Open-access AUTISMO EM MENINAS E MULHERES: UMA DISCUSSÃO IMPORTANTE PARA A EDUCAÇÃO1

AUTISM IN GIRLS AND WOMEN: AN IMPORTANT DISCUSSION FOR EDUCATION

O livro "O autismo em meninas e mulheres: diferença e interseccionalidade", escrito pela pesquisadora Sílvia Ester Orrú, lançado em 2024 pela Editora Vozes, nos convida, como sociedade, a refletir sobre os prejuízos que uma ciência construída com base em princípios patriarcais trouxe para a vida de muitas mulheres, ao ignorar as singularidades de ser mulher com autismo.

A autora é mestra e doutora em Educação, tendo realizado estágio pós-doutoral na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Ela é docente da Universidade de Brasília (UnB), com uma vasta produção, incluindo livros, capítulos e artigos na área da inclusão escolar e do autismo. Atualmente, Orrú coordena o Laboratório de Estudos e Pesquisas em Aprendizagem e Inclusão.

A obra, dividida em duas partes, é escrita com rigor acadêmico, ao mesmo tempo que não abdica de uma linguagem acessível, permitindo a leitura e o estudo de acadêmicos/as, pesquisadores/as, mas também de familiares e mulheres com autismo. O livro relaciona-se a um conjunto de pesquisas desenvolvidas pela autora nos últimos anos sobre inclusão, aprendizagem e autismo, e dialoga de forma mais central com sua pesquisa atual sobre a temática do autismo em meninas e mulheres, na perspectiva da interseccionalidade.

Orrú começa a obra com um panorama histórico e crítico sobre a invenção do Transtorno do Espectro Autista (TEA), apontando que as diferentes correntes que podem ser identificadas para explicar o TEA se sustentaram no paradigma médico, que supervaloriza, de um lado, o transtorno da mente e, de outro, a perspectiva do déficit, distanciando-nos de uma abordagem humanizada acerca do transtorno. Na perspectiva defendida na obra, a classificação do autismo como transtorno constitui-se em uma construção social que reforça compreensões ligadas à doença, ao sintoma, à anormalidade e ao capacitismo.

Tal perspectiva define a pessoa com autismo como um indivíduo fora da norma que precisa ser “tutelado, consertado, normalizado ou, quem sabe, com o avanço da ciência, curado de sua moléstia ou, para os mais incultos, exorcizado da sua maldição. A violência contra o autismo é corpulenta” (Orrú, 2024, p. 20). A contextualização acerca dessa temática, realizada no livro, evidencia o quanto as discussões acerca do autismo têm se constituído como um campo de disputa, tanto teóricas quanto políticas. Algumas vezes, tais discussões mostram-se pautadas por uma preocupação com os direitos dos sujeitos, na perspectiva do acesso aos direitos humanos. Outras vezes, as discussões são pautadas por interesses próprios, que não consideram as necessidades reais das pessoas com autismo. Tais debates também se restringem unicamente a utilizar as pessoas com autismo e suas famílias como meros consumidores em um mercado cada vez mais em ascensão.

Uma importante discussão apresentada na obra refere-se à utilização da expressão “Pessoa NO autismo” ou “Pessoa COM autismo”, em detrimento da expressão “autista”, que exclui a pessoa e resume sua experiência ao fato de ser autista. Assim, a autora assume o paradigma da inclusão e da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência3, que enfatiza a necessidade do modelo social acerca da deficiência, dando ênfase, desse modo, a uma proposta de despatologização do autismo: “[...] como sujeitos de direitos, de respeito, de consideração, de orgulho por quem ela é enquanto ser humano” (Orrú, 2024, p. 117).

A autora destaca ainda que os principais críticos da utilização da expressão “pessoa com autismo” buscam uma linguagem que evite estigmas e capacitismos. Mesmo que Orrú (2024) compreenda tais argumentos, mantém-se resistente a utilizar expressões como “criança autista” ou “aluno autista”, devido à compreensão de que “o diagnóstico e o próprio autismo não definem quem é a pessoa, quem é o aprendiz” (p. 111).

Na primeira parte da obra, Orrú (2024) apresenta uma contextualização sobre a construção social e histórica do autismo e evidencia as principais teorias explicativas. Inicialmente ligado a um sintoma da esquizofrenia, com base nos estudos do psiquiatra suíço Paul Eugen Bleuler, o autismo passou a ser compreendido como um distúrbio da infância, com sintomas particulares, conforme descreveram Léo Kanner e Grunya Efimovna Sukhareva (psiquiatra infantil soviética que descreveu o autismo duas décadas antes de Kanner, mas teve seus estudos muito menos conhecidos) - podemos reconhecer, assim, aspectos históricos da constituição desse conceito. Sukhareva, por sua vez, descreveu observações como introversão, tendência autista para si mesmo, dificuldades sociais e memória excepcional.

Na atualidade, os estudos genéticos têm destaque e já relacionaram 38 novos genes ao autismo ou ao atraso no desenvolvimento e à deficiência intelectual. Os estudos mais aceitos acerca da origem do autismo têm defendido a associação de fatores genéticos e ambientais. A definição atual do autismo, segundo a Associação de Psiquiatria Americana, descreve-o como um transtorno do neurodesenvolvimento caracterizado por dificuldades na interação social, comunicação e comportamentos repetitivos e restritivos.

Considerando tais debates, tratados com riqueza de detalhes, a obra mostra que é essencial buscarmos uma compreensão mais conciliadora acerca do autismo, que não reduza o ser humano a explicações biológicas ou genéticas, bem como que não o aprisione em estruturas psíquicas ou o reduza a um diagnóstico. Como muito bem explica Orrú (2024, p. 111): “Não é possível universalizar o autismo, tendo em vista sua complexa multiplicidade. Todos somos muito mais que um diagnóstico, muito mais que uma condição clínica, seja ela qual for!”.

Na segunda parte da obra, “Autismo em meninas e mulheres”, Orrú (2024) evidencia como o determinismo biológico e a construção social das relações de gênero operam em uma distinção entre homens e mulheres, na qual as mulheres têm sido condicionadas sistematicamente “a ciclos mecanizados de operação, submissão, inferiorização, aniquilamento de sua identidade, apagamentos de sua voz, segregação, exclusão” (p. 138).

Conforme a obra explicita, o diagnóstico e o olhar sobre o autismo não escaparam das amarras excludentes do patriarcado, o que dificultou o reconhecimento das mulheres e das meninas com autismo e de suas especificidades. Um dos motivos para explicar tal diferença é que, até recentemente, a maioria dos estudos científicos priorizava o recrutamento de homens e meninos. As mulheres, ao serem incluídas como sujeitos das pesquisas, permitem novos questionamentos, indicando “que os protocolos para diagnóstico têm mostrado falhas em capturar a manifestação feminina do autismo” (p. 160).

Na sequência, a obra aborda importantes aspectos para uma melhor compreensão das especificidades do autismo em meninas e mulheres, explicando, de maneira dialogada, às suas leitoras, sobre o hiperfoco como potência. Orrú explica que meninas e mulheres, na condição de autismo, podem ter hiperfoco nas mais diferentes temáticas. A autora indica, também, que os temas de interesse se alternam à medida que seus interesses se modificam ao longo de sua vida.

Um segundo aspecto abordado na obra refere-se à sensibilidade sensorial. Estudos que analisam as especificidades dessa característica em mulheres com autismo evidenciam que “a sobrecarga sensorial e emocional afeta intensamente a saúde das mulheres atravessadas pelo autismo” (Orrú, 2024, p. 185).

Outros dois importantes aspectos abordados na obra referem-se à camuflagem e à compensação, que, consequentemente, ocasionam o chamado esgotamento autista e os seus impactos. A camuflagem refere-se a um “mecanismo de defesa que, ao longo do tempo, traz grande angústia e acentua a possibilidade de problemas na saúde mental [...], afetando, inclusive, sua própria identidade” (Orrú, 2024, p. 201). Com relação aos mecanismos que sustentam a compensação, Orrú indica que os estudos ainda são pouco explorados. O que é possível compreender, até o momento, sobre esse mecanismo é que, para compensar suas dificuldades na comunicação social, as meninas e as mulheres com autismo realizam um “esforço cognitivo considerável que tende a levar ao aumento de estresse, ansiedade, depressão e problemas com relação à própria identidade” (p. 206). Os mecanismos de camuflagem e compensação desencadeiam uma sensação de esgotamento, consequência do acúmulo da sobrecarga ao longo do tempo.

Os últimos tópicos abordados na obra referem-se às questões relacionadas às percepções sobre sexo e sexualidade, diversidade sexual e de gênero e acerca da maternidade e maternagem. Com relação à diversidade sexual e de gênero, Orrú (2024) defende que “a interseccionalidade deve ser encarada como um discurso de análise que possibilita a investigação pormenorizada e o entendimento integralizado de acontecimentos que foram inobservados no sujeito” (p. 246), os quais podem ter produzido sofrimento físico e, principalmente, psíquico. A autora defende, assim, a interseccionalidade como uma possibilidade de transformação na forma como pesquisamos e produzimos conhecimento, contribuindo para diminuir preconceitos, discriminação e a escassez de informações.

A obra finaliza com um convite à autoaceitação e ao amor por si mesma. Estudos têm indicado que o diagnóstico de autismo, para muitas mulheres, é percebido como uma forma de melhor compreensão de si mesmas, auxiliando-as a serem mais gentis consigo mesmas. É importante compreender que a autoaceitação não é um processo que ocorre facilmente após o diagnóstico, mas é gradual e precisa ser realizado “com muita paciência, consciência e determinação. O autoconhecimento é fundamental para reconhecer suas fragilidades, os momentos de vulnerabilidade e dedicar-se a si mesma para criar possibilidades de contorno e superação das barreiras identificadas” (Orrú, 2024, p. 267).

Como professora que trabalha no Atendimento Educacional Especializado diretamente com muitas jovens com autismo que estudam no Ensino Médio, a obra de Orrú me possibilitou uma maior compreensão dos desafios enfrentados pelas estudantes que acompanho, bem como permitiu uma reflexão sobre as especificidades do autismo em mulheres. A obra ofereceu ferramentas para a minha atuação com essas estudantes e uma maior possibilidade de diálogo com professoras/es e familiares. Indico a leitura da obra a todas as pessoas interessadas na temática.

  • 3
    A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, promovida pela Organização das Nações Unidas (ONU), foi ratificada pelo Brasil no ano de 2008, por meio do Decreto Legislativo nº 186, de 2008, o que resultou na necessidade de reformulação das políticas públicas voltadas para as pessoas com deficiência. Essas políticas passaram a ser sustentadas em uma nova compreensão acerca da deficiência, que não a resume a uma matriz biomédica que cataloga os impedimentos corporais, mas enfatiza as barreiras sociais que impedem a participação plena e efetiva das pessoas nas diferentes instâncias da vida em sociedade.

REFERÊNCIAS

  • Decreto Legislativo nº 186, de 2008 Aprova o texto da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e de seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova Iorque, em 30 de março de 2007. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/congresso/dlg/dlg-186-2008.htm
    » http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/congresso/dlg/dlg-186-2008.htm
  • Orrú, S. E. (2024). O autismo em meninas e mulheres: diferença e interseccionalidade Vozes.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Jul 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    30 Abr 2024
  • Revisado
    15 Set 2024
  • Aceito
    26 Mar 2025
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