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Introdução à Mecânica dos ''quanta'' parte II

Resumos

Neste segundo artigo da série discute-se detalhadamente a equação de Schrödinger e a interpretação da função de onda de acordo com Born.


In the second paper of the series, the Schrödinger equation and the interpretation of the wave function according to Born are discussed in details.


HISTÓRIA DA FÍSICA E CIÊNCIAS AFINS

Introdução à Mecânica dos ''quanta'' parte II* * Este artigo refere-se à segunda conferência do autor na Escola Politécnica do Rio de Janeiro, publicado no número de Fevereiro de 1932 do Boletim do Instituto de Engenharia, pp. 76-87. Ver Rev. Bras. Ens. Fis. 25 (3), 326 (2003).

Theodoro Ramos

Escola Politécnica de São Paulo

RESUMO

Neste segundo artigo da série discute-se detalhadamente a equação de Schrödinger e a interpretação da função de onda de acordo com Born.

ABSTRACT

In the second paper of the series, the Schr¨odinger equation and the interpretation of the wave function according to Born are discussed in details.

1 Equação da Mecânica Ondulatória no Campo Permanente

Na conferência anterior consideramos as soluções da equação de propagação de ondas do tipo

W(r) satisfaz a equação já indicada

Schrödinger substituiu nesta equação o índice de refração n(r) pela expressão (69) da conferência passada quando examinamos a analogia entre as leis da Mecânica clássica e as da Óptica e obteve assim

Esta é a equação fundamental da Mecânica ondulatória no campo permanente. Veremos que a constante h deve ser identificada com a constante de Planck cujo valor é 6,55×10-27 unidades C. G. S.

Consideremos o caso de uma partícula livre (U = 0); a equação de Schrödinger toma a forma

e admite soluções do tipo

nas quais a amplitude é constante; | e| = 1 , e u = c/n =

Procuremos, na Mecânica ondulatória, o equivalente da velocidade constante v da partícula. Consideremos, para isso, um grupo de ondas que se propaga na direção do vetor e, isto é um conjunto de ondas de freqüências muito vizinhas de ni (compreendidas no intervalo ni-e, ni+e), propagando-se na direção de e. Uma onda elementar do grupo será representada por

pondo

A superposição das ondas do grupo conduz à onda

No pequeno intervalo (ni-e, ni+e) podemos aproximadamente escrever

e

sendo

Obtemos assim uma onda de freqüência ni cuja amplitude A, lentamente variável, se propaga com a velocidade (dn/dk)i ou [dn/d(1/)] i. Esta velocidade é denominada velocidade de grupo.

Temos, no caso em apreço, (dn/dk) i = 2 = v; a velocidade de grupo é igual à velocidade v da partícula.

Ao movimento de uma partícula livre de massa m e de velocidade v podemos associar, na Mecânica ondulatória, um grupo de ondas cuja velocidade (de grupo) é v, e cujo comprimento de onda é = h/mv.

Consideremos o caso de um elétron que parte do repouso e é submetido a uma diferença de potencial V. Seja -e a carga do elétron; tem-se

Identificando-se h com a constante de Planck encontram-se, no caso de tensões moderadas, para os comprimentos de onda das ondas associadas ao elétron, valores da mesma ordem de grandeza que os dos raios X.

Davidson e Germer verificaram experimentalmente que enviando, no vácuo, um feixe de raios catódicos de encontro à superfície bastante polida de um cristal de níquel, produzem-se fenômenos de difração análogos aos que, em circunstâncias semelhantes, foram observados com os raios X por Laue e Bragg.

Tomando-se um ângulo de incidência determinado q, e fazendo-se variar a tensão V e portanto o comprimento de onda , constatou-se uma série de máximos sucessivos para valores de 1/ crescendo aproximadamente em progressão aritmética de acordo com a fórmula de Bragg

na qual n é um numero inteiro e d representa a distância entre os planos reticulares contada na direção perpendicular ao plano da face receptora do cristal. Obteve-se, em experiências precisas, concordância satisfatória entre os valores de q assim calculados e os que são dados pela fórmula de Broglie da Mecânica ondulatória.

É indiscutível a analogia entre o fenômeno mecânico e o fenômeno ondulatório. Por outro lado constata-se a necessidade de identificar a constante h, que figura na equação de Schrödinger, com a célebre constante de Planck.

Se a constante h de Planck é muito pequena em face das outras grandezas que intervêm na equação de Schrödinger, e se os termos que a contêm em fator podem ser desprezados, recai-se na equação de Hamilton-Jacobi da Mecânica clássica, quando se consideram soluções do tipo

Com efeito, calculando DW e substituindo na equação de Schrödinger, vem

desprezando o termo em h, esta equação torna-se a de Hamilton-Jacobi.

Como mostra a fórmula de Broglie, é proporcional a h. Nos fenômenos atômicos, os termos contendo em fator h ou não podem em geral ser desprezados.

Consideremos, por exemplo, o caso do modelo de Rutherford para o átomo de hidrogênio: um elétron cuja carga é -e, em movimento circular e uniforme em torno de um núcleo positivo cuja carga é +e.

Temos:

igualando a força centrífuga à força de atração do núcleo.

Ao movimento do elétron corresponde a propagação de uma onda cujo comprimento de onda é

portanto,

Se o raio r é da ordem de 10-7 cm, como h = 6,55×10-27 erg.s, e = 4,8×10-10 (erg.cm.)1/2, m = 9,02×10-28 g, vem

Não se pode, pois, neste caso, desprezar os termos contendo em fator; a Mecânica clássica não deve ser aplicada ao estudo do fenômeno.

A equação de Schrödinger reduz o estudo de um problema de Mecânica atômica à investigação das integrais de uma equação de derivadas parciais de 2a. ordem de tipo há muito tempo estudado.1 1 Consulte-se, por ex., o curso de Análise de Goursat e a obra de Courant-Hilbert, Methoden der Mathematischcn Physik.

Schrödinger admite que as integrais da equação da Mecânica ondulatória devem ser funções de ponto univalentes, finitas e contínuas, e satisfazer a determinadas condições limites. A teoria das equações de derivadas parciais do tipo considerado mostra que tais integrais (não nulas) só existem para certos valores da constante E formando conjuntos numeráveis ou mesmo conjuntos contínuos. Esses valores são denominados fundamentais ou característicos, e correspondem aos níveis energéticos do sistema; a eles correspondem as soluções fundamentais ou características da equação.

Mostremos, em um exemplo simples, como podem aparecer os níveis energéticos de um sistema atômico. Consideremos o caso do átomo de hidrogênio: em torno de um núcleo positivo cuja carga é +e, move-se um elétron de massa m e de carga -e.

A energia potencial do sistema é

Tomando a const. nula, a equação da Mecânica ondulatória torna-se

Vamos aqui considerar apenas o caso simples em que a órbita do elétron é circular (r = const.) e a função W(r) não depende de r.

Seja q o ângulo do raio vetor do elétron com o eixo polar, vem,

Pondo

tem-se a integral geral,

Aos valores de q: q+2kp, (k = 0,1,2...), corresponde uma posição determinada r do elétron e uma infinidade de valores para W. Para que W seja uma função univalente da posição r do elétron, é necessário e suficiente que

e que, portanto n seja um numero inteiro.

Calculemos os níveis energéticos do sistema.

Aplicando em 1a. aproximação a Mecânica clássica, temos, como no caso do modelo de Rutherford,

w designando a velocidade angular do elétron.

Resulta

e, portanto,

Obtemos, assim

Estas duas fórmulas haviam sido achadas por Bohr em sua teoria do átomo de hidrogênio. O cálculo numérico dá r1 = 0,53×10-8 cm; para n = 4 teríamos uma órbita com r4 ~ 0,85×10-7 cm; ri seria então da ordem de grandeza do comprimento de onda = h/mv da onda associada ao elétron, sendo de prever que a aplicação da Mecânica clássica ao problema conduza a resultados pouco satisfatórios. O estudo rigoroso das soluções da equação de Schrödinger no caso do átomo de hidrogênio mostra que a fórmula acima obtida para os níveis energéticos pode ser conservada; a fórmula que dá rn, porém, não deve ser mantida, desde que não mais se admita ser W função independente de r.

Vamos supor que, no caso do campo permanente, os valores fundamentais de E formem um conjunto numerável E1, E2... En....; sejam W1,W2...Wn... as soluções fundamentais correspondentes, admitindo-se que a cada Ei corresponda uma única função Wi (abstração feita de um fator constante de proporcionalidade).

Uma combinação linear, com coeficientes constantes, de soluções fundamentais também é solução da equação.

É sempre possível determinar um fator de proporcionalidade a englobar em Wn(r) de modo que

a integral sendo estendida ao domínio de variação de r. As funções fundamentais que satisfazem a esta condição se dizem ''normalizadas".

Sejam Wj e Wk, duas funções fundamentais correspondentes a Ej e Ek; pela fórmula de Green

se, como supõe Schrödinger, Wj e Wk se anulam sobre a superfície limite s (a ordem infinitesimal sendo suficientemente forte), vem

Resulta

sendo

Significam estas relações que Wn formam um sistema ortogonal e normal.

Eis uma propriedade muito importante das funções ortogonais: uma função W(r) univalente finita e contínua é desenvolvível em serie de funções ortogonais do tipo

a determinação das constantes cn se faz como segue

O desenvolvimento em série de Fourier é um caso particular do desenvolvimento em funções ortogonais. No exemplo simples que examinamos foram obtidas as funções fundamentais seno e coseno as quais conduzem ao desenvolvimento de Fourier.

2 Equação da Mecânica ondulatória no campo não permanente

A equação de Schrödinger relativa ao campo permanente contém a constante E da energia. Se a função potencial depende explicitamente do tempo. U(r,t), não se pode mais escrever T+U = E.

Se tomarmos

podemos eliminar a constante E da equação de Schrödinger. Com efeito

e resulta

Schrödinger admite que esta é a equação da Mecânica ondulatória no caso de um campo não permanente.

A presença do fator i em um dos termos da equação exige que as suas soluções y sejam essencialmente complexas. Se y* é a função complexa conjugada de y, ela satisfaz, é claro, à equação

É fácil verificar que, se na equação em y (ou em y*) no campo não permanente, supusermos h infinitamente pequeno (as outras grandezas permanecendo contínuas e finitas) recaímos na equação de Hamilton-Jacobi da Mecânica clássica.

Ponhamos

calculando Dy e (¶y/¶t) e substituindo na equação da Mecânica ondulatória, obtemos

Desprezando os termos que contem h em fator, vem:

equação de Hamilton-Jacobi a que satisfaz a integral de Hamilton

O processo indicado para a obtenção da equação da Mecânica ondulatória no campo não permanente é pouco satisfatório pois se baseia na consideração de uma solução particular da equação. Pode-se, porém, mostrar que a equação da Mecânica ondulatória decorre de um único principio, quer no caso de um campo permanente, quer no de um campo não permanente.

Com efeito, tomemos a função

a definição formal de grad y (ou grad y*) no caso de y complexo sendo a mesma que no caso de y real.

Em um sistema de coordenadas curvilíneas xi no qual ds2 = åijaijdxidxj, temos

Seja |a| o determinante dos aij.

Procurando a derivada variacional de relativamente a y* e, anulando-a, temos,

Desenvolvendo os cálculos chegamos à equação da Mecânica ondulatória no caso de um campo não permanente.

A anulação da derivada variacional de relativamente a y nos daria a equação conjugada.

Se o campo é permanente, pondo

obtemos

A escolha da função pode ser sugerida pelas considerações que seguem.

Se o campo é permanente a ''ação'' S = 2Tdt di satisfaz à equação de Hamilton-Jacobi

Considerando-se a função de ondas

vem

e o 1.º membro da equação de Hamilton-Jacobi toma-se

A derivada variacional de relativamente a y* (ou a y) nos daria a equação de equação de Schrödinger.

Se o campo não é permanente, a integral de Hamilton V satisfaz à equação de Hamilton-Jacobi mais geral que indicamos.

Considerando-se a função de ondas

vem, para | grad V|2, uma expressão análoga à que acima mencionamos para | grad S|2; tem-se, também

O 1.º membro da equação de Hamilton-Jacobi toma então a forma indicada no início desta conferência, e a equação da Mecânica ondulatória se obtém anulando-se a derivada variacional de relativamente a |a| y (ou | a| y*).

Se a equação de Schrödinger no campo permanente admite as soluções fundamentais W1,W2...Wn.... correspondentes aos níveis energéticos E1,E2...En...., a equação da Mecânica ondulatória no campo não permanente é satisfeita pelas funções yk:

e portanto por uma combinação linear destas, com coeficientes constantes (que podem ser complexos)

A consideração deste tipo de funções de onda y(r,t) apresenta grande importância na teoria dos fenômenos atômicos elaborada de acordo com a concepção de Schrödinger.

3 Interpretação da função de Schrödinger. Idéias de Born

Schrödinger propôs para a função y(r,t) uma interpretação que, durante algum tempo, obteve grande sucesso.

Schrödinger supôs que em cada ponto da região em que y é definida. a densidade elétrica r fosse proporcional ao quadrado da amplitude da vibração de y, isto é r = kyy* = k| y| 2, y*designando a função complexa conjugada de y. Tal suposição corresponde à hipótese de que o elétron não deve ser considerado como uma carga pontual mais sim como uma pequena região do espaço na qual a função y vibra com forte amplitude.

Seja e a carga do elétron (em valor absoluto), devemos ter e = òrd = k| y| 2d .

Como

e por hipótese as funções Wk são ortogonais, resulta, integrando na região considerada,

Podemos englobar em y um fator de proporcionalidade constante tal que åk| ck| 2 = 1 ou ò| y| 2d = 1; resulta r = eyy*.

A densidade elétrica r é uma função contendo uma soma de funções periódicas e2pi njkt do tempo, com as freqüências

A este tipo de variação da densidade elétrica corresponde, de acordo com a teoria eletromagnética clássica, a emissão de radiações eletromagnéticas cujas freqüências são njk . Admitindo tal proposição como hipótese complementar na nova teoria, somos conduzidos às condições denominadas de Bohr, para as freqüências das radiações emitidas por um átomo: hnjk = Ej-Ek.

Observe-se que se todos os ck são nulos, exceto um deles, ci por exemplo, vem

a densidade elétrica é neste caso constante em relação ao tempo; o átomo não irradia e permanece no nível energético Ei.

A intensidade Ijk de uma radiação de freqüência njk emitida, pode ser calculada, como na teoria clássica, por intermédio do momento elétrico M,

obtém-se

sendo

As fórmulas obtidas aplicadas a fenômenos tais como o do átomo de hidrogênio submetido a um campo elétrico (efeito Stark) deram ótimo resultado. A interpretação proposta por Schrödinger para a função y está sujeita, entretanto, a sérias objeções, e já foi abandonada pelos físicos mais eminentes entre os quais o próprio Schrödinger.

Citemos duas objeções.

1) Nas fórmulas estabelecidas por Schrödinger que representam o estado vibratório do átomo figuram os coeficientes ci e ck e os níveis energéticos Ej e Ek referentes aos estados inicial e final cuja combinação dá lugar à emissão. da radiação de freqüência njk. É natural que nessas fórmulas apareçam as quantidades cj e Ej relativas ao estado inicial do átomo, mas é inadmissível que também nelas figurem ck e Ek referentes ao estado final que evidentemente não poderia estar predeterminado antes da emissão.

2) Schrödinger admite a disseminação da carga do elétron no espaço de acordo com a lei de distribuição r = eyy* , e ao mesmo tempo quando aplica a sua equação a problemas como o do átomo de hidrogênio faz intervir a energia potencial U = -e2/r referente à hipótese das cargas pontuais. Há portanto uma contradição interna na teoria.

Max Born propôs uma interpretação estatística da função y, hoje quase unanimemente aceita.

Para Born yy* representa uma densidade de probabilidade. Assim eyy*d , myy*d , Eyy*d representam a carga provável, a massa provável, a energia provável, que, em virtude do movimento do elétron, se acham no elemento de volume d. para o qual se calculou y. O produto yy*d mede a probabilidade de presença do elétron no elemento de volume d. A probabilidade de presença na região em que y foi definida (e que pode ser todo o espaço) deve ser igual á unidade vimos aliás, que

Na interpretação de Born o elétron continua a ser considerado como uma carga elétrica pontual mas não se pode mais determinar com precisão a sua posição no espaço em um certo momento. Pode-se apenas, avaliar a probabilidade para que ele seja encontrado em um determinado elemento de volume; esta probabilidade é | yk| 2d se soubermos previamente que o átomo está no nível energético Ek, ou então |y| 2d se nenhuma indicação tivermos sobre o estado energético do átomo.

Born supõe ainda que, se ck é um dos coeficientes da solução geral y, | ck| 2 mede a probabilidade para que o átomo esteja no estado energético correspondente a Ek. Se o átomo está de fato no estado energético Ek, y se reduz a um único termo ckyk, e deve-se ter |ck| 2 = 1, pois neste caso há certeza. Se y = åkckyk, há a possibilidade de existência de vários estados energéticos cada um dos quais possui uma probabilidade determinada; a fórmula åk| ck| 2 = 1 afirma que a soma de todas essas probabilidades equivale à certeza, o que é evidente pois o átomo há de se achar em algum dos estados.

Um argumento forte que milita a favor da suposição de que a função de onda y não corresponde a uma realidade física, e pode constituir apenas a representação simbólica de uma probabilidade, é o que decorre da equação da Mecânica ondulatória dos sistemas de partículas.

Com efeito, neste caso, não se pode, em geral, considerar individualmente no espaço de três dimensões o movimento de cada partícula do sistema e a propagação da onda a ela associada. Somente foram obtidos resultados satisfatórios considerando-se, associada ao sistema, uma única onda propagando-se no espaço denominado de configuração, de n dimensões, constituído com o auxilio dos n parâmetros xi , de que depende o movimento do sistema.

Seja

o quadrado do elemento de arco ds do espaço de configuração; ds2 é escolhido de modo que

A equação de Schrödinger no caso do campo não permanente escreve-se

D designando o operador laplaciano no espaço de configuração.

Pode-se verificar que esta equação satisfaz às seguintes condições:

1) Se h pode ser considerada como infinitamente pequena em face das outras grandezas que intervêm na equação, tomando-se

obtém-se a equação de Hamilton- Jacobi da Mecânica clássica

2) Se o sistema é composto de uma única partícula de massa m, a equação se reduz à equação clássica de Schrödinger.

3) Se o sistema é constituído por k partículas de massa m que não atuam umas sobre as outras, a equação da Mecânica ondulatória se pode decompor em k equações distintas, uma para cada partícula.

Observe-se que, de acordo com as idéias de Born, a equação da Mecânica ondulatória determina apenas a evolução de uma probabilidade. Não mais se pode acompanhar individualmente a evolução detalhada de um sistema atômico; conhecem-se somente leis estatísticas que regem os fenômenos microscópicos. Esta concepção contradiz o determinismo que decorre do principio de causalidade da Física clássica.

Fermi2 2 La théorie du rayonnement , 1930. e Langevin3 3 Conferência no Colégio de Franca que assisti em Dezembro de 1930. admitem que se possa salvaguardar o princípio de causalidade supondo que o estado do sistema seja exatamente previsível, mas depende de fatores que ainda ignoramos; pode-se sempre pensar que é a nossa ignorância relativamente a estes fatores que deixa subsistir uma indeterminação .

Antes de terminar esta conferência faremos algumas observações sobre a escolha das soluções da equação geral de Schrödinger.

Se y(r,t) é uma solução complexa da equação, calculamos a função real | y| 2 que, de acordo com Born, representa uma densidade de probabilidade. |y| 2d é a probabilidade para que a partícula se encontre no elemento de volume d; | y| 2 deve, pois, satisfazer à condição ò|y| 2d = 1.

Admitindo-se somente as soluções tais que a integral de |y| 2d não dependa do tempo, tal condição pode ser satisfeita dispondo-se convenientemente da constante arbitrária que multiplica y.

Verificada a condição acima indicada, a escolha da forma das soluções (univalentes, finitas e contínuas) da equação de Schrödinger dependerá unicamente das restrições que forem impostas pela necessidade de satisfazer convenientemente as observações experimentais.

Examinemos um caso dos mais simples: o do movimento uniforme de uma partícula de massa m ao longo de um eixo Ox.

A equação de Schrödinger se reduz a

a solução mais simples, já anteriormente sugerida, aliás, é

qualquer que seja p (finito).

Verifica-se que | y| 2 = 1; existe, pois, em qualquer tempo, a mesma probabilidade elementar para que a partícula se encontre em qualquer posição.

Interpretando-se p como quantidade de movimento, vê-se que esta solução corresponde ao caso em que se conhece com precisão a velocidade da partícula, as variáveis x e t permanecendo indeterminadas.

Consideremos agora uma outra solução. Seja a integral do tipo de Fourier

Se a função j(p) é contínua e satisfaz a certas condições de regularidade, tem-se

a fórmula de inversão de Fourier dá, então,

Conhecida y(x,0), pode-se pois determinar j(p) e portanto y(x,t).

Tomemos

logo

| y(x,0)| 2 tem a forma de função dos erros de Gauss; de acordo com a interpretação de Born podemos dizer que | y(x,0)| 2 representa a probabilidade para que na determinação de x, no tempo t = 0, se cometa o erro s.

Por integração, obtemos

Temos

podemos considerar h| j(p)| 2 como a probabilidade para que na determinação de p, no tempo t = 0, se cometa o erro m. Entre os erros s e m existe a relação ms = h/2p.

Por integração, calculamos ainda

e

Pode-se verificar que

Vê-se que | y(x,0)| 2 se torna muito pequena para valores de | x| superiores a pequenos múltiplos de s; pode-se dizer que inicialmente (para t = 0) a partícula se acha localizada num intervalo de ordem de grandeza de s. .

A expressão de h| j(p)| 2 mostra que se pode considerar p-mv como localizada num intervalo de ordem de grandeza de m.

Examinando-se | y(x,t)| 2 vê-se que, no tempo t, a partícula estará praticamente localizada no intervalo vt± , cujo ponto médio (x = vt) corresponde à posição que teria a partícula no tempo t, de acordo com a Mecânica clássica. À medida que o tempo cresce, esse intervalo vai aumentando indefinidamente. A função de onda y dissemina-se, pois, no espaço (na direção do eixo Ox), quando o tempo cresce.

Vamos explicar este resultado, interpretando p como quantidade de movimento da partícula.

No tempo t = 0, o erro na determinação de x é s, e o erro na determinação inicial da velocidade p/m é m/m, ou h/2psm; no tempo t o erro na posição do móvel, proveniente do erro inicial sobre a velocidade é ht/2psm. A probabilidade referente ao erro total na posição do móvel no tempo t, se obtém acrescentando (ht/2psm)2 a s2 no denominador do expoente da lei de Gauss, visto que os erros são independentes e se ajuntam segundo a lei dos quadrados.

A fórmula ms = h/2p mostra que quanto maior for a precisão em s, menor a precisão em m. Se fosse conhecida exatamente a posição inicial do móvel, a velocidade ficaria indeterminada e o móvel poderia ocupar. no tempo t, uma posição qualquer sobre Ox.

A solução da equação de Schrödinger, agora examinada, contradiz abertamente a hipótese formulada por Schrödinger de que o elétron deve ser considerado como uma pequena região do espaço na qual a função y vibra com amplitude considerável. Tal solução corresponde, porém, ao enunciado do principio de indeterminação que Heisenberg formulou baseando-se na crítica das observações experimentais dos fenômenos microscópicos.

(Continua no próximo número.)

  • *
    Este artigo refere-se à segunda conferência do autor na Escola Politécnica do Rio de Janeiro, publicado no número de Fevereiro de 1932 do Boletim do Instituto de Engenharia, pp. 76-87. Ver Rev. Bras. Ens. Fis. 25 (3), 326 (2003).
  • 1
    Consulte-se, por ex., o curso de Análise de Goursat e a obra de Courant-Hilbert, Methoden der Mathematischcn Physik.
  • 2
    La théorie du rayonnement , 1930.
  • 3
    Conferência no Colégio de Franca que assisti em Dezembro de 1930.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Maio 2004
    • Data do Fascículo
      Dez 2003
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