RESUMO:
A perspectiva bilíngue para a educação de surdos caracteriza um desafio para a formação de professores, sobretudo no contexto sociocultural brasileiro, no qual a predominância da língua herdada do país colonizador tem desvalorizado historicamente grupos linguísticos minoritários brasileiros. Em consideração à origem francesa da educação de surdos no Brasil, o presente trabalho buscou analisar a organização da formação de professores no Brasil e na França, de modo a contribuir para reflexões mais amplas sobre uma educação bilíngue para surdos. Com base nos pressupostos analíticos vigotskianos do enfoque histórico-cultural, foram analisados dados coletados em plataformas digitais de ensino-aprendizagem de Instituições de Ensino Superior, brasileiras e francesas, além de documentos legais que regem a formação de professores nos dois países. A abstração dos dados, realizada a partir das categorias analíticas identificadas no fenômeno analisado, em seu movimento histórico, aponta para contradições instituídas na trajetória da educação de surdos, expressas na necessidade de transmitir o conhecimento historicamente acumulado pela humanidade aos sujeitos surdos, registrados sumariamente na forma escrita da língua majoritária – utilizando outra língua, de modalidade distinta. Discute-se a importância da formação para o ensino bilíngue nos cursos de licenciatura, além de formas alternativas de organização da educação escolar para surdos.
PALAVRAS-CHAVE:
Educação bilíngue; Educação dos surdos; Formação docente; Teoria sócio-histórico-cultural
ABSTRACT:
The bilingual perspective of education for the deaf poses a challenge for teacher training, especially in the Brazilian sociocultural context, where the predominance of the language inherited from the colonizing country has historically devalued Brazilian linguistic minority groups. Considering the French origin of education for the deaf in Brazil, this study aimed to analyze the organization of teacher training in Brazil and France, in order to contribute to further reflections on bilingual education for the deaf. Based on the Vygotskian analytical assumptions of the historical-cultural approach, data collected from digital teaching and learning platforms of Higher Education Institutions, both Brazilian and French, were analyzed, along with legal documents governing teacher training in both countries. The abstraction of data, carried out based on the analytical categories identified in the analyzed phenomenon and its historical development, points to contradictions established in the trajectory of education for the deaf, expressed in the need to transmit the knowledge historically accumulated by humanity to deaf individuals, recorded primarily in the written form of the majority language, using another language of a distinct modality. The importance of bilingual education in undergraduate programs and alternative forms of organizing school education for the deaf are discussed.
KEYWORDS:
Bilingual education; Education for the deaf; Teacher training; Socio-historical-cultural theory
1 Introdução
Desde a publicação do Decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005, a formação de professores do Ensino Básico vem tentando se adequar à proposta educacional bilíngue na educação de surdos. Isso se caracteriza pela Língua Brasileira de Sinais (Libras) como primeira língua dos estudantes surdos, o que pressupõe o domínio de metodologias de ensino nas quais o Português figure como segunda língua (Quadros, 1997).
Essa premissa está contemplada no Decreto anteriormente citado, o qual orienta as Instituições de Ensino Superior (IES) para a formação de professores para o ensino de Libras como primeira língua para estudantes surdos; professores bilíngues, para o ensino da Língua Portuguesa como segunda língua; e tradutores-intérpretes de Libras-Português, para intermediar a comunicação entre falantes das duas línguas no espaço escolar (Decreto nº 5.626, 2005).
Em resposta a esse documento, as universidades federais começaram a se organizar para a formação de professores, culminando na criação do curso de Letras-Libras. Entretanto, a habilitação dos licenciados em Letras insere tais profissionais nas séries finais do Ensino Fundamental e no Ensino Médio, o que evidencia a existência de uma lacuna formativa para os professores que devem atuar na Educação Infantil e nas séries iniciais do Ensino Fundamental – ou seja, os licenciados em Pedagogia.
Apesar da inserção da Libras como disciplina nos cursos de licenciatura, também em decorrência da legislação anteriormente mencionada, atualmente se nota uma grande disparidade na oferta do ensino dessa língua nos diferentes cursos de ensino superior (Paiva et al., 2018).
A fim de melhor compreender os limites e as possibilidades para a adequação dos cursos de licenciatura à abordagem bilíngue na educação de surdos, cabe analisar a realidade de alguns países com experiências bilíngues mais bem-sucedidas. O exemplo da Suécia, citado em algumas pesquisas (Montes, 2018; Svartholm, 2014), demonstra a importância das políticas educacionais ao priorizar o acesso precoce à língua de sinais, desde a primeira infância – prática ainda rara em contexto global.
Em uma análise comparativa da organização educacional para o ensino de surdos no Brasil e em Portugal, Santos et al. (2017) observaram que os dois países contemplam, em suas políticas educacionais, um perfil desejado para o professor que irá atuar junto a estudantes surdos; no entanto, em nenhum deles se verificam ações concretas para a adequação da formação docente para essa especificidade.
Perante a trajetória franco-brasileira da educação de surdos, compreendeu-se que a análise desse fenômeno em seu movimento histórico poderia contribuir para a identificação de possibilidades de superação dos atuais desafios para a formação de professores. Tal trajetória está historicamente caracterizada pela chegada do professor francês Ernest Huet ao Rio de Janeiro no século XIX, decorrente da expansão francesa do método de ensino para surdos utilizado pelo abade Charles Michel de l’Épée, na instituição atualmente denominada Instituto Nacional de Jovens Surdos (INJS), em Paris (Estimado & Sofiato, 2019).
O então chamado “método combinado” consistia em uma mistura de francês oral, alfabeto manual e sinais metódicos, criados sob influência da comunicação gestual utilizada por pessoas surdas, habitantes dos guetos parisienses. Entretanto, uma vez que as línguas de sinais só adquiriram status linguístico após as pesquisas do americano William Stokoe, na década de 1960, tal método ainda não poderia ser denominado bilíngue. Ao contrário, a despeito da utilização de diferentes recursos metodológicos gestuais, identifica-se nos sinais metódicos de l’Épée a finalidade de aproximação com a estrutura gramatical do francês oral, além de uma tentativa de controle sobre os sinais utilizados pelos surdos (Bertin, 2019).
Nos moldes do instituto parisiense, o mesmo método passou a ser utilizado no Brasil, na escola para surdos criada por D. Pedro II – hoje chamada Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES). Entretanto, observa-se que todas as escolas para surdos foram influenciadas pela abordagem oralista ao longo da história, sobretudo após o Congresso de Milão, em 1880 (INES, 2011).
A despeito de uma possível dualidade alternada nos métodos de ensino para surdos, com maior ou menor uso da oralidade ou da comunicação gestual, tanto a língua de sinais quanto a língua oral sempre estiveram presentes no contexto da educação de surdos do INES (Rocha, 2009). No entanto, mesmo na atualidade, é possível constatar que métodos e materiais didáticos empregados na educação de surdos conseguem camuflar a priorização da estrutura gramatical da língua oral, ainda que a presença da língua de sinais sirva para caracterizar tais propostas pedagógicas como bilíngues (Vieira & Molina, 2018).
Esses aspectos nem sempre são abordados nos cursos de licenciatura, uma vez que envolvem questões específicas de um grupo linguístico minoritário. Contudo, as minorias linguísticas caracterizam uma grande variedade de estudantes nessa condição: imigrantes, refugiados, indígenas, quilombolas, além dos estudantes surdos usuários da Libras.
Mesmo sendo um país caracterizado pela diversidade étnico-cultural, o Brasil é um país que historicamente desconsidera a diversidade linguística de sua população (Galucio, 2020). A despeito do que propagam alguns discursos demagógicos, a informação de que a Libras seja a segunda língua do Brasil é contestável, já que a lei brasileira que reconhece oficialmente a Libras não a denomina como língua, mas, sim, como “meio legal de comunicação” (Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002). Além disso, várias outras línguas que circulam no país, sobretudo aquelas dos povos originários, também poderiam ser reconhecidas como línguas brasileiras e, no entanto, não o são. Assim, a Libras se caracteriza como mais uma entre tantas outras línguas historicamente silenciadas no Brasil, onde a única língua oficial é a língua portuguesa, herdada do país colonizador.
Esse contexto caracteriza a problemática do estudo aqui descrito, que impacta na organização da formação de professores para uma educação bilíngue de surdos. A partir dos pressupostos analíticos do enfoque histórico-cultural, compreende-se a importância da análise do objeto de estudo em seu movimento histórico, partindo da forma mais evoluída do fenômeno até a sua gênese, caracterizando o método inverso de investigação (Vigotski, 2001).
Embora a educação de surdos no Brasil tenha suas origens no modelo francês, em cada país esse fenômeno evoluiu de forma diferente – ainda que seja possível identificar, no método combinado utilizado pelo abade de l’Épée, as bases da comunicação gestual que atualmente fundamentam a abordagem bilíngue para a educação de surdos.
No contexto francês atual, o Institut national supérieur de formation et de recherche pour l’éducation des jeunes handicapés et les enseignements adaptés (INSHEA)4 atualmente se responsabiliza pela formação continuada de professores para a educação de pessoas com necessidades educacionais especiais, incluindo pessoas com surdez. O INSHEA é uma instituição atuante na França desde 1954, tornando-se estabelecimento público em 1959, e legitimado oficialmente em 2005, com base na Loi n° 2005-102 du 11 février 2005 [Lei nº 2005-102, de 11 de fevereiro de 2005], a qual garante a igualdade de direitos, oportunidades, participação e cidadania às pessoas com deficiência.
A educação escolar pública francesa diferencia-se sumariamente da brasileira em seu aspecto organizacional. Enquanto o Brasil conta com um único Ministério da Educação, responsável por todos os níveis e modalidades da educação escolar, a França apresenta um Ministério responsável pela Educação Nacional e Juventude; um Ministério responsável pelo Ensino Superior, Pesquisa e Inovação; e um Ministério da Solidariedade, Autonomia e Pessoas com Deficiência, ao qual estão ligados os quatro institutos franceses com a denominação de INJS5, incluindo o de Paris, de onde Ernest Huet teria trazido o modelo educacional que inspirou a criação do INES, em 1857.
Perante tal organização, o INSHEA insere-se sob dupla tutela, estando subordinado tanto ao Ministério da Educação Nacional quanto ao Ministério do Ensino Superior, com base no Décret n° 2023-150 du 3 mars 2023 [Decreto nº 2023-150, de 23 de março de 2023]. Assim, a instituição oferece diversos cursos de formação continuada de professores, a fim de capacitá-los para a atuação nas escolas regulares.
Explicitar essas diferenças na organização do ensino na França e no Brasil é essencial para melhor entender as peculiaridades do ensino para surdos em cada país. No contexto brasileiro, por um lado, tanto a educação de surdos quanto a formação de professores apresentam diferentes nuances em relação à região do país – o que está diretamente relacionado à autonomia dos Estados e Municípios para a Educação Básica e para a formação docente; por outro lado, a existência de um Ministério da Educação unificado permite a criação de diretrizes aplicáveis a todo e qualquer estabelecimento de ensino no território brasileiro, além de programas de formação de professores criados em parceria com instituições públicas de ensino superior, independentemente de serem federais ou estaduais.
Assim, o objetivo do presente trabalho foi analisar a organização da formação de professores em cada país, Brasil e França, a fim de identificar os principais limites e possibilidades para que a educação bilíngue de surdos esteja contemplada na formação de professores, tanto na formação universitária inicial quanto na formação continuada.
2 Método
O presente estudo fundamentou-se nos pressupostos analíticos vigotskianos do enfoque histórico-cultural. Como apresentado por Vigotski (2001), essa proposta analítica se distingue de outras abordagens pela análise do objeto em seu movimento histórico, priorizando a explicação do processo e superando a mera descrição do objeto. Dessa forma, os fenômenos podem ser compreendidos em sua essência, para além de sua aparência.
Na identificação das estruturas internas do fenômeno, é possível identificar quais são os comportamentos fossilizados, que se perpetuam ao longo da evolução humana de forma automatizada, e se conservam na estrutura interna do fenômeno, permitindo explicá-lo em seu desenvolvimento. Para Vigotski (2008), tal método investigativo permite compreender os fenômenos sociais de maneira integral, identificando-se as relações causais que estão embutidas no fenômeno. Assim, pautado na concepção marxista de que o todo e suas partes estão relacionados, Vigotski (2008) defende que a totalidade do fenômeno está expressa em cada uma das unidades que o compõem.
Ainda que a mera descrição do fenômeno seja insuficiente para explicar os nexos causais de sua estrutura interna, tal etapa é necessária no percurso investigativo. Assim, a presente descrição organizou-se pela caracterização atual da formação de professores para a educação de surdos no Brasil e na França. Essa descrição baseou-se na coleta de dados realizada nos sítios eletrônicos de IES do Brasil e da França; em documentos legais que regem a formação de professores nos dois países; em informações da literatura específica concernente à formação de professores, também dos dois países; e em observações in loco no INSHEA, durante o período de realização do presente estudo – ano letivo europeu 2022/2023 – no contexto do curso de formação continuada denominado Certificado de Aptidão Profissional para Práticas de Educação Inclusiva (CAPPEI) e no curso de Língua de Sinais Francesa (LSF), em todos os níveis oferecidos, os quais seguem o Quadro Europeu Comum de Referência Linguística (CEFR). Também foram consultadas as plataformas digitais de ensino-aprendizagem de duas IES: a brasileira, Universidade de São Paulo (USP), e a francesa, INSHEA, ambas disponibilizadas às pesquisadoras durante a realização do estudo.6
Ainda no processo descritivo de cada realidade, brasileira e francesa, os documentos e sítios eletrônicos anteriormente mencionados foram analisados a partir da identificação de três aspectos: 1) Organização do ensino de surdos na educação escolar; 2) Atuação de professores na educação de surdos; e 3) Organização dos cursos de formação de professores.
Com a descrição dos aspectos de cada realidade analisada, brasileira e francesa, partiu-se para a análise dos processos que constituem as estruturas internas do fenômeno não se dá de forma imediata, perante a mera observação de sua aparência – o que justifica a própria necessidade investigativa. Assim, caracteriza-se o processo analítico mediado, que consiste no “método dialético de apropriação do concreto pelo pensamento científico através da mediação do abstrato” (Duarte, 2000, p. 84).
O conceito de mediação aqui utilizado refere-se a um constructo analítico, resgatado por Oliveira (2005) na relação singular-particular-universal. Nessa relação, a singularidade constrói-se na universalidade, ao mesmo tempo em que a universalidade se concretiza na singularidade, tendo a particularidade como mediação. A Figura 1 ilustra o movimento de objeti-vação das possibilidades universais constituídas historicamente nos sujeitos singulares, a partir da mediação das abstrações produzidas pelo conjunto dos homens.
Conforme explicitado por Bernardes (2010), a relação entre o singular e o universal, presente na relação entre indivíduo e genericidade, é produto do movimento histórico de constituição da espécie humana na filogenia, objetivado nos sujeitos na ontogenia, na mediação da cultura, que se dá nas relações sociais. Assim, a relação singular-particular-universal compreende as dimensões gnosiológica, ontológica, epistemológica e lógica, que se aplicam também aos fenômenos investigados. A particularidade “se constitui em mediações, que explicam os mecanismos que interferem decisivamente no modo de ser da singularidade, na medida em que é através delas que a universalidade se concretiza na singularidade” (Oliveira, 2005, p. 46). Nessa compreensão, no desenvolvimento dos sujeitos que apresentam a surdez como especificidade, entende-se que a mediação da cultura ocorre pela particularidade criada por vias alternativas (Vigotski, 2012), no que se verifica a importância da língua de sinais.
Com base nesses pressupostos analíticos, apresenta-se, a seguir, a análise realizada das diferentes realidades – brasileira e francesa – para a formação de professores, contemplando as necessidades e os desafios para uma educação de surdos em perspectiva bilíngue.
3 Resultados e discussão
Após a organização descritiva das informações correspondentes aos contextos educacionais brasileiro e francês, com base nos três aspectos norteadores da análise anteriormente informados, considerou-se a importância de apresentar aqui alguns aspectos essenciais da caracterização da realidade analisada, conforme se apresenta a seguir.
A análise da realidade brasileira reflete que, de modo geral, os cursos de licenciatura seguem preparando os professores para atuar em condições ideais de ensino, com turmas homogêneas em termos linguísticos, sociais e culturais. Nesse contexto, a diversidade escolar ainda parece ser vista como adversidade, algo indesejado e que deve ser delegado a outrem – em sua maioria, professores contratados temporariamente, cuja função é quase sempre indefinida, até para o próprio profissional (Lopes, 2020).
A necessidade de que os cursos de licenciatura contemplem propostas formativas voltadas para a educação em perspectiva inclusiva, nos princípios da qualidade-equidade na diversidade se faz urgente. Verifica-se que, na própria legislação brasileira, esse aspecto está contemplado, de acordo com as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica (Resolução nº 2, de 20 de dezembro de 2019). Nesse documento, consta que a formação dos professores em cursos de licenciatura deve contemplar 800 horas destinadas a uma base comum, que compreenda os marcos legais e fundamentos da Educação Especial, para o atendimento dos estudantes com deficiência e necessidades especiais.
Nesse rol, os estudantes surdos foram inseridos como público da Educação Especial e do Atendimento Educacional Especializado (AEE), em salas de recursos multifuncionais, conforme se verifica na Política de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva – PNEEPEI (Ministério da Educação, 2008), bem como na Política de Educação Especial do Estado de São Paulo – PEE-SP (Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, 2021).
Entretanto, a especificidade da educação de surdos foi, aos poucos, distanciando esse campo teórico-metodológico da Educação Especial – culminando na recentemente publicada Lei nº 14.191, de 3 de agosto de 2021, a qual situa a educação bilíngue de surdos como modalidade de ensino – portanto, no mesmo patamar que a Educação Especial, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) – Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996.
Assim, pressupõe-se que as IES também deveriam implementar propostas formativas para o ensino bilíngue de surdos nos cursos de licenciatura, na mesma perspectiva já existente para os aspectos concernentes à Educação Especial. Dessa forma, o distanciamento entre a educação de surdos e a Educação Especial, já legitimado politicamente, estaria também evidenciado no aspecto da organização da formação docente e, posteriormente, na própria organização do ensino nas escolas.
Nesse direcionamento, cabe ressaltar que, apesar da obrigatoriedade do ensino de Libras nos cursos de licenciatura, a ausência de diretrizes metodológicas envolvendo a Libras caracteriza uma lacuna importante para a formação docente. Sobre a oferta da disciplina de Libras na USP, Zerbato et al. (2021) descrevem a discrepância na maneira como a Libras é introduzida nos cursos de licenciatura – por vezes, figurando em meio a tópicos específicos da Educação Especial. Em função do pouco espaço curricular destinado aos aspectos linguísticos e metodológicos da Libras na educação de surdos, a formação de professores para uma educação bilíngue de surdos tende a extrapolar os limites bastante delimitados da formação inicial universitária.
Com relação à realidade francesa atual, verificou-se que as políticas educacionais garantem o direito dos estudantes surdos à educação em qualquer modalidade linguística escolhida pelos próprios surdos e/ou suas famílias (Loi nº 2005-102, 2005). Entretanto, a França apresenta, hoje, referenciais legais tanto para o desenvolvimento linguístico em perspectiva bilíngue quanto em perspectiva de base oral-auditiva, conforme a Arrêté du 11 juillet 2017 [Portaria de 11 de julho de 2017]. Isso representa também um aumento de outros profissionais que trabalham junto ao aluno surdo na sala de aula – tais como os tradutores intérpretes de LSF, ou profissionais para o trabalho com o código Langue Parlée Complétée (LPC), adaptação francesa do sistema americano Cued Speech7.
Segundo Mato (2017), as estratégias pedagógicas de reabilitação oral na França também estão presentes no contexto dos institutos de educação para surdos, os INJS. De acordo com a autora, os métodos de ensino ali utilizados têm como foco a aprendizagem do Francês oral e escrito, pois se compreende que o domínio da língua francesa é a única maneira de conseguir sucesso para a integração do aluno surdo.
Outro aspecto particular da educação de surdos na França é o fato de que, embora tenha sido pioneira na educação escolar pública de estudantes surdos utilizando a modalidade gestual, o reconhecimento oficial da LSF ocorreu apenas em 2005 – ainda que a legislação francesa tenha prontamente admitido a LSF como língua completa (Loy n° 2005-102, 2005), ao contrário do que ocorreu no Brasil, em relação à Libras.
O caráter multilíngue e multicultural do continente europeu pode ter influenciado o avanço das políticas educacionais para o ensino da LSF, inferindo-se que a aprendizagem de uma segunda língua também pode resultar de uma necessidade advinda do contexto geográfico. Nessa concepção, destaca-se a existência de um quadro comum europeu de referência para a aprendizagem de línguas estrangeiras, o qual já foi adaptado em 2002 para a LSF, no documento Cadre européen commun de référence pour les langues (Conseil de l’Europe, 2002). Em contrapartida, o Brasil permanece identificado como uma nação monolíngue, a despeito da variedade linguística de sua população – tais como indígenas ou imigrantes, além das próprias pessoas com surdez (Quadros, 2008). Na comparação entre as realidades francesa e brasileira, cabe destacar também que, diferentemente do contexto francês – onde os INJS se expandiram para outras cidades francesas – no Brasil, o INES manteve-se exclusivo com essa denominação, em sede única, localizada no Rio de Janeiro (RJ).
No que tange à formação de professores para a educação de surdos na França, o ano do reconhecimento da LSF também pode ser considerado um importante marco histórico para a história daquele país, ainda que tal necessidade já estivesse apontada pelos movimentos surdos. Géffroy (2020) descreve que, a partir da já mencionada Loi nº 2005-102/2005, alguns cursos de formação de professores adicionaram uma menção à LSF ao programa curricular. Todavia, em 2004, a Universidade Paris 8 já havia inaugurado seu primeiro curso ofertado inteiramente em LSF, o curso de licença profissional.
Em 2013, a legislação francesa de Orientação e de Programação para Refundação da Escola da República – Loi nº 2013-595 du 8 juillet 2013 [Lei nº 2013-595, de 8 de julho de 2013] – afirmou o princípio da inclusão, estabelecendo o direito de cada criança à escolarização nas mesmas condições dos outros alunos, inclusive no mesmo espaço físico. Posteriormente, o Décret nº 2017-169 du 10 février 2017 [Decreto nº 2017-169, de 10 de fevereiro de 2017] criou o CAPPEI, sendo o INSHEA a instituição que centraliza tal formação para todos os professores ligados à Educação Nacional francesa, mesmo aqueles que já se encontram em atuação nas unidades escolares.
A organização escolar pública francesa, no âmbito nacional, dá-se por meio das academias, que administram as escolas de ensino regular da região. Atualmente, há duas academias específicas que oferecem um percurso bilíngue para os estudantes surdos, nas cidades de Poitiers e Toulouse (Géffroy, 2020), cidades que não contam com institutos para surdos, os INJS. Entretanto, a Educação Nacional centraliza a formação continuada dos professores para a educação de surdos na região parisiense, tanto no INSHEA quanto na Universidade Paris 8 – esta última não contempla a formação continuada de professores, apenas a formação inicial, em nível de Mestrado.
A certificação CAPPEI abrange todos os docentes que atuam nas séries correspondentes ao Ensino Fundamental brasileiro, permitindo aos professores quatro percursos formativos: 1) Coordenação de unidade local de inclusão escolar: para alunos com Transtorno do Espectro Autista; alunos surdos ou com deficiência auditiva; alunos cegos e com deficiência visual; alunos com transtornos de funções cognitivas; alunos com transtorno nas funções motrizes; e alunos com transtornos específicos da linguagem e da aprendizagem; 2) Ensino em unidade de ensino ligada a um estabelecimento ou serviço médico-social ou ligada a um serviço sanitário; 3) Ensino em meio carcerário ou centro educativo em sistema de reclusão; e 4) Ensino referente à escolarização ou secretaria de Comissão Departamental de Orientação para o Ensino Adaptado. A organização do curso dá-se por meio de módulos – de tronco comum e de aprofundamento –, nos quais são abordadas as especificidades dos estudantes. Além disso, no que tange à língua de sinais, observou-se a oferta de cursos específicos de LSF, com disciplinas sequenciais, conforme o nível linguístico dos professores em formação.
Frente à realidade concreta brevemente descrita aqui, o percurso investigativo adotado no presente estudo buscou identificar, entre os dados imediatamente observáveis, elementos que permitissem compreender os eixos internos da organização do ensino de surdos, em cada país. As mediações utilizadas para a análise investigativa serão detalhadas a seguir.
3.1 A (des)valorização linguística na educação bilíngue de surdos
Em consideração ao método analítico no qual este estudo se fundamenta, alguns pontos essenciais foram identificados como elementos que permanecem constantes no fenômeno da educação de surdos, em seu percurso histórico. No centro dessa discussão, encontra-se a barreira linguística, elemento-chave para a compreensão dos impasses enfrentados pela escola, historicamente composta por pessoas ouvintes.
Aliado a tal fato, cabe destacar que essa escola, inserida em uma sociedade capitalista, embute em sua estrutura e organização uma função de perpetuação do sistema no qual se insere, o qual não comporta em si uma educação inclusiva – posto que depende da exploração do trabalho assalariado, ou seja, da exclusão (Carvalho & Martins, 2012). A escola, nesse contexto, figura somente como um espaço de preparação para o trabalho, diferindo da concepção de escola como espaço de transmissão do saber e de apropriação dos elementos culturais produzidos pela humanidade (Saviani, 2013).
Ao pensar nas inúmeras possibilidades que historicamente têm servido para justificar a exclusão de diferentes grupos sociais minoritários, no caso das pessoas surdas, encontra-se o acesso à língua da comunidade majoritária. Diferentemente das crianças ouvintes, que aprendem a língua do grupo social em que estão inseridas de forma espontânea – ou seja, sem a necessidade de um método de ensino formalmente organizado para esse fim –, a criança com surdez de grau profundo dificilmente atinge um grau satisfatório de desenvolvimento da língua oral sem a terapia fonoaudiológica – nem sempre acessível para muitas famílias. Além disso, quando expostas unicamente à terapia oral, algumas crianças não chegam a desenvolver a fala, sendo tardiamente encaminhadas para aprender a língua de sinais, quando o atraso linguístico já foi instalado (Oliveira, 2020).
Na França, como no Brasil, muitas crianças surdas têm sido precocemente submetidas à cirurgia de implante coclear, algo que nem sempre é uma alternativa funcional para todo e qualquer tipo/grau de surdez – ainda que, no Brasil, esteja cada vez mais popularizada, sendo atualmente realizada pelo Sistema Único de Saúde – SUS (Batti & Soares, 2022). Contudo, a terapia fonoaudiológica continua sendo determinante para garantir o sucesso do procedimento, de modo que a língua de sinais poderá ser a única alternativa para muitas crianças surdas, principalmente aquelas provenientes de famílias mais pobres.
Na trajetória histórica do fenômeno da educação de surdos, a dificuldade de acesso dos estudantes surdos à língua utilizada pela comunidade majoritária – mesmo na modalidade escrita dessa língua – é o elemento central que está presente em todos os aspectos de sua escolarização, sendo aqui identificada como unidade de análise no processo investigativo. Tal elemento também se caracteriza como o maior desafio a ser superado pelos processos educativos de estudantes surdos, estendendo-se à formação docente inicial. Nesse ponto, cabe considerar que, mesmo em uma escola só para surdos – como é o caso do INES –, a superação desse desafio não está garantida, uma vez que a base formativa docente é a mesma nos cursos de pedagogia e nos cursos de licenciatura, nos quais a Libras muitas vezes permanece tangenciada.
No desenvolvimento dos sujeitos que apresentam a surdez como especificidade, entende-se que a mediação da cultura ocorre pela particularidade criada por vias alternativas (Vigotski, 2012), no que se verifica a importância da língua de sinais. Em tal compreensão, na relação entre os sujeitos singulares e a genericidade humana universal, a educação escolar – na particularidade da educação bilíngue – é a abstração que viabiliza o acesso dos sujeitos surdos ao conhecimento científico historicamente acumulado.
O modo como essa particularidade se expressa na formação de professores parece explicitar-se de forma mais deliberada no contexto francês, onde foi identificada formação específica para professores que atuarão com estudantes surdos em escolas especiais, e alternativas formativas para professores que atuarão com esses estudantes nas escolas regulares, em conjunto com os demais professores desse aluno. Nesse movimento histórico, diferentes formas de acesso do sujeito surdo aos conteúdos escolares se apresentam de formas diversas. No entanto, a particularidade da educação escolar – pela qual os sujeitos singulares podem acessar o conhecimento histórico acumulado – também se apresenta de forma distinta: ora na escola comum, ora na escola para surdos.
Em todo caso, no que se refere à educação bilíngue de surdos, tanto a França quanto o Brasil demonstram tendência para a formação docente em caráter complementar, na formação continuada. Os elementos analíticos que compuseram a presente análise são representados na Figura 2.
Compreende-se que é função da escola contribuir para a humanização dos sujeitos singulares, rumo ao sujeito genérico – processo mediado pela particularidade da educação escolar. A mediação do conhecimento teórico, historicamente acumulado, permitirá aos sujeitos singulares acessarem aquilo que é universal, como a própria linguagem na qualidade de função psicológica essencialmente humana (Vigotski, 2012).
A grande questão na educação de surdos é como garantir esse acesso, considerando que a língua de sinais é pouco conhecida e difundida na sociedade ouvinte. No Brasil, ainda que a Libras esteja presente em alguma medida nos cursos de licenciatura, essa presença é muitas vezes incipiente. Além disso, os cursos de Letras-Libras – os quais frequentemente contemplam aspectos metodológicos de ensino de Libras e de Português como primeira ou segunda língua – não habilitam os licenciados para atuação na Educação Infantil e nas séries iniciais do Ensino Fundamental, conforme mencionado anteriormente. No Brasil, aspectos do ensino do Português como segunda língua estão presentes como objetivos a serem alcançados, de forma oficial, como se observa na Proposta curricular para o ensino de Português escrito como segunda língua para estudantes surdos da Educação Básica e do Ensino Superior, publicado em 2021 (Ministério da Educação, 2021). Contudo, tais propostas ainda não estão contempladas nas propostas curriculares dos cursos de licenciatura comuns, nem mesmo nos cursos de Pedagogia, que formam os professores alfabetizadores. Vale destacar que, em consulta ao sistema e-MEC8 do Ministério da Educação, na ocasião do presente estudo, foram encontradas apenas duas instituições oferecendo cursos denominados Pedagogia Bilíngue: Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC), de Palhoça-SC; e Instituto Federal de Goiás (IFG), de Aparecida de Goiânia-GO.
Assim, cursos específicos para formação complementar, inicial e/ou continuada, são as alternativas possíveis para professores que desejam trabalhar com alunos surdos, tanto no Brasil quanto na França. Todavia, na realidade brasileira, quando esses alunos estão inseridos em uma escola regular, o que se observa é a prática maciça de contratação de professores temporários para acompanhar esses alunos em sala de aula, fenômeno frequentemente caracterizado pela submissão de um professor ao outro (Lopes, 2020).
A opção da escola especial para surdos, que permanece como alternativa nos dois países – a despeito da tendência mundial pós Declaração de Salamanca, de que todas as crianças estudem juntas em uma mesma escola – evidencia a especificidade linguística dos alunos surdos como sendo o maior dos desafios para uma educação em perspectiva inclusiva. Ainda assim, no que tange à realidade francesa, o que prevalece nos INJS como objetivo educacional é o desenvolvimento da fala (Mato, 2017), aspecto que transparece nas práticas de ensino apoiadas na LPC. No Brasil, a adaptação do Cued Speech para a língua portuguesa é pouco conhecida e utilizada, pois requer o aprendizado de um outro sistema de códigos, tanto pela criança surda quanto por sua família e profissionais da educação.
Desse modo, mesmo em escolas exclusivas para surdos, o acesso das crianças surdas à língua de sinais não se mostra evidenciado como elemento central na educação escolar dessas crianças, estando sujeito à escolha das famílias. Além disso, também não há garantias de que o ensino oferecido possa ser caracterizado como bilíngue, uma vez que a língua valorizada para a transmissão dos conteúdos curriculares permanece sendo a língua da comunidade majoritária, inclusive na modalidade oral. Na presente análise, compreende-se que a necessidade de desenvolver a fala nessas crianças se evidencia como um comportamento automatizado nas ações pedagógicas envolvendo estudantes surdos – o que explicaria a permanência dessa prática, mesmo em instituições e materiais didáticos considerados bilíngues.
No Brasil, a experiência do INES também demonstra que a simples alocação de estudantes surdos na mesma escola não garante o sucesso acadêmico desse alunado. Mais que isso, a presença crescente de estudantes com múltiplas deficiências no instituto tem demandado a contratação de um segundo professor – ali chamado de mediador. Tal forma de atuação docente muitas vezes caracteriza-se como uma aula paralela, no contexto de uma sala de aula que já apresenta número reduzido de alunos (Lopes, 2017).
Mesmo assim, a proposta de escola para surdos ganhou destaque com a criação da Diretoria de Políticas da Educação Bilíngue de Surdos (Dipebs). Na transição para o governo atual, a Dipebs se manteve no organograma do Ministério da Educação, após fortes críticas da Comunidade Surda a uma possível extinção da pasta, o que demonstra o apelo político da organização do ensino para surdos no país, para além das necessidades educacionais dos estudantes surdos.
Entretanto, ao resgatar o fato de que, em 2021, a educação bilíngue para surdos passou a figurar na legislação brasileira como modalidade de ensino (Lei nº 14.191, 2021), tal como já era a Educação Especial, considera-se que, em qualquer estabelecimento de ensino, a educação de estudantes surdos deverá assegurar o acesso à Libras e o direito ao ensino bilíngue para esses alunos. Nesse quesito, compreende-se que tais pressupostos deverão ser considerados pelas IES na formação inicial e continuada dos professores que atuarão com estudantes surdos – aspecto que, no contexto francês, já se encontra organizado em propostas formativas para docentes que atuarão com estudantes surdos, tanto na escola para surdos quanto na escola regular.
4 Conclusões
Analisar a educação de surdos em seu movimento histórico permite identificar aspectos importantes para a formação dos professores que irão atuar com esses alunos. No centro dessa discussão, a dificuldade de acesso à língua da comunidade majoritária é um ponto crucial para a compreensão dos impasses enfrentados pelos professores. Ainda que estudantes surdos tenham direito de aprender e utilizar a língua de sinais na escola, adquirir a língua da comunidade majoritária na modalidade escrita permanece essencial para a escolarização desses alunos, a fim de que possam acessar o conhecimento produzido e acumulado pela humanidade – historicamente registrado na modalidade escrita da língua oral do país.
No entanto, mesmo o acesso à língua de sinais permanece sendo um desafio, pois demanda um atendimento linguístico precoce, anterior à entrada da criança na escola. Algumas escolas, de orientação deliberadamente oralista, permaneceram em diversas localidades, mesmo antes do aprimoramento das técnicas de reabilitação oral; por outro lado, mesmo em propostas educacionais fundamentadas em uma abordagem bilíngue, tais propostas são desafiadas pela ausência de metodologias específicas de ensino, as quais também estão ausentes na maioria dos cursos de licenciatura.
Nesse direcionamento, vale destacar o que aponta Martins (2011), ao ressaltar que a formação docente tende a permanecer em um movimento constante de adaptação às mudanças sociais, substituindo o pensamento teórico pelo saber empírico, cada vez mais valorizado pelo pensamento negacionista, característico dos tempos atuais. Aliado a esse fato, a integração de estudantes surdos oralizados na escola regular contribui para consolidar a função da escola como promotora da adaptação dos sujeitos ao meio, em vez de lutar pela transformação social, em prol das necessidades humanas. Em contrapartida, na aparente dualidade alternada dos métodos de ensino para surdos ao longo da história – oralismo ou bilinguismo – tanto a oralidade se manteve nas práticas pedagógicas consideradas bilíngues quanto a gestualidade resistiu à proibição do uso dos sinais, após o Congresso de Milão.
No presente estudo, o método inverso de investigação utilizado permitiu identificar alguns aspectos históricos da educação de surdos em sua trajetória franco-brasileira. A organização do ensino para surdos, que no Brasil ainda se estrutura no Atendimento Educacional Especializado, na perspectiva educacional inclusiva, reflete na organização das licenciaturas entre professores generalistas e professores especialistas. Essa premissa – historicamente estruturada – acaba por caracterizar um obstáculo para que egressos do curso de Letras-Libras atuem na Educação Infantil e nas séries do Ensino Fundamental, etapas reservadas para os licenciados em Pedagogia.
Contudo, tais contradições podem ser explicadas no movimento histórico do fenômeno da educação de surdos no contexto francês. A despeito das diferenças socioculturais que implicam a organização política da educação escolar em cada país, as contradições também estão presentes no contexto do país em que se deu a gênese desse fenômeno, onde diferentes propostas formativas docentes nem sempre conseguem superar o desafio da aceitação social e valorização da língua de sinais. Em tal aspecto, as línguas de sinais poderiam ser equiparadas às línguas de diferentes grupos sociais minoritários, que, no Brasil e na França, se perdem no cotidiano de uma educação escolar que tende a perpetuar as desigualdades sociais.
Identificadas as limitações históricas, presentes na essência do fenômeno analisado, urge refletir sobre as alternativas para a sua superação, nos aspectos organizacionais do ensino na diversidade. Nesse sentido, no contexto brasileiro, aponta-se também para a necessidade de reorganização do trabalho docente: se questões metodológicas de ensino de Libras como primeira língua e de Português como segunda língua já estão contempladas nos cursos de Letras-Libras, duas possibilidades emergem como alternativas concretas para o ensino bilíngue de surdos: atuação conjunta de dois professores na mesma sala ou formação integral em ensino bilíngue para todos os licenciandos.
Por fim, seria necessário contar com mais pesquisas para analisar os processos de aprendizagem da língua escrita como segunda língua em sujeitos surdos sinalizantes, admitindo-se que o grande fracasso na escolarização de alunos surdos é da escola, e não dos estudantes – que podem ou não desenvolver a língua oral. Ensinar o estudante surdo a ler e a escrever é o maior objetivo de muitos professores, sendo também responsabilidade dos cursos de licenciatura providenciar condições de reflexão sobre o ensino de segunda língua para os futuros docentes.
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Instituto nacional superior de formação e pesquisa para a educação de jovens com deficiência e ensino adaptado (tradução livre). A partir de março de 2023, o instituto passou a se chamar Institut national supérieur de formation et de recherche pour l’education inclusive (INSEI), porém a sigla INSHEA permanece sendo utilizada em algumas publicações, motivo pelo qual se optou aqui pelo seu uso ao referir-se ao instituto.
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Informações disponíveis no sítio eletrônico da instituição: https://www.injs-paris.fr/page/presentation-linjs-paris
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A plataforma digital da USP está disponível no sítio eletrônico: https://edisciplinas.usp.br/acessar. A plataforma digital do INSHEA está disponível no sítio eletrônico: https://elearning.inshea.fr/login/index.php.
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O Cued Speech é um sistema de comunicação que combina sinais manuais com leitura labial para facilitar a compreensão da fala por pessoas surdas. Utiliza sinais manuais posicionados ao redor do rosto do falante para representar os sons fonéticos do idioma falado. Não se trata de uma língua, mas de um sistema de suporte à língua oral, adaptável a qualquer idioma.
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Informações obtidas em consulta ao sistema e-MEC: https://emec.mec.gov.br/.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
09 Maio 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
26 Set 2023 -
Revisado
22 Fev 2024 -
Aceito
08 Mar 2024



Nota. Extraída de
Nota de acessibilidade: Diagrama em formato de tabela, com doze células dispostas em quatro linhas, sendo a primeira com os títulos das três colunas: “Fenômeno em sua forma mais evoluída: a realidade atual”, “Categorias analíticas para compreensão do fenômeno em seu movimento histórico” e “Função da escola”. Na primeira linha de dados: “Estudantes surdos sinalizantes (não oralizados)”, “Acesso à língua de sinais” e “Acesso à linguagem”. Na segunda: “Educação escolar”, “Educação bilíngue (escola comum/escola especial)” e “Transmissão do conhecimento historicamente acumulado”. Na terceira linha: “Formação de professores”, “Formação específi ca/Formação generalista” e “Propiciar acesso aos conteúdos escolares”. Setas bidirecionais conectam as células da esquerda e da direita às do centro. Cada célula está conectada, ainda, com as de cima e as de baixo. Acima e abaixo do diagrama, setas horizontais largas e curvas, uma em cada direção, conectam as células das extremidades, indicando uma conexão cíclica. À direita da tabela, o texto, em negrito: “UNIDADE DE ANÁLISE: Dificuldade de acesso dos estudantes surdos à língua de registro, utilizada pela comunidade majoritária”.