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Alguns comentários sobre a linguagem em livros de física básica

Some comments about the language in basic physics textbooks

CARTAS AO EDITOR

Alguns comentários sobre a linguagem em livros de física básica

Some comments about the language in basic physics textbooks

Paulo Machado Mors1 1 E-mail: mors@if.ufrgs.br.

Instituto de Física, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil

RESUMO

São feitos comentários sobre a falta de precisão em alguns livros brasileiros de física básica, sugerindo-se maior rigor na definição de grandezas físicas importantes. Cinco livros didáticos, dois visando alunos de nível médio, e três para estudantes universitários, foram comparados em alguns aspectos da abordagem que fazem da mecânica.

Palavras-chave: linguagem, livros-texto, mecânica.

ABSTRACT

Comments on the lack of precision in some Brazilian basic physics textbooks are made, suggesting a more rigorous definition of important physical quantities. Five pedagogical textbooks, two for high school students, and three for university students were compared in some aspects of their approach to mechanics.

Keywords: language, textbooks, mechanics.

1. Introdução

A bibliografia utilizada no ensino de física básica, tanto no nível universitário quanto no nível médio, no Brasil, já conta com algumas obras de autores brasileiros de qualidade apreciável. No entanto, ainda é muito comum a prática pedagógica que dispensa essa literatura, lançando mão unicamente de apostilas, notas de aula, etc. Isto é particularmente comum no ensino médio, o que se constitui, a nosso ver, em importante falha na educação dos jovens.

Felizmente, já é projeto nacional, do Ministério da Educação, o incentivo à adoção de livros-texto. Referimo-nos ao Programa Nacional do Livro Didático para o Ensino Médio - PNLEM [1]. No entanto, ainda não faz parte da cultura do professor de ensino médio utilizar o livro-texto com seus alunos. Oxalá esse Programa, direcionado às escolas públicas, crie o hábito e sirva de exemplo para as instituições particulares de ensino médio.

Já no meio universitário, é comum adotar-se originais americanos traduzidos, malgrado a existência, também neste nível, de bons textos brasileiros de física.

Nossa intenção, aqui, é comentar a falta de precisão com que alguns conceitos são apresentados em bons livros didáticos de física de autores brasileiros, com o objetivo de defender uma maior preocupação com o rigor na definição das grandezas físicas. Isto só pode levar a uma melhor valorização desses textos, justificando sua adoção pelos professores. Ademais, é importante ressaltar, falta de rigor não é atributo exclusivo dos textos didáticos brasileiros.

Estamos nos valendo de nossa experiência no ensino universitário e, também, na orientação de professores de ensino médio que cursam o Mestrado Profissional em Ensino de Física do Instituto de Física da UFRGS.

Atemo-nos, aqui, a comentar alguns tópicos tratados nos capítulos de mecânica, usualmente abordados no primeiro volume de obras editadas em vários volumes.

Os textos para o ensino médio em que nos fixamos, neste artigo, são as obras de Gaspar [2] e de Máximo e Alvarenga [3]. Para o ensino universitário, nos fixamos em Nussenzveig [4], Chaves [5] e Chaves e Sampaio [6].

2. Momento, momentum

A quantidade de movimento linear de uma partícula é, por definição, a grandeza vetorial resultante da multiplicação da massa da partícula pela velocidade que ela apresenta em um certo instante. A expressão foi cunhada por Newton. Qualquer físico, de qualquer país, conhece o termo momentum (pl. momenta), que tem, em português, a tradução para quantidade de movimento. No entanto, está cada vez mais usual utilizar-se a (má) tradução momento, para se referir à quantidade de movimento. Encontra-se momento linear, momento angular.

Podemos definir mais de um momento para uma quantidade qualquer. Qualquer grandeza que seja definida, a partir de outra grandeza, multiplicando-se a grandeza original por uma distância elevada ao inteiro n poderá ser chamada de momento de ordem n da grandeza original. Além disso, a multiplicação não necessariamente será uma multiplicação de escalares. Por exemplo, a partir do momentum linear de uma partícula em dado instante, p, definimos seu momentum angular em relação à origem do sistema de coordenadas, O, como sendo a quantidade L calculada multiplicando-se vetorialmente o vetor posição da partícula naquele instante em relação à origem O, r, pelo momentum linear da partícula

L = r × p.

Esta é uma definição que se revela conveniente, mas nada impede que definamos outros momentos do vetor momentum linear, multiplicando-o de maneiras diversas por potências da distância da partícula à origem. Portanto, o momentum angular de uma partícula, em dado instante, é um momento (de ordem n = 1) do momentum linear da partícula no mesmo instante. Se chamarmos momentum linear e momentum angular de momento linear e momento angular, respectivamente, a frase acima fica: o momento angular de uma partícula é um momento do momento linear..., frase muito pouco clara. Como ilustração, podemos lembrar que o torque de uma força é um (primeiro) momento da força.

Nossa sugestão, portanto, é que nos fixemos nas expressões originais momentum linear e momentum angular (momenta lineares, momenta angulares), ou nas expressões corretamente traduzidas quantidade de movimento linear, quantidade de movimento angular. As cinco obras consultadas utilizam o termo momento como sinônimo de momentum.

3. A sempiterna natureza vetorial da velocidade

É muito comum o uso sem rigor das palavras direção e orientação. A confusão tem origem, acreditamos, na má tradução da palavra inglesa direction, que, muitas vezes, deve ser traduzida não por direção, mas sim por orientação. Orientação engloba os dois conceitos de direção e sentido. Claro, muitas vezes podemos traduzir direction por direção, já que uma alteração de direção, por exemplo, forçosamente altera o sentido. Também, há ocasiões em que podemos falar em sentido, no lugar de direction. Mas, há situações em que não podemos confundir direção com orientação. Neste ponto, felizmente, os livros analisados não apresentaram confusão, que, parece-nos, é característica única de textos traduzidos.

Um vetor é uma grandeza dotada de magnitude (ou módulo), direção e sentido. Uma vez determinada uma possível direção, sobre esta podem ser escolhidos dois sentidos, opostos. Assim, pode-se dizer que um vetor, além de sua magnitude, é dotado também de orientação. Uma quantidade vetorial das mais presentes na física é a velocidade (velocity, em inglês), uma grandeza cinemática que, por ser vetorial, é dotada de magnitude e orientação. Velocidade é vetor, por definição. Em inglês, o módulo da velocidade é speed, uma grandeza escalar essencialmente positiva (em matemática, "essencialmente positivo" significa maior ou igual a zero), como são as magnitudes de vetores. Esta palavra, em português, deve ser traduzida por "rapidez" ou, ainda, pelo menos utilizado "celeridade"2 2 Uma curiosidade: celeridade ( celerity) deu origem à notação c, para indicar a rapidez da luz no vácuo (o autor agradece à colega Magale Elisa Brückmann por ter-lhe primeiro chamado a atenção para isto). . Existe a tendência, entre nós brasileiros, de confundir velocidade com rapidez. Mas, no tratamento formal exigido pelo estudo da física, isto não pode ocorrer. Claro, expressões como "limite máximo de velocidade" e "aumento de velocidade", são perfeitamente corretas, já que se referem, implicitamente, à magnitude da velocidade, característica do vetor à qual se pode impor limite, ou que pode ser aumentada ou diminuída. Dizer que um automóvel se desloca com uma velocidade de 40 km/h é informar, sem ambigüidade nem incorreção, que a velocidade do automóvel tem a magnitude de 40km/h. Já o termo "velocímetro" designa, em nossa língua, o aparelho que indica, na verdade, a rapidez do veículo (é o speedometer do inglês), o que não tem por que nos causar confusão. Também, em inglês se diz speed of light, para se referir ao que, tradicionalmente, chamamos de "velocidade da luz" quando, na verdade, estamos falando de uma grandeza escalar. No entanto, em muitas ocasiões no estudo da física, não se pode, sem incorrer em erro, confundir velocidade com rapidez.

Quando lidamos com problemas em uma dimensão, uma vez escolhido o eixo referencial, com sua direção coincidente com a do movimento, não existirá dúvida sobre a direção de qualquer grandeza vetorial envolvida no problema. Esta já está implícita. Restam, então, dois sentidos possíveis para o vetor. Daí, ao analisarmos problemas unidimensionais, é comum informarmos uma velocidade fornecendo sua magnitude dotada de um sinal: sinal positivo, se a velocidade tiver o sentido do eixo coordenado, sinal negativo, caso contrário. Neste caso, um escalar positivo e um sinal estarão definindo, sem ambigüidade, a quantidade vetorial em questão. Mas, esta não deixa de ser um vetor.

Na verdade, talvez a melhor maneira de se insistir, com os alunos, no caráter vetorial da velocidade, mesmo ao se analisar um movimento unidimensional, seja a de se utilizar a notação vx, por exemplo, indicando a componente da velocidade na direção coordenada, esta sim, uma grandeza escalar3 3 Esta prática é a que o colega Vitor Duarte Teodoro, da Universidade Nova de Lisboa, insiste em ser a mais adequada, no que concordamos com ele. .

Nussenzveig [4], intitula sua seção 3.4 de "Velocidade e aceleração vetoriais", uma redundância, a nosso ver. Gaspar [2], na seção 2 do capítulo 3, diz que velocidade escalar "... dá a idéia quantitativa ou numérica da rapidez com que o corpo se movimenta", sugerindo a equivalência entre rapidez e uma "velocidade escalar". Chaves [5] é correto em seu tratamento da cinemática; já Chaves e Sampaio [6] também mencionam "velocidade escalar".

4. O que é velocidade média?

O conceito de velocidade média, em si, não traz informações mais detalhadas sobre o movimento. Existe, também, um outro conceito - escalar - muito utilizado no dia-a-dia. Trata-se do comprimento da trajetória descrita em um intervalo de tempo, dividido pelo intervalo de tempo, ou seja, a distância total percorrida por intervalo de tempo. Note-se a profunda diferença entre os dois conceitos: a velocidade média é uma grandeza vetorial; a distância percorrida por intervalo de tempo é um escalar positivo. É esta grandeza escalar que consideramos ao avaliar o desempenho de um piloto de Fórmula 1.

Façamos um exercício de cálculo. Trata-se da determinação formal da velocidade média, calculando-se o valor médio da função velocidade instantânea. Se um móvel descreve um certo percurso em um intervalo de tempo Δt = tf - ti, sua velocidade média, neste intervalo de tempo, é dada pela integral

Como v = , podemos escrever

Mas a integral do elemento dr, entre as posições inicial ri e final rf , nada mais é do que a diferença rf - ri , ou seja, o deslocamento Δr. Assim, a expressão da velocidade média, calculada como o valor médio da velocidade instantânea, ao longo do percurso, recai na equação vm = , expressão geralmente apresentada nos textos como definindo a velocidade média. A ela chegamos se, formalmente, calculamos o valor médio da função velocidade instantânea, esta tendo sido definida como a derivada temporal do vetor posição.

Resultado bem diverso é obtido se, ao invés de determinarmos o valor médio da velocidade instantânea, determinamos o valor médio da magnitude da velocidade instantânea, v, a rapidez. Agora, integramos uma função escalar. Chamemos esta integral de V. Então,

e aqui, também, podemos realizar a mudança de variável de integração, escrevendo

O elemento dr é a magnitude do elemento de deslocamento dr. Esta é uma integral de linha: a integração é realizada ao longo da trajetória do móvel. Seu valor, sendo a soma dos (infinitos) comprimentos infinitesimais que constituem toda a trajetória, nada mais é do que o comprimento desta trajetória. Chamando de s este comprimento, fica

Esta é uma grandeza que tem a dimensão de velocidade, e mede a distância total percorrida pelo móvel dividida pelo intervalo de tempo transcorrido no percurso. É uma quantidade escalar positiva, que chamamos de rapidez média. É muito importante notar que esta grandeza não é equivalente à magnitude da velocidade média.

A rapidez média é chamada de velocidade escalar média em Gaspar [2] e Chaves e Sampaio [6].

Insistimos ser necessário difundir o termo rapidez, como tradução de speed, o que virá a evitar muitos mal-entendidos por parte dos estudantes.

5. Conclusão

O respeito ao rigor na definição de grandezas físicas, evitando-se variantes menos rigorosas, elaboradas às vezes com a boa intenção de "aliviar" a compreensão conceitual do tema abordado, só pode servir, na verdade, para facilitar esta compreensão. O ensino da ciência que adota a precisão da linguagem, tão importante na comunicação entre os cientistas, já é, por si só, uma iniciativa pedagógica. Acreditamos faltar muito pouco para os bons textos brasileiros atingirem esse padrão.

Recebido em 11/1/2008; Aceito em 16/5/2008; Publicado em 7/7/2008

  • [1] Brasil, Programa Nacional do Livro Didático para o Ensino Médio (Ministério da Educação, Brasília), disponível em http://portal.mec.gov.br/seb/ index.php?option=content&task=view&id=370 Acesso em 19/5/2007.
  • [2] A. Gaspar, Física (Editora Ática, São Paulo, 2003), v.1.
  • [3] A. Máximo e B. Alvarenga, Curso de Física (Editora Scipione, São Paulo, 2006), v. 1.
  • [4] H.M. Nussenzveig, Curso de Física Básica (Editora Edgard Blücher, São Paulo, 2002), v. 1, 4Ş ed.
  • [5] A. Chaves, Física (Reichmann & Affonso Editores, Rio de Janeiro, 2001), v. 1.
  • [6] A. Chaves, J.F. Sampaio, Física Básica: Mecânica (Livros Técnicos e Científicos Editora e Editora LAB, Rio de Janeiro, 2007).
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    E-mail:
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    Uma curiosidade: celeridade (
    celerity) deu origem à notação
    c, para indicar a rapidez da luz no vácuo (o autor agradece à colega Magale Elisa Brückmann por ter-lhe primeiro chamado a atenção para isto).
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    Esta prática é a que o colega Vitor Duarte Teodoro, da Universidade Nova de Lisboa, insiste em ser a mais adequada, no que concordamos com ele.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Ago 2008
    • Data do Fascículo
      2008
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