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A viagem de Fermi ao Brasil em 1934 e suas entrevistas e conferências

Fermi’s trip to Brazil in 1934 and his interviews and conferences

Resumos

Em 1934, o físico italiano Enrico Fermi viajou para a América do Sul e, no Brasil, fez cinco conferências, duas em São Paulo e três no Rio de Janeiro. Neste trabalho, a intenção é complementar investigações já feitas sobre esta viagem com novas informações sobre ela. Reproduzimos uma interessante entrevista de Fermi a um jornal carioca sobre suas impressões acerca do Brasil, e apresentarmos as sínteses de quatro de suas conferências, publicadas em jornais da época. Tais conteúdos, além de significativos para a história da ciência no Brasil, podem ter algum interesse para professores e estudantes no entendimento das contribuições científicas de Fermi e de sua visão sobre a ciência. A análise das visitas de cientistas de grande destaque ao Brasil, nas primeiras décadas do século XX, pode trazer elementos históricos que possibilitam um melhor entendimento acerca dos caminhos iniciais da física moderna no país e o surgimento das primeiras instituições e grupos de pesquisa organizados. Elas contribuíram para estimular pesquisadores locais, para valorizar as incipientes instituições científicas e para destacar a importância da “ciência pura”, já que foram eventos que tiveram ampla divulgação na mídia e repercussão junto ao meio acadêmico e às autoridades e instituições locais. Este trabalho pretende mostrar, ainda, que a interação de Fermi com o Brasil deixou legados importantes para a ciência brasileira.

Palavras-chave:
Fermi; história da física no Brasil; física nuclear


In 1934, the Italian physicist Enrico Fermi traveled to South America and, in Brazil, gave five lectures, two in São Paulo and three in Rio de Janeiro. In this work, the intention is to complement investigations already carried out on this trip, bringing new information about it. We reproduce an interesting interview by Fermi to a Rio de Janeiro newspaper about his impressions of Brazil, and we present the summaries of four of his conferences, published in newspapers of the time. Such contents, in addition to being significant for the history of science in Brazil, may be of interest to teachers and students in understanding Fermi’s scientific contributions and his vision of science. The analysis of visits by prominent scientists to Brazil, in the first decades of the 20th century, can bring historical elements that allow a better understanding of the initial paths of modern physics in the country and the emergence of the first institutions and more organized research groups. They contributed to stimulating local researchers, to valuing incipient scientific institutions and to to highlighting the importance of “pure science”, since they were events that were widely publicized in the media and had repercussions among the academic world and local authorities and institutions. This work also intends to show that Fermi’s interaction with Brazil left important legacies for Brazilian science.

Keywords:
Fermi; history of physics in Brazil; nuclear physics


1. O Contexto da Vinda de Fermi ao Brasil

Em 1934, o físico italiano Enrico Fermi (1901–1954) viajou para a América do Sul e esteve no Brasil onde fez cinco conferências, duas em São Paulo e três no Rio de Janeiro. Esta viagem, embora quase não apareça em textos sobre a história da física no Brasil, foi investigada em anos recentes por Caruso e Marques [1[1] F. Caruso e A.J. Marques, Scientiarum Historia VI, 1 (2013)., 2[2] F. Caruso e A.J. Marques, Estudos Avançados 28, 279 (2014)., 3[3] F. Caruso e A.J. Marques, Quaderni di Storia della Fisica 25, 3 (2021).]. Neste artigo, a intenção é complementar as investigações já feitas, trazendo novas informações sobre a viagem. Reproduzimos também uma interessante entrevista dada por Fermi a um jornal carioca sobre suas impressões acerca do Brasil, além de apresentarmos as sínteses de quatro de suas conferências, como publicado em jornais da época. Tais conteúdos, além de significativos para a história da ciência no Brasil, podem ter algum interesse para professores e estudantes no entendimento das contribuições científicas de Fermi e de sua visão sobre a ciência.

A análise das visitas de alguns cientistas de grande destaque ao Brasil, como Einstein [4[4] I.C. Moreira e A.A.P. Videira, Einstein no Brasil (Editora da UFRJ, Rio de Janeiro, 1995).], Marie Curie [5[5] B. Esteves, L.M. Massarani, I.C. Moreira, Revista da Sociedade Brasileira de História da Ciência 5, 134 (2007).], na década de 1920, de Arthur Compton [6[6] O. Freire Jr. e I. Silva, Revista Brasileira de História 34, 181 (2014).], em 1941, de Richard Feynman [7[7] I.C. Moreira, Revista Brasileira de Ensino de Física 40, e4203 (2018).] e Cécile Morette [8[8] H. Tavares, K.S.F.F. Guimarães, e A.A. Videira, Revista Brasileira de Ensino de Física 44, e20220043 (2022).], em 1949, e de David Bohm [9[9] O. Freire Jr., M. Paty e A.L.R. Barros, Estudos Avançados 8, 53 (1984).], em 1951/55, descortina elementos históricos que possibilitam um melhor entendimento acerca dos caminhos iniciais da física moderna no país e o surgimento das primeiras instituições e grupos de pesquisa mais organizados.1 1 Diversos outros cientistas de renome nas áreas de física e matemática, visitaram ou permaneceram algum tempo no Brasil, e aqui fizeram pesquisas, palestras ou deram cursos, nas primeiras décadas do século XX. Entre eles: Arthur Eddington (1912), Émile Borel (1922), Jacques Hadamard (1924), Irène Curie (1926), Paul Langevin (1928), George Gamow (1939), André Weil (1945/47), Francis Murnaghan (1949), Laurent Schwartz (1952), Jean Dieudonné (1952), Eugene Wigner (1952), Isaac Rabi (1952), Robert Oppenheimer (1953). Às vezes tais viagens são mencionadas e interpretadas apenas pelo lado folclórico de um(a) grande cientista que visita uma terra desprovida de pessoas capacitadas para entendê-lo(a). No entanto, estudos anteriores sobre algumas delas, como os citados acima, têm mostrado que elas podem ter tido um papel mais significativo do que apenas o divertimento turístico do cientista visitante. Essas visitas contribuíram para estimular pesquisadores locais, em particular os mais jovens, para valorizar as incipientes instituições científicas e para a afirmação da importância da “ciência pura”, já que foram acontecimentos que tiveram ampla divulgação na mídia e repercussão junto ao meio acadêmico e às autoridades e instituições locais. Nestas visitas a Academia Brasileira de Ciências (ABC) teve um papel ativo recebendo tais cientistas para comunicações científicas e homenagens. Diversos jovens pesquisadores e estudantes, que tiveram posteriormente importantes participações no desenvolvimento da ciência no Brasil, estiveram presentes em conferências e cursos destes cientistas e foram estimulados por eles nas sendas da pesquisa científica. Este trabalho pretende mostrar também que a interação de Fermi com o Brasil, em particular a sua visita de 1934, deixou legados importantes para a ciência brasileira.

Em 1934, Enrico Fermi aceitou o convite para dar palestras na Argentina, Brasil e Uruguai. O Instituto Argentino de Cultura Itálica foi o patrocinador da visita à Argentina. Fermi e sua esposa Laura Fermi (1907–1977), chegaram a Buenos Aires no dia 30 de julho. Nas semanas seguintes Fermi fez conferências em Buenos Aires, Córdoba, La Plata e Montevidéu. As transcrições das palestras que foram realizadas em Buenos Aires e os sumários das que foram realizadas em La Plata e em Córdoba foram publicadas, em 2020, por De Angelis e Kenny [10[10] A. De Angelis e J.M. Kenny, Quaderni di Storia della Fisica Issue 1, 117 (2020).]. As cinco conferências em Buenos Aires, feitas a partir de 2 de agosto de 1934, constituíram um curso e tiveram como temas: I. Características que distinguem a física atômica da física dos corpos ordinários; II. O conceito de medida e seu criticismo; III. Os elementos fundamentais da estrutura nuclear (parte 1); IV. Elementos fundamentais da estrutura nuclear (parte 2); V. A desintegração artificial do núcleo [11[11] E. Fermi, em: Conferencias, Faculdad de Ciencias Exactas, Fisicas y Naturales (Buenos Aires, 1934).]. A Universidade de Buenos Aires as gravou e as transcreveu em espanhol. Elas contêm as primeiras apresentações públicas da teoria da desintegração beta e dos trabalhos sobre radioatividade artificial iniciados pelo grupo de Fermi. No dia 11 de agosto, Fermi fez uma palestra em Córdoba sobre a radioatividade artificial [12[12] E. Fermi, Revista de la Universidad Nacional de Córdoba, 5/6, 187 (1934).]; fez outra também em Montevidéu, da qual não sabemos o título. Por fim, no dia 17 de agosto a conferência ocorreu na Universidade de La Plata [13[13] E. Fermi, Tomo I, 405 (1934).] e versou sobre radiação (radioatividade, luz e raios cósmicos). A visita de Fermi teve grande repercussão local, e os auditórios de suas conferências estiveram lotados, apesar do fato de ele dar as palestras em italiano.2 2 No entanto, não estão incluídas nas Obras de Fermi editadas pela Accademia dei Lincei em Roma e pela Universidade de Chicago [15], embora listados na Bibliografia.

No dia 18 de agosto, Fermi e Laura deixaram a Argentina com destino a Santos, e ali desembarcaram no dia 21 de agosto. Viajaram, então, para São Paulo, de automóvel. Depois foram para o Rio de Janeiro, onde ficaram por alguns dias, e viajaram de volta para Nápoles no dia 1º de setembro. O Instituto Ítalo-Brasileiro de Alta Cultura, instituição que havia sido fundada em 1933, patrocinou a viagem de Fermi ao Brasil. Faremos inicialmente uma breve apresentação sobre o contexto da vinda de Fermi à América do Sul, particularmente sobre o momento científico de Fermi, remetendo o leitor interessado em outros aspectos de sua vida, da viagem à América do Sul e da situação política na Itália naquele momento, para a sua biografia recente, escrita por David Schwartz [14[14] D.N. Schwartz, The Last Man Who Knew Everything (Basic Books, New York, 2017).], e para as referências já mencionadas para a viagem ao Brasil [1[1] F. Caruso e A.J. Marques, Scientiarum Historia VI, 1 (2013)., 2[2] F. Caruso e A.J. Marques, Estudos Avançados 28, 279 (2014)., 3[3] F. Caruso e A.J. Marques, Quaderni di Storia della Fisica 25, 3 (2021).] e à Argentina [10[10] A. De Angelis e J.M. Kenny, Quaderni di Storia della Fisica Issue 1, 117 (2020).].

Na biografia de Fermi, escrita por seu discípulo e colega pesquisador, Emilio Segrè, há uma descrição desta viagem de Fermi: “No verão de 1984, Fermi foi à América do Sul para uma turnê de palestras patrocinada pelo governo italiano. Em São Paulo encontrou o físico italiano Gleb Wataghin e um antigo colega de escola de Pisa, o matemático Luigi Fantappiè, que ali estavam como professores em missões de longa duração sob o patrocínio conjunto da Itália e do Brasil. Wataghin e Occhialini, que se juntou a ele mais tarde, permaneceram no Brasil até depois da Segunda Guerra Mundial e foram fundamentais para a criação de uma importante escola de física brasileira. Fermi fez palestras para plateias lotadas no Brasil, Uruguai e Argentina e ficou satisfeito e surpreso com o interesse demonstrado pelo público em seu trabalho. No navio de regresso a casa conheceu o famoso músico Ottorino Respighi. Tornaram-se amigos e tiveram longas conversas, embora lhes fosse difícil trocar ideias em seus diferentes campos de atuação: o físico estava ansioso para aprender a teoria da música, mas queria explicá-la em termos de física, enquanto o músico a via do seu ponto de vista artístico profissional. Fermi desenvolveu uma grande consideração por Respighi e muitas vezes o mencionou em anos posteriores. Em seu retorno à Europa, Fermi parou em Londres para participar de uma conferência internacional de física e relatar sobre seu trabalho com nêutrons.” [16[16] E. Segrè, Fermi – Physicist (The University Chicago Press, Chicago, 1970)., p. 77 e 78].

Na biografia de Fermi escrita por David Schwartz, a mais completa até o momento, há duas referências curtas a esta viagem. Lê-se, na página 765: “Em 1934, o casal [Fermi e Laura] passou o verão na Argentina e no Brasil, onde Fermi deu palestras para salas superlotadas.” E na página 119: “Fermi passou grande parte daquele verão dando palestras na América do Sul e voltou por Londres, quando participou de uma conferência e apresentou um relatório completo sobre o trabalho com nêutrons.” [14[14] D.N. Schwartz, The Last Man Who Knew Everything (Basic Books, New York, 2017).] A informação de que Fermi voltou por Londres, dada por Segrè e repetida por Schwartz, não está correta, como se vê nos escritos de Laura Fermi reproduzidos mais adiante no item VI, Anexo C, que afirma que eles voltaram para a Itália, tendo desembarcado em Nápoles no final de setembro. Há também uma curta notícia em O Globo, de 14 de setembro de 1934, que registra a chegada dele e de Respighi a Gênova. A conferência em Londres, International Conference on Physics, organizada pela IUPAP, à qual Fermi compareceu depois, ocorreu entre 1 e 6 de outubro de 1934.

É interessante analisar o contexto da vinda de Fermi, do ponto de vista de seu momento na ciência. O ano em que esteve na América do Sul foi um dos mais produtivos de Fermi. Em 1933, ele havia feito uma de suas maiores contribuições para a física ao formular a teoria do decaimento beta [17[17] E. Fermi, La Ricerca Scientifica 4, 491 (1933)., 18[18] E. Fermi, Nuovo Cimento II, 1 (1934).], uma das manifestações mais comuns da interação fraca, como foi posteriormente denominada.3 3 Sobre Fermi e seu estilo na física, veja-se o interessante artigo de Henrique Fleming [20]. Nesta formulação, ele acatou a hipótese da existência de uma partícula neutra, o “neutrino”, assim nomeada por Fermi, que havia sido proposta anos antes por Pauli para manter a conservação de energia no decaimento beta, e usou a ideia de que o próton e o nêutron são dois estados diferentes do mesmo “objeto fundamental”. Fez também a hipótese nova de que o elétron não preexiste no núcleo original, mas é liberado, com o neutrino, no processo de decaimento, de forma análoga à emissão de um fóton, que resulta de um salto quântico atômico. Registre-se que o artigo original de Fermi sobre sua teoria foi recusado pela revista Nature sob a alegação de que era muito abstrato e distante da realidade física [19[19] A. Pais, Inward Bound (Oxford University Press, Oxford, 1986)., p. 418]. Nos anos anteriores, Fermi havia feito duas contribuições muito significativas para a física teórica: a introdução da chamada “estatística de Fermi-Dirac”, em 1926, feita de forma independente por ele e por Dirac, para partículas com spin semi-inteiro [21[21] E. Fermi, Rendiconti dei Lincei 3, 145 (1926).]; e trabalhos particularmente esclarecedores em eletrodinâmica quântica e teoria quântica da radiação, entre os anos 1929 e 1932.

Em janeiro de 1934, Frédéric Joliot-Curie e Irène Curie descobriram a radioatividade artificial induzida pelo bombardeio de partículas alfa em núcleos atômicos. Dois meses depois, Fermi e seu grupo da via Panisperna, em Roma, a partir de uma ideia original de Fermi [22[22] E. Fermi, La Ricerca Scientifica 5, 283 (1934).], descobriram que o bombardeamento de núcleos atômicos por meio de nêutrons produzia também a radioatividade artificial. Os nêutrons têm a vantagem de penetrar muito mais facilmente nos núcleos, mesmo aqueles com número atômico elevado, por não terem carga elétrica, e exigirem, por isto, muito menos energia que as partículas alfa.

Pouco antes de sua viagem para a América do Sul, em maio de 1934, Fermi e seus companheiros usaram o bombardeamento de nêutrons em elementos pesados, como o urânio, e obtiveram diversos elementos em um processo complexo. Interpretaram que havia evidências que comprovariam a presença de um novo elemento, mais pesado do que o urânio, possivelmente com peso atômico 93 [23[23] E. Fermi, Nature, 133, 898 (1934).]. Fermi permanecia com dúvidas quanto à identificação deste elemento, mas propôs para ele o nome “ausonium”, de um dos nomes gregos, Ausonia, para a Itália. Mas seu mentor, amigo, senador, professor de física experimental e diretor do Instituto de Física da Universidade de Roma, Orso Mario Corbino, não parecia ter muitas dúvidas e fez um anúncio bombástico, no dia 4 de junho de 1934, sobre a obtenção do elemento de peso atômico 93. A repercussão da descoberta foi imediata e muito grande no mundo inteiro e jornais brasileiros também a divulgaram, como o Jornal do Brasil, no dia 6 de junho de 1934 (p. 10).

A descoberta do elemento 93 levantou diversas objeções de alguns cientistas enquanto outros tentavam identificá-lo e isolá-lo quimicamente, como Lise Meitner e Otto Hahn, mas sem êxito. De certo modo a controvérsia permanece até hoje, se de fato o grupo de Fermi teria obtido o elemento 93. Ele foi definitivamente produzido e identificado, em 1939, por Edwin McMillan, no Berkeley Radiation Laboratory da Universidade da Califórnia, e ganhou o nome de neptúnio. Uma das pessoas mais críticas da suposta descoberta do elemento 93, pelo grupo de Fermi, foi a química e física alemã Ida Noddack (1896–1978) que argumentou que, antes de se afirmar a produção de um elemento transurânico, era necessário verificar que havia sido eliminada a possibilidade da presença de todos os elementos anteriores da tabela periódica [24[24] I. Noddack, Zeitschrift für Angewandte Chemie 47, 653 (1934).]. Ela percebeu, antes que seus colegas cientistas da época, a possibilidade da fissão nuclear, mas, na época, a ideia de fissão nuclear era considerada impossível. Para ela, o bombardeamento por nêutrons poderia produzir reações nucleares ainda não conhecidas e conduzir à produção também de elementos mais leves e não necessariamente mais pesados do que o elemento alvo do bombardeio. Sobre este episódio e a visão de Fermi sobre ele, há um relato esclarecedor de Laura Fermi: “O que na época pensávamos ser o elemento 93, disse Fermi, provou ser uma mistura de produtos de decaimento. Pensamos muito tempo que poderia ser, e agora temos certeza disso. Pensávamos que tínhamos uma mistura de quatro elementos, enquanto seu número estava próximo de cinquenta” [25[25] L. Fermi, The Story of Atomic Energy (Random House, New York, 1961)., p, 47 e 48].

Depois de voltar da América do Sul, a partir de observações iniciais quase ao acaso de Edoardo Amaldi e Bruno Pontecorvo [26[26] L. Fermi, Atomi in Famiglia (Arnoldo Mondadori Editore, Milano, 1954)., p. 118], Fermi e seu grupo descobriram, em outubro de 1934, que nêutrons lentos (produzidos depois da colisão com elementos leves, como o hidrogênio ou o carbono) eram muito mais eficientes para induzirem a radioatividade artificial. Fermi logo achou uma explicação para o fenômeno: nêutrons lentos eram mais facilmente capturados pelos núcleos do que nêutrons mais rápidos. Abriu-se uma nova linha de pesquisa que teria repercussões profundas na física nuclear e em suas aplicações. O Prêmio Nobel de Física de 1938 foi concedido a Enrico Fermi por suas demonstrações da existência de novos elementos radioativos, produzidos pelo bombardeamento de nêutrons, e por sua descoberta de reações nucleares provocadas por nêutrons lentos. Depois de receber o prêmio na Suécia, em dezembro de 1938, Fermi e sua esposa Laura Fermi foram diretamente para os Estados Unidos, abandonando a Itália já dominada inteiramente pelo fascismo.

2. Conferências a Atividades de Fermi em São Paulo e no Rio de Janeiro

Fermi e Laura desembarcaram em Santos, no dia 21 de agosto, e viajaram de automóvel para São Paulo, e se hospedaram no Esplanada Hotel. A entrevista que Fermi deu a jornais, reproduzida no item III, retratou sua impressão da chegada a São Paulo. Sua primeira conferência em São Paulo, “A constituição da matéria”, ocorreu dia 22 de agosto, às 21 h, na sede do Instituto Histórico Geográfico de São Paulo, sob o patrocínio da USP. A Folha da Manhã, que traz uma foto de Fermi rodeado por um grande número de pessoas, descreve a presença de uma “verdadeira multidão, que encheu literalmente o amplo salão daquela entidade, refluindo para seus corredores e salas”. O resumo da palestra, como descrita neste jornal encontra-se no Anexo A1.

Fermi realizou uma segunda palestra em São Paulo,4 4 Esta segunda conferência em São Paulo não é mencionada nos artigos de Caruso e Marques [1, 2, 3]. no dia 23 de agosto, na Escola Politécnica de São Paulo, como registrado no jornal Estado de São Paulo (24/08/1934, p. 5). Assim relatou o jornal: “Ontem às 17 h e meia no salão da Escola Politécnica, o professor Enrico Fermi, que ora nos visita, realizou mais uma conferência destinada aos professores, assistentes e alunos daquela escola e da Universidade. Diante de uma assistência de aproximadamente cem pessoas o ilustre cientista italiano, que anteontem fez uma palestra destinada ao grande público que enchia o auditório do Instituto Histórico, realizou outra conferência agora de caráter puramente técnico.” O título da conferência não foi anunciado no jornal, mas Fermi tratou de sua nova teoria da desintegração beta, como se pode ler no resumo publicado [ver Anexo A2]. De sua entrevista dada a O Jornal do Rio de Janeiro, e reproduzida no Item IIIb, se percebe que Fermi visitou em São Paulo o laboratório de resistência dos materiais, o laboratório de hidráulica e o Instituto Butantan, aos quais elogiou como “institutos magníficos”.

Em seguida, possivelmente no dia 23 à noite, Fermi e Laura foram para o Rio de Janeiro, onde ficaram hospedados no Hotel Glória. No Anexo B, colocamos a tradução de trechos do capítulo do livro Atomi in Famiglia, escrito por Laura Fermi [26[26] L. Fermi, Atomi in Famiglia (Arnoldo Mondadori Editore, Milano, 1954).] com as suas impressões sobre a passagem do casal por São Paulo e pelo Rio de Janeiro. No Rio de Janeiro, além de passeios e visitas a diversas instituições, Fermi fez três conferências, que comentaremos a seguir. Observe-se que, em uma bela exposição relativa ao centenário de Fermi, Enrico Fermi. Immagini e documenti inediti, exibida em Pisa, em 2001, no CERN em 2002, e posteriormente em cidades norte-americanas, consta que o cientista italiano fez conferências em São Paulo, em 1934, mas não se menciona a sua passagem e suas conferências no Rio de Janeiro [27[27] R.V. Caffarelli, Enrico Fermi: Immagini e documenti. Centenario della nascita di Enrico Fermi (1901–2001) (Edizioni Plus, Pisa, 2001)., p. 59].

Fermi foi recebido na Academia Brasileira de Letras, no dia 25, às 17h para sua primeira conferência no Rio, “A evolução da Física no século XX”, e sua síntese foi publicada no Jornal do Brasil (p. 27), três dias depois, em 28 de agosto [Anexo A3]. Ele foi apresentado à audiência pelo professor Aloysio de Castro, diretor brasileiro do Instituto Ítalo-Brasileiro de Alta Cultura, membro da Academia Brasileira de Letras, da qual foi presidente, e da Academia Nacional de Medicina. Aloysio de Castro foi também companheiro de Einstein e Marie Curie na Comissão de Cooperação Intelectual da Liga das Nações, na qual representou o Brasil entre 1922 e 1930.

A segunda conferência de Fermi no Rio de Janeiro, A produção artificial dos corpos radioativos, ocorreu também na sede da ABL, embora esta tenha sido uma atividade da Academia Brasileira de Ciências (Diário de Notícias, 26 de agosto de 1934, p. 13). Note-se que, naquela época, a ABC não tinha mais uma sede própria, o que só viria a acontecer em 1959. Na ocasião, Fermi recebeu o diploma de membro correspondente da ABC, tendo sido saudado pelo acadêmico Theodoro Ramos, que ele já conhecia pelas tratativas anteriores sobre a vinda de físicos para a USP. Na ata da ABC [Figura 1], correspondente a esta sessão, vê-se a assinatura de Fermi e de acadêmicos que a assistiram. Arthur Alexandre Moses era o presidente da ABC nesta ocasião. O Jornal do Brasil, de 28 de agosto de 1934, assim descreveu a conferência: “Realizou-se, ontem, na presença de numerosa e seleta assistência, a segunda conferência de professor Enrico Fermi, tratando da Produção Artificial dos Corpos Radioativos. É ocioso enaltecer a superioridade dessas conferências que tratam de assuntos de grande importância no campo da ciência nova, o que explica o grande interesse que estão despertando.” Esse jornal trouxe também, naquele dia, um resumo da conferência de Fermi.

Figura 1:
Ata da ABC sobre a sessão em homenagem a Fermi, em 28 de agosto de 1934 (ABC, Atas).

O Jornal do Commercio, no dia 6 de setembro, fez uma matéria mais extensa da sessão da ABC que recepcionou Fermi. Publicou, inclusive, o discurso de apresentação de Fermi feito por Theodoro Ramos, que merece ser reproduzido (Anexo B) por ser da lavra de um dos mais abalizados cientistas brasileiros da época, que estava também profundamente envolvido, naquele momento, na criação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, da qual era o primeiro diretor. O jornal reportou que: “Após os agradecimentos pelas palavras de saudação que ouvira do acadêmico Theodoro Ramos, assim como pela sua eleição como Membro Correspondente da Academia de Ciências do Brasil, o Professor Fermi falou sobre o problema da desintegração artificial.” O jornal menciona a presença de muitos acadêmicos, entre os quais Álvaro Alberto, Alix Lemos, Euzébio de Oliveira, Miguel Osório de Almeida, Mello Leitão, Carneiro Felipe, Rodolpho von Ihering, Arthur Moses, Alberto Childe, Dulcídio Pereira, Menezes de Oliveira, Lauro Travassos e Roberto Marinho de Azevedo.

No Anexo A4 reproduzimos a descrição da conferência de Fermi publicada naquele jornal. Note-se o cuidado de Fermi ao falar sobre as incertezas ainda existentes quanto à identificação de um possível elemento mais pesado que o urânio – o elemento “93” tão badalado naquele momento – como resultado do bombardeamento do urânio com nêutrons. Interessantes também foram as últimas palavras da conferência de Fermi, quando ele especula sobre as possibilidades de aplicações práticas daquelas pesquisas, inclusive quanto à eventual produção de “incomensurável” energia. A realidade iria, poucos anos depois, superar em muito as observações cautelosas, mas premonitórias, de Fermi, e ele seria um ator decisivo neste processo.

Apesar de algumas notícias neste sentido publicadas em jornais do Rio, aquela não foi a última palestra de Fermi no Rio de Janeiro. Ele realizou uma terceira conferência na Escola Politécnica com o título: “Modelo Estatístico do Átomo”, no dia 31 de agosto. Não localizamos em jornais ou documentos da época informações sobre o conteúdo desta conferência, além de seu título. O jornal O Globo, de 29/08/1934 (p. 3), noticiou-a assim: “Sexta-feira próxima, 31 do corrente, o professor Enrico Fermi, da Universidade de Roma, fará no Laboratório de Física da Escola Politécnica, a terceira e última conferência da série que vem realizando, tendo escolhido para tema, ‘Modelo estatístico do Átomo’. Sendo o professor Fermi atualmente uma das maiores autoridades em assuntos de física nuclear, essa conferência atrairá ao anfiteatro da Politécnica todos os cientistas patrícios que se dedicam a esses estudos. A conferência terá início às 18 horas, não havendo convites especiais”.

A presença de Fermi neste dia na Politécnica foi registrada em uma bela foto [Figura 2] com vários dos professores que a assistiram, entre os quais destacamos Joaquim Costa Ribeiro, Bernhard Gross, Plinio Süssekind Rocha, Álvaro Alberto, Carneiro Felipe, Carlos Chagas Filho e Adolpho Lutz. Fermi, tendo ficado alguns dias no Rio de Janeiro, visitou diversas instituições, aí incluído o então Instituto Oswaldo Cruz, atual Fiocruz, como expôs em sua entrevista que será reproduzida no item seguinte deste trabalho.

Figura 2:
Fermi com professores e cientistas brasileiros na Escola Politécnica do Rio de Janeiro, no dia 31 de agosto de 1934. Acervo Plínio Süssekind Rocha, Biblioteca do IF-UFRJ.

3. As Entrevistas de Fermi no Brasil

A primeira entrevista de Fermi foi dada à Folha da Manhã, que a publicou no dia 22 de agosto de 1934, na página 10. O último parágrafo da entrevista foi reproduzido também no Jornal do Brasil de 23 de agosto de 1934 (p. 13).

Folha da Manhã: 22 de agosto de 1934

Entrevistando o Jovem Sábio

O professor Fermi desembarcou ontem cedo em Santos, tendo vindo de automóvel para esta capital e se hospedado no Esplanada Hotel, onde recebeu numerosas visitas de personalidades de relevo na colônia italiana aqui domiciliada. À noite o procuramos para ligeira palestra. Fomos encontrá-lo no salão principal daquele estabelecimento, cercado do cônsul e de outras personalidades da colônia.

Inteirado do nosso objetivo, prontamente nos atendeu. Inquirimos desde logo sobre a viagem da vizinha cidade praiana a esta capital ao que respondeu: “Viajei de auto. Quanto à estrada, muito bem impressiona. As montanhas, a vegetação, a serra, devem ser motivos de orgulho para os brasileiros, porque são encantadoras.” – E com respeito a nossa capital, prosseguimos. “Girei pouco por esta cidade, mas o que observei me encantou.” – É a primeira vez que vem a São Paulo? “É. E a impressão que tenho é muito simpática, por isso que sentimos desde logo a vibração dos seus nervos de ferro e músculos de aço.” – E quanto à sua conferência? “Realizá-la-ei amanhã, às 21 horas, no salão nobre do Instituto Histórico e Geográfico.” – Não nos poderia adiantar alguns pontos do seu trabalho? perguntamos.

“Limitar-me-ei a falar-vos em síntese. Será tratado o problema das transformações dos elementos químicos um no outro, descrevendo as experiências feitas até hoje para a produção dos novos corpos radioativos. Os métodos empregados para produzir essas transformações consistem em submeter a matéria a um bombardeio com partículas velocíssimas que, chocando com os núcleos dos átomos, os modificam, transformando-os em núcleos de elementos diversos. A quantidade de matéria que se consegue transformar com esses métodos é pequeníssima e escaparia a qualquer método das análises químicas comuns, se não servisse para revelar o fato de que novos corpos formados são radioativos. Desintegrando-se, emitem elétrons velozes, dotados de energia de regular potência, que permitem ser observados um por um. Os novos corpos assim obtidos orçam em cerca de 40 e têm, todos, propriedades iguais ao rádio.”

Uma segunda entrevista, mais longa e detalhada, foi dada por Fermi ao periódico carioca O Jornal, que a publicou no dia em que Fermi e Laura deixavam o Brasil, 01 de setembro de 1934 [Figura 3]. Nela, Fermi fez um balanço de sua visita e de suas impressões do país.5 5 Para facilitar o entendimento inseri algumas vezes uma palavra ou expressão adicional, sempre entre colchetes, em depoimentos e notícias de jornais nas quais há palavras faltando, nomes incorretos ou termos imprecisos usados na época. Mencionou as visitas que fez a instituições brasileiras, como à Escola Politécnica de São Paulo e ao Instituto Butantã, em São Paulo, e ao Instituto Oswaldo Cruz, à Escola Politécnica do Rio de Janeiro e ao Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro. Mencionou também suas relações de amizade com Wataghin e Fantappié e elogiou Theodoro Ramos e Aloysio de Castro. A entrevista, que saiu na primeira página do jornal, com sua sequência na quarta página, traz uma foto de abertura com Fermi, com o poeta, escritor e professor Vincenzo Spinelli, diretor do Instituto Ítalo-Brasileiro de Alta Cultura, e com o redator de O Jornal.

Figura 3:
O professor Enrico Fermi, no Hotel Glória, ladeado pelo professor Vincenzo Spinelli, diretor do Instituto Ítalo-Brasileiro de Alta Cultura e pelo redator d´O Jornal.

O Jornal: 01 de setembro de 1934

UM GRANDE FÍSICO ITALIANO QUE NOS VISITA

O Jornal ouve, no Hotel Glória, o prof. Enrico Fermi – As suas impressões da América Latina – A física contemporânea – O que é o novo “elemento 93”

Encontra-se há alguns dias nesta capital o professor Enrico Fermi, membro da Academia Italiana, lente da Universidade de Roma e uma das intelectualidades mais representativas da Itália moderna. Físico de renome, o professor Fermi veio ao Brasil, a convite do Instituto Ítalo-Brasileiro de Alta Cultura, realizar uma série de conferências no Rio e em São Paulo.

As palestras já realizadas na Academia de Letras e na Escola Politécnica tiveram o mais assinalado sucesso. O professor Fermi, cujo renome científico ultrapassou as fronteiras de seu país para tornar-se acatado em todo o mundo, é ainda muito jovem, pouco mais de 30 anos. O hábito do estudo e da meditação não o envelheceu, mas emprestou ao sábio italiano uma gravidade toda peculiar, que o torna atraente e agradável. Muito simples, conservando nas palestras um tom de lhaneza e de cordialidade, o professor Fermi recebeu o representante de O Jornal no Hotel Glória, dispensando-lhe as maiores gentilezas, e prontificando-se a conceder-lhe uma ligeira palestra sobre os motivos da sua vinda à América Latina.

IMPRESSÕES DE VIAGEM

Interpelado sobre as impressões de sua viagem ao Brasil e à Argentina, o professor Fermi respondeu: – Excelentes, sob todos os aspectos. Seja no Brasil, seja na Argentina, tive a feliz oportunidade de encontrar-me com uma mocidade estudiosa, de altíssimo valor, inteligente, vivaz, e, ao mesmo tempo, atenta e ávida de aprender. E o público com o qual estive em contato dispensou-me as demonstrações de uma cordialidade que não hesitaria em qualificar de comovedora, se essa expressão não destoasse em demasia na boca de um cientista. Da vossa São Paulo, tão brasileira e ao mesmo tempo tão italiana, guardo lembranças que o tempo nunca conseguirá apagar. Do Rio de Janeiro? Que poderei eu dizer desta encantadora metrópole, tão grande, tão variada, tão linda, que durante todo o meu tempo disponível, percorri em todas as direções, preso a cada passo de uma admiração ilimitada?

OS AMBIENTES CIENTÍFICOS NAAMÉRICA LATINA

Com referência ao nível cultural na América Latina – acrescentou o ilustre físico – pude colher os primeiros sintomas – o que para mim constitui matéria muito interessante – das formações, seja aqui, seja na Argentina, dos ambientes científicos e da passagem de uma situação de simples interesse a uma fase de franca atuação prática. E quantas iniciativas aqui surgem, quase ignoradas no exterior. Em São Paulo, tive ocasião de visitar institutos magníficos, entre os quais o de experiências sobre a resistência dos materiais, o Laboratório de Hidráulica, o Butantan, verdadeiramente único no mundo, organizações estas que suscitaram em mim a mais profunda das admirações. Aqui no Rio, cabe-me salientar o Instituto Oswaldo Cruz, sob a direção do professor Chagas, do qual não se sabe qual o aspecto mais digno de admiração: se a sua perfeitíssima organização, a sua grandiosidade, ou o zelo e a dedicação dos seus dirigentes. E, em rápida resenha: a Escola Politécnica, a Academia de Letras, o Colégio Pedro II e muitas outras escolas e instituições que comprovam, de forma concreta, uma atividade vigorosa espiritual do vosso país.

Velhos amigos como os professores Wataghin e Fantappié; afetuosas relações cimentadas na Itália como a do professor Theodoro Ramos, inteligência esclarecida, e outros presentes, como a grande alma do professor Aloysio de Castro e mais professores, estudiosos, homens de ciência e homens de ação, com quem troquei um fraternal aperto de mão. Entre outras foi-me extremamente grata a satisfação de ter encontrado aqui, como representante de sua majestade o rei da Itália e do seu governo um embaixador como o sr. Roberto Cantalupo, para quem é ocioso qualquer elogio, tanto mais pela obra de fraternidade e de recíproco entendimento que aqui vem realizando, programa esse apenas concebível por um homem, como ele, de esclarecida mentalidade, altíssima inteligência e grande coração”.

NOVOS CAMINHOS NO CAMPO DA FÍSICA

Aproveitando a gentileza cativante de nosso interlocutor, arriscamo-nos a desviar a palestra para as ciências, indagando-lhe das últimas descobertas no campo da Física. – “Nos últimos três anos, – respondeu o sr. Fermi – os conhecimentos sobre as partículas mais elementares do átomo e de seu núcleo, que se julgava fossem constituídos somente por elétrons negativos e prótons positivos, tornaram-se incontestavelmente mais ricos com a descoberta de dois novos corpúsculos: o nêutron e o elétron positivo.

Os nêutrons devem o seu nome ao fato de não possuírem carga elétrica; circunstância que lhes dá, entre outras propriedades, um forte poder de penetração; reunidos aos prótons, constituem eles os núcleos dos átomos, cuja carga elétrica, que determina todas as propriedades químicas do elemento, e, por isso mesmo, fornecida pelo número dos prótons; o peso atômico, pela soma do número dos prótons e dos nêutrons. O outro corpúsculo elementar, isto é, o elétron positivo ou pósitron, que foi observado pela primeira vez por Anderson, na Califórnia, possui em tudo as propriedades dos elétrons comuns, com a diferença de que sua carga elétrica é positiva e não negativa. E a descoberta desses novos elementos do átomo não só representa novas possibilidades para a compreensão dos fenômenos, como também oferece meios interessantes para a intervenção na produção dos fenômenos.

No campo da física nuclear – acrescenta o professor Fermi, em resposta a outra pergunta – achamo-nos ainda nos primeiros estudos, colhendo das nossas tentativas os primeiros resultados científicos que, só por si, não autorizam a previsão das descobertas que nos estão reservadas. Medite-se um pouco sobre o que foi a eletricidade em seus primórdios e o que constituíam as primeiras experiências de transmissão pelas ondas hertzianas e confronte-se com as extraordinárias realizações que hoje se conseguem no campo da eletricidade e das radiocomunicações. Porque nunca se sabe o que pode um homem obter de uma intuição, de uma esperança, de uma conquista do seu espírito.

NADA DE NOVO, PRESENTEMENTE

Mas há esperança – perguntamos – de resultados práticos, num futuro próximo? – “Seria uma corrida precipitada – exclama o prof. Fermi, com um sorriso um tanto suspeito. Com relação aos resultados práticos das experiências em andamento, os dos que têm por objeto a transformação da matéria, nem é bom falar-se. De resto, essa parte da questão interessa muito pouco à ciência que se compraz unicamente, consigo mesma. – E então? – insistimos, e desta vez sem havermos compreendido. – “Então – retruca bondosamente o prof. Fermi – poder-se-iam esperar resultados práticos somente se se conseguisse efetuar tais experiências em larga escala e com meios diversos dos usados atualmente, os quais, do ponto de vista dos resultados, apresentam o inconveniente de seu excessivo dispêndio.

Somente nesse caso se poderia, com a utilização de elementos conhecidos e comuns, produzir elementos raros e criar, ao mesmo tempo, energias enormes, equivalentes mais ou menos, a cem mil vezes as que se obteriam, queimando quantidades de combustível de peso igual ao da substância transformada. Nada é impossível, torno a dizer, e a ciência percorre grandes etapas, orientada, como se acha, a uma pesquisa e exploração cuidadosas e esforçadas que podem conduzir, como já o fizeram, à descoberta de novas armas comuns para atacar o núcleo atômico e, em consequência, determinar a formação de outros elementos, conseguindo libertar a energia. Daí, porém, a uma aplicação comercialmente prática, o caminho é demasiado comprido”.

“O ELEMENTO 93”

0 prof. Fermi explica: – “Como já disse em leve referência, a transformação de um elemento em outro, sonho insatisfeito dos alquimistas, somente pode ser efetuada atuando sobre o núcleo que determina precisamente as características dos diversos elementos. O problema, pois, é o seguinte: como agir sobre o núcleo, que está para o átomo, já de si invisível a qualquer meio de que disponham os homens, na mesma proporção em que está uma avelã para o globo terrestre?

Como vencer a força de repulsão do mesmo núcleo, que torna ainda mais difícil alcançar um alvo tão pequeno? Lord Rutherford, em 1919, tentou a experiência, com o emprego das chamadas partículas alfa, ou seja, por intermédio dos corpúsculos emitidos pelas substâncias radioativas, e em tão grande quantidade que atingem as cifras de milhões e bilhões. E conseguiu demonstrar que, quando uma partícula alfa incide sobre um núcleo, por exemplo, de azoto, pode, em alguns casos, ser por ele absorvida; o núcleo de azoto emite assim um próton, transformando-se, por isso, num núcleo diferente: de oxigênio.

Essa consequência é determinada pelo fato de a partícula alfa possuir uma carga elétrica 2 e uma massa 4, enquanto o próton se compõe de uma carga 1 e de uma massa 1, resultando de tudo isso que o novo núcleo, após a operação, adquire o aumento de 1, como carga elétrica, e de 3 como massa e, em consequência, fica alterado também o número e a distribuição dos elétrons. Em conclusão, vem a formar-se, do primeiro, o átomo de um outro elemento. A novidade mais importante que eu introduzi nessas experiências foi a de empregar, no bombardeio nuclear, o nêutron, partícula que, não dispondo de carga elétrica, não poderia ser rechaçada peio mesmo núcleo, como acontecia com as partículas alfa, devido à sua carga de eletricidade de sinal positivo. E os resultados foram deveras excelentes, particularmente os obtidos através do bombardeio do urânio.

O urânio, elemento de carga mais elevada, ocupando de fato a cabeça da escala, com o número 92, bombardeado pelos nêutrons, deu origem, pelo menos, a quatro novos corpos radioativos que se formaram nas posteriores modificações e reajustamentos nucleares. As indagações feitas para averiguar a natureza química destes corpos parecem que indicam existir também, entre eles, um novo elemento químico possuidor de uma carga mais elevada que a do urânio, a saber de 93 ou mais. Naturalmente, não completamente satisfeito com os resultados obtidos, prossigo no aperfeiçoamento das minhas experiências, a fim de verificar todas as comprovações que autorizem a julgar definitivos os resultados obtidos”.

4. As Interações de Fermi com o Brasil e Repercussões de sua Visita

Uma das repercussões geradas pela interação de Fermi com o Brasil, e a de maior impacto posterior, foi a indicação que ele fez a Theodoro Ramos do nome de Gleb Wataghin [Figura 4], para que este físico fosse convidado para vir para a USP, que estava sendo criada. Tal indicação, em março/abril de 1934, após o convite feito para o próprio Fermi, que o recusou, resultou na vinda de Wataghin para o Brasil em junho daquele ano. Ele seria o responsável pelo estabelecimento do primeiro grupo de pesquisa em física em São Paulo. Nas décadas seguintes, este processo teria um papel fundamental na física brasileira por ter possibilitado a formação de toda uma geração de físicos, tanto teóricos como experimentais, como Mario Schenberg, Marcelo Damy e Cesar Lattes. Wataghin desempenhou, como mostrado em diversos trabalhos de história da ciência [28[28] R.A. Salmeron, Estudos Avançados 15, 219 (2001)., 29[29] H.D. Tavares, A. Bagdonas e A.A.P. Videira, Historical Studies in the Natural Sciences 50, 248 (2020).], um papel de grande relevância nesse período da física no Brasil.

Figura 4:
Da esquerda para a direita: Antonio Rostagni, Gleb Wataghin, Enrico Persico, Fermi e Maria Rostagni. [Amaldi Arquives, Depart. of Physics, University of Rome]. [14[14] D.N. Schwartz, The Last Man Who Knew Everything (Basic Books, New York, 2017)., p. 79].

Sobre a influência de Fermi para a vinda de Wataghin ao Brasil, há o interessante depoimento deste último em uma entrevista para o CPDOC: “O Governo Armando Sales de Oliveira mandou uma missão à Europa. (…) A comissão foi para a Alemanha, Itália e França. Na França, eles convidaram professores de História, Filosofia e Literatura. (…) Na Alemanha, foram os biólogos, botânicos, zoólogos, na maioria israelitas, todos que saiam sob a pressão do nazismo. Na Itália, a comissão pediu [indicações] à Academia de Ciências, onde estavam dois acadêmicos, um de Matemática, outro de Física – um era Francesso Cerieli [Francesco Severi], que já tinha feito uma viagem ao Brasil e à Argentina, e sugeriu ao governo brasileiro que era necessário juntar uma Faculdade de Ciências às faculdades que existiam já, que eram a Politécnica, a Faculdade de Medicina e a Faculdade de Direito. Estas três escolas existiam no Brasil desde o século passado. Mas faltava ciência, como se diz, ciência pura, feita para pesquisa. (…) [O outro era] Enrico Fermi [que] indicou o meu nome.” [30[30] G. Wataghin, Gleb Wataghin (depoimento, 1975) (CPDOC/FGV, Rio de Janeiro, 2010)., p. 11].

Em seu longo depoimento, Wataghin retorna a esta indicação: “O Fermi disse: ‘Olha, em Turim, existe Wataghin. Experimente perguntar se ele vem’. E me fez saber dessa indicação indiretamente. Me escreveram; eu disse não. ‘Não conheço o Brasil, começo agora a trabalhar…’ Já começava a trabalhar cientificamente. ‘Não vou mudar’. Depois chegaram insistências, até que o Theodoro Ramos me convidou para Roma” [30[30] G. Wataghin, Gleb Wataghin (depoimento, 1975) (CPDOC/FGV, Rio de Janeiro, 2010)., p. 25]. Wataghin descreveu essa reunião com Theodoro Ramos e Fermi, que foi decisiva para sua vinda: “O presidente [da comissão], matemático Theodoro Ramos, me convidou em Roma para conversar pessoalmente – ele, Fermi e também meu professor de Turim, Teruca [Eligio Perucca]. Me convenceram: ‘que bom que eu vá’, porque eu só naquela época recebi o passaporte italiano. Estava o fascismo; eu não podia ficar lá. E, também, me fizeram compreender que era difícil que eu pudesse conseguir um lugar de professor catedrático na Itália. Que era melhor aceitar uma proposta, que era uma proposta generosa – eu recebia um vencimento, naquela época, de três contos de réis, três mil réis, o que era um bom vencimento. Assim fui lá.” [30[30] G. Wataghin, Gleb Wataghin (depoimento, 1975) (CPDOC/FGV, Rio de Janeiro, 2010)., p. 11].

Outra resultante importante da interação fermiana com o Brasil foi o estímulo a Mario Schenberg em seus trabalhos teóricos. Em particular, fornecendo-lhe a primeira informação sobre o neutrino em uma conferência que Fermi fez em São Paulo, conforme relatado pelo próprio Schenberg [31[31] M. Schenberg, Diálogos com Mário Schenberg (Nova Stella, São Paulo, 1985)., p. 29 e 30]. Quase certamente terá sido a segunda palestra, realizada por Fermi na Escola Politécnica de São Paulo no dia 23 de agosto, na qual Schenberg, então aluno daquela escola, afirma ter ouvido falar do neutrino pela primeira vez. A existência dessa partícula, que havia sido prevista por Pauli, e que tinha importância grande dentro da teoria do decaimento beta proposta por Fermi, instigou Schenberg, permaneceu no seu pensamento e foi crucial em importantes trabalhos científicos que realizou posteriormente, em particular aqueles feitos com George Gamow sobre o papel do neutrino na evolução e no colapso estelar [32[32] G. Gamow e M. Schoenberg, Phys. Rev. 58, 1117 (1940)., 33[33] G. Gamow e M. Schoenberg, Physical Review 59, 539 (1941).]. Alguns anos depois, em 1938, Schenberg ficaria também trabalhando, por quase um ano, com o grupo de Fermi, em Roma.

Um outro papel catalizador que talvez tenha resultado da visita de Fermi pode ser especulado a partir da foto, reproduzida anteriormente, de sua conferência na Escola Politécnica do Rio de Janeiro. Nota-se ali a presença dos membros do pequeno grupo de pesquisa que Gross iniciava no Rio de Janeiro, no Instituto Nacional de Tecnologia – INT, com dois de seus primeiros colaboradores Plínio Süssekind Rocha e Costa Ribeiro. Este grupo viria a se destacar, nos anos seguintes, pelas pesquisas pioneiras com eletretos e com efeitos termodielétricos. A visita de Fermi pode ter sido, assim, um fator adicional de confluência e agregação, no Rio de Janeiro, para o pequeno grupo de pesquisa que se formou em torno de Gross, que havia chegado à cidade no ano anterior.

Outro desdobramento possível da visita de Fermi ao Brasil, no sentido inverso e mais especulativo, emerge de um relato muito interessante de Carlos Chagas Filho que o acompanhou na visita ao Instituto Oswaldo Cruz. Esta é a sua descrição: “Uma vez levei Enrico Fermi ao laboratório de bacteriófagos, visita durante a qual – estamos em 1935 [correção: 1934] – Costa Cruz fez a Fermi uma exposição sobre as propriedades do vírus e, particularmente, do bacteriófago. Essa exposição modificou completamente o programa de visita de Fermi ao Instituto Oswaldo Cruz, em vista do tempo durante o qual os dois cientistas conversaram. Fermi tinha um compromisso para realizar uma conferência na Academia Brasileira de Letras e, era óbvio, iríamos chegar atrasados àquela reunião, muito mais mundana que científica. Enrico Fermi olhou as horas marcadas no topo do edifício do qual saímos e disse-me, um pouco preocupado: ‘Você há de me desculpar a perturbação no horário pré-fixado. É que os vírus são, por certo, alguns dos sistemas de maior interesse que se encontram na natureza. Se eu tivesse que começar de novo, certamente iria me dedicar ao seu estudo.’ Tais palavras indicam a extraordinária visão de um cientista que já havia, na ocasião, produzido a desaceleração dos nêutrons, a contribuição decisiva que, nas mãos de outros, permitiu a eclosão do engenho nuclear” [34[34] C. Chagas Filho, Um aprendiz de ciência (Editora FIOCRUZ, Rio de Janeiro, 2000)., p. 48]. Observe-se que Carlos Chagas se confunde porque a importante descoberta do uso de nêutrons lentos só se daria depois da volta de Fermi à Itália, no segundo semestre de 1934.

É interessante destacar que José da Costa Cruz [Figura 5] foi pioneiro no Brasil, e um dos primeiros do mundo, a pesquisar e utilizar a chamada fagoterapia (“phage therapy”), que consiste em utilizar bacteriófagos no combate a doenças produzidas por bactérias (em particular a desinteria). Costa Cruz coordenou os primeiros testes de fagoterapia no Brasil, entre 1921 e 1924 [35[35] G.M.F. Almeida e L.R. Sundberg, Lancet Infect Dis. 20, e90 (2020)]. Depois da descoberta dos antibióticos, tal técnica caiu em desuso, mas tem sido reativada em anos recentes [36[36] K.E. Kortright, B.K. Chan, J.L. Koff e P.E. Turner, Cell Host Microbe 25, 219 (2019).].

Figura 5:
O médico e cientista paraense José da Costa Cruz (1894–1940).

Pela descrição de Carlos Chagas Filho, as explicações de Costa Cruz sobre os bacteriófagos, com os quais trabalhava desde o início da década de 1920, interessaram muito a Fermi. Mas a história prossegue em seus caminhos tortuosos e vale relatá-la, embora extrapole o campo da física, para se perceber a influência mais geral de Fermi na ciência da época. Ele retornou para a Itália e três anos depois um jovem médico, Salvador Luria, procura o grupo de pesquisa de Fermi (ajudado por seu amigo e físico daquele grupo, Ugo Fano) porque se interessava pela fronteira entre a física e a biologia. Fermi o acolhe, achando que poderia ser interessante ter um médico no grupo. Pode-se especular se Fermi teria tido alguma motivação para isto proveniente de seu encontro com Costa Cruz. Luria passa a interagir com o grupo, atua em experimentos, absorve o estilo de raciocinar em física de Fermi, embora não tenha interesse maior pela matemática avançada e pela física de partículas [37[37] S.E. Luria, Autobiografia de um Hombre de Ciencia (Fondo de Cultura Económica, México, 1986).]. Seu interesse está na fronteira das duas áreas, a biologia e a física. Ali conhece Franco Rasetti que lhe apresenta os trabalhos de Max Delbrück, nos quais este especula sobre a natureza molecular do gene. Luria fica fascinado com as ideias de Delbrück e, pouco depois, por obra do acaso, conhece o microbiologista Geo Rita, da Universidade de Roma, que o leva ao laboratório e lhe apresenta os bacteriófagos, que também o fascinam. Ele logo percebe que ali estava um modelo experimental simples para pesquisar em biofísica. A partir daí, Luria, fugindo do fascismo, vai para os EUA, via França, onde se tornará um dos grandes cientistas no estudo dos bacteriófagos.

Em sua chegada aos EUA, em 1940, Luria foi logo apoiado por Fermi para uma bolsa da Fundação Rockfeller com a recomendação: “creio que fará bom uso de qualquer ajuda que lhe derem” [37[37] S.E. Luria, Autobiografia de um Hombre de Ciencia (Fondo de Cultura Económica, México, 1986)., p. 60]. O que, em se tratando de Fermi, certamente valia muito. Posteriormente Luria criaria com Delbrück e Alfred Hershey o famoso “phage group” e receberão, os três, o Prêmio Nobel de Medicina ou Fisiologia de 1969 por suas descobertas sobre o mecanismo de replicação e a estrutura genética de vírus. Curiosamente ou não, seu primeiro aluno de doutorado viria a ser James Watson, que faz seus primeiros trabalhos com bacteriófagos e depois vai para a Inglaterra onde, com Francis Crick, e apoiado em trabalhos de Rosalind Franklin, Linus Pauling e Maurice Wilkins, chegará à estrutura do DNA. Outro detalhe interessante: Watson, em seus trabalhos sobre os bacteriófagos, de 1950 e 1952, usou uma técnica proposta por Costa Cruz – a utilização de bactérias mortas pelo calor – embora não o mencione; aliás, como quase ninguém o faz, porque os trabalhos iniciais de Costa Cruz sobre terapias com bacteriófagos haviam sido publicados, em 1921/24, em português [35[35] G.M.F. Almeida e L.R. Sundberg, Lancet Infect Dis. 20, e90 (2020), 38[38] J.C. Cruz, Bras. Med. 1, 298 (1923).].

A. As conferências de Fermi no Brasil

A1. A primeira conferência de Fermi emA1. São Paulo: A constituição da matéria

Folha da Manhã, 23 de agosto de 1934

Iniciando sua preleção, o eminente professor italiano tratou os problemas das transformações dos elementos químicos, descrevendo minuciosamente as experiências até agora realizadas, no sentido de produzir novos corpos radioativos. Referiu-se a que os métodos adotados para produzir tais transformações consistem em submeter a matéria a um bombardeio, com partículas velocíssimas, que promovendo o entre choque dos núcleos dos átomos, leva a efeito sua modificação em núcleos de elementos diversos. Prosseguindo, fez notar que a quantidade de matéria que se consegue transformar com esses métodos é diminuta e escaparia a uma análise química comum, se não servisse para revelar que os novos corpos formados são radiativos. Emitem, ao desintegrar-se elétrons velozes, dotados de energia de potência apreciável, o que permite que sejam eles observados um a um. Os novos corpos, assim obtidos, orçam em 40 – todos com propriedades iguais às do rádio.

A2. A segunda conferência de Fermi emA2. São Paulo: [Título não registrado]

Estado de São Paulo 24/8/1934

Nos fenômenos da desintegração radioativa frequentemente se observa a emissão dos elétrons que vêm a constituir os “raios beta”. Ao passo que uma parte desses elétrons é de origem extranuclear, há uma outra parte que é emitida por núcleos atômicos. Nestes últimos processos, a carga do núcleo cresce de 1 unidade e o átomo muda de espécie química. Fazendo a determinação das energias que têm os núcleos antes e depois da emissão, e medindo a energia dos “raios beta”, verifica-se que é difícil controlar a validade do princípio de conservação da energia. W. Pauli propõe superar essa dificuldade admitindo que na desintegração do núcleo seja emitida, juntamente com o elétron, uma outra partícula que escapa à nossa observação e a que ele denominou “neutrino”. Essa partícula teria uma massa igual ou menor do que a de um elétron e uma carga igual a zero. Portanto, o “neutrino” teria um elevado poder penetrante, podendo, por exemplo, atravessar espessuras de matéria sólida da ordem de algumas dezenas de quilômetros. Em 1932, o prof. Fermi construiu, o que pela primeira vez se fazia, uma teoria quantitativa desse fenômeno, baseada na hipótese de que no núcleo só se dê uma transformação de um “neutrônio” [nêutron] em um “protônio” [próton] acompanhada de emissão de duas partículas leves, elétron e neutrino, que são criadas no ato da desintegração. Finalmente, o prof. Fermi mostrou que a sua teoria permite explicar as propriedades conhecidas dos “raios beta”.

A3. A primeira conferência de Fermi no Rio:A3. A evolução da física no século XX

Jornal do Brasil de 28 de agosto de 1934

[Matéria publicada também em A Nação, 28/08/1934, p. . Um resumo similar foi publicado no Jornal do Commercio de 28/08, p. 7]

Eis o resumo da notável conferência pronunciada, sábado, pelo acadêmico da Itália, prof. Enrico Fermi, no salão de honra da Academia de Letras. Após os agradecimentos ao Instituto Ítalo-Brasileiro de Alta Cultura, que o chamou ao Rio de Janeiro e a São Paulo e ao ilustre professor Aloysio de Castro, o prof. Fermi examinou, desde a Antiguidade, as hipóteses relativas à estrutura da matéria.

Até o fim da Idade Média, porém, as concepções as mais geniais, como aquela de Demócrito de Abdera, que imaginou a matéria constituída de átomos, não acham correspondência no campo da experiência. Quando a alquimia se transformou em ciência quantitativa, na química, só então acham-se as provas experimentais da estrutura atômica da matéria e estabelecem-se as leis das proporções múltiplas e definidas.

Novo impulso à teoria atômica foi dado pelos estudos sobre o comportamento dos gases. A tendência à expansão dos corpos gasosos é devida ao impulso desordenado e continuado de miríades de moléculas lançadas em todas as direções. Examinou, depois, a estrutura do átomo, aduzindo várias comparações para mais fácil compreensão. Falou dos elétrons e do núcleo, carregados os primeiros de eletricidade negativa e o segundo de eletricidade positiva, neutralizando-se entre si. Tanto maior é a carga positiva do núcleo e tanto mais numerosos hão de ser os elétrons do átomo. Nos elementos da natureza, o número dos elétrons varia de 1, como no hidrogênio, que é o elemento mais simples, a 92. O número de elétrons é fixo para cada elemento, deste modo determinando as propriedades físicas e químicas.

Acenou aos trabalhos do físico Rutherford, da obra desenvolvida por Bohr e, finalmente, da mecânica quantística do chamado “princípio de indeterminação” de Heisenberg e da mecânica ondulatória, acenando às experiências de Davisson e Germer. Nos últimos três anos, o conhecimento das partículas elementares do átomo, isto é, do núcleo ou próton e dos elétrons, enriqueceu-se com a descoberta de dois novos corpúsculos: o “nêutron” e o elétron positivo. O primeiro não possui carga elétrica, sendo [a] este fato devido à qualidade de um forte poder penetrante. O elétron positivo ou “pósitron” têm, em tudo, as qualidades dos elétrons comuns, sendo que o sinal de sua carga elétrica é positivo, enquanto o dos outros é negativo.

O ilustre conferencista fala, ainda, da irradiação cósmica e das experiências feitas com a câmara do Wilson pelo inglês Blackett e pelo italiano Occhialini. No fenômeno da diversidade das cargas elétricas dos elétrons é interessante a observação que a possibilidade da existência de elétron positivo tinha sido prevista teoricamente pelo físico inglês Dirac, que tinha também indicado algumas propriedades características, como aquela que o elétron positivo se comportaria como uma espécie de anti-elétron, no sentido que, quando um elétron positivo e um elétron negativo se encontram há uma certa probabilidade que os dois se destruam mutuamente, com neutralização das cargas elétricas de sinal oposto, e transformação das suas massas em energiaradiante.

Esses são os corpúsculos elementares cuja existência foi provada experimentalmente. Não é excluído, porém, que haja ainda algum outro, existindo alguma razão para assim pensar. Por aí, [se] vê claramente quão rápido tenham sido, neste dois ou três últimos anos, os progressos no campo da física nuclear e quais surpresas se possam logicamente esperar das experiências já agora ininterruptas.

Porque, como justamente disse o prof. [Aloysio] De Castro, ciência e poesia trabalham para o prazer de alcançar a perfeição, sem indagar quais efeitos práticos poderão ter os trabalhos e os sacrifícios que o seu culto exige e sem esmorecer-se; a um certo ponto, é necessário deixar cair os sonhos e as esperanças que já pareciam realidade, para recomeçar as pesquisas e as experiências em uma alternativa [alternância] de paradas e impulsos animadores.

A4. A segunda conferência de Fermi no Rio:A1. Produção Artificial de Corpos Radioativos

Jornal do Commercio 6 de setembro de 1934, p. 6

Após os agradecimentos pelas palavras de saudação que ouvira do acadêmico Theodoro Ramos, assim como pela sua eleição como Membro Correspondente da Academia de Ciências do Brasil, o Professor Fermi falou sobre o problema da desintegração artificial, recordando a capacidade que têm as substâncias radioativas de emitir três tipos de irradiação alfa, beta e gama. Os últimos dois são projeções de elétrons extremamente velozes (raios beta) e uma emissão de irradiações análogas às luminosas e aos raios X, com um comprimento de onda ainda mais curto (raios gama), enquanto que os raios alfa constituem uma projeção de corpúsculos muito velozes.

Os projéteis, nesse caso, expulsos do núcleo do átomo radioativo podem assim considerar se um fragmento do próprio núcleo e os clássicos trabalhos de Lord Rutherford demonstraram que esses corpúsculos ou partículas alfa são núcleos do átomo de hélio e têm uma carga eletropositiva. Têm um volume [massa] cerca de 8.000 vezes maior que o dos elétrons. Em virtude do volume [massa] e da extrema velocidade, constituem os raios alfa ótimos projéteis para bombardeio dos outros núcleos com o fim de alterar a estrutura. Desse modo, usando pela primeira vez da técnica, pode Lord Rutherford, em 1919, obter o primeiro caso de transformação artificial de um elemento químico em outro. Assim como, quando uma partícula alfa é lançada, por exemplo, contra um núcleo de azoto obtém-se, como produto final da transformação, um núcleo diferente daquele de onde se partiu e que é exatamente um núcleo de oxigênio.

Referiu-se o Professor Fermi a estudos realizados nos últimos tempos, pelo casal Joliot, pela primeira vez, de que, a uma transformação muito rápida, se segue outra mais lenta. O produto da primeira transformação não é um núcleo estável; é um núcleo radioativo que pode viver minutos antes de se desintegrar e passar a uma forma estável emitindo um elétron. O casal Joliot empregou para o bombardeio uma partícula alfa, o que limita, de início, a possibilidade de produzir efeito somente sobre os elementos leves. As partículas com carga elétrica positiva podem vencer [nesse caso] a resistência do núcleo. Pensou-se por isso, nas experiências realizadas no laboratório do Professor Fermi, em Roma, em empregar no bombardeio, partículas não sujeitas à limitação mencionada, os neutrônios [nêutrons] que não tendo carga positiva podem sem perturbação seguir até os núcleos mais fortemente carregados.

A experiência confirmou plenamente a previsão de uma grande eficiência do neutrônio na produção dos efeitos visados. Em 60 elementos examinados, 40 deram lugar à formação de novas substâncias radioativas. A possibilidade de observar efeitos, na realidade, extremamente pequenos, é obtida por um aparelho extremamente sensível que permite registrar o efeito de uma única desintegração. É um pequeno cilindro de alumínio, ao longo do qual corre um fio de alumínio isolado do invólucro. Entre o invólucro e o fio mantem-se uma diferença de potencial apenas inferior à necessária para passar uma carga. Com o auxílio do aparelho, podem se conduzir as experiências do seguinte modo: em um primeiro momento, a substância a examinar vem logo exposta ao bombardeio com neutrônios. Se a substância for ativada, emite espontaneamente eletrônios [elétrons], que penetram no registrador provocando impulsos cujo número registra de tempo em tempo. Observa-se assim que a atividade vai diminuindo com o tempo, porquanto, à medida que os átomos radioativos produzidos se desintegrarem, diminui o número.

Sob a ação do bombardeio há, desde logo, uma transformação em virtude da qual [d]o átomo oxigênio [originário] se forma novo átomo radioativo que, [des]integrando-se em um tempo mais ou menos longo, produz os efeitos observados. Os átomos radioativos formados, que são naturalmente em número muito pequeno, já na primeira transformação sofrem uma modificação de sua natureza química. Assim, em muitos casos, a análise química permite separar os átomos ativos, que sofreram a transformação, do resto da substância não transformada. Assim, do ferro irradiado pode se separar o manganês ativo, o qual, tendo as propriedades do manganês comum, dele se diferencia porque os núcleos são instáveis e se desintegram emitindo eletrônios. Por estas propriedades é possível revelar e dosar os traços do manganês ativo formado, os quais, por tão pequenos, escapam aos meios comuns de verificação, inclusive os da pesada. Assim, em cerca de 15 casos, foi possível verificar a natureza química do elemento ativo formado. Particular interesse apresenta a atividade do urânio, o mais pesado dos elementos conhecidos. Bombardeado com neutrônios, dá lugar a um fenômeno mais complicado do que aquele observado em geral, porque se produz, nesse caso, uma verdadeira família de produtos, que são obtidos por sucessivas desintegrações, correspondendo, a cada um, um período característico próprio. A identificação química dos elementos é difícil pelo fato de ser muito curto o tempo necessário.

Tentativas feitas para identificar alguns dos produtos formados com o urânio ou com os elementos conhecidos, mais leves, deram resultado negativo, o que tornou possível a hipótese que se possa ter formado novo elemento químico com carga nuclear maior do que a do urânio. Como o urânio é de todos os elementos conhecidos o de carga nuclear mais elevada (92), os novos elementos deveriam ter carga elétrica igual a 93 ou mais. Naturalmente, essas experiências não têm caráter definitivo. São necessárias inúmeras e delicadas provas, em testemunho, antes que os resultados se possam considerar estáveis e isentos de dúvidas.

Pergunta-se se, além do interesse científico, podem estas experiências ter ainda importância prática, ou porque a desintegração e transformação se possam obter, em larga escala, dando-se a possibilidade da produção de elementos raros, ou porque, se possa obter incomensurável quantidade de energia, que se possa imaginar no interior do núcleo. É uma perspectiva muito atraente, mas a possibilidade de utilização prática é, pelo menos no momento, muito problemática. Somente quando se encontrar um método que produza o fenômeno em mais larga escala, o que não se apresenta provável atualmente.

O interesse da física nuclear fica limitado, por ora, ao campo estritamente científico. Sem ilusão, é preciso, entretanto, lembrar que em muitos casos, e basta citar o caso da eletricidade, foi necessário o transcurso de vários decênios antes que resultados práticos pudessem decorrer das pesquisas limitadas ao campo estritamente científico de investigar a natureza do fenômeno. Não se pode excluir a hipótese que mentalidades mais práticas que a do físico da atual geração possam, no futuro, encontrar o meio para tirar dos conhecimentos acumulados resultados fecundos para a humanidade.

A5. A terceira conferência de Fermi no Rio:A1. O Modelo Estatístico do Átomo

Noticiada em Jornal do Brasil e em O Globo

Não localizamos nos jornais da época uma descrição ou resumo desta conferência.

B. A saudação de Theodoro Ramos a Fermi naB. ABC

Jornal do Commercio, 6 de setembro de 1934, p. 6

Senhor Professor Enrico Fermi. Venho apresentar-vos as cordiais saudações dos membros da Academia Brasileira de Ciências, e dizer-vos a grande admiração que todos nós votamos à vossa obra e à gloriosa terra donde viestes. A vossa contribuição à Ciência, no domínio da física, coloca-vos, sem favor algum, em situação de destaque entre os mais notáveis físicos contemporâneos. Em 1926, aos 25 anos de idade, tornastes-vos conhecido nos meios científicos mundiais quando conseguistes descobrir uma nova teoria estatística, que recebeu o vosso nome, e que constitui, hoje, uma noção fundamental para o conhecimento das propriedades da matéria. As investigações no campo da física atômica, realizadas no atual século XX, e especialmente os trabalhos de Heisenberg sobre a mecânica dos “quanta”, mostraram ser de todo inadequada a representação dos átomos, elétrons, fótons, como partícula isoladas em movimento, e contribuíram decisivamente para orientar a microenergética para o estudo estatístico dos fenômenos.

A teoria cinética dos gases, elaborada, na segunda metade do século passado, baseia-se na hipótese da estatística clássica de Boltzmann e Gibbs. A experiência não confirma, porém, as previsões desta estatística quando utilizada no estudo dos problemas da física atômica. Os novos métodos estatísticos, como o de Bose-Einstein e o de Fermi, mostram-se mais apropriados ao estudo dos fenômenos atômicos. A estatística de Bose-Einstein aplicada aos fótons corresponde à conhecida teoria de Debye para o estudo da radiação do corpo negro e conduz, neste caso, à fórmula de Planck verificada pela experiência. A estatística de Boltzmann-Gibbs conduziria, no mesmo caso, à fórmula de Wien, em desacordo com os fatos experimentais. A estatística de Fermi obteve notável sucesso quando foi aplicada aos elétrons. Permitiu ela, assim, dar à teoria eletromagnética dos metais o arranjo coerente que lhe faltava e, em particular, interpretar de um modo surpreendente o fenômeno do para-magnetismo independente da temperatura de certos metais.

Em 1929, contemporaneamente a Heisenberg e a Pauli, lançastes as bases da eletrodinâmica quântica; depois dirigistes as vossas pesquisas para o estudo da estrutura das moléculas e dos núcleos atômicos, e neste campo tendes conseguido resultados de alto interesse. Devemos, ainda, mencionar aqui os vossos trabalhos sobre o processo de emissão dos raios “Beta” das substâncias radioativas, e em geral sobre a desintegração dos núcleos atômicos. Recentemente, no vosso laboratório na Universidade de Roma, descobristes um novo método de produção da “radioatividade induzida”, assunto sobre o qual vamos ter, hoje, a honra e o prazer de ouvir a vossa palavra autorizada. A crítica aprofundada dos fundamentos da Mecânica dos “Quanta”, a que se procedeu ultimamente, vem indicar de um modo claro que estão sendo atingidos os limites de aplicação das leis quânticas.

Assim como as leis da Mecânica clássica não são válidas para os elétrons do invólucro atômico, para os quais foi estabelecida a teoria dos “quanta”, assim, provavelmente, as leis quânticas não mais poderão ser utilizadas no estudo das últimas parcelas elementares que intervêm na constituição da matéria, isto é, no estudo dos problemas da física do núcleo. Neste domínio ainda novo são agora indispensáveis os conhecimentos experimentais mais precisos, e isto vem corroborar a impressão de que, no momento atual, a física, para progredir, necessita mais de experiências criteriosas do que de teorias de caráter complexo. Parece-nos oportuno lembrar que, em certos períodos críticos do desenvolvimento científico, a atividade no domínio experimental maior proveito trouxe para o progresso da física do que a atividade no domínio teórico e que, às vezes, as teorias de estrutura complexa mascaram de algum modo a realidade e impedem que os fenômenos possam ser observados com a desejada liberdade. Comentando a influência que sobre as suas próprias investigações científicas exerceram as teorias assim se manifestou o genial Faraday, a propósito da grande descoberta da polarização rotatória magnética: “Este tipo de ação magnética e elétrica e os fenômenos que dali decorrem, serão de grande utilidade para as investigações futuras sobre a natureza dos corpos transparentes, da luz, dos ímãs, e sobre a natureza das respectivas ações recíprocas e ações sobre os corpos magnéticos…Quais os melhores meios de produção da eletricidade e do magnetismo pela luz? Tais são as ideias que incessantemente preocupam o meu espírito. É preferível, porém, empregar o tempo e o pensamento, auxiliados pela experiência, na pesquisa e no desenvolvimento das verdades reais, do que poder ser ou não ser fundadas, se bem que de acordo com os fatos. [A frase está aqui truncada no jornal, possivelmente por uma linha suprimida na impressão].”

Não foram o fruto de construções teóricas nem as importantes descobertas de Faraday, tais como a da indução eletromagnética que enorme repercussão teve sobre o desenvolvimento industrial do século XIX, nem as sensacionais e mais recentes descobertas da radioatividade e das substâncias radioativas. A crítica do desenvolvimento histórico das ciências não justificaria, porém, a adoção, no momento, de uma atitude tão radical como a de Faraday. Não podemos desconhecer a importância, às vezes capital, da contribuição das teorias ao progresso da física nestes últimos cem anos.

Senhor Professor Fermi. Para enfrentar com sucesso as novas e delicadas tarefas que a física moderna vai confiar aos seus pesquisadores, possuis, o que é raro, invejáveis qualidades de experimentar seguro e perspicaz aliadas a uma notável aptidão para as investigações de caráter teórico. Aos magníficos resultados que já obtivestes no domínio da física, virão outros, em breve, juntar-se, aumentando o justo prestígio que cerca a vossa personalidade eminente.

Saudando-vos em nome da Academia Brasileira de Ciências, que tanto se honra com a vossa presença e que vai conferir-vos o título de membro correspondente, apresento-vos também as afetuosas homenagens de quem há muito tempo, vem mantendo amistosos laços intelectuais com ilustres professores de tradicionais e cultas universidades italianas

C. Laura Fermi sobre a viagem ao Brasil

Aqui vai a tradução de trechos do capítulo do livro Atomi in Famiglia, escrito por Laura Fermi, esposa de Enrico Fermi e publicado, em 1954, pela Chicago University Press, em inglês, e por Arnoldo Mondadori Editore, em italiano, no qual ela descreve, entre as páginas 113 e 116, a viagem do casal à América do Sul.

INTERMEZZO SUL-AMERICANO

No auge do verão, o ritmo da pesquisa diminui, os laboratórios ficam vazios, os físicos fogem de Roma, alguns para o mar e outros para a montanha. Mas a longa interrupção que Fermi fez em 1934 deveu-se a razões mais sérias do que o calor. Ele havia concordado em realizar um ciclo de conferências na Argentina e no Brasil e, por mais promissoras que fossem as experiências com urânio, não poderia deixar de se esforçar para continuá-las.

Além disso, teria sido um erro desistir desta viagem que foi feliz sob todos os pontos de vista. Após dezesseis dias navegando no mar plácido e calmo chegamos a Buenos Aires. E aqui por mais de três semanas nos dedicamos à grande vida: ficamos hospedados no hotel mais elegante e moderno que eu já tinha visto; apresentado pelo embaixador da Itália e presidente do Instituto Cultural Argentino que promoveu as conferências de Enrico; recebidos nas mais altas esferas do Novo Mundo talvez por um interesse sincero pela ciência, ou talvez por um desejo não formulado e nostálgico de manter viva a ligação com o velho mundo cultural, vários dos cidadãos mais proeminentes nos encheram de privilégios; nos levaram em carros luxuosos para visitar as margens do Rio da Prata subindo até o Paraná; acolheram-nos nos seus camarotes nos melhores concertos e espetáculos de gala; eles nos convidavam para suas casas suntuosas, com aquela hospitalidade espanhola tão prejudicial ao estômago dos convidados, que induzia uma anfitriã a encarregar um convidado de assegurar que meu prato estivesse sempre cheio durante uma refeição de cinco pratos.

Os buenairenses mostraram um interesse indiscutível pela física: a enorme sala de aula em que Fermi dava a conferência estava lotada e transbordando no primeiro dia e permaneceu lotada até o final do curso, embora ele falasse em italiano. Italiano e espanhol têm muitas semelhanças e, além disso, muitos dos habitantes de Buenos Aires são de origem italiana.

Enrico lecionou não só em Buenos Aires, mas em vários outros lugares: na pequena Córdoba com suas inúmeras igrejas, ao pé da Cordilheira dos Andes, onde o único italiano era um mestre de esgrima; em Montevidéu, a bela cidade de jardins verdes e bem cuidados, sede de muitas manifestações intelectuais; em São Paulo, construída em meio a um campo onde o verde intenso e luxuriante da vegetação tropical se destaca contra o solo vermelho que deu nome ao Brasil, num contraste de cores raramente ousado pelos pintores; e no Rio de Janeiro. Só no Rio, de todas essas cidades sul-americanas, me lembro de notar que conforto e bem-estar não eram compartilhados por toda a população. Era impressionante ver opulência e miséria extrema, saúde próspera e doenças terríveis próximas e misturadas; era quase inconcebível o medo insistente e constante em que muitos viviam, de contrair lepra ao menor contato com um estranho, da mão estendida de um mendigo. (…) Os brasileiros estavam determinados a livrar seu país da doença, e para isso construíram o magnífico e ultramoderno Instituto de Doenças Tropicais (onde, entre muitas coisas de grande interesse, foi mostrada e preservada a perna amputada do aviador Del Prete em formol).

Saímos da América do Sul felizes por encerrar uma experiência rica demais para durar mais. As coisas boas não devem ser abusadas e, como dizem os franceses, até as perdizes podem ficar entediadas. Ao embarcar no Conte Biancamano, no Rio de Janeiro, encontramos a bordo o maestro Ottorino Respighi [Figura 6] que voltava da Argentina para a Itália com sua esposa. (…)

Figura 6:
Fermi e Respighi na viagem de retorno da América do Sul [Fermi, L. 1954].

Enrico, que nunca perde a oportunidade de “extrair informações” de pessoas de ambientes diversos, manteve Respighi sob um pesado fogo de perguntas sobre música. As atividades musicais de Enrico limitaram-se a dedilhar o bandolim quando menino, cantar canções alpinas e tocar ariéte em voga no piano com apenas um dedo. Mas a presença de uma pessoa tão destacada no campo da música aguçou o interesse dele. O compositor sorriu condescendentemente com suas interpretações matemáticas do mundo dos sons e usou a mesma paciência bem-humorada com que os adultos respondem às crianças insistentes. Enrico tentou reduzir a música a uma série de fórmulas, a uma sucessão de intervalos numéricos mensuráveis, a um complexo de ondas sonoras reproduzíveis em um gráfico.

Por sua vez, Fermi assumia uma expressão de indulgência divertida se Respighi descrevesse seus hábitos de trabalho, não regulares, mas espasmódicos: quando a inspiração o tomava, irresistível, urgente, nas horas mais inesperadas, talvez no meio da noite ou durante uma refeição, ele sentia-se compelido a interromper todas as outras ocupações e a compor como se estivesse em transe. A expressão de indulgência se acentuava no rosto de Enrico, se o Maestro descrevia seus únicos trabalhos científicos, certos experimentos com varinha de condão realizados tanto no jardim de sua vila em Monte Mario para encontrar água, quanto em casa para identificar a localização de pedaços de metal que sua esposa escondia debaixo do tapete da sala. Durante as duas semanas de viagem, construímos uma amizade cordial e espontânea com o compositor e a senhora (…). Mas, de volta a Roma, nos encontramos poucas vezes, antes da morte prematura do Maestro, que ocorreu dois anos depois. (…)

Chegamos a Nápoles no final de setembro. Enrico e eu imediatamente seguimos para a vila de meus tios em Valdarno, onde havíamos deixado Nella, nossa filha de três anos. De lá, Enrico retornou a Roma, enquanto eu permanecia na tranquilidade repousante do campo. E por isso não me foi permitido partilhar a excitação provocada por certos acontecimentos entre os físicos de Roma.”

Referências

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  • [38]
    J.C. Cruz, Bras. Med. 1, 298 (1923).
  • 1
    Diversos outros cientistas de renome nas áreas de física e matemática, visitaram ou permaneceram algum tempo no Brasil, e aqui fizeram pesquisas, palestras ou deram cursos, nas primeiras décadas do século XX. Entre eles: Arthur Eddington (1912), Émile Borel (1922), Jacques Hadamard (1924), Irène Curie (1926), Paul Langevin (1928), George Gamow (1939), André Weil (1945/47), Francis Murnaghan (1949), Laurent Schwartz (1952), Jean Dieudonné (1952), Eugene Wigner (1952), Isaac Rabi (1952), Robert Oppenheimer (1953).
  • 2
    No entanto, não estão incluídas nas Obras de Fermi editadas pela Accademia dei Lincei em Roma e pela Universidade de Chicago [15[15] E. Amaldi, H.L. Anderson, E. Persico, F. Rasetti, C.S. Smith, A. Wattenberg e E. Segre, em: University of Chicago Press and Accademia Nazionale dei Lincei, editado por E. Fermi (Chicago and Rome, 1962).], embora listados na Bibliografia.
  • 3
    Sobre Fermi e seu estilo na física, veja-se o interessante artigo de Henrique Fleming [20[20] H. Fleming e E. Fermi, Revista Brasileira de Ensino de Física, 18, 274 (1996).].
  • 4
    Esta segunda conferência em São Paulo não é mencionada nos artigos de Caruso e Marques [1[1] F. Caruso e A.J. Marques, Scientiarum Historia VI, 1 (2013)., 2[2] F. Caruso e A.J. Marques, Estudos Avançados 28, 279 (2014)., 3[3] F. Caruso e A.J. Marques, Quaderni di Storia della Fisica 25, 3 (2021).].
  • 5
    Para facilitar o entendimento inseri algumas vezes uma palavra ou expressão adicional, sempre entre colchetes, em depoimentos e notícias de jornais nas quais há palavras faltando, nomes incorretos ou termos imprecisos usados na época.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Set 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    20 Jul 2022
  • Aceito
    20 Ago 2022
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