Acessibilidade / Reportar erro

Um problema não trivial de projécteis

A non trivial projectile problem

Resumos

Resolve-se de uma forma original um problema de projécteis pouco conhecido e de alguma dificuldade.

Cinemática; movimento de projécteis


An uncommon projectile motion problem of unexpected difficulty is solved in an original way.

Kinematics; projectile motion


ARTIGOS GERAIS

Um problema não trivial de projécteis

A non trivial projectile problem

Manuel Fernando Ferreira da Silva; Eduardo Rino Alberto Segre

Departamento de Física, Universidade da Beira Interior, Covilhã, Portugal

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Manuel Fernando Ferreira da Silva E-mail: ferreira@dfisica.ubi.pt

RESUMO

Resolve-se de uma forma original um problema de projécteis pouco conhecido e de alguma dificuldade.

Palavras-chave: Cinemática, movimento de projécteis.

ABSTRACT

An uncommon projectile motion problem of unexpected difficulty is solved in an original way.

Keywords: Kinematics, projectile motion.

1. Introdução

O estudo do movimento de um projéctil num campo gravítico constante desprezando a resistência do ar é uma das aplicações mais elementares da cinemática de uma partícula, e constitui um assunto obrigatório em todos os livros de texto de Física Geral a nível intermédio. Este estudo é importante porque estende para duas dimensões o problema da queda livre unidimensional, e permite que os estudantes se familiarizem com a separação de dois movimentos efectuados em direcções perpendiculares.

O facto das equações de movimento serem bastante simples leva com frequência a pensar que todos os problemas de projécteis são de certa forma triviais; há, no entanto, algumas excepções. Neste trabalho pretende-se mostrar uma dessas excepções.

2. Formulação do problema

Consideremos um projéctil que é lançado desde o topo de um hemisfério de raio R. Sobre o projéctil actua um campo gravítico vertical constante (ver Fig. 1). Deseja-se determinar a mínima velocidade de lançamento v0 que o projéctil deverá ter de modo a conseguir abandonar o hemisfério sem colidir com o mesmo.


Este problema é muito pouco conhecido, e um dos aspectos que o torna especial é o facto da abordagem tradicional (puramente geométrica) ser extremamente complicada (no apêndice é esboçada essa solução geométrica). Aqui o problema será resolvido de uma forma alternativa, bem mais física; a solução que apresentamos apoia-se na solução prévia de outros dois problemas, algo mais conhecidos, o que torna esta abordagem bastante apelativa e, do ponto de vista pedagógico, muito instrutiva.

3. Problema auxiliar 1: Disparando sobre uma rampa

Um projéctil é lançado da base de uma rampa, cuja inclinação é b (ver Fig. 2). O ângulo de lançamento, relativo à horizontal, é a > b, e a velocidade inicial tem magnitude v0. Deseja-se determinar o alcance A, medido ao longo da rampa.


Este é um problema clássico [1-6]. Escolhendo t = 0 como instante de lançamento, e o referencial Oxy da Fig. 2, o vector posição do projéctil será, em função do tempo,

de modo que a equação da trajectória será a parábola

A intersecção desta parábola com a recta y = (tanb)x que representa a rampa resulta num ponto cuja abcissa satisfaz a equação

da qual resulta, para além da solução trivial x = 0, a solução xi associada ao ponto de impacto:

Logo, o alcance do projéctil ao longo da rampa será

Para uma velocidade v0 fixa, o máximo alcance Amáx é atingido quando sin(2a-b) = 1, ou seja, quando 2a-b = ; assim Amáx é atingido quando:

e o seu valor será

O caso especial de lançamento sobre uma superfície horizontal (b = 0) proporciona os resultados bem conhecidos

quando:

Naturalmente, todos os resultados anteriores permitem também valores negativos de b, o que fisicamente equivale a fazer o lançamento desde o topo da rampa e não a partir da base, que é a forma em que o problema é apresentado em alguns livros [7-9].

4. Problema auxiliar 2: Disparando por cima de um obstáculo

Deseja-se que um projéctil passe por cima de um obstáculo de altura h localizado a uma distância horizontal d do ponto de lançamento (ver Fig. 3). Qual é a mínima velocidade de lançamento v0 que torna isso possível?


Embora menos conhecido que o problema anterior, este problema pode também ser encontrado na literatura [10]. Para o resolver, em vez de atacá-lo directamente aproveitamos os resultados da secção anterior. Assim, traçamos uma semi-recta com origem no ponto de lançamento que passe pelo ponto mais alto do obstáculo. Esta semi-recta será o equivalente da rampa do problema auxiliar 1, e a sua inclinação será b = arctan(h/d). Vejamos qual a condição para que o projéctil passe pelo ponto mais alto do obstáculo.

Numa tal situação, o alcance A ao longo da semi-recta é fixado, o ângulo de lançamento ideal (de forma a minimizar o valor de v0) será, de acordo com (6),

e o valor mínimo de v0 obtém-se a partir de (7):

Assim, para que o projéctil ultrapasse o obstáculo bastará escolher

com o ângulo de lançamento (9).

5. Resolução do problema inicial: Disparando do topo de um hemisfério

Voltemos agora ao problema enunciado na secção 2. Tendo em conta a resolução da secção 4, podemos agora reformular este problema imaginando o hemisfério como um conjunto (infinito) de obstáculos cujos pontos mais altos se encontram a alturas cada vez mais pequenas (ver Fig. 4).


Escolhendo o referencial Oxy representado, o ponto mais alto do obstáculo colocado na posição x = d terá uma coordenada h = y, com x2+(y+R)2 = R2. Assim,

Convém notar que os valores h dos obstáculos são, neste caso, negativos.

Para cada obstáculo, a velocidade mínima v0 requerida virá dada por (11); logo, para cada h no intervalo [-R, 0], teremos

Resta agora determinar o valor de h para o qual a função

atinge o valor máximo, e usar depois (13) para obter o valor mínimo de v0. Obviamente f(h) é máximo quando

valor para o qual corresponde

de modo que (13) dá

Usando (12) obtém-se o valor correspondente de d:

O ângulo de lançamento associado a esta velocidade mínima é, usando (9), (15) e (18),

Concluindo, para que o projéctil abandone o hemisfério com velocidade mínima deverá ser lançado com um ângulo de 30º e com uma velocidade v0 tal que

6. Conclusões

Foi resolvido um problema de projécteis muito pouco conhecido, e que está longe de ser trivial; o processo de resolução envolveu o estudo de outros dois problemas de projécteis ligeiramente mais simples. Desta forma, um problema complicado acabou por tornar-se fácil. No apêndice mostram-se as grandes dificuldades que apresenta o ataque directo do problema proposto.

Convém salientar que tanto o problema proposto como os dois problemas auxiliares foram resolvidos sem recorrer ao cálculo diferencial; assim, qualquer destes problemas pode, em princípio, ser explicado a alunos que ainda não conheçam o conceito de derivada. Já a abordagem geométrica ensaiada no apêndice requer necessariamente não só o conceito de derivada como também o teorema da função implícita.

Espera-se que este exemplo tenha mostrado que os problemas de projécteis podem ser algo mais do que simples rotina; deseja-se também que ele tenha ilustrado como três problemas bastante diferentes podem ser estreitamente relacionados, criando assim uma visão de conjunto que pensamos ser muito pedagógica.

[7] Referência 1, problem 3.64.

Recebido em 18/05/04; Aceito em 19/07/04

Apêndice

Descrevemos aqui, muito resumidamente, como pode ser resolvido o problema proposto através de uma análise puramente geométrica. Começamos por escrever a equação da trajectória parabólica descrita pelo projéctil, usando o referencial Oxy da Fig. 4:

Esta trajectória deve ser interceptada com a circunferência

Introduzindo (21) em (22) e desenvolvendo, chega-se à equação

A Eq. (23) descreve os pontos de intersecção entre (21) e (22) diferentes do ponto de lançamento (x = 0). A Eq. (23) poderá ter três raízes reais diferentes (Fig. 5a), duas raízes reais iguais e outra real diferente (Fig. 5b), e uma raiz real e duas complexas conjugadas (Fig. 5c). Estamos interessados na situação limite mostrada na Fig. 5b. Sejam x = -x1 e x = x2 as duas soluções representadas nessa figura.


A Eq. (23) deverá então poder ser escrita na forma

Igualando (23) e (28) obtêm-se as seguintes equações:

Combinando (29) e (30) é possível retirar x1 e x2:

e inserindo as expressões (32) em (31) obtém-se a condição

Quando as expressões (24)-(27) são substituídas em (33) resulta

onde se definiu

A relação (34) define implicitamente z em função de a, e pode ser posta na forma

O nosso objectivo é saber em que condições z atinge o seu valor máximo (valor mínimo de v0). Derivando implicitamente (36) com respeito a a e impondo a condição = 0 resulta

que inserida novamente em (36) permite obter a equação

A Eq. (38) tem apenas duas raízes: z = 2 e z = -2/7. Só a primeira é admissível, devido a (35), o que determina o valor mínimo de v0:

Substituindo o valor obtido z = 2 em (37) resulta

  • [1] M.R. Spiegel, Theory and Problems of Theoretical Mechanics (problem 3.21, McGraw-Hill, New York, 1967).
  • [2] J. Norwood, Jr., Intermediate Classical Mechanics (problem 2-2-5, Prentice-Hall, Englewood Cliffs, New Jersey, 1979).
  • [3] M. Alonso and E.J. Finn, Physics (problem 4.10, Addison-Wesley, Reading, Massachusetts, 1992).
  • [4] R. Resnick, D. Halliday and K.S. Krane, Physics (problem 44, Wiley, New York, 1992), 4th ed., chapter 4.
  • [5] W.G. Rees, Physics by Example: 200 Problems and Solutions (problem 15, Cambridge University Press, Cambridge, 1994).
  • [6] J.B. Marion and S.T. Thornton, Classical Dynamics of Particles and Systems (problem 2-14, Saunders College Pub., Fort Worth, Philadelphia, 1995), 4th ed.
  • [8] D. Kleppner and R.J. Kolenkow, An Introduction to Mechanics (problem 1.21, McGraw-Hill, Boston, 1973).
  • [9] ] V.D. Barger and M. G. Olsson, Classical Mechanics - A Modern Perspective (problem 1-4, McGraw-Hill, New York, 1995), 2nd ed.
  • [10] B.B. Bukhovtsev, V.D. Krivtchenkov, G.Ya. Miakishev e I.M. Saraeva, Problemas Selecionados de Física Elementar (problema 42, Editora Mir, Moscovo, 1977).
  • Endereço para correspondência

    Manuel Fernando Ferreira da Silva
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Jan 2005
    • Data do Fascículo
      2004

    Histórico

    • Aceito
      19 Jul 2004
    • Recebido
      18 Maio 2004
    Sociedade Brasileira de Física Caixa Postal 66328, 05389-970 São Paulo SP - Brazil - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: marcio@sbfisica.org.br