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Os 10 anos da detecção do bóson de Higgs: Passado, Presente e Futuro

10 years of the Higgs boson detection: Past, Present and Future

Resumos

Neste artigo, em celebração aos 10 anos da detecção do bóson de Higgs, descrevemos sucintamente os desenvolvimentos que levaram a esse feito histórico, enfatizando o que foi aprendido e o que podemos aprender no futuro.

Palavras-chave:
Partículas Elementares; Modelo Padrão; boson de Higgs


In this article, celebrating the 10 years of the Higgs boson detection, we succinctly describe the developments that led to this historical feat, emphasizing what was learned and what we can learn in the future.

Keywords:
Elementary Particles; Standard Model; Higgs boson


No dia 4 de julho de 2012 foi anunciada no auditório da Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear (CERN), na Suíça, a existência de uma nova partícula elementar conhecida como bóson de Higgs. O nome é em homenagem ao físico teórico britânico Peter Higgs, autor de dois artigos em 1964 que pela primeira vez mencionaram a possibilidade da existência desta nova partícula [1[1] P.W. Higgs, Physics Letters 12, 132 (1964)., 2[2] P. Higgs, Physical Review Letters 13, 508 (1964).]. Depois de quase meio século, detectores gigantescos conseguiram encontrar os traços da desintegração de partículas de Higgs produzidas a partir de colisões de prótons no Large Hadron Collider (LHC), o maior e mais poderoso instrumento deste tipo, construído no CERN. Essa descoberta coroou décadas de desenvolvimentos, tanto experimentais como teóricos, que culminaram na confirmação do chamado Modelo Padrão das Partículas Elementares (MPPE). O bóson de Higgs é parte fundamental do MPPE, resultante do mecanismo de geração de massa para outras partículas elementares. Peter Higgs recebeu o prêmio Nobel de 2013, dividindo-o com François Englert, físico belga que, em colaboração com o físico norte-americano Richard Brout, também contribuiu para essa teoria [3[3] F. Englert e R. Brout, Physical Review Letters 13, 321(1964).]. Tive o privilégio de passar um ano sabático no CERN em 2011-2012 e estar presente durante o anúncio. Um Simpósio no CERN dia 4 de julho deste ano celebrou os dez anos dessa efeméride [4[4] F. Cerutti, J. Gillies, M. Giovannozzi, C. Mariotti, M. McCullough e P. Wells, em: Scientific Symposium to celebrate the 10th anniversary of the Higgs boson discovery (Zurich, 2022).], apresentou os resultados mais recentes e discutiu as perspectivas futuras. Uma edição especial do CERN Courier foi publicada com ótimos artigos de destacados físicos [5[5] https://cerncourier.com/wp-content/uploads/2022/07/CERNCourier2022JulAug-digitaledition.pdf
https://cerncourier.com/wp-content/uploa...
].

A história do bóson de Higgs está intimamente ligada aos desenvolvimentos teóricos que ao longo de décadas levaram ao estabelecimento do MPPE como paradigma que descreve as forças da Natureza (a menos da força gravitacional) usando o arcabouço da Teoria Quântica de Campos (TQC). Detalhes sobre essa história podem ser encontrados, por exemplo, no livro de Frank Close [6[6] F. Close, Elusive: How Peter Higgs Solved the Mystery of Mass (Basic Books, New York, 2022).] e em meu livro [7[7] R. Rosenfeld, O cerne da matéria: A aventura científica que levou à descoberta do bóson de Higgs (Companhia das Letras, São Paulo, 2013).].1 1 Veja também minha palestra de 31/08/2022 na série Física ao Vivo da Sociedade Brasileira de Física:sbfisica.org.br/v1/sbf/fisica-ao-vivo-rogerio-rosenfeld-os-10-anos-da-deteccao-do-boson-de-higgs-passado-presente-e-futuro/ Faremos um breve apanhado a seguir.

O que estava na mente de Higgs e outros físicos na década de 1960 era uma aparente contradição relacionada com simetrias da Natureza. Princípios de simetria são guias para formular modelos teóricos. A relação entre simetrias e leis de conservação foram sintetizados pela matemática alemã Emmy Noether em 1918. A lei de conservação de energia em Mecânica Clássica segue da simetria por mudanças temporais: o mesmo experimento deve ter os mesmos resultados se executados ontem, hoje ou daqui a 100 anos. Simetrias refletem invariâncias da Natureza que resultam em leis de conservação. Apesar de ser um conceito muito útil, em muitos sistemas algumas simetrias não são exatas mas sim aproximadas – nesse caso chamadas de “simetrias quebradas”. Na década de 1960 começou-se a estudar as consequências de simetrias quebradas em TQC e conclui-se que essa quebra resulta genericamente na existência de uma partícula sem massa, denominada bóson de Goldstone [8[8] J. Goldstone, Nuovo Cimento 19, 154 (1961)., 9[9] J. Goldstone, A. Salam e S. Weinberg, Physical Review 127, 965 (1962).]. A contradição mencionada anteriormente é que não havia evidências para a existência do bóson de Goldstone. A solução desta contradição foi mostrar que, em um modelo que incorporasse as chamadas teorias de calibre (“gauge theories” em inglês) com campos de calibre,2 2 O fóton, por exemplo, é um campo de calibre da eletrodinâmica quântica. esses bósons de Goldstone desapareceriam, sendo “engolidos” pelos campos de calibre. Neste processo os campos de calibre, antes sem massa, ganham uma massa.

O que Higgs desenvolveu foi um modelo simples demonstrando esse mecanismo, conhecido agora como mecanismo de Brout-Englert-Higgs. Em seu segundo trabalho, mencionou que uma outra partícula com massa poderia permanecer na teoria. Essa partícula é basicamente o que hoje chamamos de bóson de Higgs.

O modelo de Higgs foi aperfeiçoado e aplicado à descrição das interações fracas. Sabemos que as forças fracas são de curto alcance e, portanto, os campos de calibre associados devem possuir massa. Steven Weinberg e, independentemente Sheldon Glashow e Abdus Salam, incorporaram o mecanismo de Higgs em um modelo que descreve conjuntamente as interações fracas e eletromagnéticas no final da década de 1960 e receberam o prêmio Nobel de 1979. No entanto, apenas em 1976 um estudo detalhado sobre as propriedades do bóson de Higgs no modelo de Glashow-Weinberg-Salam foi publicado [10[10] J. Ellis, M.K. Gaillard e D.V. Nanopoulos, Nuclear Physics B 106, 292 (1976).]. A busca experimental pelo bóson de Higgs teve início.

Um dos problemas é que era uma busca cega – a teoria não dava pistas sobre a massa do bóson de Higgs. Minha tese de doutoramento, por exemplo, contemplava a possibilidade do bóson de Higgs ser muito pesado, com massas superiores a 700 GeV.3 3 A massa de um próton é equivalente a aproximadamente 1 GeV. Além disso, o bóson de Higgs, uma vez produzido, se desintegra rapidamente – os experimentos devem buscar os produtos da desintegração. E outros processos, sem relação com o bóson de Higgs, podem também produzir os mesmos produtos – a isso chamamos de “ruído”. Essa busca chegou ao final com o anúncio de 4 de julho de 2012. Foi uma jornada épica com elementos dramáticos e sugiro fortemente o documentário “Particle Fever”4 4 https://www.youtube.com/watch?v=akCJc7K3DUU de 2013, que retrata os acontecimentos da época.

O que aconteceu nos 10 anos após a descoberta do bóson de Higgs? E o quais são as perspectivas para o futuro?

O LHC e seus detectores continuaram a funcionar após 2012 até o final de 2018, quando houve uma parada técnica planejada para atualização de instrumentos. A quantidade de dados obtida até a parada mais que quadruplicou com relação a 2012. A análise desses dados pelos milhares de cientistas de grandes colaborações internacionais, com a participação de vários brasileiros, demonstrou a acurácia do MPPE em explicar todas as centenas de resultados medidos até o momento. Algumas propriedades da partícula de Higgs, como sua massa, foram medidas com precisão de até 1 parte em 1000.5 5 Sua massa é ⁢m⁢H=125.25±0.17 GeV (repare no pequeno erro envolvido). O bóson de Higgs e suas propriedades medidas até o momento fazem parte da compilação do Particle Data Group [11[11] https://pdg.lbl.gov/2022/listings/contents_listings.html
https://pdg.lbl.gov/2022/listings/conten...
]. O LHC demonstrou que o MPPE é um grande sucesso até o momento.

No entanto, confesso que houve uma certa frustração na comunidade após 2012. Com a euforia decorrente da descoberta do bóson de Higgs, havia uma expectativa de que esta seria o início de outras grandes descobertas propostas por novos modelos, como as chamadas extensões supersimétricas do MPPE. Apesar de uma intensa busca por novas partículas, até agora apenas limites sobre sua existência foram medidos.

Depois de mais de três anos de interrupção, o LHC e seus detectores entraram em operação novamente em julho deste ano. De fato, as primeiras colisões com feixes estáveis de prótons a uma energia recorde de 13,6 TeV aconteceram no dia 5 de julho e marcaram o início da chamada fase 3 de tomada de dados do LHC [12[12] https://home.cern/news/news/cern/third-run-large-hadron-collider-has-successfully-started
https://home.cern/news/news/cern/third-r...
]. Planeja-se que tudo funcione por mais 16 anos, até 2038, com algumas paradas para aperfeiçoamento e atualização. A quantidade de dados obtidas ao final do projeto será aumentada por um fator de 100 com relação a 2012. No entanto, a energia das colisões não mudará significativamente, atingindo no máximo 14 TeV, que foi o objetivo do projeto desde o início. Espera-se completar a caracterização do bóson de Higgs, medindo seu auto-acoplamento (a partir da produção de 2 bósons de Higgs no mesmo evento).

Mas será que existe algo a mais a ser descoberto além do MPPE? Certamente! Hoje conhecemos apenas do que é feito cerca de 5% do Universo. Medidas astronômicas indicam que cerca de 95% do Universo é composto de Matéria Escura e Energia Escura, das quais sabemos muito pouco. Além disso, o MPPE também é incompleto por não descrever como neutrinos podem ter massa, algo comprovado por outros experimentos. E ainda não temos certeza se o bóson de Higgs é uma partícula elementar ou não. Existem muitos modelos propostos, que são em geral extensões do MPPE, para explicar esses fenômenos.

O LHC pode contribuir para o entendimento destas questões fundamentais? Sim, mas não é garantido.

Para continuar a exploração das menores escalas da Natureza e buscar respostas acerca do Universo é necessário pensar em um acelerador de partículas ainda mais energético que o LHC. A construção desses imensos instrumentos leva dezenas de anos e, portanto, o planejamento deve ser iniciado com muita antecedência. O CERN está estudando a possibilidade da construção do que está sendo chamado de Future Circular Collider (FCC) [13[13] M.L. Mangano, em: CERN TH Seminar (Geneva, 2022). Disponível em: https://indico.cern.ch/event/1155782/attachments/2463044/4223585/Mangano_THseminar.pdf
https://indico.cern.ch/event/1155782/att...
], que será cerca de 4 vezes maior que o LHC em tamanho (uma circunferência com cerca de 100 km) e cerca de 8 vezes mais energético (quando atuando como acelerador de prótons). A China estuda construir algo semelhante. Caso venham a ser financiados, esses projetos impulsionarão a fronteira da Ciência, Tecnologia e Inovação (C,T&I), formando pessoas de alta qualidade e revertendo benefícios para a Sociedade que sequer podemos imaginar. E estamos falando em um planejamento de quase 5 décadas!

Antes do final da operação do LHC, diversos experimentos complementares devem atacar as questões fundamentais da Física de Partículas. Os EUA estão investindo na construção de um experimento de neutrinos chamado Deep Underground Neutrino Experiment (DUNE), usando um feixe de neutrinos produzido no laboratório Fermilab (perto de Chicago) e com importante participação de grupos no Brasil. Experimentos conduzidos em laboratórios subterrâneos procuram encontrar a Matéria Escura presente em nossa galáxia que possivelmente é composta de uma nova partícula elementar sem carga elétrica. Dependendo de sua massa, um grande fluxo dessas partículas passa pela Terra e podem ser detectadas apesar de sua interação extremamente fraca. Novos detectores baseados em sensores quânticos estão sendo desenvolvidos que podem auxiliar nessa busca. E não podemos esquecer de experimentos cosmológicos, como grandes mapeamentos do Universo realizados por colaborações internacionais como, por exemplo, o Dark Energy Survey (DES) e o futuro Vera Rubin Observatory’s Legacy Survey of Space and Time (LSST), ambos com participações de grupos brasileiros apoiados pelo INCT do e-Universo e pelo Laboratório Interinstitucional de e-Astronomia (LIneA). Temos que lembrar que todas as evidências para a existência de Matéria Escura e Energia Escura até o momento vem apenas de observações astronômicas. Resultados desses experimentos podem trazer grandes avanços que devem ser levados em consideração no planejamento de futuros aceleradores de partículas.

Não posso terminar este artigo sem mencionar que, depois de 12 anos de negociações, o Brasil assinou em março deste ano um acordo de acessão do Brasil como Membro Associado do CERN que, caso ratificado pelo Congresso Nacional, deve trazer um grande avanço para C,T&I para o país [14[14] https://www.gov.br/mcti/pt-br/acompanhe-o-mcti/noticias/2022/03/mcti-assina-acordo-de-acessao-do-brasil-como-membro-na-organizacao-europeia-para-a-pesquisa-nuclear-cern
https://www.gov.br/mcti/pt-br/acompanhe-...
].

Referências

  • 1
    Veja também minha palestra de 31/08/2022 na série Física ao Vivo da Sociedade Brasileira de Física:sbfisica.org.br/v1/sbf/fisica-ao-vivo-rogerio-rosenfeld-os-10-anos-da-deteccao-do-boson-de-higgs-passado-presente-e-futuro/
  • 2
    O fóton, por exemplo, é um campo de calibre da eletrodinâmica quântica.
  • 3
    A massa de um próton é equivalente a aproximadamente 1 GeV.
  • 4
  • 5
    Sua massa é mH=125.25±0.17 GeV (repare no pequeno erro envolvido).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Set 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    03 Set 2022
  • Revisado
    06 Set 2022
  • Aceito
    06 Set 2022
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