Acessibilidade / Reportar erro

A descoberta dos raios cósmicos ou o problema da ionização do ar atmosférico

The discovery of cosmic rays or the problem of the atmospheric ionization

Resumos

A radiação cósmica foi descoberta por volta de 1911 por especialistas em condutividade no ar. Nenhum fenômeno teórico ou astronômico, ou ainda um fenômeno "mais próximo'', tinha sido previsto relativo à existência dos raios cósmicos. A sua descoberta resultou do estudo da causa geradora de uma grande quantidade de íons presentes na atmosfera. Neste artigo nós revisamos o contexto científico na época dessa descoberta e colocamos em perspectiva a participação dos diferentes atores. Nós esboçamos um inventário do problema da chamada ionização residual do ar tal como ele existia por volta de 1900.

radiação cósmica; Hess; Wulf; Pacini; ionização


Cosmic radiation has been discovered around 1911 by specialists of the conductivity of atmospheric air. In no theoretical or astronomical phenomena, not even in related phenomena, had been predicted, or even suspected, that cosmic rays exist. Their discovery resulted from the study of the causes generating a large quantity of ions in the atmosphere. In this article we review the scientific context at this moment and give a perpective of the participation of different actors. We sketch an inventory of the problem that is called the residual ionization of the air around 1900.

cosmic radiation; ionization; Wulf; Hess; Pacini


HISTÓRIA DA FÍSICA E CIÊNCIAS AFINS

A descoberta dos raios cósmicos ou o problema da ionização do ar atmosférico

The discovery of cosmic rays or the problem of the atmospheric ionization

Martha Cecilia Bustamante1 1 E-mail: mcbusta@paris7.jussieu.fr.

Universidade Paris 7-Denis Diderot, Centro Nacional de Pesquisas Científicas, Paris, França

RESUMO

A radiação cósmica foi descoberta por volta de 1911 por especialistas em condutividade no ar. Nenhum fenômeno teórico ou astronômico, ou ainda um fenômeno "mais próximo'', tinha sido previsto relativo à existência dos raios cósmicos. A sua descoberta resultou do estudo da causa geradora de uma grande quantidade de íons presentes na atmosfera. Neste artigo nós revisamos o contexto científico na época dessa descoberta e colocamos em perspectiva a participação dos diferentes atores. Nós esboçamos um inventário do problema da chamada ionização residual do ar tal como ele existia por volta de 1900.

Palavras-chave: radiação cósmica, Hess, Wulf, Pacini, ionização.

ABSTRACT

Cosmic radiation has been discovered around 1911 by specialists of the conductivity of atmospheric air. In no theoretical or astronomical phenomena, not even in related phenomena, had been predicted, or even suspected, that cosmic rays exist. Their discovery resulted from the study of the causes generating a large quantity of ions in the atmosphere. In this article we review the scientific context at this moment and give a perpective of the participation of different actors. We sketch an inventory of the problem that is called the residual ionization of the air around 1900.

Keywords: cosmic radiation, ionization, Wulf, Hess, Pacini.

1. Introdução

Comemoramos este ano um episódio importante da história da física do século 20. Em junho de 1911, o físico italiano Domenico Pacini (1878-1934) introduziu um elestroscópio nas águas do Golfo de Gênova para medir, a cada instante, a condutividade residual do ar contido no interior do aparelho. O objetivo era identificar a origem da radiação que produzia os íons responsáveis por essa condutividade. Pacini observou que seu instrumento descarregava mais devagar no solo do que na altitude [1, 2]. A 7 de agosto de 1912, o físico austríaco Viktor Franz Hess (1883-1964), ao alcançar, a bordo de um balão, a altitude de 5.350 m, munido de um eletrocópio associado a um detector de ionização, constatou um aumento evidente dos efeitos ionizantes. Ficou claro que a fonte de radiação ionizante não podia se localizar nem na Terra nem na atmosfera. A radiação penetrava a atmosfera a partir do alto; era de lá, então, que procedia. Foi assim que a radiação cósmica foi descoberta [3].

A nova radiação foi inicialmente chamada de "radiação ultrapenetrante'', porque ela podia atravessar uma grande massa de matéria sem ser muito absorvida; só receberia a denominação, mais sugestiva e precisa, de radiação cósmica cerca de uma década depois, quando o físico norte-americano Robert Millikan (1868-1953) a associou a uma concepção bastante particular da formação de átomos no espaço interestelar. Segundo ele, os raios "cósmicos'' representavam "o grito de nascimento dos átomos que se formavam na abóbada celeste''. Filho de pastor protestante, profundamente religioso e que misturava ciência e fé, Millikan via na formação dos raios cósmicos a obra constante e contínua do criador. Para os cientistas de hoje, a radiação cósmica não é outra coisa senão um fluxo de partículas de alta energia que vêm do universo para 'regar' continuamente a Terra. Essa radiação se tornou um instrumento precioso para o conhecimento da estrutura da matéria e para o estudo de nossa galáxia; ao mesmo tempo, tornou-se também um objeto de pesquisa. O centenário de sua descoberta é uma boa ocasião para se debruçar sobre o contexto científico do momento e colocar em perspectiva a participação dos diferentes atores, bem como suas motivações e seus métodos. Nenhum teórico de fenômenos astronômicos, ou de fenômenos "mais próximos'', havia dito antes, nem mesmo suposto, que a radiação cósmica existia. Sua descoberta resultou do estudo da causa que levava à produção de uma quantidade significativa de íons na atmosfera ou no ar de um detector de ionização. Entender a questão da ionização residual do ar por volta de 1900 e nas primeiras décadas do século 20 torna-se, pois, algo bastante instrutivo.

2. A ionização residual do ar

Antes, é necessária uma observação sobre a "pré-história''. Retrospectivamente, podemos considerar que manifestações físicas da radiação cósmica foram constatadas desde o século 18. O físico francês Charles Augustin de Coulomb (1736-1806) descobriu que uma esfera eletrizada, carregada e em ambiente fechado, suspensa por um fio de seda perdia progressivamente sua carga. Assim como observações análogas constatadas no século 19, a de Coulomb não teve continuidade. Mas suas observações nada tinham de estranho: podia-se perfeitamente imaginar uma condutividade intrínseca do ar.

No final do século 19, um conhecimento novo permitiu que a questão evoluísse. Em 1896, Henri Becquerel (1852-1908) verificou que os sais de urânio emitiam "raios'' capazes de descarregar condutores eletricamente carregados e de aumentar a capacidade, já conhecida, de o ar conduzir eletricidade. Na mesma época, estudos de Arthur Schuster (1851-1934) e de Joseph John Thomson (1856-1940) introduziram as noções de elétron e de íon, também portadores de carga. Deu-se antão aos raios de Becquerel o nome de "raios ionizantes''. Eles eram capazes de retirar elétrons dos átomos e das moléculas dos gases e, pois, de dar origem a íons livres. Vêm em seguida os estudos de Pierre Curie (1859-1906) e de sua esposa, Marie Curie (1867-1934). Ao medir a ionização do ar, eles descobriram, pouco depois de Becquerel, que outras substâncias eram capazes de emitir raios espontaneamente. Falou-se então de substâncias "radioativas'' e, de modo mais geral, de "radioatividade''. Essas descobertas permitiram não só o surgimento das noções de íons gasosos e de raios ionizantes, mas também de sua definitiva implantação.

Em 1900, Charles Thomson Rees Wilson (1869-1959), fazendo experimentos em Cambridge com um eletroscópio de folhas de ouro (versão evoluída da esfera de Coulomb), constatou que seu instrumento descarregava indefinidamente e segundo velocidades bastante variáveis. Na Alemanha, Hans Geitel (1855-1923) e Julius Elster (1854-1920) fizeram uma observação de igual natureza. Esses especialistas haviam feito de tudo para isolar totalmente as folhas do eletroscópio [4]. No contexto da nova física dos íons, era então necessário admitir que um raio de origem indeterminada ionizava o ar, banhando as folhas do eletroscópio; essa ionização, dita "residual'', era irredutível. Em 1903, Ernest Rutherford (1871-1937) e outros mostraram que a radiação ionizante era externa ao instrumento; ela era muito penetrante e não provinha da radioatividade das superfícies interiores.

Tirando suas conclusões, os físicos de antes davam prova de arrojo. A ionização residual do ar, como assinalaria anos depois o "cosmicista'' francês Pierre Auger (1899-1993), era um fenômeno bastante teimoso [5]. Na impossibilidade de anular a condutibilidade do ar em um espaço fechado, alguns chegaram a falar não de raios, mas de "ionização espontânea do ar'', "espécie de fermentação interior das moléculas''; "elas explodiriam por si mesmas de vez em quando, dando origem a partículas positivas e negativas''. Mais precisamente, tratava-se de "choques excepcionais de moléculas'' cuja velocidade relativa era bastante grande e, consequentemente, a energia cinética era suficiente para ionizar uma molécula. Na França, por volta de 1900, Paul Langevin (1872-1946) - que se especializou na física dos íons após uma temporada no laboratório Cavendish, Inglaterra, onde C.T.R. Wilson fazia suas pesquisas - calculou o número de choques e mostrou que eles eram raros demais para explicar a ionização observada. Como observou Auger, em ciência os fenômenos ditos "espontâneos'' têm pouca chance de ficar; o adjetivo "espontâneo'' seria "um atestado de impotência''. A ideia que se impôs foi a de uma radiação ionizante do ar contido em um espaço fechado.

3. Radiação extraterrestre?

Hipóteses sobre a fonte de radiação logo começaram a emergir. Por volta de 1900, falava-se tanto da radioatividade de substâncias do solo terrestre, onde elementos de compostos de urânio ou tório, ou de outros elementos como o potássio, emitiam raios gama muito penetrantes, quanto de emanações existentes na baixa atmosfera e provenientes da crosta terrestre. C.T.R. Wilson, sempre arrojado, perguntava-se, de modo profético, se não se trataria de uma radiação de origem extraterrestre. Após essa interrogação, deu início a uma série de experiências [6]. Por exemplo, instalou seu "eletroscópio de folhas de ouro'' sob um túnel de uma estrada de ferro na Escócia e tratou de determinar a intensidade da corrente "residual'' durante o dia e à noite. Como os resultados alcançados estavam longe de ser concludentes, ele insistiu. No entanto, a hipótese da radiação extraterrestre não demorou a ser relançada, ali e na França, por exemplo, em 1907, pelo engenheiro químico francês Albert Nodon (1862-1934) [7]. Esse especialista em astronomia física tinha razões para abraçar essa ideia. Estudando a eletricidade atmosférica desde o fim do século 19, Nodon costumava falar simultaneamente de "radiação solar'' e de "radiação do espaço cósmico''. Ele as considerava de um modo tal que essas radiações eram ações ionizantes que se manifestavam através de corpos de espessuras consideráveis e variavam de uma hora para outra. Trabalhando em Paris em um laboratório da faculdade de ciências da Sorbonne, Nodon foi de fato pioneiro da física da radiação cósmica. Motivado por suas primeiras observações, passou a fazer estudos precisos das variações da ionização segundo a altitude. Antes do final da década, ele já tinha partido com seu eletroscópio de folhas de alumínio para o observatório do Pic du Midi (com 2.900 m) no sudoeste da França [8].

Nodon pensava em uma "radiação penetrante'' exterior à Terra; ele se deixava guiar pelo fato de que suas observações indicavam um aumento geral da condutibilidade da atmosfera em pontos mais elevados. Parece também que Nodon se apoiou na teoria que o físico Arthur Schuster estava formulando, que procurava explicar a variação diurna do campo magnético terrestre. Essa teoria requeria forte ionização em grandes altitudes sob a ação da radiação solar, mas para alguns astrônomos belgas ela não excluía a ideia de uma radiação penetrante de origem cósmica. Uma radiação dessa natureza tinha, segundo eles, lugar na teoria de Schuster. Na França, fora do meio dos astrônomos ao qual Nodon pertencia, essa teoria era conhecida pela comunidade científica, particularmente pelos físicos parisienses que eram membros da Sociedade Francesa de Física. Schuster a tinha exposto durante uma das sessões "excepcionais'' para as quais haviam sido convidados estrangeiros. Sua apresentação foi bastante significativa porque ele indicou com precisão os princípios metodológicos que guiavam sua pesquisa. Esses princípios giravam em torno da ideia de que ele não estava procurando formular "teorias cósmicas'', mas estudar em detalhes fonômenos terrestres que eram influenciados por causas cósmicas, porque "é a possibilidade de comprovar as conclusões de uma teoria que dá a esta última seu verdadeiro valor''. E Schuster acrescentou o seguinte enunciado, bem conhecido dos filósofos da ciência: "Uma teoria física não vale nada se não se pode provar sua eventual falsidade''.

4. Observações na Torre Eiffel

Um apanhado dos estudos feitos no início do século sobre a fonte de radiação ionizante do ar não poderia omitir a forma como procedeu Theodor Wulf (Fig. 1) (1868-1946), físico e inventor de eletroscópios. Esse jesuíta alemão teve a ideia, em 1910, de elevar o eletroscópio que acabara de construir para protegr o aparelho, ao máximo, dos efeitos da radioatividade do solo [9].

Figura 1
- Theodor Wulf.

Wulf escolheu o cume da Torre Eiffel, a 300 m de altura, e fez observações durante três dias; a ionização do ar era medida na base e no topo da torre. Supondo que a ionização fosse causada por uma fonte natural de radiação , a mais penetrante que se conhecia à época, e conhecendo o coeficiente de absorção do ar, ele previa que a taxa fosse baixa da metade até 80 m e praticamente nula a 300 m. Wulf constatou uma diminuição significativa, mas a 300 m a taxa de ionização ainda era muito alta. Isso foi surpreendente, uma vez que seu instrumento era bastante sensível e confiável (Fig. 2). Ele concluiu que ou há uma fonte de raios na atmosfera, além daquela da crosta terrestre, ou a absorção de radiação no ar é muito mais fraca do que se pensa. Ainda estaríamos longe da ideia de uma radiação vinda de outras partes se Wulf não tivesse insistido, após esse trabalho, na importância de fazer medidas em altitudes mais elevadas para determinar se a fonte de radiação era a Terra, a atmosfera ou mesmo as estrelas. Esses resultados de Wulf fobram publicados em 1910.

Figura 2
- Um eletrômetro padrão é composto de duas finas folhas condutoras de massa muito pequena suspensas em um eletrodo. Quando o eletrodo está carregado, as folhas têm cargas de mesmo sinal e se repelem. Quanto maior a carga, mais as folhas se distanciam. Eletroscópio de Wulf: as folhas do eletroscópio são substituídas por dois fios condutores, o que permite medir pequenas quantidades de carga; as medidas da radiação ionizante são feitas em um detector de ionização e no eletroscópio; um microscópio facilita as leituras.

5. A fonte de radiação segundo Domenico Pacini

Naquele momento, na Itália, Domenico Pacini fazia medidas em locais elevados, mas sobretudo observações embaixo d'água. Graças a uma investigação recente, motivada pela descoberta de novos documentos, é que se conhece hoje o trabalho de Pacini sobre fonte de radiação ionizante na atmosfera. Como mostrou esse estudo, Domenico Pacini - diplomado em física pela Universidade de Roma em 1902 - era inicialmente especialista em condutividade elétrica em meios gasosos. Foi isso, aliás, que permitiu que ele passasse a fazer parte em 1906 do Bureau Central Italiano de Meteorologia e Geodinâmica, onde era responsável pelo departamento de estudo sobre tempestades e fenômenos elétricos na atmosfera. Desde que chegou ao Bureau, Pacini começou a estudar a condutibilidade do ar; o problema da descarga rápida dos eletroscópios esteve no centro de seu interesse. Fez muitas medidas, escolhendo para suas observações os ambientes mais diversos, como montanhas, mares e lagos. Nisso ele não se distingue muito dos demais atores da época interessados no fenômeno. Como dizia Auger, "a variedade dos lugares onde eles tomavam medidas confunde a imaginação''.

Os mais importantes trabalhos de pesquisa de Pacini foram feitos entre 1909 e 1911. Eles davam continuidade aos estudos menos precisos feitos anteriormente e beneficiavam observações mais sistemáticas que ele fez nas águas do Golfo de Gênova. Tomar medidas sob a água foi uma prova de suas qualidades de experimentador e de sua capacidade de se munir dos recursos necessários. Os aparelhos deviam funcionar em condições excepcionais. Pacini fez suas observações em um barco da marinha italiana, Le Cacciatorpediniere. Ele utilizou um eletrômetro disposto em uma caixa de cobre, o que permitia que o equipamento descesse vários metros de profundidade na água. Tomou medidas durante vários dias do mês de junho de 1911, durante várias horas de cada vez. Essas medidas foram feitas com o eletroscópio na superfície terrestre, a 300 m de profundidade e imerso na água, a uma profundidade de 3 m. Havia sempre um claro decréscimo da taxa de descarga do instrumento debaixo d'água, de 20% a menos que na superfície. Considerando o poder de absorção da água, o mínimo de substâncias radioativas no mar e as próprias condições da experiência, em que se utilizava uma caixa de cobre, a absorção feita era de uma radiação que não era emitida pelas substâncias da terra ou que estavam presentes na atmosfera, mas por uma radiação exterior, extraterrestre. Pacini, em particular, compreendeu que a radiação não era tampouco uma radiação solar. As pesquisas da primeira etapa de seu trabalho já o tinham levado a essa conclusão; tudo tinha, por assim dizer, um mesmo e único sentido. Pode-se mesmo afirmar que foi a concordância entre os resultados dos trabalhos feitos inicialmente e mais tarde que motivou suas conslusões.

O trabalho de Pacini não foi levado em conta por seus colegas italianos e sequer foi além das fronteiras de seu país. Ele se sentia completamente isolado. Estava a par do que se fazia em outros lugares, mas apenas pelas publicações científicas, uma vez que não lhe era possível participar dos congressos científicos de então. Pacini teve oportunidade de conhecer as primeiras publicações de Viktor Franz Hess, mas não soube que seu colega austríaco se aproximava da mesma descoberta. O trabalho de Hess, por outras vias, chegava ao mesmo resultado. Já há algum tempo os trabalhos de Hess se tornaram objeto de estudos aprofundados. Suas ascensões a bordo de um balão entraram para a história da física dos raios cósmicos, que ele ajudou a desenhar.

6. A determinação da fonte de radiação por Viktor Franz Hess

Diplomado pela Universidade de Graz, Áustria, em 1905, Viktor Franz Hess se interessava pelas ascensões em balão feitas pelo físico alemão Albert Gockel (1860-1927), professor da Universidade de Freiburg. Desde o final do século 19, era comum embarcar instrumentos em balões para o estudo da eletricidade atmosférica. Mas as ascensões de Gockel tinham uma nova motivação: ele procurava, como Wulf já havia feito, proteger os equipamentos dos efeitos da radiação do solo. As ascensões de Gockel em balões eram sistemáticas. A primeira se deu em 1909, quando ele atingiu 4 mil metros de altura. As seguintes se deram em 1910 e 1911. Nessas viagens, Gockel confirmou o que Wulf tinha começado a observar: que a interposição de uma massa de ar cada vez mais espessa durante as ascensões não resultava no decréscimo de ionização; o decréscimo inicial com a altitude era seguido do aumento inexplicável de radiação gama em grande altitude [10]. Essa constatação de Gockel foi decisiva para Hess, pois levou este último a medir o coeficiente de absorção de raios gama pelo ar em vários experimentos de laboratório. Hess fez variar a distância entre uma fonte intensa e um detector composto de um detector de ionização e de um eletrômetro de Wulf. O valor encontrado foi tal que a radiação devia ser absorvida pelo ar além da altitude de 500 m, supondo que a fonte de radiação fosse a crosta terrestre.

Em seguida, Hess continuou a subir em balões (Fig. 3). A primeira ascensão ocorreu no dia 28 de agosto de 1911, e a altitude relativa atingida foi de 1.070 m; nessa altura, a ionização era praticamente a mesma do nível do solo. Esse resultado foi confirmado pela segunda ascensão, na noite de 12 para 13 de outubro de 1911. Sete voos suplementares aconteceram no ano seguinte, de abril a outubro. Hess teve especial cuidado com as condições experimentais: procurou minimizar a radiação de seu próprio dispositivo de medida, um eletrômetro de Wulf associado a um detector de ionização; ele considerou variáveis meteorológicas (pressão, temperatura, umidade etc.), o que exigiu que fosse levada a bordo instrumentação suplementar. O único voo diurno se deu no dia 7 de abril de 1912, quando houve um eclipse total do Sol. Isso lhe permitiu excluir o Sol como fonte direta da radiação.


Fgura 3 - Hess numa de suas ascensões em balões.

Para fazer estatísticas, Hess tomou um grande número de medidas - quase uma centena durante os voos de 1912 - em áreas próximas do solo e em altitudes mais elevadas. Na análise dos dados, considerou a diferença de pressão em função da altitude. Sua primeira conclusão foi que, até aproximadamente 1.000 m de altitude, a radiação diminuía porque os raios provenientes da superfície terrestre eram absorvido pelo ar. Para além dessa altitude, havia um aumento significativo de radiação que não podia ser explicado nem pelas substâncias radioativas presentes nas nuvens ou nos nevoeiros nem por variações meteorológicas. Restava uma única explicação: uma radiação penetrante alcançava nossa atmosfera pelo alto e produzia nas camadas atmosféricas, mesmo as mais baixas, uma quantidade de ionização observada em recipientes fechados. No voo de 7 de agosto de 1912, Hess tinha alcançado uma altitude considerável: 5.350 m. Em 1913, o físico alemão Werner Kolhörster (1887-1946) foi ainda mais alto, atingindo 9.300 m; a ionização residual era então aproximadamente 10 vezes maior que a observada no solo.

7. Epílogo

Goekel, Hess e Kolhörster publicaram seus resultados em periódicos alemães [11]. Pacini publicara os seus em italiano e alguns em francês. Hess só tomou conhecimento dos resultados de Pacini em 1920, quando recebeu deste último uma carta em que comunicava o seu trabalho. Trata-se sem dúvida de uma reivindicação implícita de prioridade. Pacini obteve de fato resultados importantes sobre a origem da radiação ionizante do ar um ano antes de Hess, mas sua técnica não excluía totalmente a origem atmosférica da radiação.

Morto em 1934, vítima de pneumonia, Pacini não soube que em 1936 Hess recebeu o o Nobel de Física pela descoberta da radiação cósmica. A comissão encarregada de atribuir o prêmio provavelmente sabia que, no final dos anos 1920, Hess tinha saído vitorioso de uma polêmica com Millikan. Este havia questionado a validade das observações de Hess e de Kolhörster e reivindicado a prioridade da descoberta. O físico norte-americano conhecia bem as armas da propaganda [12]. Por volta de 1930, na França, os raios cósmicos eram frequentemente denominados de "raios de Millikan''. Por ocasião da morte de Nodon, em 1934, os astrônomos de Bordeaux, na França, fizeram uma campanha nos periódicos de astronomia para que os raios cósmicos fossem chamados de "raios de Millikan-Nodon''. Eles sabiam que Nodon havia dado continuidade às suas pesquisas na década de 1920 na mesma linha de pensamento da radiação extraterrestre e sobretudo de modo completamente independente do que era feito em outros lugares. Como muitos físicos franceses, eles mal conheciam ou ignoravam os trabalhos de Pacini e de Hess. Pacini caiu no esquecimento. Mas Hess foi agraciado com o Nobel. Ele percorreu ainda um longo e frutífero caminho no mundo da pesquisa, em Innsbruck, na Áustria, até 1938, em seguida nos Estados Unidos até sua morte em 1964. Como muitas descobertas experimentais, a descoberta dos raios cósmicos teve seu herói e seus precursores. Diferentes fatores intervêm na identificação de um `descobridor': o impacto da afirmação do resultado, a qualidade das provas apresentadas, a amplitude da difusão, a autoridade do autor, a receptividade de comunidades suficientemente poderosas... Então é bastante difícil evitar um laivo de arbitrariedade nessa identificação. Os historiadores só podem constatar a pluralidade e a diversidade das inúmeras contribuições. Os físicos decidem, lançando mão de sua consciência e julgamento, que nome(s) convém imortalizar.

Recebido em 13/8/2012

Aceito em 2/2/2013

Publicado em 24/4/2013

  • [1] D. Pacini, Nuovo Cimento VI(3), 93 (1912).
  • [2] P. Carlson and A. De Angelis, The European Physical Journal H, 1-21 (2011).
  • [3] V.F. Hess, Physikalische Zeitschrift 13, 1084 (1912).
  • [4] J. Elster and H.F. Geitel, Annals of Physics 2, 425 (1900).
  • [5] P. Auger, Rayons Cosmiques (Presses Universitaires de France, Paris, 1948).
  • [6] C.T.R. Wilson, Proceedings of the Royal Society of London 68, 151 (1901).
  • [7] A. Nodon, Comptes Rendus Hebdomadaires des Séances de l'Académie des Sciences 145, 521 (1907).
  • [8] M.C. Bustamante, in: Os 60 Anos do CBPF e a Gênese do CNPq, editado por Amós Troper, Antopnio A.P. Videira e Cássio Leite Vieira (CBPF/MCTI, Rio de Janeiro, 2010), p. 95-115
  • [9] T. Wulf, Physikalische Zeitschrift 1, 152 (1909).
  • [10] A. Gockel, Physikalische Zeitschrift 12, 595 (1911).
  • [11] W. Kolhörster, Physikalische Zeitschrift 14, 1153 (1913).
  • [12] M. de Maria, M.G. Ianniello and A. Russo, Historical Studies in the Physical and Biological Sciences 22, 165 (1991).
  • 1
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Jul 2013
    • Data do Fascículo
      Jun 2013

    Histórico

    • Recebido
      13 Ago 2012
    • Aceito
      02 Fev 2013
    Sociedade Brasileira de Física Caixa Postal 66328, 05389-970 São Paulo SP - Brazil - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: marcio@sbfisica.org.br