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William Herschel, os raios invisíveis e as primeiras ideias sobre radiação infravermelha

William Herschel, the invisible rays and the first ideas about infrared radiation

Resumos

Aplicações da radiação infravermelha estão presentes em várias tecnologias modernas, usadas em áreas como medicina veterinária, na geologia, no monitoramento ambiental, no diagnóstico de doenças, bem como em aplicações militares. Entretanto, o histórico envolvendo as investigações que levaram ao seu descobrimento não aparece de modo aprofundado, perdendo-se uma excelente oportunidade de explorar aspectos conceituais e metodológicos presentes no episódio. Neste trabalho, analisamos o experimento de William Herschel (1800), considerado o descobridor da radiação infravermelha. Tanto o trabalho original de Herschel como as fontes secundárias que o analisam mostram que tal descoberta foi realizada num contexto que envolve vários problemas.

William Herschel; radiação infravermelha; experimentos históricos


Infrared radiation applications are present in many current technologies used in areas like veterinary medicine, geology, environmental monitoring, disease diagnoses and also military applications. However, the history about infrared discovery is not deeply analyzed and an opportunity is lost to explore conceptual and methodological aspects from the episode. In this research, we analyze the experiments of William Herschel (1800), who is considered the discoverer of infrared radiation. Herschel's original paper and the secondary sources about it seem to demonstrate that this finding includes a complex context with many inquiry problems.

William Herschel; infrared radiation; historical experiments


HISTÓRIA DA FÍSICA E CIÊNCIAS AFINS

William Herschel, os raios invisíveis e as primeiras ideias sobre radiação infravermelha

William Herschel, the invisible rays and the first ideas about infrared radiation

Rilavia Almeida de Oliveira1 1 E-mail: rilavia.almeida@gmail.com. ; Ana Paula Bispo da Silva

Grupo de Historia da Ciencia e Ensino, Departamento de Física, Universidade Estadual da Paraíba, Campina Grande, PB, Brasil

RESUMO

Aplicações da radiação infravermelha estão presentes em várias tecnologias modernas, usadas em áreas como medicina veterinária, na geologia, no monitoramento ambiental, no diagnóstico de doenças, bem como em aplicações militares. Entretanto, o histórico envolvendo as investigações que levaram ao seu descobrimento não aparece de modo aprofundado, perdendo-se uma excelente oportunidade de explorar aspectos conceituais e metodológicos presentes no episódio. Neste trabalho, analisamos o experimento de William Herschel (1800), considerado o descobridor da radiação infravermelha. Tanto o trabalho original de Herschel como as fontes secundárias que o analisam mostram que tal descoberta foi realizada num contexto que envolve vários problemas.

Palavras-chave: William Herschel, radiação infravermelha, experimentos históricos.

ABSTRACT

Infrared radiation applications are present in many current technologies used in areas like veterinary medicine, geology, environmental monitoring, disease diagnoses and also military applications. However, the history about infrared discovery is not deeply analyzed and an opportunity is lost to explore conceptual and methodological aspects from the episode. In this research, we analyze the experiments of William Herschel (1800), who is considered the discoverer of infrared radiation. Herschel's original paper and the secondary sources about it seem to demonstrate that this finding includes a complex context with many inquiry problems.

Keywords: William Herschel, infrared radiation, historical experiments.

1. Introdução

Ao longo da história da física, alguns experimentos realizados por personagens não muito discutidos no ensino de física assumem grandes proporções quando são vinculados a novas tecnologias. E o caso, por exemplo, dos experimentos realizados por William Herschel em 1800, que são considerados atualmente como a "descoberta" da radiação infravermelha, possibilitando o desenvolvimento de inúmeras tecnologias [1-4].

Porém, assim como em outras situações análogas na física, dos experimentos de Herschel para as tecnologias atuais, os caminhos são tortuosos e diferentes interpretações foram dadas aos "raios invisíveis". Neste trabalho, objetivamos nos deter em uma análise mais detalhada das pesquisas de William Herschel sobre calor radiante, que o levaram à observação da radiação além da região visível no espectro Solar. Este episódio histórico tem diferentes nuances que podem ser escolhidas na sua análise, como a questão conceituai, metodológica, e até mesmo sócio-cultural, já que foi objeto de controvérsias no período em questão. Nossa perspectiva aqui é descritiva aprofundando-nos nas medidas e resultados obtidos por Herschel para poder afirmar, ou não, se tal descoberta da radiação infravermelha está bem fundamentada experimentalmente. Este trabalho é apenas parte de uma dissertação de mestrado em Ensino de Ciências em desenvolvimento, que inclui ainda a reprodução de uma versão didática do experimento de Herschel para a discussão de conceitos envolvendo óptica e eletromagnetismo e que será abordada posteriormente.2 2 A discussão didática do experimento histórico foi submetida recentemente para apresentação em evento. Copyright by the Sociedade Brasileira de Física. Printed in Brazil.

No período entre 1800 e 1830, experimentos com calor radiante realizados por William Herschel, John Leslie, Macedonio Melloni e outros, apresentaram que algo denominado calor radiante tinha a maioria das propriedades da luz, entre elas, reflexão e refração. Vale ressaltar que no início do século XIX supunha-se que calor e luz eram substâncias fluidas. Para o caso da luz, havia também os partidários de Newton que consideravam a visão corpuscular. Como também havia, para o caso do calor, aqueles que adotavam a visão cinética. E neste ambiente complexo com visões antagônicas de luz e calor que Herschel realizou seus experimentos.

2. William Herschel e os experimentos com radiação solar

William Herschel (1738-1822) foi um astrônomo alemão naturalizado inglês que se interessou inicialmente por música, assim como seu pai - Isaac Herschel. Posteriormente, ele se dedicou à construção de telescópios com o intuito de observar os céus e a natureza e distribuição das estrelas distantes e nebulosas. Ele alugava telescópios e polia seus próprios espelhos [5]. Durante estas observações, Herschel descobriu o planeta Urano, fato que o tornou mundialmente famoso como descobridor de um planeta. Como resultado desta descoberta ele foi eleito membro da Royai Society, premiado com o Copley Prize, e nomeado astrônomo do Rei George III [6]. O porão de sua casa funcionava como uma fábrica, onde ele fez muitos experimentos com metais de diferentes composições no intuito de polir seus próprios espelhos. Em suas observações, Herschel também identificou o sexto satélite de Saturno. Tais observações se deram quando ele já estava com 43 anos e tomaramno um nome de respeito quanto à localização de corpos celestes.

Herschel não era matemático, não podendo avançar na análise matemática dos movimentos planetários; nem seus instrumentos tinham a precisão necessária para astronomia posicionai. Mas suas habilidades como observador e seus bons telescópios permitiram-no contribuir para o conhecimento da constituição física da maior parte dos principais membros do sistema solar. Envolvido com as suas observações astronômicas e com aprimoramento dos instrumentos, aos 61 anos Herschel também desenvolveu estudos sobre o calor, mantendo o mesmo método observacional e descritivo do estudo dos céus. No contexto da discussão sobre luz e os fenômenos de interferência, reflexão e refração, diretamente relacionados com as observações das estrelas, Herschel se concentrou no estudo principalmente dos raios solares.

Uma busca por trabalhos de Herschel3 3 Basta, por exemplo, buscar por "William Herschel" na base de dados JSTOR mostra uma grande quantidade de relatos de observações e quatro artigos, todos lidos perante a Royai Society e publicados na Philosophical Transactions no ano de 1800, que tratam de algumas experiências relacionadas com o aquecimento de diferentes materiais quando expostos à radiação solar e terrestre.4 4 O termo radiação utilizado por Herschel denotava simplesmente a luz obtida, sem implicar em qualquer interpretação eletromagnética. Radiação, para Herschel, é um feixe de raios, ou seja, luz se propagando em linha reta Os artigos são:

1) Investigation of the Powers of the Prismatic Colours to Heat and Illuminate Objects; With Remarks That Prove the Different Refrángibility of Radiant Heat. To Which is Added, an Inquiry into the Method of Viewing the Sun Advantageously, with Telescopes of Large Apertures and High Magnifying Powers. Finalizado em 8/3/1800 e lido em 27/3/1800.

2) Experiments on the Refrangibilitiy of the Invisible Rays of the Sun. Finalizado em 17/3/1800 e lido em 24/4/1800.

3) Experiments on the solar, and on the Terrestrial rays that occasion heat: with a comparative view of the laws to which light and heat, or rather the rays which occasion them, are subject, in order to determine whether they are the same, or different. Part I. Finalizado em 26/4/1800 e lido em 15/5/1800.

4) Experiments on the solar, and on the Terrestrial rays that occasion heat: with a comparative view of the laws to which light and heat, or rather the rays which occasion them, are subject, in order to determine whether they are the same, or different. Part II. Lido em 6/11/1800.

A apresentação dos artigos perante a Royal Society coincide com a sequência de questionamentos e hipóteses que Herschel conjecturou para tentar entender a relação entre a radiação solar e o aquecimento das lentes, que eram utilizadas nos telescopios. Assim, no primeiro dos artigos, Herschel [7] apresenta alguns experimentos em que discute o poder de aquecer e iluminar das diferentes cores do espectro prismático, bem como a diferente refrangibilidade5 5 O termo refrangibilidade nas pesquisas de Herschel, refere-se aos diferentes graus de refração dos raios de calor e de luz por um prisma. Para o caso da luz, a diferença na refração é demonstrada pela variedade de cores; para o caso do calor, a diferença na refração dos raios é representada pelos diferentes graus de aquecimento ao longo do espectro de cores. A refração da luz era um fenômeno em estudo neste período e havia várias suposições quanto ã causa do fenômeno e à natureza da luz. Atualmente entendemos que o fenómeno da refração ocorre pela mudança da velocidade da luz no meio, o que determina o índice de refração de um material. Para entender melhor, sugerimos a Ref. [8, p. 132]. dos raios de calor. Ao fazer experiências testando o melhor método de ver o Sol através de grandes telescopios, Herschel utilizou várias combinações de vidros diferentemente escurecidos. Ao usar alguns deles, ele sentiu uma sensação de calor, embora tivesse pouca luz; enquanto outros iluminavam melhor (forneciam mais luz), com pouca sensação de calor. Ele então conjecturou que os raios prismáticos poderiam ter o poder de aquecer e iluminar distribuídos desigualmente entre eles. Algumas cores são mais aptas a ocasionar calor; outras, ao contrário, são mais aptas para a visão, por possuir um poder iluminador superior. Para verificar esta conjectura, ele realizou os experimentos que são descritos no primeiro artigo. Neste primeiro artigo, Herschel observa que na decomposição do espectro da luz solar, a região após vermelho é a que parece provocar maiores alterações de temperatura. Isso o leva a concluir que poderia haver raios luminosos que não eram perceptíveis à visão (raios invisíveis), mas que produziriam calor. Para verificar esta suposição ele realizou os experimentos que são descritos no segundo artigo, nos quais detecta que o máximo de calor ocorre além do vermelho visível. Restava verificar se tais raios invisíveis (de calor) possuíam as mesmas propriedades da luz. Nos artigos seguintes (3 e 4), ele constrói vários aparatos e experimentos em que tenta responder a esta questão. Neste trabalho vamos nos concentrar nos artigos 1 e 2, que possuem os experimentos e resultados mais conhecidos de Herschel, e abordar superficialmente os outros dois, que possuem cerca de 240 experimentos descritos.

3. O poder de aquecimento e iluminação dos raios coloridos

Nos experimentos sobre o poder de aquecimento dos raios coloridos, Herschel [7] fixou um pedaço de papelão AB em um suporte CD, permitindo seu movimento em torno de dois eixos laterais. No papelão, cortou uma abertura um pouco maior do que o bulbo de um termômetro e de comprimento suficiente para permitir passar toda a extensão de uma das cores prismáticas. Ele, então, colocou três termômetros em cima de pequenos planos inclinados EF. Os bulbos dos termômetros foram escurecidos com tinta. O bulbo do Nº 1 era maior para permitir grande sensibilidade. Os termômetros Nº 2 e Nº 3 foram emprestados a Herschel por um certo Dr. Wilson. Herschel os descreve como dois excelentes termômetros, com grande sensibilidade devido ao fato de possuírem bulbos muito pequenos. O suporte com o papelão e os termômetros foi colocado em cima de uma pequena placa simples, GH (ver Fig. 1). Herschel colocou um prisma móvel sobre seu eixo na parte superior de uma janela aberta, formando um ângulo reto com o raio solar e girou-o até que o espectro colorido refratado por ele caísse sobre uma mesa colocada a uma distância adequada da janela.


A placa que continha o aparato foi colocada sobre a mesa, de modo a deixar os raios de uma só cor passar através da abertura no papelão, considerando que a largura do espectro estava delimitada para cada uma das cores. A estrutura móvel foi ajustada perpendicularmente aos raios provenientes do prisma e os planos inclinados com os três termômetros, com os seus bulbos dispostos numa linha, foram colocados próximos à abertura, de modo que qualquer um deles pudesse ser facilmente avançado para receber a irradiação da cor que passasse através da abertura, enquanto o resto permanecia próximo, sob a sombra do papelão.

Por ensaios repetidos, Herschel percebeu que o termômetro Nº 2 de Dr. Wilson e o seu termômetro, sempre concordavam ao mostrar a temperatura do lugar examinado, quando a mudança não era muito repentina. O seu exigia dez minutos para sofrer uma mudança, enquanto que o Nº 2 e o Nº 3 mostravam em cinco minutos. Ele conclui que talvez isso tenha ocorrido devido ao fato do bulbo do seu termômetro ser maior do que os bulbos dos termômetros de Dr. Wilson. Portanto, Herschel está atribuindo o tempo necessário para o aquecimento às propriedades do termômetro (o tamanho do bulbo). Porém, posteriormente, nos experimentos sobre transmissão do calor solar através de diferentes substâncias, Herschel [9] atribuiu essa demora na mudança da temperatura marcada pelo seu termômetro ao fato das diferentes substâncias interceptarem mais calor solar no início que no final das observações. Assim, os termômetros utilizados para identificar o calor que era transmitido através das substâncias demoravam mais para ter sua temperatura aumentada. Herschel [9] tomou esse fato como um dos argumentos para diferença entre os raios de calor e de luz, uma vez que assumia a interceptação da luz como instantânea. Ou seja, é possível perceber as contradições e os conflitos presentes no trabalho de Hershcel e que são inerentes a toda prática científica.

No 1º experimento, utilizando o aparato já descrito, Herschel [7] arranjou os três termômetros no lugar preparado para o experimento e esperou até que eles estivessem todos estáveis. Em seguida, avançou o Nº 1 para os raios vermelhos e deixou os outros dois por perto, na sombra. Em aproximadamente 8 ou 10 minutos o termômetro Nº 1 aumentou cerca de 6 3/4 graus,6 6 Herschel não explicita qual escala de temperatura estava utilizando. A diferença Δ T é relativa ao valor da temperatura no termômetro que estava na cor a ser medida e o termômetro fora da cor, usado como padrão. Assim, para o primeiro caso da Tabela 1, os termômetros Nº 1 e Nº 2 marcavam inicialmente 43 1/2 e 43 1/2, respectivamente. Após 10 minutos, os valores eram 50 e 3 1/4, respectivamente, o que leva Herschel a concluir que a diferença de 6 3/4 graus entre os termômetros seria devida ao fato do termômetro Nº 1 estar sob a cor vermelha. devido aos raios vermelhos em comparação com os dois termômetros padrão. Na sequência ele altera a posição dos termômetros para as diferentes cores do espectro e observa o aumento de temperatura.

Nos próximos experimentos, ele troca os termômetros de medida e padrão, colocando o Nº 2 na cor e o Nº 3 como padrão, obtendo os seguintes resultados:

A partir dessas experiências, Herschel [7] apresenta os seguintes resultados: nos raios vermelhos seu termômetro aumentou 6 3/4 graus no Iº experimento e 7 graus no 2º, para o aumento do mercúrio: a média de ambos é 6 7/8. No 3º experimento tivemos 3 1/4 graus, para o aumento ocasionado pelos raios verdes. A média da variação de temperatura, Herschel atribui o "poder de aquecimento"7 7 Não é possível fazer uma analogia entre o "poder de aquecimento" considerado por Herschel e o que entendemos hoje sobre calor, ou mesmo levantar hipóteses sobre a natureza da radiação ou do calor. Mas, a partir das conclusões a que ele chega no trabalho, pode-se supor que o poder de aquecimento está simplesmente relacionado com a capacidade de fazer a temperatura subir. A exposição á cor vermelha faz aumentar mais a temperatura do que a exposição á cor verde. da cor, e relaciona os poderes das diferentes cores. Pelos resultados da Tabela 2, temos

Com relação ao violeta, a relação dos poderes de aquecimento fica como 55 para 16. Herschel argumenta que os quatro últimos experimentos provam a precisão dessa determinação pois, mesmo utilizando termômetros diferentes a proporção do poder de aquecimento entre o vermelho e o verde fica 27 para 11 ou como 55 para 22,4, corroborando os resultados da primeira tabela. Segundo Herschel, a diferença (27 para 11), observada no caso do termômetro Nº 2 está associada à sua maior sensibilidade.

Parece extraordinário que o termômetro mais sensível deveria fornecer uma alteração menor a partir de sua exposição aos raios solares. Mas, uma vez que nestas circunstâncias há duas causas atuando de diferentes maneiras; uma para fazer subir o termômetro, a outra para fazê-lo baixar para a temperatura da sala, suponho que devido à pequenez do bulbo no termômetro do Dr. Wilson [Nº 2], a qual é um pouco mais que metade de uma polegada, às causas resfriantes devem ter um efeito mais forte sobre o mercúrio que contém do que têm sobre o meu, o qual tem um bulbo de meia polegada [7].

Segundo Herschel, para obter maior precisão ainda quanto ao poder de aquecimento da cor seria suficiente escurecer os bulbos dos termômetros e realizar a exposição ao Sol em altitudes maiores, em que a luz seria mais poderosa e estável. Entretanto, ele julga que as experiências relatadas são suficientes para o seu propósito, o qual seria de provar que o poder de aquecimento das cores prismáticas não é igualmente dividido e que a máxima emissão, e portanto o maior poder de aquecimento, estaria nos raios vermelhos.

Encontramos novamente inconsistências nos resultados de Herschel, pois neste caso ele afirma que mais precisão é obtida ao escurecer os bulbos dos termômetros. Entretanto, em seus experimentos sobre transmissão do calor solar [9] defende que os bulbos dos termômetros utilizados no aparato para identificar a quantidade de calor transmitido através das diferentes substâncias não devem ser escurecidos, pois desta forma estes seriam mais sensíveis a mudanças, especialmente em exposições muito rápidas. E a partir dessas divergências de opiniões que percebemos que Herschel, como um astrônomo, estava adentrando em um campo de investigação no qual não tinha muito conhecimento.

Na continuidade do trabalho, Herschel buscará investigar se os diferentes raios prismáticos possuem diferentes poderes de iluminação e assim relacionar poder de aquecimento com poder de iluminação. Para este propósito, Herschel utiliza um microscópio que recebe diretamente os raios prismáticos.

1º Experimento. Coloquei um objeto que tinha muitas partes pequenas sob um microscópio duplo; e, tendo colocado um prisma na janela, de forma que uma imagem estacionária colorida do Sol atingisse a mesa onde o microscópio estava, fiz com que os diferentes raios coloridos caíssem sucessivamente sobre o objeto, movendo o microscópio para o interior da sua luz. O poder de ampliação era de 27 vezes [7].

Através dos experimentos Herschel encontrou que seus objetos eram muito bem vistos no vermelho, melhor no laranja e ainda melhor no amarelo e no verde. Mas com uma menor vantagem no azul e no índigo e com mais imperfeição no violeta. Segundo ele, esse estudo foi feito utilizando um microscópio que é geralmente preparado para a visão transparente, adaptado para a forma opaca. Isto o permitiu escolher outros objetos que poderiam responder melhor ao seu propósito, bem como adicionar o efeito que substâncias diferentemente coloridas podiam ter sob os raios de luz. Ele providenciou diferentes materiais para serem observados e um microscópio que ampliava 42 vezes. Herschel apresenta em detalhes a presença ou não de pontos luminosos nas observações para cada uma das cores do espectro,8 8 Herschel está adotando que o espectro solar é constituído de sete cores. Como sabemos, há infinitas cores no espectro e, além disso, ele é contínuo e não pode ser adotado como Herschel faz, como se houvesse uma largura definida para cada uma das cores. No entanto, é importante lembrar que no final do século XVIII as concepções newtonianas eram muito fortes e Herschel em vários momentos se mostra adeptos delas. Portanto, é compreensível que adote o espectro de sete cores primárias como fazia Newton. Para compreensão da teoria das cores de Newton, sugerimos a Ref. [10]. bem como um certo "grau" de iluminação que ele observa sem, aparentemente, um instrumento comparativo.9 9 Um instrumento para comparar o grau de iluminação utilizado na época era o fotômetro de Bouguer [8, p. 111], que Herschel não menciona. Não entraremos em detalhes, mas o modo como Herschel fez as comparações de luminosidade são muito imprecisas e foram motivo de críticas na época Após uma série de observações (9 experimentos com 7 observações em cada um deles), ele conclui que os raios vermelhos possuem um pequeno poder de iluminação. O laranja possui mais do que o vermelho, e os raios amarelos iluminam objetos ainda mais perfeitamente. O máximo de iluminação ocorre entre o verde claro e o amarelo brilhoso. Porém, a partir do verde escuro, o poder de iluminação diminui muito sensivelmente, sendo o poder do azul aproximadamente igual ao do vermelho e o do índigo ainda menor que o do azul. Por fim, o violeta é o mais deficiente. Porém, Herschel reconhece a imprecisão existente nos experimentos bem como a necessidade de tentar separar melhor as cores para poder definir suas propriedades quanto ao poder de iluminação, o que poderia ser feito, segundo ele, se adotasse alguns dos procedimentos de Isaac Newton.10 10 Herschel faz referência aos acoplamentos de prismas, como a Pig. 16 do Optics de Newton [11, p. 43]. Os experimentos levam Herschel a conjecturar que o calor radiante possui diferente refrangibilidade, ressaltando que, assim como a luz, ele não é apenas refratável, mas também está sujeito às leis da dispersão decorrente da sua diferente refrangibilidade. Isto é, devido a sua diferente refrangibilidade, ao ser dispersado pelo prisma, os raios de calor são refratados em diferentes direções.

A quantidade total de calor radiante contida em um raio de sol, se esta diferente refrangibilidade não existisse, deveria, ineitavelmente, cair sobre um espaço igual à área do prisma; e se calor radiante não fosse totalmente refrangível, ele cairia sobre um espaço igual, que corresponde ao espaço onde a sombra do prisma, quando coberta, pode ser vista. Mas, nenhum destes eventos ocorrendo, é evidente que o calor radiante está sujeito às leis de refração, e também àquelas que tratam da diferente refrangibilidade da luz. Pode isto nos levar a supor que calor radiante consiste de partículas em um certo intervalo de momentum, e que tal intervalo pode se estender um pouco além de cada lado de refrangibilidade, além daquele da luz? [7]

Novamente recorrendo aos conceitos newtonianos, Herschel faz uma analogia entre calor radiante e luz, supondo o primeiro também como partículas com momentum. Herschel supõe que pode haver partículas que não são detectáveis como luz. Ele esclarece que através de uma exposição gradual do termómetro para os raios do espectro prismático, começando a partir do violeta, chega-se ao máximo da luz muito antes de chegar ao máximo de calor, que se encontra no outro extremo. Para mostrar a proporção entre o poder de iluminação e o de aquecimento, ele cita outros experimentos que lhe permitiram chegar a uma relação entre os poderes:

Por muitos experimentos, que o tempo não me permitirá reportar agora, parece que o máximo de iluminação tem um pouco mais que metade do calor do total dos raios vermelhos; e a partir de outros experimentos, da mesma forma concluo que o total dos raios vermelhos estão no máximo do calor, o qual talvez esteja um pouco além da refração visível [7].

Não encontramos trabalhos anteriores em que Herschel mostre os resultados que permitem fazer esta afirmação; tampouco nos trabalhos posteriores, nos quais ele já parte desta afirmação como certa. No entanto, no artigo 4 [9], ele apresenta um gráfico em que estas conclusões estão traçadas num diagrama. Porém, tentando seguir a cronologia dos trabalhos de Herschel, discutiremos tal diagrama posteriormente, no contexto em que foi apresentado.

Segundo as conclusões de Herschel, o calor radiante consistiria, ao menos em parte, se não principalmente, de luz invisível. Ou seja, calor radiante consistiria dos raios que vêm do Sol, que possuem momentum inadequado para a visão. Assim, se fosse admitido, como era na época, que os órgãos da visão são apenas adaptados para receber impressões de partículas de certo momentum, o máximo de iluminação seria no meio dos raios refrangíveis; e aqueles que saíssem deste intervalo seriam inadequados para a visão, como no caso do calor radiante. Isto gera certo "desconforto", pois como seria luz, se seria invisível? Este "desconforto" foi motivo de críticas quando o trabalho foi publicado, como discutiremos em outro tópico

3.1. Confirmando a existência dos raios invisíveis

Talvez o experimento mais conhecido de Herschel seja o apresentado no 2º artigo de 1800, no qual ele procura provar a hipótese que fez anteriormente, de que a extensão da refrangibilidade dos raios de calor é provavelmente mais ampla que as das cores prismáticas. Herschel [12] providenciou um suporte com quatro pequenas pernas e o cobriu com papel branco. Neste papel ele desenhou cinco linhas paralelas à extremidade do suporte e separadas por uma distância de meia polegada uma da outra, mas de modo que a primeira das linhas pudesse estar a apenas 1/4 de uma polegada da borda. Interceptou as linhas com 3 perpendiculares, sendo a segunda a 2 polegadas e meia da primeira e a terceira a 4 polegadas da primeira.

Os mesmos termômetros que tinham sido, no trabalho anterior, marcados como Nº 1, Nº 2 e Nº 3 e montados sobre os pequenos planos inclinados, foram então colocados de modo a ter os centros das sombras de seus bulbos lançados na intercessão dessas linhas. Colocando seu suporte sobre uma mesa, Herschel [12] fez com que o espectro prismático atingisse a borda do papel com sua cor extrema na borda do papel, de modo que nenhuma cor podia avançar além da primeira linha. Neste arranjo, todo o espectro exceto o último quarto de uma polegada da cor em leitura, que servia como uma direção, passou abaixo da borda do suporte, e não podia interferir nos experimentos. Herschel escureceu a janela na qual o prisma foi colocado, fixando uma fina cortina verde escura para manter fora tanta luz quanto conveniente (Fig. 2).


Os termômetros foram ajustados para a temperatura da sala e o suporte colocado na parte do vermelho refratado pelo prisma que atingia a borda do papel. O termômetro Nº 1 estava a 1 1/4 polegada, em direção ao segundo, que juntamente com o 3º termômetro, foram mantidos como padrão. Durante o experimento, Herschel [12] manteve a última terminação do vermelho visível na primeira linha. Vagarosamente, movendo o Nº 1 quando necessário, Herschel variou a posição dos termômetros e verificou o aumento da temperatura nas posições em relação à primeira linha (onde estava o vermelho).

Com estas medidas, Herschel obteve os seguintes dados:11 11 O procedimento para determinação da diferença de temperatura é semelhante ao da Tabela 1, medindo sempre a diferença entre termômetro na cor e termômetro fora dela. Porém, para a linha 2, Herschel inverte os termômetros padrão e de medida.

Podemos observar que Herschel não mantém um intervalo fixo para obter as medidas de variação da temperatura, nem mesmo coleta a mesma quantidade de medidas, já que para a linha 4 ele considerou apenas 2 valores, enquanto que para as demais mediu 4 valores. Ao invés de ir para 5º linha, Herschel decidiu fazer a experiência no outro extremo do espectro prismático para aproveitar o céu claro. Ele descreve que este extremo foi observado com alguma dificuldade, pois, como a iluminação dos raios violetas é fraca, a terminação precisa deste não pode ser percebida. Após algumas medidas em que não houve aumento considerável de temperatura, Herschel conclui que não há raios "invisíveis" que aqueçam além do violeta.

A partir dos últimos experimentos estou suficientemente persuadido que qualquer raio que incida além do violeta não poderia ter qualquer poder perceptível, seja de iluminar ou aquecer; e que ambos estes poderes continuariam juntos através de todo o espectro prismático, e finalizariam onde o mais fraco dos violetas se anula. Um ponto importante permanece ainda a ser determinado, que é a situação de máximo poder de aquecimento [12].

Considerando que raios próximos ao violeta não possuíam poder de aquecimento, Herschel partiu diretamente para medir a variação da temperatura da região que estava além do vermelho total. Ele supôs uma largura para a faixa de vermelho total de aproximadamente 1/2 polegada e deslocou o termômetro Nº 1 ao longo desta faixa, mantendo os outros dois termômetros ao lado como padrão. Os dados obtidos estão na tabela a seguir.

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Segundo Herschel "Agora será fácil resumir os resultados dessas observações12 12 A sentença de Herschel é "It will now be easy to draw the result of these observations into a very narrow compass". [12]. Ele conclui que: (i) há raios vindo do Sol que são menos refrangíveis do que aqueles que afetam a visão e que possuem alto poder de aquecimento e nenhum de iluminar; (ii) o máximo poder de aquecimento está entre os raios invisíveis e a menos de meio polegada além do vermelho visível (considerando a projeção utilizada). Tais conclusões, levamno a questionar: "se nós chamamos luz esses raios que iluminam objetos; e calor radiante esses que aquecem corpos, nós podemos investigar, se luz é essencialmente diferente de calor radiante?". Para responder, ele pretende comparar as propriedades do calor radiante com as da luz, de acordo com a Tabela 5. Os experimentos já realizados permitiram-lhe concluir que um espectro termométrico poderia ser traçado ao longo do espectro prismático, com limites indo para além da cor vermelha [12].

Não iremos nos deter nestes trabalhos [9, 13] por questão de espaço. Mas, consideramos importante ressaltar que as observações que Herschel realiza estão baseadas em não admitir diferentes causas para explicar certos efeitos, se eles podem ser descritos por uma (1ª regra de raciocínio filosófico de Newton). A maioria das narrativas históricas que discutem a descoberta da radiação infravermelha menciona apenas o fato de Herschel ter descoberto radiação invisível a partir dos experimentos apresentados anteriormente, ignorando a série de investigações que ele apresenta nestes trabalhos tentando relacionar calor e luz e que continham muitos erros e complicações.13 13 Sugerimos a leitura da Ref. [14] para uma discussão aprofundada dos problemas nos experimentos de Herschel e críticas ao método de medir a luminosidade. Mesmo com contradições, ao final de do artigo [9] ele chama a atenção para uma importante diferença: os raios de calor possuem uma refrangibilidade mais extensiva que os de luz. Para ilustrar isto, Herschel [9] delineia o espectro de luz e posteriormente delineia o espectro de calor, tomando como base os resultados dos experimentos obtidos nas Refs. [7, 12] (ver Fig. 3).


Herschel [9] esboça o espectro de luz, assumindo uma linha de certo comprimento, e dividindo esta linha em sete partes, de acordo com as sete cores designadas por Isaac Newton, no seu Optics. Assim, ele representa o poder de iluminação de cada cor, por uma ordenada para essa linha. Como o comprimento absoluto das ordenadas é arbitrário, contanto que eles sejam proporcionais um ao outro, Herschel assume o comprimento do máximo igual a 27/33 da linha toda. A escolha de Herschel pelas sete cores de Newton foi alvo de críticas posteriormente por John Leslie, que afirmava que as sete cores distintas adotadas por Newton não foram derivadas cientificamente, mas produtos do misticismo da época. Leslie considerava que o espectro era composto por apenas quatro cores: azul, verde, amarelo e vermelho [6]. O comprimento do espectro colorido, ou a linha que corresponde a GQ na Fig. 3, mede 2,997 polegadas. Ao apresentar a medida da base do espectro colorido com uma precisão de milésimos de polegada (2,997 polegadas), Herschel comete um erro gravíssimo, uma vez que é impossível determinar o comprimento do espectro com essa precisão. O fim do espectro é impreciso e isso já era conhecido na época de Herschel. Newton já afirmava que ninguém conseguia determinar qual era a forma do fim do espectro [10].

Ainda com relação à Fig. 3, GQ representa a linha que contém o arranjo de cores, do vermelho ao violeta. Entre o amarelo e o verde, a linha LR = 27/33 de GQ, representaria o poder de iluminação dos raios neste lugar. Para justificar sua escolha, ele relembra os resultados obtidos no experimento utilizando o microscópio [7], sendo que o laranja ilumina mais que o vermelho e que os raios amarelos iluminam os objetos ainda mais perfeitamente. O máximo de iluminação ocorre no amarelo brilhoso ou no verde claro. Porém, a partir do verde escuro o poder de iluminação decresce. O poder do azul assemelha-se ao vermelho; o poder do anil é ainda menor que o do azul, e o violeta o mais deficiente [6, 7]. A figura GRQG representa o que Herschel chama de espectro de iluminação.

Posteriormente, Herschel procura encontrar o espectro de calor. Para isso, ele admite a base do espectro de calor AQ, em proporção a do espectro de luz GQ, como 5 1/4 para 3, ou conforme a divisão newtoniana antes mencionada; a base do qual é 3,3 polegadas, como 57 3/4 para 33. Ele assume o máximo de calor, uma ordenada de comprimento igual ao que foi fixado para o máximo de luz, o que permitiria comparar os dois espectros juntos. Entretanto, ele não tinha uma base sobre a qual justificar a suposição de que a distância SF é igual a RL. Ele não tinha unidades comuns para os dois gráficos, mas incluiu números no gráfico para dar mais autoridade, num "misto de engenhosidade e imaginação científica", segundo Hilbert [14].

Verificando os dois espectros é possível ver a diferença na dispersão, pelo prisma, dos raios que produzem calor e os que ocasionam luz. Esses raios não concordam em sua refrangibilidade média, nem na situação de seu máximo: onde temos mais luz, temos pouco calor; e onde temos mais calor, não encontramos nenhuma luz. Então, Herschel questiona: "Como pode efeitos que são tão opostos, serem atribuídos para a mesma causa? Que modificação podemos supor ser acrescentada ao poder de produzir calor que produzem tais resultados inconsistentes?".

Novamente, Herschel recorre às regras de raciocínio filosófico de Newton para embasar seus argumentos, pois na sua segunda regra, Newton aponta que a similaridade de efeitos permite inferir similaridade de causas. Portanto, aos mesmos efeitos naturais devemos, na medida do possível, atribuir as mesmas causas. Herschel questiona como podem efeitos tão opostos serem atribuídos à mesma causa, para argumentar acerca da diferença entre luz e calor radiante. Fica evidente aqui outra contradição no trabalho de Herschel. Inicialmente, ao conjecturar que luz e calor radiante não são essencialmente diferentes, Herschel [7] recorre à 1ª regra de raciocínio filosófico de Newton para argumentar em torno da relação entre luz e calor radiante, afirmando que não se pode admitir diferentes causas para explicar certos efeitos, se eles podem ser descritos por uma. Agora, Herschel recorre à outra regra para enfatizar a diferença entre luz e calor radiante.

O final do espectro de calor acima pode indicar que essa radiação está diminuindo ou que o instrumento de detecção de Herschel não está mais absorvendo calor. Entretanto, Herschel não menciona esse fato. Com relação ao espectro de luz e de calor de Herschel, Melloni, em 1835, em uma apresentação de seu trabalho para Académie des Sciences Francesa, aponta que

(...) a natureza da fonte de calor, o tipo de prisma, seu ângulo de refração, e sua espessura todos afetam significantemente a distribuição de calor no espectro. O gráfico do poder luminoso no espectro deve ser entendido como uma ousada variação subjetiva na percepção de cor em vez de propriedades objetivas dos raios luminosos [14].

4. Resultados e controvérsias

Os experimentos de Herschel são feitos em meio aos seus trabalhos astronômicos. Ele desenvolve um trabalho eminentemente experimental e, em termos de matemática, trabalha apenas com algumas proporções simples. Entretanto, vale ressaltar alguns questionamentos que Herschel faz e as conclusões à que chega. Por exemplo, quando Herschel realiza experimentos refletindo e refratando calor advindo de diferentes fontes, nos quais ele busca resposta para a natureza do calor, suas conclusões são que os raios de calor não diferem dos raios de luz. Apesar de partir de conjecturas sobre experimentos específicos, Herschel entende ter chegado a um resultado geral quanto à natureza dos raios de luz e calor.

Mais adiante, tais conclusões são contraditas, pois ao realizar experimentos analisando a transmissão e o espalhamento dos raios de calor, Herschel encontra diferenças notáveis entre os raios de luz e de calor. Ele conclui que esses raios não tem nada em comum, além de certo grau de refrangibilidade e ressalta também que os raios de calor são menos espalháveis que os raios de luz.

Ao analisar o desenvolvimento dos experimentos de Herschel, encontramos alguns erros que poderiam ser facilmente percebidos por pesquisadores da época. Herschel não descreve o que não fez e o que provavelmente deu errado. Percebemos que ao começar a investigar sobre o calor, Herschel está entrando em um terreno no qual ele não tem experiência. Nem talvez conhecimento das pesquisas sobre calor da época, ou então não as cita. Por exemplo, resultados sobre o calor radiante já tinha sido obtidos por Mare Auguste Pictet (1752-1825), que em 1790, notou que o termômetro colocado no foco de um espelho côncavo registrou imediatamente um aumento na temperatura quando um corpo quente era colocado no foco de um segundo espelho, coaxial com o primeiro, mas a uma longa distância deste. Desse modo, ele defendia que calor radiante deveria se propagar em linhas retas em uma velocidade muito grande, talvez igual a velocidade da luz. Também temos James Hutton (1726 - 1797), que em 1794 identifica luz com calor radiante, considerando que o corpo quente converte calor em luz, que na absorção torna-se calor novamente [15]. Estes resultados não foram mencionados por Herschel em nenhum dos quatro trabalhos de 1800.

Ao divulgar seus resultados Herschel foi objeto de críticas positivas e negativas. As primeiras vieram principalmente daqueles que viam em seu trabalho uma possibilidade de afirmar a natureza ondulatória tanto da luz quanto do calor radiante. E o caso de Thomas Young (1773-1829), que utilizou os dados de Herschel para fortalecer a hipótese ondulatória14 14 Para aprofundar questões relativas à natureza da luz no início do século XIX, sugerimos a Ref. [8, p. 166-224]. da luz em suas Bakerian Lecture de 1801.15 15 Young pediu a Sr. Henry C. Englefield para repetir os experimentos de Herschel, de modo a assegurar a Royai Institution a validade dos experimentos de Herschel. Englefield confirmou as afirmativas de que o máximo de radiação térmica ocorre além do limite do vermelho visível [6]. Por outro lado, a separação entre luz e calor fornecia elementos que fortaleciam a hipótese do calórico, defendida por alguns cientistas britânicos na época.16 16 Para aprofundar questões de natureza do calor, sugerimos a Ref. [16]. Herschel recebeu muitos elogios do presidente da Royai Society, Joseph Banks (1743-1820), que comparou sua "descoberta como a mais importante desde a morte de Sir Isaac Newton" [14].

As críticas negativas, e incisivas, vieram de John Leslie17 17 John Leslie, escocês, desenvolveu investigações sobre medidas de calor, recebendo a Medalha Rumford, da Royai Society, em 1804 pelo seu trabalho Experimentad Inquiry into the Nature and Properties of Heat [17]. (1766-1832), que ao tomar conhecimento dos dois primeiros artigos de Herschel, enviou um comunicado ao editor do Nicholson's Journal para que emitisse um alerta contra a autoridade de um astrônomo cuja "autoridade na presente situação retardaria o progresso da ciência por fornecer opiniões que, estou totalmente convencido, são inacuradas e infundadas" [14]. As críticas de Leslie eram voltadas tanto aos procedimentos experimentais de Herschel, os quais ele julgava terem levado a resultados questionáveis; quanto aos aspectos metafísicos. Por exemplo, Herschel não considerou que o aquecimento próximo aos bulbos no experimento com o espectro poderia ser devido ao aquecimento do ar. Leslie acreditava que o ar era necessário para a radiação de calor. Ele preferiu chamar o processo de pulsação, porque acreditava que quando uma camada de ar entra em contato com o corpo aquecido, este absorve algo de calor - um fluido elástico - que leva a camada a expandir; a camada expandindo passaria calor para próxima camada e recairia em direção ao corpo quente para buscar carregar-se. Portanto, calor se moveria em pulsos que viajariam na velocidade do som [14].

Ao criticar os experimentos de Herschel, Leslie defende que quando o espectro é recebido no suporte o instrumento próximo é afetado em parte devido a luz refletida, mas principalmente devido à ação do ar aquecido acumulado sobre a superfície iluminada. Desse modo, os resultados seriam alterados em todos os caos em que o instrumento não estivesse completamente isolado. Leslie também defendia que é muito difícil, onde existe uma fonte ativa de calor, obter uma temperatura uniforme, especialmente em uma pequena sala. Outra crítica estava quanto à definição de "raios invisíveis", já que Leslie não assumia que uma radiação pudesse incidir no olho e não ser vista [6]. Além de Leslie, havia outros nomes reconhecidos na época (Baden Powell, Bewster, entre outros) que negavam a existência de raios invisíveis [14].

Não houve resposta de Herschel às críticas de Leslie, nem mesmo trabalhos posteriores dele em que os experimentos são refeitos com maior precisão. Em vários momentos de suas observações Herschel reconhece a imprecisão das medidas e até mesmo suas dúvidas quanto às interpretações dos resultados. Porém, sua conclusão final é de que calor radiante e luz são diferentes, e portanto, em desacordo com o que defendemos atualmente baseados no espectro eletromagnético.

5. Considerações finais

As conclusões a que Herschel chega após seus experimentos de transmissão e espalhamento dos raios de calor são completamente diferentes das aceitas atualmente. Herschel aceita que seria possível ter luz visível que absolutamente não esquenta, mesmo quando concentrada por lentes, e que também poderíamos ter, com a mesma refrangibilidade, raios de calor que mesmo concentrados não dão nenhuma luz. Ou seja, Herschel concluiu que poderia existir só luz ou só calor com o mesmo desvio por um prisma, o que sabemos que não pode ocorrer.

Apesar das teorias de Herschel e Leslie terem sido abandonadas, tentativas de tratar suas preocupações e diferenças contribuíram para o desenvolvimento do espectro eletromagnético [14]. Desta maneira, podemos perceber que apesar de Herschel não ter interpretado apropriadamente a natureza da radiação térmica, uma vez que ele considerou luz diferente de calor radiante, ele trouxe um enorme ímpeto para estudos nesta área. Experimentos logo começaram a ser feitos em laboratórios para resolver se luz e calor eram ocasionados pelos mesmos raios ou não.

A posição dos raios invisíveis de calor permaneceu instável até bem depois. Macedonio Melloni afirmou, em 1843, que: "Luz é simplesmente uma série de sinais caloríficos sensíveis aos órgãos da vista, ou vice versa, e as radiações do calor são verdadeiras radiações invisíveis de luz" [14]. Herschel tinha adotado isto como sua primeira hipótese, mas depois a rejeitou. Quando Melloni trouxe seus experimentos em 1830, ele compartilhou a visão de Herschel que calor radiante e luz são essencialmente diferentes. Apenas depois de mais de uma década de trabalho, ele chegou à visão moderna.

Herschel havia especulado que as cores podiam ter diferentes propriedades químicas,18 18 Talvez Herschel tivesse conhecimento dos trabalhos de Karl Wilhelm Scheele (1726-1786) sobre o escurecimento do cloreto de prata sob as cores do espectro [13]. porque o princípio ácido podia ser desigualmente distribuído no espectro. Influenciado por essas conjecturas de Herschel, J.W. Ritter descobriu mudanças químicas além do violeta, que foi um importante passo no desenvolvimento do espectro. Porém, ele não levou filósofos naturais contemporâneos a pensar o espectro de luz em termos de uma entidade contínua.

E claro que ainda há várias considerações a serem feitas do ponto de vista metodológico e sobre o modo de fazer ciência de Herschel, assim como discutido na Ref. [18, p. 266], mas não é nosso objetivo neste trabalho aprofundar questões epistemológicas. A análise feita nos leva a concluir que apesar das limitações do trabalho de Herschel, ele contribuiu para o desenvolvimento do espectro ao levantar questões cujas respostas levaram a outras investigações. Assim, a utilização do presente episódio histórico pode ser de grande valia na inserção de conceitos de física moderna no ensino, como o caso do mapeamento de imagens usando infravermelho.

Agradecimentos

As autoras agradecem ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pelo apoio financeiro e aos professores Peter Heering (Universidade de Flensburg/Alemanha) e Nelson Studart, professor visitante da Universidade Federal do ABC (UFABC), pela colaboração.

Recebido em 10/6/2014

Aceito em 29/8/2014

Publicado em 23/10/2014

  • [1] L. Goldberg, Infrared Solar Spectrum (Math-Hulbert Observatory, Pontiac, 1954).
  • [2] E.F.J. Ring, The Imaging Science Journal 58, 254 (2010).
  • [3] A. Rogalski, Opto-Electronics Review 20, 279 (2012).
  • [4] S. Barr, American Journal of physics 28, 42 (1960).
  • [5] M.A. Hoskin, William Herschel. In: Complete Dictionary of Scientific Biography. Disponível em: http://www.encyclopedia.com/topic/William_Frederick_Herschel.aspx Acessado em 10/7/2012.
    » link
  • [6] D.J. Lovell, Isis 59, 46 (1968).
  • [7] W. Herschel, Philosophical Transactions of the Royal Society of London 90, 255 (1800a).
  • [8] O. Darrigol, The History of Opticks: From Greek Antiquity to the Nineteenth Century (Oxford University Press, Oxford, 2012).
  • [9] W. Herschel, Philosophical Transactions of the Royal Society of London 90, 437 (1800d).
  • [10] C.C. Silva e R.A. Martins, Revista Brasileira de Ensino de Física 18, 313 (1996).
  • [11] I. Newton, Opticks, Or, A Treatise of the Reflections, Refraction, and Colour of Light (Dover, New York, 952).
  • [12] W. Herschel, Philosophical Transactions of the Royal Society of London 90 , 284 (1800b).
  • [13] W. Herschel, Philosophical Transactions of the Royal Society of London 90, 293 (1800c).
  • [14] M. Hilbert, Annals of Science 56, 357 (1999).
  • [15] M.K. Barnett, The Scientific Monthly 62, 165 (1946).
  • [16] A.P.B. Silva, T.C.M. Forato e J.L.A.M.C. Gomes, Cad. Bras. Ens. Fis. 30, 492 (2013).
  • [17] J. Leslie, Experimental Inquiry into the Nature and Properties of Heat (J Mawman, Edinburgh, 1804).
  • [18] I. Hacking, Representar e Intervir: Tópicos Introdutórios de Filosofia da Ciência Natural (EDUERJ,Rio de Janeiro, 2012), p. 266-277.
  • 1
    E-mail:
  • 2
    A discussão didática do experimento histórico foi submetida recentemente para apresentação em evento. Copyright by the Sociedade Brasileira de Física. Printed in Brazil.
  • 3
    Basta, por exemplo, buscar por "William Herschel" na base de dados JSTOR
  • 4
    O termo radiação utilizado por Herschel denotava simplesmente a luz obtida, sem implicar em qualquer interpretação eletromagnética. Radiação, para Herschel, é um feixe de raios, ou seja, luz se propagando em linha reta
  • 5
    O termo refrangibilidade nas pesquisas de Herschel, refere-se aos diferentes graus de refração dos raios de calor e de luz por um prisma. Para o caso da luz, a diferença na refração é demonstrada pela variedade de cores; para o caso do calor, a diferença na refração dos raios é representada pelos diferentes graus de aquecimento ao longo do espectro de cores. A refração da luz era um fenômeno em estudo neste período e havia várias suposições quanto ã causa do fenômeno e à natureza da luz. Atualmente entendemos que o fenómeno da refração ocorre pela mudança da velocidade da luz no meio, o que determina o índice de refração de um material. Para entender melhor, sugerimos a Ref. [8, p. 132].
  • 6
    Herschel não explicita qual escala de temperatura estava utilizando. A diferença Δ
    T é relativa ao valor da temperatura no termômetro que estava na cor a ser medida e o termômetro fora da cor, usado como padrão. Assim, para o primeiro caso da
    Tabela 1, os termômetros Nº 1 e Nº 2 marcavam inicialmente 43 1/2 e 43 1/2, respectivamente. Após 10 minutos, os valores eram 50 e 3 1/4, respectivamente, o que leva Herschel a concluir que a diferença de 6 3/4 graus entre os termômetros seria devida ao fato do termômetro Nº 1 estar sob a cor vermelha.
  • 7
    Não é possível fazer uma analogia entre o "poder de aquecimento" considerado por Herschel e o que entendemos hoje sobre calor, ou mesmo levantar hipóteses sobre a natureza da radiação ou do calor. Mas, a partir das conclusões a que ele chega no trabalho, pode-se supor que o poder de aquecimento está simplesmente relacionado com a capacidade de fazer a temperatura subir. A exposição á cor vermelha faz aumentar mais a temperatura do que a exposição á cor verde.
  • 8
    Herschel está adotando que o espectro solar é constituído de sete cores. Como sabemos, há infinitas cores no espectro e, além disso, ele é contínuo e não pode ser adotado como Herschel faz, como se houvesse uma largura definida para cada uma das cores. No entanto, é importante lembrar que no final do século XVIII as concepções newtonianas eram muito fortes e Herschel em vários momentos se mostra adeptos delas. Portanto, é compreensível que adote o espectro de sete cores primárias como fazia Newton. Para compreensão da teoria das cores de Newton, sugerimos a Ref. [10].
  • 9
    Um instrumento para comparar o grau de iluminação utilizado na época era o fotômetro de Bouguer [8, p. 111], que Herschel não menciona. Não entraremos em detalhes, mas o modo como Herschel fez as comparações de luminosidade são muito imprecisas e foram motivo de críticas na época
  • 10
    Herschel faz referência aos acoplamentos de prismas, como a Pig. 16 do
    Optics de Newton [11, p. 43].
  • 11
    O procedimento para determinação da diferença de temperatura é semelhante ao da
    Tabela 1, medindo sempre a diferença entre termômetro na cor e termômetro fora dela. Porém, para a linha 2, Herschel inverte os termômetros padrão e de medida.
  • 12
    A sentença de Herschel é "It will now be easy to draw the result of these observations into a very narrow compass".
  • 13
    Sugerimos a leitura da Ref. [14] para uma discussão aprofundada dos problemas nos experimentos de Herschel e críticas ao método de medir a luminosidade.
  • 14
    Para aprofundar questões relativas à natureza da luz no início do século XIX, sugerimos a Ref. [8, p. 166-224].
  • 15
    Young pediu a Sr. Henry C. Englefield para repetir os experimentos de Herschel, de modo a assegurar a
    Royai Institution a validade dos experimentos de Herschel. Englefield confirmou as afirmativas de que o máximo de radiação térmica ocorre além do limite do vermelho visível [6].
  • 16
    Para aprofundar questões de natureza do calor, sugerimos a Ref. [16].
  • 17
    John Leslie, escocês, desenvolveu investigações sobre medidas de calor, recebendo a Medalha Rumford, da Royai Society, em 1804 pelo seu trabalho
    Experimentad Inquiry into the Nature and Properties of Heat [17].
  • 18
    Talvez Herschel tivesse conhecimento dos trabalhos de Karl Wilhelm Scheele (1726-1786) sobre o escurecimento do cloreto de prata sob as cores do espectro [13].
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Nov 2014
    • Data do Fascículo
      Dez 2014

    Histórico

    • Recebido
      10 Jun 2014
    • Aceito
      29 Ago 2014
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