendo de deficiência... é uma pessoa que não é normal, né? Tem pessoas que têm deficiência física, outras têm deficiência mental” (Participante 5).

A narrativa traz à tona uma perspectiva que remete ao conceito de anormalidade discutido por Veiga-Neto (2011). Segundo o autor, a Modernidade categorizou grupos diversos, dentre eles os que foram rotulados de anormais. Esse termo abarca uma gama de indivíduos que a sociedade tende a marginalizar, incluindo “os sindrômicos, deficientes, monstros (...), os surdos, os cegos, os aleijados, os rebeldes, os pouco inteligentes, os estranhos, (...) os ‘outros’, os miseráveis” (p. 105). A deficiência, aqui, é percebida com estranhamento, como algo que incomoda e desestabiliza, pois a sociedade estabelece padrões, normas e considera normais os que se ajustam a elas.

As narrativas dos velhos sobre a concepção de deficiência em décadas passadas evidenciam uma visão ancorada em estereótipos, associando-a à ausência de memória, infantilização e falta de defesa, refletindo a maneira como a sociedade, historicamente, construiu essas representações. Ademais, dentre as concepções históricas acerca das pessoas com deficiência, o olhar sob o prisma da benevolência, da inutilidade social, está presente na contemporaneidade. Ao relatarem o que é deficiência e como a compreendem, os Participantes 1 e 6 narraram:

A gente fica com dó da pessoa, né? Muitos não podem nem comer, nem nada, né? São deficientes mesmo. (Participante 1)

Ah, quando não consegue trabalhar, eu acho. (Participante 6)

Essas falas dos participantes remetem ao que Pessotti (1984) aponta: como as pessoas com deficiência foram, historicamente, percebidas como inúteis para a produção e relegadas a asilos para receberem os cuidados básicos. Foram, dessa maneira, marginalizadas da sociedade produtiva. E ainda vão ao encontro das reflexões de Veiga-Neto (2011), que destaca a tendência da sociedade em comparar os sujeitos a um ideal de normalidade e buscar, minuciosamente, em cada corpo, sinais de anormalidade. Essa busca incessante resulta na atribuição de um lugar dentro de estruturas de classificação, pois, de acordo com o autor, são nas “práticas de identificação e classificação que estão implicadas as poderosas relações de poder” (p. 106). Dessa forma, as falas dos entrevistados reproduzem essas estruturas, pois narram a forma como os sujeitos com deficiência foram - e, por vezes, ainda são - percebidos e tratados socialmente: como improdutivos, incapazes, dignos de benevolência. Trata-se de uma visão capacitista que atravessa a sociedade e que oprime e inferioriza as pessoas que se afastam de suas normas.

Nesse contexto, segundo Lage et al. (2023), a deficiência está associada à incapacidade, à desqualificação e à menor valia; manifesta-se, por conseguinte, pelo capacitismo que, de acordo com as autoras,

é expresso por meio de atitudes intencionais ou não, internalizadas pela sociedade. Muitas vezes insultuosas, quer seja de forma direta, como a utilização de termos pejorativos, olhares ofensivos, afastamento corporal; quer seja de forma velada, disfarçada de comportamentos protetores, piedosos, bem como a formulação de exaltações à capacidade de superação ou algo similar, a cultura capacitista se faz presente. Todas essas formas discriminatórias, contribuem para o efeito de sentido pretendido, ou seja, consolidação do imaginário social existente que relaciona determinados públicos, à fragilidade, incapacidade e dependência. (p. 3)

Trata-se da tentativa de normalização dos corpos que não se encaixam nos padrões estabelecidos socialmente. É a normalização contra todos aqueles que não se encaixam nos padrões convencionais de corpos funcionais e cognitivos. Assim sendo, o capacitismo é uma forma de subjetivação, ou seja, as pessoas foram/são subjetivadas para terem essa ideia capacitista de que a deficiência é uma forma de inferiorização e incapacidade. O capacitismo não é apenas uma questão individual, mas uma forma de poder que opera em níveis institucionais e sociais, moldando os corpos e as subjetividades das pessoas com deficiência e reforçando as hierarquias existentes. O capacitismo é, portanto, esse olhar que incapacita, que inferioriza o sujeito mesmo antes de ser convidado a experienciar. Assim, a deficiência, sob um olhar que inutiliza, que julga e que exclui, vista como uma imperfeição intrínseca aos indivíduos, reflete não apenas uma falta de compreensão, mas também preconceitos enraizados em concepções históricas de normalidade.

Através de lentes foucaultianas, é possível compreender que essas representações não são meramente individuais, mas parte de um discurso mais amplo que atravessa a sociedade. Além disso, as narrativas não apenas refletem a realidade, mas também a constituem, exercendo poder sobre os sujeitos e definindo práticas sociais. Foucault (2014) argumenta que o poder não está centralizado apenas em instituições políticas; ele também se manifesta nas práticas sociais e na linguagem. Não há um ponto específico da estrutura social no qual o poder esteja localizado. O poder funciona como “uma rede de dispositivos ou mecanismos a que nada ou ninguém escapa (...), o poder é algo que se exerce, que se efetua, que funciona” (p. 17). As narrativas e os discursos presentes na sociedade são, dessa maneira, instrumentos de poder que influenciam diretamente as relações e as dinâmicas sociais. Butler (2021) afirma que certos discursos têm o poder de reforçar e perpetuar estruturas de dominação social e que os discursos injuriosos não são apenas palavras isoladas: são palavras que ferem e que obrigam o sujeito a ocupar uma posição social subordinada.

O reflexo desses discursos de poder, dessa exclusão, reverbera no contexto escolar. Durante muito tempo, pessoas com deficiência foram impedidas de frequentar espaços educacionais. Dessarte, as escolas, em décadas passadas, eram estruturadas para atender a um padrão de estudantes, desconsiderando as necessidades e as potencialidades individuais. O estudante, por isso, é quem precisava se adequar ao espaço, e não o inverso. Isso contribuiu para a perpetuação de uma cultura de exclusão, em que a deficiência era vista como um desvio que perturbava a ordem e a rotina escolar. Apesar das mudanças, essas marcas ainda se manifestam na escola contemporânea.

Durante longos períodos da história, sujeitos com deficiência foram frequentemente negligenciados, marginalizados e até mesmo ocultados da sociedade. Com o intuito de propiciar a reflexão acerca de aspectos históricos, o próximo subtítulo aborda uma retrospectiva do tratamento de pessoas com deficiência no locus da pesquisa, evidenciando a invisibilidade, o confinamento e a exclusão social.

3.2 TRATAMENTO DE PESSOAS COM DEFICIêNCIA NO LOCUS DA PESQUISA: RETROSPECTIVA HISTóRICA

Com o intuito de analisar as narrativas dos entrevistados, revelando as diferentes perspectivas sobre o tratamento dispensado às pessoas com deficiência ao longo do tempo, foi indagado como, em anos passados, elas eram tratadas na comunidade (na família, na escola, na igreja, nas festas, no trabalho, nos relacionamentos afetivos etc.). Relatos de invisibilidade e de enclausuramento são algumas das narrativas dos participantes. Os Participantes 3 e 8 narraram que:

Na comunidade, o povo trata eles como se não tivesse ninguém aí, como invisíveis, os dois. Se ela não se apresenta, se não se agarra em alguém, eles são invisíveis (...). Mas, eu não sei se isto não é preciso, porque eles são bastante mal-educados. Eles começam a falar coisas, falam alto… dão risada… coisas que não se deve dar risada. Por isso que o pessoal deixa de lado. Eu não sei se isso é justo. Mas, eu até acho que é. (Participante 3)

Essas pessoas que falei não podiam vir na comunidade. A família escondia eles em casa. Aquela menina que não deixaram nós ver. Eram muito ruins para ela, bem ruins. Como um leão numa jaula. Se tava de roupa ou não. Ninguém sabe. Porque ninguém podia ver ela. Diz que era um chiqueiro. Essa criança gritava dia e noite. E assim ficou presa (...). Não deixavam mostrar para ninguém. Tinha uma outra criança na cidade que a gente sabe que ficava trancada e que ninguém podia ver. (...) não iam em nada. Eles eram escondidos. Não podiam ser vistos. (Participante 8)

Relatos de pessoas isoladas não são incomuns na história pregressa; no entanto, inquieta saber que o fato se refere a um período de poucas décadas, quando uma das crianças estava em um lugar similar a um chiqueiro, espaço destinado à criação de porcos, ou seja, um local sujo, com mau cheiro, o que gerava especulações acerca do vestuário e da forma como acontecia a alimentação, que, segundo a depoente, era colocada por baixo da porta.

As narrativas remetem ao tratamento vivenciado na Idade Média, encontrado em registros do período, quando as pessoas com deficiência, agrupadas na categoria dos chamados “loucos de qualquer espécie”, eram deixadas viver, mas em condições de segregação. Nessa perspectiva, Pieczkowski (2014) destaca que “os ‘loucos de qualquer espécie’ constituíam uma categoria que incluía diversos tipos reunidos indiferenciadamente, como pessoas com deficiência, bêbados, criminosos, apaixonados, entre outros ‘estranhos’” (p. 120).

O tratamento ao qual as pessoas com deficiência eram submetidas remete a Foucault (2012), em sua obra A história da Loucura, que descreve a “Nave dos Loucos” (Narrenschiff). Como afirmam Dreyfus e Rabinow (2010), os loucos de qualquer espécie “eram embarcados em navios e enviados pelos rios da Europa em busca de sua sanidade” (p. 3-4). Segundo Foucault (2012):

Fechado no navio, de onde não se escapa, o louco é entregue ao rio de mil braços, ao mar de mil caminhos, a essa grande incerteza exterior a tudo. É um prisioneiro no meio da mais livre, da mais aberta das estradas: solidamente acorrentado à infinita encruzilhada. É o Passageiro por excelência, isto é, o prisioneiro da passagem. E a terra à qual aportará não é conhecida, assim como não se sabe, quando desembarca, de que terra vem. Sua única verdade e sua única pátria são essa extensão estéril entre duas terras que não lhe podem pertencer. (...). Uma coisa pelo menos é certa: a água e a loucura estão ligadas por muito tempo nos sonhos do homem europeu. (p. 12)

As pessoas com deficiência eram, e, por vezes, ainda são, excluídas, discriminadas, violentadas, oprimidas e submetidas a outros tratamentos desumanos. A deficiência vista como uma anomalia ou monstruosidade está presente na narrativa do Participante 9, o qual relatou que

nasceu com deficiência. A cabeça dele era maior que o corpo. Mas, não viveu muito tempo. Aquela vez, quando nasceu o nenezinho dela que faleceu, ninguém viu ele. Ela não deixou ver. No velório e no enterro, ela tinha a cabeça dele tampada para ninguém ver. Eu não tinha coragem de destampar. Ninguém que eu vi, fez isso. (Participante 9)

O ato de esconder a criança durante o velório e o enterro pode ser interpretado como uma tentativa de evitar que a anomalia de seu corpo desafiasse ou perturbasse as normas sociais. O anormal, fora da padronização, a deficiência sob o olhar de uma “anomalia, refletiria um estado defeituoso a ser consertado” (Veiga-Neto & Lopes, 2011, p. 128), reforçando a ideia de que a sociedade, muitas vezes, tende a ver a deficiência como algo a ser corrigido ou ocultado, aquilo que é estranho e ameaçador aos olhos.

Ao indagar o Participante 7 acerca do tratamento atribuído às pessoas com deficiência em anos passados na comunidade, e a razão de serem tratadas daquela maneira, ele expressou:

Eu, muitas vezes... eu vejo. Um dia, eles estavam lá em casa, (...) a D. e o F. Nós tava [sic] tomando chimarrão. Chegou a A. e o B. e não quiseram tomar chimarrão com nós. Eu não ia deixar de tomar meu chimarrão com a D. e o F. por causa dos outros dois (...). Eu ofereci pra eles e a A. falou que eles não queriam chimarrão. Ah, eu penso, será que eles têm nojo? Eles não aceitam tomar chimarrão junto com eles. Muitas vezes, eu estou na casa deles. Chega a D. e o F. e eles não ganham chimarrão. Não ganham chimarrão. São desprezados.

O relato do Participante 7 ilustra como pessoas com deficiência eram tratadas como se a deficiência fosse algo contagioso, a ser evitado, e como essa condição as tornava menos dignas de participar e partilhar, por exemplo, da cultura da roda de chimarrão - tradicional na comunidade locus do estudo - mesmo no círculo familiar. A recusa em compartilhar chimarrão pode parecer trivial; no entanto, revela uma atitude mais ampla de exclusão e discriminação que muitas pessoas com deficiência enfrentam. É como se a presença delas fosse vista como um incômodo, algo contagioso a ser evitado. A deficiência, vista como “uma mancha no mundo”, como expressa Veiga-Neto (2011, p. 107), é uma força que desafia as tentativas de geometrizar e normatizar, pois revela a complexidade da diversidade humana e das relações sociais.

A invisibilidade, a exclusão e o enclausuramento das pessoas com deficiência emergem nas narrativas. Nos relatos dos participantes, destacam-se a exclusão e a invisibilidade de pessoas com deficiência em todas as esferas sociais, reduzidas à anomalia de um corpo que perturba e desafia as normas. É notório nas falas dos velhos que as pessoas com deficiência tinham a vida restringida não apenas por suas capacidades físicas, mas também pela falta de políticas públicas e iniciativas inclusivas.

Esses relatos ecoam uma história de segregação e violência que remete ao tempo em que sujeitos que não se ajustavam aos padrões da normalidade eram relegados ao isolamento e à invisibilidade. A analogia contida na “Nave dos Loucos”, descrita por Foucault (2012), ressalta a condição de seres flutuantes, à deriva em um mar de incertezas, sem destino certo, apenas sujeitos à vontade arbitrária da sociedade - o que se assemelha ao tratamento dado às pessoas com deficiência nas narrativas dos participantes. Não eram navios: eram cômodos separados da casa. Não podiam ser vistos. Eram consideradas aberrações que agrediam os olhos da comunidade.

Tais práticas de enclausuramento e exclusão não se limitam ao passado distante, mas continuaram (e quiçá ainda possam existir em algumas situações) a ecoar nas experiências das pessoas com deficiência. A falta de acesso à comunidade, a ocultação dentro de casa, a negação de direitos básicos e as violências físicas e psicológicas são visíveis e evidenciam uma persistente discriminação e marginalização dessas pessoas de existência indesejável a quem tem como guia os padrões naturalizados.

A partir dos relatos, é notável como as relações de poder controlavam, e ainda controlam, os corpos, como as pessoas eram e ainda são capturadas por verdades históricas que as subjetivam quanto aos tratamentos destinados às pessoas com deficiência. Com a finalidade de provocar reflexão acerca das concepções de deficiência, o tópico a seguir aborda a compreensão de deficiência pelos velhos e os reflexos dessas concepções históricas na in/exclusão escolar de pessoas com essa especificidade.

3.3 CONCEPçõES DE DEFICIêNCIA E REFLEXOS NA IN/EXCLUSãO ESCOLAR

No recorte temporal da pesquisa, a concepção de deficiência foi explicitada por preconceitos e estigmas sociais. Pessoas com deficiência eram frequentemente vistas pelas lentes da anormalidade, sendo consideradas incapazes de participar da vida social. Ao abordar a exclusão dessas pessoas do convívio social, recorremos a Michel Foucault. Em sua obra Os anormais (Foucault, 2001), o autor mostra como a sociedade construiu e reforçou a ideia de anormalidade, delimitando os corpos e comportamentos que se desviavam da norma aceitável. Ele aponta que a categorização dos indivíduos como anormais não é apenas uma questão médica, mas também um dispositivo de controle social que visa regular e disciplinar a população.

No locus deste estudo, a narrativa dos velhos sobre a convivência com pessoas com deficiência ao longo de suas vidas revela muito sobre as práticas de in/exclusão nas comunidades. É na esteira das contribuições de Lopes e Fabris (2020) que nos sustentamos para usar a noção de in/exclusão. De acordo com as autoras, essa noção está pautada em processos de subjetivação. A tese é de que fica difícil apontar processos de inclusão e exclusão, “pois as fronteiras que separam incluídos de excluídos nem sempre são tão visíveis” (Lopes & Fabris, 2020, p. 8-9). Segundo as autoras, “in/excluídos passa a ser um conceito que abrange sujeitos diversos que vivem sob variadas condições, mas que carregam consigo uma história de discriminação negativa” (p. 74). Ainda em consonância com as autoras, é importante colocar em evidência o termo “in/exclusão” com o intuito de focalizar os processos de discriminação negativa no contexto educacional.

Os participantes da pesquisa, ao narrarem o convívio com pessoas com deficiência no ambiente educacional, relataram como percebiam aquelas com tais especificidades, que conheciam e/ou com quem conviviam desde a infância até a atualidade, deixando transparecer que a deficiência era vista como um fator limitante e não como uma característica a ser compreendida e acolhida. Dessa forma, era, para eles, justificável a exclusão. Os Participantes 6, 5 e 2 relataram:

Eu comecei com seis anos... nem seis... na aula. Era as freiras que davam aula. Tinha criança com deficiência? Isto tinha. Mas, na escola, não vinham. (Participante 6)

Na minha época, na escola, não tinha ninguém... porque se tinha criança com deficiência não levavam pra escola não. Não, nunca. Tinha um com deficiência. Ele ficava só deitado. Nem tinha como. Tinha o S. também. Ele era meio fora, também. Eu acho que era meio retardado. (Participante 5)

Quanto mais a idade, cada vez mais atrasadona [sic] ela ficava, mais atrasadona [sic], não sei do que era assim. Ela vinha na igreja. Agora, na aula não tenho lembrança (...). (Participante 2)

Ao rememorar sua infância, os participantes revelaram como essa visão de exclusão de pessoas com deficiência e castigo divino permeava na comunidade, reforçando a ideia de que a deficiência era uma punição divina. O Participante 9 relatou: “Essas pessoas, que eram deficientes, eram escondidas porque era uma lição de Deus. Eram amaldiçoadas por Deus. Não podiam ir na escola”.

A narrativa do Participante 9 nos direciona a Pessotti (1984), o qual evidencia a condição de culpabilidade atribuída ao deficiente e a visão de que eram vistos como responsáveis por sua própria condição, merecendo, assim, o castigo divino: “Até pela própria deficiência, justo castigo do céu por pecados seus ou de seus antecedentes. É cristão, e por isso merece castigo divino” (p. 6). A pessoa com deficiência ora era vista como um castigo divino, ora como anjo do bom Deus, como escreve o autor.

Os participantes relataram que, das poucas pessoas com deficiência que acessaram a escola no período abordado, algumas frequentavam por um curto período, enquanto outras conseguiram completar os anos iniciais do Ensino Fundamental. No entanto, frequentemente enfrentavam bullying por parte dos colegas. Eram alvo de piadas cruéis, da falta de compreensão e de empatia em relação às suas condições, como narrou o Participante 1: “Tinha um aluno que deu a paralisia nele quando era pequeno e, daí, ele caminhava com a perna torta, assim... (...). Ninguém tem culpa que ele é assim. Eles ficavam zombando, imitando como ele andava”.

A exclusão escolar não só limitava o desenvolvimento integral e social dessas pessoas, mas também contribuía para o fortalecimento de estigmas e preconceitos entre os estudantes sem deficiência, reforçando a ideia de que pessoas com deficiência não faziam parte do convívio social por não se enquadrarem no padrão tido como normal pela sociedade. Embora esses tratamentos fossem considerados naturais e aceitos na época, e não se mencionasse o bullying, hoje entendemos que era disso que se tratava, entre outras formas de violência.

A falta de acesso à educação e de interação social provavelmente impactou significativamente a vida das pessoas com deficiência narradas pelos participantes e de tantas outras isoladas socialmente. A ausência de convivência social - a exemplo da exclusão do ambiente escolar - não apenas impede o desenvolvimento de habilidades básicas, mas também reforça estigmas e preconceitos enraizados na sociedade.

As políticas de inclusão, nas últimas décadas, buscaram combater práticas de exclusão e promover ambientes mais equitativos e justos para todos os estudantes, incluindo aqueles com deficiência. Dentre os marcos legais da educação inclusiva em âmbito nacional, destacamos: a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) - Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996; a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva - PNEEPEI (Ministério da Educação, 2008); e a Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015, que instituiu a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Essas leis são influenciadas por documentos internacionais que reverberam no Brasil, nos estados da federação e nos municípios, assumindo a inclusão escolar e social como imperativo.

A implementação dessas políticas ainda enfrenta obstáculos significativos. As mudanças legais, embora essenciais, não são suficientes, por si só, para transformar atitudes e práticas enraizadas, que reverberam em resistências culturais e institucionais. As escolas, como microcosmos da sociedade, refletem as dinâmicas de poder e preconceito que existem em esferas mais amplas. Esse contexto é apresentado por Foucault (2012), ao referir que cada sociedade possui um regime de verdade, uma política geral da verdade, ou seja, os tipos de discurso que tal sociedade aceita e promove como verdadeiros.

Assim, podemos compreender que os movimentos de inclusão são processuais e contínuos, pois novas demandas e novos desafios emergem em cada tempo histórico. Em uma sociedade regida pelas normas do capitalismo e do neoliberalismo, fundamentada em produção, consumo, utilidade social, competitividade e concorrência, é crucial refletir acerca da condição humana e dos valores que nos tornam humanos. Para isso, é imprescindível desnaturalizar formas de vida que subalternizam, excluem e subjetivam para a inferiorização.

4 CONCLUSõES

Com esta pesquisa, não há a pretensão de estabelecer juízo de valor, mas, sim, compreender “verdades” históricas provisórias. A intenção é desnaturalizar o que parece dado e provocar reflexões acerca de práticas excludentes impostas às pessoas com deficiência e suas relações com o processo de exclusão escolar.

As narrativas dos velhos sobre a concepção de deficiência em décadas passadas apontam para a persistência de representações predominantemente reducionistas e estigmatizantes das pessoas com deficiência que, por vezes, ainda perduram, mesmo que de forma mais sutil. As palavras dos participantes evidenciam uma visão da deficiência ancorada em estereótipos, associando-a à ausência de memória, infantilização e falta de defesa, refletindo a maneira como a sociedade, historicamente, construiu essas representações. A influência dessas narrativas demonstra a internalização de discursos de poder que forjam práticas sociais e subjetividades. Ainda revelam uma visão capacitista, que trata a deficiência como forma de inferiorização e incapacidade. Conceitos de deficiência vistos sob a óptica da inutilidade social, da benevolência e do desvio normativo mostram como a sociedade continua a categorizar e hierarquizar indivíduos com base em suas diferenças.

Compreendemos que essas narrativas são parte de um sistema de poder que opera para excluir e marginalizar, enquanto a subjetivação capacitista impede a inclusão e a igualdade de oportunidades, perpetuando a desvalorização das experiências humanas. Assim, ser uma pessoa com deficiência significa estar constantemente sujeito aos olhares e julgamentos normativos da sociedade, sob uma perspectiva que limita e considera sua existência como um fardo no mundo.

O estudo aponta o tratamento destinado às pessoas com deficiência em décadas passadas e, nos relatos dos participantes, destaca-se a exclusão e a invisibilidade dessas pessoas em todas as esferas sociais, sendo, muitas vezes, tratadas como anomalias a serem evitadas ou corrigidas. A anomalia de um corpo que perturba e desafia as normas sociais se materializa, por exemplo, na ocultação do corpo de uma criança com deficiência em seu funeral, o que explicita que a diferença em relação aos padrões estabelecidos choca. A violência, gerada pelo bullying, pelo isolamento extremo e pelo controle disciplinar sobre suas vidas, demonstra como as normas sociais transformam-se em ferramentas de exclusão e marginalização daqueles que não se ajustam aos padrões estabelecidos. Assim, os que não se encaixam podem ser vistos como desviantes, não apenas diante da norma estabelecida, mas também na própria percepção que cada indivíduo tem de si, pois a deficiência evidencia a fragilidade dos seres humanos e causa desestabilização.

A pesquisa expõe a exclusão escolar e a naturalização da não aprendizagem, o que tornava aceitável a não frequência às escolas. Expõe também o poder que as palavras têm de ferir, de excluir, de demarcar o normal e o anormal, de subjetivar com base em verdades históricas ditas/determinadas por quem tem o poder de dizer o que é verdadeiro dentro de um contexto social. Como nos alerta Butler (2021), palavras injuriosas não são meras palavras: causam ferimentos profundos, além de gerar efeitos que podem reverberar durante uma vida toda.

Os participantes da investigação deixam transparecer que a presença de pessoas com deficiência gera estranhamento, pois a deficiência incomoda, provoca reflexão acerca da fragilidade humana e da pretensa normalidade. Nesse contexto, a atitude foi afastar o incômodo, o que explica a exclusão escolar de parcela da população. A escola, invenção da Modernidade, foi projetada para afastar os que não se adequam aos padrões e às normas vigentes. Tais padrões são estabelecidos por relações de poder em operações de normatização, ou seja, a sociedade cria, estabelece e/ou sistematiza as normas, e os sujeitos que não se ajustam são os anormais, os desviantes. São esses sujeitos que, devido à presença considerada indesejável, tiveram negado o direito à educação por um longo período da história. Foram, ao longo dos tempos, ora descritos como pessoas boas, anjos do bom Deus, sofredoras, merecedoras da recompensa pós-vida, ora como desviantes, anormais e pecadores.

Um conjunto de normativas legais orienta para a inclusão de pessoas com deficiência em diferentes esferas sociais, mudando substancialmente a relação da sociedade com esse público. O estudo aponta, ainda, que o tratamento destinado às pessoas com deficiência não é linear, como se fosse uma evolução natural, sequer excludente, uma vez que se movimenta e, por vezes, até retrocede.

Compreendemos que, se nas décadas narradas pelos entrevistados as pessoas com deficiência tivessem tido a oportunidade de frequentar escolas, possivelmente teriam desenvolvido habilidades sociais, outras relações interpessoais e teriam sido vistas como membros da comunidade, gerando, assim, um sentimento de pertencimento. A escola, como espaço de convivência e aprendizagem, tem o poder de promover transformações nos seres humanos. No entanto, é imperativo que ela se organize de forma a erradicar percepções capacitistas e benevolentes, que incapacitam os sujeitos antes mesmo de experienciar. Diferentemente disso, a escola pode promover o reconhecimento e a valorização da diversidade e o direito de ser diferente, ou seja, de ser e estar no mundo como se é.

Entendemos que as concepções de deficiência, o tratamento e a exclusão de pessoas com deficiência que os entrevistados narraram foram produzidos por uma rede discursiva tramada em décadas anteriores, e os efeitos dessas verdades históricas reverberam nas atitudes e no que é dito hoje acerca das pessoas com deficiência. Portanto, faz-se necessário desnaturalizar o que parece dado e provocar reflexões acerca de práticas excludentes impostas às pessoas com deficiência e sua relação com a percepção da deficiência e o processo de in/exclusão escolar na contemporaneidade. Ao desnaturalizar o que parece dado, emergem reflexões acerca das palavras no contexto escolar, isto é, tudo o que falamos do outro e para o outro produz um efeito e, como já mencionado, palavras possuem o poder de ferir, de incapacitar.

Assim, se o discurso for capacitista, conforme transparece nas narrativas, o estudante com deficiência é considerado incapaz antes mesmo de ter a oportunidade de experienciar, pois não lhe são oferecidas práticas que valorizem e oportunizem suas particularidades. Para a sociedade capitalista, guiada pelos princípios do neoliberalismo, focada na produção, no consumo e na competitividade, esses estudantes não valem o investimento pedagógico e serão frequentemente excluídos e culpabilizados por não se ajustarem às normas escolares, o que destaca ainda mais a necessidade de refletir sobre a condição humana e os valores que nos humanizam.

Analisar discursos na perspectiva foucaultiana ajuda a compreender o que é dito em determinado tempo e contexto, permitindo uma visão dos efeitos dos jogos de verdade e das verdades históricas que encontram espaço no ambiente educacional. Atitudes preconceituosas e discriminatórias, olhares incapacitantes e palavras injuriosas, mesmo que sutis e implícitas, refletem processos de subjetivação que nos constituíram/constituem e a persistência de antigos estigmas.

A pesquisa permite compreender que as políticas de inclusão produzem deslocamentos nas concepções de deficiência ao desestabilizarem os entendimentos que a consideram como um déficit ou anomalia a ser corrigida. Essas políticas promovem uma visão baseada nos direitos humanos e reconhecem a deficiência como característica da diversidade humana. Esse deslocamento é crucial para a transformação de práticas e atitudes sociais, educacionais e institucionais que promovam e valorizem a condição humana.

  • 2
    Apoio: Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Unochapecó) e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) - Processo nº 302973/2022-2.
  • 5
    O termo “agrupamentos temáticos” é inspirado em Andrade (2021, p. 178).

Disponibilidade de dados

Todo o conjunto de dados que deu suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Dez 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    14 Nov 2024
  • Revisado
    06 Jan 2025
  • Aceito
    10 Mar 2025
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