RESUMO
Este ensaio teórico aborda a inclusão, do ponto de vista das filosofias da diferença, e indaga se sua presença no debate atual sobre o assunto caracterizaria a emergência de outro paradigma para a educação. Ao circunscrever as discussões a esse propósito geral, situa as filosofias da diferença no debate epistêmico sobre a inclusão e, especificamente, analisa os deslocamentos que produzem e o papel específico que desempenham nesse contexto. Na análise elaborada a partir do método genealógico, é focalizado um dos problemas de que se ocupa essa perspectiva filosófica, ao se assinalarem os limites atuais dos saberes especializados e poderes, para então propor um ensaio reflexivo sobre a presença dos corpos deficientes e, principalmente, a inquietude que provocam quando, aliados a outros corpos dissidentes, se insurgem contra a sequestração operada por certas instituições, como a escola. Conclui-se que a potencialidade da presença desses corpos e os encontros com as diferenças propiciados pela escola, na atualidade, graças à educação inclusiva - e apesar dela - convidam essa instituição e os cursos de formação (inicial e/ou continuada) de professores a se reverem profundamente, em face da problematização apresentada pelas filosofias da diferença.
PALAVRAS-CHAVE:
Inclusão; Filosofias da diferença; Paradigma; Corpos dissidentes; Educação inclusiva.
ABSTRACT
This theoretical essay examines inclusion through the point of view of the philosophies of difference and asks whether their presence in current debates might signal the emergence of another paradigm for education. Within this broader purpose, it situates the philosophies of difference in the epistemic debate on inclusion and, specifically, analyzes the shifts they generate and the particular role they play in this context. Drawing on the genealogical method, the analysis focuses on one of the problems this philosophical perspective addresses, by pointing to the current limits of specialized knowledge and forms of power, and then proposing a reflective inquiry into the presence of bodies with disabilities and, above all, the unease they provoke when, allied with other dissident bodies, they resist the forms of capture imposed by institutions such as the school. The essay argues that the potential of these presences, and the encounters with differences made possible within schools today thanks to inclusive education - and despite it - invite schools and teacher education programs (initial and/or continuing) to undertake a profound re-examination in light of the challenges posed by the philosophies of difference.
KEYWORDS:
Inclusion; Philosophies of difference; Paradigm; Dissident bodies; Inclusive education.
1 INTRODUçãO
Este ensaio aborda a inclusão, do ponto de vista das filosofias da diferença, e indaga se sua presença no debate atual sobre o assunto caracterizaria a emergência de outro paradigma para a educação. Para tanto, parte do debate atual, no qual a temática da inclusão é disputada pelo modelo social da deficiência, pelas perspectivas interseccionais, decoloniais e por determinadas teorias, como as queer e CRIP, com o propósito de aí situar as filosofias da diferença, analisar os deslocamentos que produzem e o papel específico que desempenham nesse contexto epistêmico. Argumentamos pela hipótese de que essa abordagem sugere outro paradigma para a inclusão e lança desafios mais éticos que epistemológicos para as pesquisas nesse campo, para a educação inclusiva e para a formação de professores.
Nessa perspectiva, focalizamos um dos problemas de que essa perspectiva filosófica se ocupa, assinalando os limites atuais dos saberes e poderes das epistemes mencionadas, a fim de darem conta da presença dos corpos deficientes e, principalmente, da inquietude que provocam quando, aliados a outros corpos dissidentes, se insurgem contra a sequestração operada por algumas instituições, como a escola. Com tal discussão, partilhamos neste ensaio algumas questões acerca da potencialidade da presença desses corpos e dos encontros com as diferenças propiciados pela escola, graças à educação inclusiva - e apesar dela -, convidando essa instituição e os cursos de formação (inicial e/ou continuada) de professores a se reverem, em face da problematização apresentada pelas filosofias da diferença.
2 AS FILOSOFIAS DA DIFERENçA NO DEBATE EPISTêMICO SOBRE A INCLUSãO
A inclusão é um tema transversal a vários saberes e tecnologias que a compreendem, produzindo, a partir desse conhecimento, a proposição de práticas discursivas e de poder que incidem sobre os modos de existência do público a quem se destinam, colaborando para a elaboração de políticas públicas e para a educação de seus destinatários.
A temática tem sido objeto de disputa, de um lado, com a ascensão do modelo social da deficiência, nas últimas décadas, em nosso país, a qual, embora não tenha abandonado os saberes médicos, provocou uma significativa mudança no campo de pesquisas da Educação Especial. De outro lado, os movimentos afrodescendentes, feministas, dos povos originários, dos quilombolas, das multidões LGBTQIA+, dentre outros movimentos sociais, ampliam essa disputa ao trazer para o seu centro algumas ferramentas analíticas, como as da interseccionalidade (Akotirene, 2021; Collins & Bilge, 2021), as da decolonialidade (Mignolo, 2017) e as da teoria queer (Jagose, 1996), que deslocam o centro do debate para outros marcadores sociais (raça, gênero, classe, orientação sexual) ou mesmo para a deficiência, entendida, porém, como associada a essas outras “diferenças”, como é o caso da teoria CRIP (McRuer, 2024). Além de deslocar o centro das discussões políticas sobre o público a ser incluído e a se constituir como sujeito de direitos das políticas de inclusão, tanto o modelo social da deficiência quanto a ferramenta analítica interseccional, as teorias queer e CRIP, nos últimos anos, diversificaram o debate epistemológico sobre a educação inclusiva (Pagni, 2024a).
As filosofias da diferença ficaram mais conhecidas sob a denominação de pós-estruturalismo, especialmente na educação (Vinci, 2017). Como demonstra Michael Peters (2000), todavia, há três problemas no uso dessa expressão. O primeiro deles é que pós-estruturalismo se assimila ao estruturalismo, na crítica à linguagem que estrutura relações (homogêneas) de poder e ao sujeito universal, no qual se apoiaram as ciências positivas e as metanarrativas emancipatórias fundamentadas e definidas por um dever ser para o humano. O segundo é que a expressão sugere, com o prefixo “pós-”, uma sucessão histórica, como se viesse após o estruturalismo, sendo superior epistemologicamente ou inferior em razão de o distorcer, dependendo do juízo adotado em relação à verdade e, por que não dizer, à história. O terceiro é que seu uso foi adotado mais pelos intelectuais norte-americanos do que pelos franceses, responsáveis por tais posicionamentos, como Michel Foucault, Jacques Derrida, Jean-François Lyotard, Gilles Deleuze, Félix Guattari, dentre outros, que, por assim dizer, jamais assumiram essa denominação. Por essas razões, ao privilegiarmos o viés ontológico e político empregado em seus respectivos projetos, optamos por usar a expressão “filosofias” (no plural) da diferença, pois a “diferença” é o ponto em comum que os aglutina, embora essa expressão não seja assumida por qualquer um deles e haja ontologias políticas que poderiam ser vistas também como “da diferença” (Esposito, 2021).
Feitas essas ressalvas, é possível afirmarmos que as filosofias da diferença comparecem ao debate epistêmico sobre a inclusão ao oferecer ferramentas que contribuem para as diversas perspectivas teóricas que o compreendem. Dentre elas, destacamos a adoção de certa analítica do poder pelo modelo social para caracterizar o estigma presente nas barreiras atitudinais em relação às pessoas com deficiência (Goffman, 2008), ou pela interseccionalidade para diagnosticar as intersecções das diferenças sobre as quais recai a dominação social em determinado contexto (Lorde, 2019). A apropriação dessas ferramentas ganha maior vigor no debate quando a teoria queer, para além das análises do poder, foca na discussão sobre o estranhamento suscitado na relação com os corpos nos quais se inscrevem as diferenças de gênero e de sexualidade, evocando uma dimensão ética na relação com esse outro, a ser problematizada pelas Ciências Sociais e pela Psicologia (Miskolci, 2009, 2016).
Ora, na medida em que a teoria CRIP problematiza a teoria queer por não levar em conta a deficiência em sua analítica do poder e como um marcador da alteridade não abarcada nessa relação ética, amplia ainda mais as possibilidades de compor com as filosofias da diferença certa parceria conceitual (Greiner et al., 2023), porém, ao que parece, ainda se restringindo ao paradigma científico do conhecimento da Antropologia e, particularmente, à pesquisa etnográfica desse outro denominado, ironicamente, “deficiente” (Mello et al., 2022).
As filosofias da diferença também correm por fora desse debate epistemológico sobre a inclusão, no entanto, dando relevo a essa dimensão ética nas relações com esse “outro”, ao terreno estético em que os corpos nos quais se inscrevem as diferenças se presentificam e aos acontecimentos (micro)políticos emergentes nos encontros com outros corpos. Ocupam a margem desse debate epistêmico ao pensar filosoficamente sobre problemas que lhes escapam, objetos que não são conhecíveis como fenômenos, mas somente pensados como acontecimentos ou artisticamente cartografados. Afinal, a diferença é uma condição do ser, ontológica ou ôntica, a depender do ponto de vista. A concepção aqui adotada a considera como um signo que emerge desde a infância, sendo a relação com a diferença um acontecimento que pode ou não advir, produzindo uma deriva existencial em relação à vida regulamentada, ao mundo comum e às tradições que o permeiam. Tal acontecimento interrompe os fluxos dessa existência singular e, diante da ausência de códigos científicos, pedagógicos e filosóficos para decodificá-los, obriga-a a assumir outro sentido - por vezes, com uma lógica incomum - e a ensaiar um recomeço. É essa inscrição das diferenças que as condições de registro significam, procuram governar e capturar, dependendo da forma como essa diferença repercute sobre a pele, da potencialidade de seus encontros e do gesto insubmisso de sua ingovernabilidade.
Desse ponto de vista, elas colaboram com a composição de bricolagens decorrentes da relação do pensamento com o corpo, das intensidades que suscitam nesses encontros e nas inter-relações com outros corpos, criando conceitos mediante os afetos e perceptos produzidos na experiência com esse outro que se presentifica (Deleuze & Guattari, 1992). Por sua vez, essa experiência sugere um não saber como ponto de partida, instaurado pela inquietude suscitada pela presença do corpo desse outro singular e do acontecimento advindo do encontro que promoveu. É essa relação com a diferença, caracterizada nesses termos, que produz práticas e saberes potencialmente capazes de subverter a relação de poder à qual a existência desse outro, assim como as nossas, se encontra submetida. Portanto, distintamente de se ocupar da representação social para falar desse outro - definido como um fenômeno a partir da normalidade estabelecida paradigmaticamente pela ciência como “diferente” e/ou “deficiente” -, as filosofias da diferença elaboram a relação com ele nos termos mencionados, como um paradigma estético-político (Pagni, 2023).
Esse esquema, esboçado para que, didaticamente, compreendamos as disputas epistemológicas e políticas sobre a inclusão, é, seguramente, bem mais complexo. Todavia, ele nos parece útil para situar as filosofias da diferença no debate sobre inclusão e, sobretudo, apontar as conexões que estabelecem com as diferentes perspectivas teóricas que a abordam, assim como os principais deslocamentos que propõem, ao enfocar as questões éticas e conceber as diferenças como um campo problemático que escapa ao paradigma científico no qual se apoiam. É esse campo problemático e, dependendo do ponto de vista, complementar ou discordante das demais perspectivas teóricas em jogo que as filosofias da diferença ocupam no debate sobre a inclusão, sem ignorar seu significativo comprometimento em discutir os discursos, os saberes e as epistemes que produzem o tema, em seus efeitos de poder ou em seus agenciamentos do desejo.
3 DISSIDêNCIA, SEQUESTRAçãO E POSSIBILIDADES DA EDUCAçãO INCLUSIVA NA ESCOLA
As filosofias da diferença vêm sendo apropriadas, nos últimos 15 anos, por uma série de estudos produzidos na área de Educação, com vistas a analisar as políticas de inclusão e a educação inclusiva no Brasil. A maioria desses estudos compreende as políticas de inclusão como estratégias da biopolítica e da governamentalidade, no neoliberalismo, promovendo a exclusão de certos setores da população ou a sua subjugação a processos majoritários de subjetivação (Pagni, 2019, 2023; Veiga-Neto, 2011; Veiga-Neto & Lopes, 2007). Ao promover uma razão governamental que captura os movimentos políticos identitários e unifica a diversidade cultural em torno da racionalidade econômica, tais políticas públicas isolariam as diferenças, inibiriam o potencial transformador agenciado pelos atores sociais até então excluídos dos serviços prestados pelas instituições sociais e, dessa forma, os excluiriam pela subjugação a que são submetidos, no próprio processo de sua inclusão.
Analogamente a esse registro, em outro, que aborda mais especificamente os dispositivos de poder e de subjetivação ou a experimentação e os agenciamentos produzidos nas escolas, a educação inclusiva produziria um processo de in/exclusão, isto é, um processo que, em termos discursivos, de saber e de poder, traria consigo táticas ou estratégias de exclusão (Lopes, 2004; Lopes & Fabris, 2013; Veiga-Neto & Lopes, 2011). Nessa direção, é possível argumentar que, gradativamente, quer em um registro, quer em outro, esses estudos têm caminhado, em um primeiro sentido, para articular tanto as estratégias macropolíticas da governamentalidade e da biopolítica com os jogos da microfísica do poder ou, algo que ganha mais relevo na atualidade, a micropolítica da subjetivação.
Ao adentrar essa última discussão, em outro sentido e complementarmente, as pesquisas nesse campo têm fornecido subsídios sobre a problematização ética, anteriormente mencionada, dos sentidos atuais da relação com o outro, especialmente quando ele traz inscrito em seu corpo as diferenças e, entre elas, a deficiência. São nesses encontros potentes com outros corpos que se ensaiam alianças que dissentem do sequestro almejado pela escola, no sentido de disciplinar esses corpos nos quais se inscrevem a deficiência, dentre outras diferenças, e, ao mesmo tempo, subordiná-los à produção e à normalidade social vigente.
Misto de caos e governabilidade, a escola separa, isola e imuniza essas diferenças inscritas nos corpos, mediante os registros médicos, sociais e culturais, com vistas a codificar sua inscrição, neutralizando-as tanto para os atores em que ela se presentifica quanto naqueles que a visibilizam, e gerando certa repulsa, certa indiferença ou, mais raramente, alguma familiaridade. Como fazer dessa repulsa e dessa indiferença um problema filosófico para o pensamento, por parte dos demais atores, especialmente estudantes, professores/as e diretores/as, tem sido um caminho pouco explorado, salvo em um dossiê recentemente lançado3.
Não obstante a circunstância de que a educação inclusiva possa ser vista também como parte das estratégias de captura daquilo que escapa e instiga novas formas de existência ou vida comum, ela garantiu a presença daqueles atores e, por que não dizer - ao considerar que neles se inscrevem essas diferenças -, a circulação dessas últimas como um vírus, no contexto educacional brasileiro. Um vírus pronto para contaminar outros corpos, diga-se de passagem, fazendo com que as diferenças, ao serem vistas como esse vírus circulante e como uma ameaça, passassem a ser combatidas com tratamento individualizado aos corpos de atores que a encarnam e com a imunização dos demais, tentando tornar os outros atores indiferentes a elas. Em geral, é essa indiferença que prolifera nessa estratégia bem-sucedida dos embates atuais, nesse ambiente micropolítico do qual a escola é parte.
Essa é a força institucional que cerceia o movimento instituinte, nos termos pelos quais Esposito (2021) o caracteriza. Nesse caso, essa força reage aos efeitos causados por esses corpos e ao encontro com os corpos dos demais atores, como temos salientado, minando qualquer possibilidade de os agenciamentos que potencializam - alegres ou tristes - se expandirem, criarem planos mais consistentes e transformarem a própria escola. Particularmente, não vemos a escola, como instituição, sair de seu centro gravitacional sem se considerar seus movimentos instituintes e, contemporaneamente, esses movimentos, embora venham de dentro, decorrem daquilo que fora até então excluído e que agora adentra esse ambiente para provocar certo reboliço (Pagni, 2023). Referimo-nos, principalmente, a essa experiência do fora provocada, graças às políticas inclusivas, por esses corpos nos quais se inscrevem as diferenças, cujas presenças no ambiente interpelam as práticas, os saberes e os poderes instituídos, descentrando os atores de suas posições e gerando neles certo desconforto.
Não à toa muitos/as diretores/as, coordenadores/as, professores/as e, por vezes, alguns/mas estudantes e suas famílias consideram a presença desses corpos uma afronta, um problema, sendo as soluções para equacioná-la as mais simples, rápidas e confortáveis, a saber: já que não podem ser totalmente isolados para os excluir, invisibilizá-los, manter as posições e, se preciso for exterminá-los. O que os transforma em “problema” - no sentido negativo do termo, e não como afeção que impele o pensar - não é propriamente sua incorrigibilidade, nos termos da análise foucaultiana, mas sua dissidência. De fato, saindo do registro individualizado de qualquer transgressão e ao se aliar com outros corpos, a dissidência “ataca a conexão entre a moral, a produção capitalista e o aparato estatal” (Foucault, 2016, p. 105) para resistir localmente às coações produzidas pelos mecanismos de sequestro em instituições como a escola.
As características principais das instituições de sequestro, com destaque especial à forma-escola e ao construto disciplinar-empresarial que assume na atualidade, consistem em garantir maior vigilância, maior controle que se exerce no corpo, sobre o corpo e pelo corpo, reativando uma relação normal/anormal em outro registro - não mais estritamente médico, todavia amplamente sociofuncional. Antes de somente indicar os poderes que as compreendem, instituições como a escola os fixam como discurso e como saberes que, em seu processo de enunciação-produção sobre a inclusão, promovem a exclusão dos corpos insubmissos, dissidentes ou insurgentes. Nem sempre isso ocorre por vontade própria daqueles ou daquelas que os encarnam; às vezes, esse processo de exclusão se dá pela forma como sua presença se produz, performa e se exprime em seus jogos ou na guerra civil que aí se trava. Nesse caso, algumas características dessa insubmissão, dissidência e insurgência em corpos nos quais a(s) deficiência(s) é(são) uma das inscrições que singularizam sua existência nessa instituição fazem com que sua presença se torne um acontecimento, produzam uma diferença que interrompe a ordem do discurso, colocando em circulação outros saberes e fazendo circular os poderes.
No entanto, a hospitalidade a tal presença e o acolhimento do acontecimento suscitado por tais corpos que adentram essa instituição não ocorrem sem interditos. Para que essa tolerância à diferença representada pela inclusão desses corpos aconteça, há todo um investimento em um processo retributivo ou de compensações, a fim de que eles se subordinem, cada um a seu modo, à racionalidade produtiva em curso. A promessa é a de que, dessa forma, a marca ou estigma desses corpos seria apagada/o e seu isolamento encontraria a superação de todo sofrimento, quando se integrassem ao sistema. No entanto, o problema é que, uma vez presentes na instituição, a marca desses corpos, construída por discursos e saberes, não se apaga de maneira isenta dos jogos de poder aí existentes. Essa tentativa de apagamento das marcas inscritas nesses corpos traz consigo o drama subjetivo de um não lugar ou de um lugar inferior, um tempo totalmente tomado para se provar competente, sem reconhecimento dessa potencialidade, e um desejo de integração quase sempre frustrado4.
Essas marcas inapagáveis não são apenas uma “marca social da diferença” e dos poderes que se exercem sobre o corpo desviante e aos quais reage, no sentido de dissentir do que se espera como norma, como normalidade ou como moralmente aceito pelo pacto social. É a diferença ante aquilo que não pode ser codificado, conhecido ou mesmo compreendido, visto que as referências tanto às palavras quanto às coisas escapam das representações, dos discursos e dos saberes que procuram apreendê-las. Trata-se de uma diferença que advém do corpo como um estranhamento que nos provoca, por afetar as representações, os discursos e os saberes estratificados com os quais operamos ordinariamente. De modo mais preciso, essa é a diferença que nos dobra criticamente sobre os limites dessas representações, discursos e saberes, como também nos faz ocuparmo-nos com os acontecimentos localizados entre as palavras e as coisas.
Mais do que discursiva ou reflexivamente, ocupar-se desse acontecimento é adentrar o território existencial de si mesmo, de sorte a se encontrar com um outro que aí habita como um fantasma, uma imagem, uma virtualidade. Esse outro somente se revela pela presença incômoda de outrem ou, mais precisamente, de um outro corpo, não virtual, que o atualiza graças à afecção propiciada no encontro com ele. Não há como o encontro com esse acontecimento, com a diferença da qual emerge, deixar de mobilizar o pensar, senão como uma forma de restabelecer a gravidade alterada pela presença do referido corpo estranho, ao menos como uma técnica que auxilia em uma eventual navegação por essa deriva. E, se a causa desta última ocorre pela perda dos referentes representacionais, discursivos e de saberes estratificados, por meio desse pensar a diferença criam-se artisticamente e experimentam-se filosoficamente outros referenciais para si próprio ou, melhor seria dizer, encontra-se aí uma vida que se intensifica, ao acolher e ao conviver com a potência do encontro com o outro, atualizando a possibilidade de um modo melhor de viver na companhia de outrem.
Efetivamente, esse pensar foi subtraído de determinadas instituições, como a escola, na medida em que os encontros de corpos, os conflitos que engendram entre suas práticas, saberes e poderes foram apagados pelos dispositivos e pela sociedade disciplinar. Foi a vigilância adotada por essa sociedade que evitou os referidos encontros, assim como as punições utilizadas e, cada vez mais imperceptíveis historicamente, as quais docilizaram esses corpos, conjuntamente pela adoção de uma estratégia de imunização incrementada por uma racionalidade que os normalizou, os individualizou e os gerenciou, no sentido de minar suas resistências e insurgências. Enquanto uma das instituições de sequestração, segundo Foucault (2016), a escola se apropria do tempo da vida dos indivíduos que a frequentam, para alinhá-los ao tempo da produção; ora, ela deveria exercer sobre suas vidas, paradoxalmente, um “controle suplementar”, pois sua função de ensinar ou instruir as gerações mais novas se extrapolaria, ao exercer o controle moral sobre o corpo, a sexualidade e as relações interpessoais dos indivíduos.
Ao subjetivar esses aspectos da vida, a escola fabricaria socialmente as normas, os discursos e os saberes que distribuem os indivíduos na sociedade, modulando inicialmente suas existências e as tornando cativas, respectivamente, à prescrição constante, ao ininterrupto proferimento e às verdades enunciadas pelas autoridades competentes. Toda essa “fabricação do social” seria recriada ficcionalmente, no seio dessa própria instituição, instaurando aí um minitribunal administrativo para julgar e punir todos aqueles que não respeitarem sua autoridade, em um processo de extrema vigilância em relação ao controle do corpo, da sexualidade e das relações interpessoais, fora ou dentro do tempo-espaço destinado à sua função principal. É o que se percebe, nesse caso, com a rigorosa organização do ensino (com um currículo estratificado, uma pedagogia adotada), quando a escola opera para que, mediante os exames, sejam colocados à prova todos esses aspectos técnicos, morais e políticos aprendidos por esses escolares, teatralizando uma eficiência perante a opinião pública para continuar a exercer esse desvio no sequestro do corpo, da sexualidade e das relações interpessoais e, por vezes, submetê-los a um excessivo controle social.
A racionalidade governamental que rege a escola, na atualidade, parece tê-la modificado sem abandonar o poder disciplinar, entretanto, incrementando-o a ponto de somar, à vigilância e à punição, estratégias de imunização dos corpos dos escolares, para que não somente sejam disciplinados, como também incorporados a uma lógica meritocrática, a um corpo orgânico que individualiza e que é regido pelo prisma concorrencial. Para a racionalidade econômica e gerencial atual, a escola não somente foi convertida em uma empresa que gere vidas, de modo a subjugá-las ao modelo empreendedor de si, à aquisição de competências e habilidades para formar o capital humano, tal como Christian Laval (2004) problematizou. Ela também buscou qualificar as vidas que até então estavam fora dela, ofertando-lhes a possibilidade de um mínimo existencial, em termos jurídicos, o qual lhes garantiria esse viver mais (mas não melhor), desincumbindo o Estado da responsabilidade de provê-las e protegê-las, em nome de um ilusório estatuto de cidadania. São essas vidas vulneráveis, com seus corpos assinalados socialmente pelo acontecimento de suas diferenças e, por que não dizer, alguns deles pela deficiência - com toda sua fragilidade existencial e toda periculosidade - que se encontram hoje nessa instituição.
Na escola, esses corpos dividem o espaço, o tempo e todos os ritos de sequestração com outras vidas qualificadas pelo capital humano, as quais oferecem riscos menores de investimento e, portanto, maior possibilidade de serem bem-sucedidas, segundo a ótica meritocrática e capacitista que rege essa instituição no presente. Por vezes, as vidas precárias que encaram podem ser vistas como potencialmente capazes por essa lógica, dado o risco maior do investimento e, portanto, a maior possibilidade de retorno dessa capacitação. Contudo, a rarefação para que sejam bem-sucedidas, considerando os critérios de desempenho utilizados e a disparidade entre o atendimento dessa expectativa e a convivência com as marcas de suas diferenças ou deficiência, sobretudo, persiste com seus efeitos de poder. Haveria, nesse particular, um mecanismo de exclusão outro, mais profundo e contundente, porque atua diretamente nos processos de subjetivação, fabricando-os segundo o maquinismo do Capital e se ingerindo na escola para moldar subjetividades, homogeneizando-as conforme um modelo majoritário.
A questão é que, do seu currículo à sua pedagogia, passando pela gestão, a escola fabrica subjetivações, sem se importar com o custo vital imposto pela racionalidade econômica e gerencial ou mesmo com o desvio de sua função social original, para abarcar ainda mais o “controle suplementar” que exerce sobre as gerações mais novas e as frágeis vidas que a habitam, na atualidade, sem que seja refletida conjuntamente pela comunidade escolar. E é relevante indagarmos se o custo cobrado não tem sido alto, extrapolando o jogo de sequestração e exclusão, na conjuntura atual, para se converter em um jogo de vida e morte, em um momento histórico no qual a escola, por dever jurídico, por direito dos novos atores da justiça social mencionados e pelas estratégias do biopoder, foi intimada a ser inclusiva.
No jogo de sequestração que aí se impõe, não se trata de coibir a transgressão produzida por esses corpos, que, segundo Foucault (2016), implicaria “transpor o interdito”, tornando a “lei irreal e impotente”, em um contexto específico “para uma pessoa”, mas de excluir aqueles que entram em “dissidência”, aliando-se com outros corpos para “atacar a conexão entre a moral, a produção capitalista e o aparato estatal” (p. 105) ou, mesmo, para resistir localmente às coações produzidas pelos mecanismos de sequestro em certas instituições, como a escola. Como, na atualidade, esse jogo adentra um embate micropolítico, no que se refere aos processos de subjetivação, ele até admite a transgressão como um sinal de alerta, jamais a dissidência. A transgressão inclusive pode ser admitida, desde que seja para exprimir um desejo pessoal e obter algum prazer particular na perseguição dos corpos que, em aliança ou não com outros corpos, entrem em dissidência, ao escapar do tempo da produção, ao não se submeterem ao “controle suplementar” do corpo, da sexualidade e das relações interpessoais ou, tampouco, aos discursos, saberes e poderes circulantes na instituição.
As táticas para esse processo de perseguição são mais sutis, na medida em que mobilizam contra esses corpos dissidentes o ódio advindo de um corpo sequestrado, por meio de mecanismos que impedem sua expressão, de uma sexualidade interdita e de uma imunização que individualiza qualquer tentativa de interpessoalidade nessa instituição. Ao mesmo tempo, visibilizam algumas pautas por eles trazidas como questões transversais ao currículo escolar, para incorporá-las nos discursos, nos saberes e nas autoridades constituídas e, então, capturá-las. Essa estratégia invisibiliza a violência extrema sofrida pelos corpos dissidentes, os discursos de ódio que contra eles se voltam e a transgressão dos atores que os enunciam - chegando, por vezes, às vias de fato, quando o prazer da agressividade parece vicejar para alguns, a fim de que se sintam vivos em uma sequestração em que tal sentimento é claramente alimentado pela pulsão de morte.
Os custos desse jogo de vida e morte, no contexto escolar, são retratados em uma passagem do livro Um apartamento em Urano, de Paul Preciado. O autor do livro, além de falar de sua própria experiência ou da criança queer na escola, elabora uma crônica sobre um jovem chamado Allan, de 17 anos, vitimado por essa instituição justamente porque era um corpo trans-, cuja dissidência lhe custou a vida.
A escola é um campo de batalha para o qual são enviadas as crianças, com seu corpo delicado e seu futuro em branco como únicas armas, um teatro das operações no qual se trava uma guerra entre o passado e a esperança. A escola é uma fábrica de machinhos e bichas, de gostosas e gordas, de espertos e retardados. A escola é o primeiro campo de batalha dessa guerra civil: o espaço onde aprendemos a dizer “nós, os meninos, não somos como elas”. O lugar onde se marcam vencedores e vencidos com um signo que acaba por se transformar num rosto. A escola é um ringue no qual o sangue se confunde com a tinta e onde são recompensados os que sabem fazê-lo correr. Que importam os idiomas ensinados, se a única língua que se fala ali é a violência secreta e surda da norma? Alguns, como Allan, sem dúvida os melhores, não sobrevivem. Não podem participar dessa guerra. (Preciado, 2020, p. 195)
Trata-se, portanto, de um jogo de vida e morte, nesse plano micropolítico, onde aqueles corpos dissidentes, como o de Allan, não sobrevivem em uma instituição de sequestração que, apesar das políticas educacionais inclusivas, apenas garante a eles a sobrevivência, algumas oportunidades somente e uma exposição demasiada, sem cuidados daqueles que se encontram à margem. Não obstante a escola diga priorizar a transmissão da tradição e, em seu nome, persistir em sua linha molar de que é lugar de aprendizagem de conteúdos historicamente acumulados, o “controle suplementar” continua a ocorrer, além dos discursos que designam os desviantes e da submissão à autoridade competente que os enuncia, porém de um modo teatral e com confrontos não somente casuais, ante o ingresso e a presença de corpos dissidentes, após a conquista de seu direito à inclusão. Enfatiza Preciado (2020):
A escola não é apenas um lugar de aprendizagem de conteúdos. É uma fábrica de subjetivação: uma instituição disciplinar cujo objetivo é a normalização do gênero e da sexualidade. (...). A escola potencializa e valoriza a teatralização convencional dos códigos da soberania masculina do menino e da submissão feminina da medida, ao mesmo tempo em que vigia o corpo e o gesto, castiga e patologiza toda forma de dissidência. Justamente por ser uma fábrica de produção de identidade de gênero e sexual, a escola entra em crise quando confrontada com os processos de transexualidade. (p. 195-196)
Nesse jogo de subjetivação empreendido pela escola, não se trata apenas de fabricar o gênero e a sexualidade, normalizá-los e promover certa identidade subjetiva, conforme os padrões hegemônicos desta última, mas também de todas as demais diferenças encarnadas em existências singulares, em corpos, formando toda uma corporeidade periférica a essa instituição. Talvez, na atualidade, essa fabricação de gênero e de sexualidade ganhe centralidade ou, melhor seria dizer, desperte mais o ódio e o instinto de destruição contra essa marca que não se apaga em um corpo, a qual se expressa mais fortemente pelas relações binárias de gênero e sexuais, provocando mais uma alteração das relações interpessoais.
Contudo, outros corpos marcados, como os da deficiência, não estão isentos dessa violência extrema, haja vista os noticiários dos últimos meses, em que, só em instituições brasileiras, se observa o espancamento até a morte de estudantes dentro do transtorno do espectro autista, o bullying constante àqueles e àquelas com deficiência intelectual ou mesmo com superdotação, dentre outros, os quais não vêm ao caso descrever. No caso desses corpos, sua presença, na maioria das vezes, se dá por não adentrarem o tempo produtivo, tampouco por se alinharem à utopia escolar, quer do “controle suplementar”, quer do funcional, pois ocupam as heterotopias e heterocronias5 da instituição, só não podendo se esquivar dos discursos que os designam como “deficientes”, das práticas que buscam corrigir seus “desvios” e das autoridades que continuam a falar sobre e para eles e, raríssimas vezes, com esses atores e, quando não for possível, com as presenças próximas a eles.
Se esses signos externos definidos pela autoridade competente e pelos especialistas continuam a representá-los socialmente, apagando sua participação direta na circulação dos discursos e dos saberes acumulados em suas experiências, é nas formas como ocupam essas heterotopias (Foucault, 2019), com suas heterocronias, dentre outros planos cartográficos, que seria de extrema importância nos debruçarmos, caso queiramos reverter os jogos de poder-saber, como os existentes. Há aí todo um terreno a ser cartografado, por vezes municiado com etnografias, as quais poderiam dar outro contorno aos discursos, aos saberes e aos poderes exercidos sobre os corpos deficientes, às suas relações com as dissidências, aos mecanismos de sequestro e ao que esse ponto de vista adotado implicaria para a efetuação de sua inclusão na instituição escolar.
Pensamos ser este um paradigma outro sobre a inclusão, nutrido pelo princípio ético da indignidade de falar por esse outro ou dos efeitos produzidos quando este toma a palavra por si mesmo, conforme assinalado em outros artigos (Pagni, 2024a, 2024b, 2024c), assim como um desafio comum a ser enfrentado por pesquisadores e por especialistas um pouco mais abertos a essa episteme. Ao mesmo tempo, julgamos ser esse desafio ainda maior tanto para a instituição escolar quanto para a formação de professores, porque deveriam ser radicalmente modificadas, a fim de funcionar como instituição de livramento e qualificar filosófica, artística e cientificamente os educadores, com um repertório acadêmico e emocional para lidar com as diferenças, a começar pelas suas próprias, quando suscitadas na relação com o outro.
4 EM VEZ DE CONCLUSõES, DESAFIOS à ESCOLA E à FORMAçãO DE PROFESSORES
As lutas de vida e morte travadas na escola atraem ao menos duas posições (micro)políticas distintas. Uma delas denuncia o anacronismo da escola, de seu funcionamento e de sua dinâmica em relação àquela exigida pela racionalidade econômica e gerencial, propagada aos quatro ventos por movimentos em prol de sua destituição ou de seu recrudescimento, enquanto instituição de sequestração. A outra se engaja, como ator social ou aliado, aos movimentos instituintes produzidos pela presença dos corpos nos quais se inscrevem as diferenças, aposta na potência de seus encontros com outros corpos e de uma (con)vivência comum, agenciada por eles, como uma outra perspectiva para a escola, rogando por sua profunda transformação. As filosofias da diferença se posicionam em relação a essa segunda posição política, considerando as disputas sobre a educação como parte da tática dos jogos de poder e como estratégia relevante para que, nessa atual luta de vida e morte, possa se tornar uma luta transversal de resistências, de encontros com as diferenças e de possibilidades para criar outros sentidos para essa instituição no tempo presente.
Uma das barreiras a serem enfrentadas, para isso, é a de que, ainda hoje, a educação inclusiva vem sendo abordada pelos educadores e pelos pesquisadores dessas áreas (geral e específica) excessivamente presos a um modelo social com significativo apelo médico, no qual a deficiência é definida a partir da normalidade, sem muita abertura para se pensar a sociedade e a instituição educativa para a qual a norma seria a diferença. Afinal, com a presença dos corpos deficientes, o reconhecimento de seu papel dissidente colocaria em circulação outras práticas e saberes, demandando que sua singularidade existencial, assim como tantas outras que já habitam o universo familiar e educacional brasileiro, forçasse a instituição educativa a uma radical transformação.
Desse ponto de vista, não bastaria apenas que ocorresse a oferta de serviços educacionais especializados, juntamente com um desenho universal e uma adaptação curricular voltada especificamente a esse público - com forte apelo ao modelo clínico e, mais raramente, ao modelo social, a fim de atacar as barreiras que aí se interpõem -, quase sempre associados à acessibilidade e às tecnologias assistivas, conforme majoritariamente concebido pela educação especial na perspectiva da chamada educação inclusiva (sem deixar claro a que inclusão se refere). A razão é que tal concepção hegemônica mantém intacta uma estrutura institucional, formalmente caracterizada pela disciplinarização, pela normalização e, mais recentemente, pela capacitação e pelo empresariamento desses corpos, no sentido de conformar suas dissidências, tornando-os úteis e socialmente funcionais, por isso, incluídos socialmente. Assim, ela deixa intocado, da gestão ao currículo, passando por sua pedagogia, todo o seu alinhamento aos mecanismos de dominação do Capital, às redes alimentadas por dispositivos de poder, os quais, objetivamente, os dominam e, subjetivamente, os excluem.
Justamente esse deveria constituir o aspecto a ser abordado por parte das pesquisas, interpelando a homogeneidade desta última e o modo como opera, segundo princípios universais de gestão, de currículo e de pedagogia, no sentido de sequestrar a heterogeneidade dos poderes que a atravessam. Se tais poderes existem, juntamente com a sequestração mencionada, os mapeamentos das resistências e linhas de fuga deveriam servir para problematizar as práticas e os saberes em torno dos quais se empreende uma gestão escolar, uma estruturação do currículo e uma pedagogia majoritariamente unitárias, excludentes e, ideologicamente, dominantes. Caso se deseje perspectivar o acolhimento ético desses corpos, na perspectiva das filosofias da diferença, e propor uma educação inclusiva, seria fundamental uma radical transformação da escola - da gestão ao currículo, passando pela pedagogia -, a fim de que acolhesse as diferenças, as singularidades existenciais desses atores e de seus corpos, nos quais se inscreve a deficiência, dentre os múltiplos signos da diferença que os atravessam.
As pesquisas, desse ponto de vista, em vez de conceberem a educação inclusiva como uma utopia, nos termos em que, por vezes, parecem resvalar certas interpretações, deveriam colaborar para elaborar uma heterotopologia sobre a presença dos corpos dissidentes (Carvalho et al., 2022), com vistas a visibilizá-los e empoderar seus movimentos na escola, conferindo-lhes um lugar de expressividade nesse espaço e preparando o caminho para que ganhem envergadura social, se aliem a outros corpos e se (re)posicionem na cena pública. Salientamos, todavia, que o engajamento pressuposto pelas filosofias da diferença requer certa abertura para os atores sociais que atuam nessa instituição, assim como o desenho de uma cultura escolar que saia do registro da universalidade, de sorte a assumir o das lutas locais de poder, transversais e ascendentes, particularizando-as no que concerne às comunidades em disputa, para então promover uma comunidade de aprendizagem mútua, onde as diferenças sejam acolhidas.
As lutas locais - por vezes anárquicas - dos educandos e, dentre os marcadores da diferença, da deficiência inscrita em seus corpos, conjuntamente às práticas e aos saberes que formaram a ferro e fogo sua existência e a singularizaram, deveriam ser mapeadas e reconhecidas enquanto tais. Por sua vez, os educadores, ao reconhecerem essas lutas, poderiam acolhê-las, interagindo com elas para modular esses conhecimentos, de sorte a fazê-los circular nas relações de poder institucional estratificadas, dando maior alternância aos processos de aprendizagem na comunidade pedagógica. Nessa perspectiva, seria necessária uma (auto?)gestão efetivamente democrática da instituição - no sentido de encontrar, na diferença, sua regulamentação -, a heterogeneização do currículo - e não somente para os corpos marcados pela deficiência - e uma didática que se ocupasse, antes do protagonismo do educador sobre o educando ou vice-versa, de alianças possíveis, nas quais os limites das práticas e dos saberes de uns e de outros implicariam um exercício ético-reflexivo constante sobre a cultura escolar, por parte de seus atores.
Na verdade, tal desafio significaria admitir que essa cultura é múltipla e diversa, em busca de conferir à comunidade pedagógica formada algumas pontes de interlocução, no âmbito dessa diversidade cultural aí presente, e algumas saídas para se recriar em, para e com as dissidências advindas desses corpos. Desse modo, estaríamos contribuindo para formar sujeitos engajados em suas lutas, reconhecidas socialmente, assim como propiciando um aprendizado no qual as alianças dos corpos são uma constante, estrategicamente relevantes, seja para as conquistas dos movimentos políticos dissidentes, seja para o aprimoramento constante da democracia.
Outra barreira a ser enfrentada seria a de que, diferentemente, a formação continuada de parte dos educadores em atividade e a formação daqueles a serem ainda qualificados demandariam uma reforma igualmente profunda, com vistas a prepará-los para essa outra visão política, epistêmica e pedagógica acerca da educação e, especialmente, da educação inclusiva. Desde os saberes acadêmicos a comporem o currículo para essa formação até as atividades para sua continuidade, tudo deveria ser inseparável da experiência prática, do trabalho reflexivo do exercício de alteridade que ela propicia e da abertura às práticas e aos saberes ancestrais.
Essa formação dependeria ainda de uma qualificação acadêmica filosófica, científica e artística, a qual extrapolasse seus regimes disciplinares, compreendendo as transversalidades, a multi-, transe interdisciplinaridade exigidas pelas epistemes tanto da interseccionalidade quanto da decolonialidade. E, o que parece ser central, tal formação não estaria alheia a um engajamento prático, cotidiano e político, o qual adviria da própria condição diversa de seu corpo e singular de sua existência, assinalada socialmente por diferenças e por uma multiplicidade ao redor da qual, na relação com os outros, poderia deles eticamente se aproximar, tornando familiar o que, em princípio, lhes pareceria estranho.
Esse desafio ético exige, além da avaliação de que práticas podem ser desenvolvidas em escolas formais, caracterizadas pela normatividade e pelo capacitismo, a sinalização de que a prática filosófica seria relevante nesse território habitado por corpos nos quais se inscrevem as diferenças e, dentre elas, a deficiência. Para essa prática, as presenças desses corpos deficientes teriam se tornado um problema filosófico, um atributo de existências singulares e um sentido, a fim de que essas últimas almejassem exprimir maior penetração na comunidade que as forma e as atravessa. Entretanto, como considerar a presença desses corpos sem a armadilha do logocentrismo, da percepção dirigida por categorias prévias e da imaginação como um esquematismo do entendimento, antes de aberturas ao estranho e à inter-relação com o outro? Mesmo algumas tradições da fenomenologia, que abarcaram os modos de perceber dos cegos ou de falar dos surdos, esbarram em perspectivas universalizantes ou mesmo historicizantes de um sujeito universal, cuja percepção, imaginação, entendimento e racionalidade, sentimentos e desejos, praticamente como faculdades, psique ou funcionamento-padrão, estão associados a um conjunto normativo ou de capacidades concernente ao que se denomina espécie humana.
Todas as vezes que o embate se dá, nesse terreno antropológico, uma guerra semântica se faz para designar quem é o humano a ser levado em conta, com direitos assegurados e, consequentemente, quem são os humanos a serem excluídos, os sem segurança, cuja vida se encontra exposta como inumana. O que se quer salientar com isso é o quanto esse território antropológico em disputa serve como dispositivo de exclusão, na medida em que estabelece critérios sobre quais corpos devem ficar de fora, uma vez que não cabem dentro do que se prefigura como espécie humana. Como não há possibilidade de uma gradação do humano - não quem seja mais ou menos humano, embora as práticas efetuem esse dispositivo de poder -, mais recentemente, à epistemologia das feministas negras vem se alinhando uma epistemologia radical das Ciências Humanas, a qual instaura relações de familiaridade com outras espécies, de parentesco, como assevera Donna Haraway (2023).
É nessa abertura mais ética que epistemológica que se procurou situar aqui, nesta exposição, a deficiência no âmbito desse outro paradigma de inclusão, para, subsequentemente, indicar outros caminhos para as pesquisas nesse campo e suas implicações para a educação inclusiva, com especial destaque aos desafios a serem enfrentados na escola e pela formação de professores nesse campo.
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Referimo-nos ao dossiê organizado pelo Grupo de Trabalho Filosofia da Deficiência (DEF) da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF) e publicado na revista Kalagatos. Em um dos artigos desse dossiê, argumentamos pela hipótese de que a deficiência seria um problema filosófico e filosófico educacional (Pagni, 2024b). No mesmo dossiê, é possível encontrar outros textos que discutem a temática, elaborados por pesquisadores e pesquisadoras que, diferentemente de nossa condição de “aliado”, têm maior propriedade para falar sobre o assunto, desde sua própria experiência com a deficiência e como a tomam como problema filosófico a partir de outras perspectivas da Filosofia.
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Pode-se sustentar que ocorre algo análogo às análises feitas por Neusa Santos Souza (2021) sobre o processo de “tornar-se negro”: por mais bem-sucedida que sejam as trajetórias de vida, nessas instituições ou, a posteriori, a prosperidade obtida fora dela pelo trabalho, há as marcas de suas diferenças e, especialmente, o sentimento de sentir-se menos que os demais por dispositivos de poder e estruturas excludentes da sociedade.
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A noção de heterotopia, criada por Michel Foucault, em 1966, propõe formas de compreender o que ele denomina contraespaços, isto é, espaços que, muitas vezes, não são vistos em razão de não serem codificados pelas significações vigentes e pelos enunciados discursivos. São espaços outros, múltiplos e impermanentes, produzindo certa heterogeneidade de posicionamentos, em sua ocupação. Esses posicionamentos podem ser mapeados em sua extensão, assim como pela intensidade que suscitam, quando nos conduzem para fora de nós mesmos. Afinal, o espaço no qual viveríamos - “pelo qual somos atraídos para fora de nós mesmos” e “do qual decorre a erosão de nossas vidas, de nosso tempo e de nossa história” - seria, em si mesmo, um “espaço heterogêneo”, assim explicitado pelas palavras de Foucault (1994): Não vivemos no interior de um vazio que se coloriria de diferentes matizes de cores reflexos. Vivemos no interior de um conjunto de relações que definem posicionamentos irredutíveis e absolutamente não sobrepostos uns aos outros (p. 755). Analogamente a esse espaço outro, o qual designaria certa singularidade às existências que os ocupam, essas mesmas existências o ocupariam, de modo a produzir um tempo outro, uma heterocronia, muitas vezes, em virtude de sua própria condição existencial (como o de um corpo deficiente, por exemplo), ralentando ou acelerando o tempo cronológico e rompendo a sua homogeneidade (Foucault, 1994). O corpo do chamado deficiente não é sem eficiência, mas potencializado por uma heterotopia eficiente; trata-se de um corpo heterotópico (Carvalho et al., 2022).
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Não se aplica.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
08 Dez 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
04 Dez 2024 -
Revisado
10 Mar 2025 -
Aceito
10 Mar 2025
