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Campo elétrico na superfície de um condutor esférico e o recalcitrante fator 1/2

Electric field at the surface of a spherical conductor and the recalcitrant factor 1/2

Resumo

O presente artigo trata, mais uma vez, do comportamento do campo elétrico de um condutor esférico carregado com ênfase para o valor do campo na superfície do mesmo. Este valor do campo elétrico na superfície de um condutor esférico tem sido discutido em alguns artigos recentemente publicados em revistas científicas e colocado em conflito alguns resultados clássicos, como o fato do campo elétrico ser descontínuo na superfície de um condutor esférico uniformemente carregado quando se admite uma distribuição superficial de cargas. Este artigo retoma a discussão, utilizando os mesmos modelos citados, mostrando uma análise sobre a busca e interpretação do insistente fator 12. O valor do campo na superfície de um condutor esférico com carga uniformemente distribuída em sua superfície não é arbitrariamente dado por ele. O comportamento matemático do campo depende do modelo adotado.

Palavras-chave:
campo elétrico; esfera carregada; descontinuidade

Abstract

The present article deals, once again, with the electric field behavior of a charged spherical conductor with emphasis on the value of the field on its surface. This value of the electric field on the surface of a spherical conductor has been discussed in some articles recently published in scientific journals and has conflicted some classic results, such as the fact that the electric field is discontinuous on the surface of a uniformly charged spherical conductor when admitting a superficial charge distribution. This article resumes the discussion, using the same models mentioned, showing an analysis of the search and interpretation of the insistent factor 12. The value of the field on the surface of a spherical conductor with uniformly distributed charge on its surface is not arbitrarily given by it. The mathematical behavior of the field depends on the model adopted.

Keywords:
electric field; charged sphere; discontinuity

1. Introdução

O valor do campo elétrico na superfície de um condutor esférico tem sido discutido em alguns artigos recentemente publicados em revistas científicas e colocado em conflito alguns resultados clássicos, como o fato do campo elétrico ser descontínuo na superfície de um condutor esférico uniformemente carregado quando se admite uma distribuição superficial de cargas. Para ser mais direto, alguns artigos utilizam modelos matemáticos interessantes que propõem o valor σ2ε0 para o valor do campo elétrico em um ponto exatamente sobre a superfície de um condutor esférico com distribuição superficial uniforme de cargas, como Slodkowski et al, Lima e Al-Jaber & Saadeddin [1[1] K. Slodkowski, M.C. Pinheiro e T.C. Luchese, Rev Bras Ens Fís 40, e2311 (2018).-[2] F.M.S. Lima, Resonance 23, 1215 (2018). 3[3] S.M. Al-Jaber e I. Saadeddin, Applied Mathematics 10, 226 (2019).]. O presente artigo retoma a discussão, utilizando os mesmos modelos citados, para mostrar que o resultado com o fator 12, que aparece no valor do campo na superfície das referências indicadas acima, é arbitrário e não representa qualificadamente o campo desta distribuição superficial de cargas, ou ainda, que o comportamento do campo não pode ser descrito como na Figura 1, conforme ratificado por [4][4] G.E. Assad, Rev Bras Ens Fís 34, 4701 (2012)..

Figura 1
Campo devido a uma esfera condutora de raio R, como função da distância r com relação ao seu centro, desprezando-se a espessura da região onde se concentra o excesso de cargas [1][1] K. Slodkowski, M.C. Pinheiro e T.C. Luchese, Rev Bras Ens Fís 40, e2311 (2018)..

2. Modelo 1: casca esférica com distribuição “regular” de cargas

Neste modelo, supomos o campo elétrico gerado por uma esfera carregada uniformemente, considerando que a carga líquida, em escala atômica, distribui-se em uma nuvem eletrônica com densidade volumétrica de cargas variável (ou não) e que ocupa, aproximadamente, o volume de uma casca esférica de espessura 2δ, representando uma ou duas camadas eletrônicas (δ~1Å) [5[5] J.D. Jackson, Classical Electrodynamics (Wiley, New York, 1998), 3ª ed, p. 20.-[6] N.D. Lang e W. Kohn, Phys Rev B 3, 1215 (1971). 7[7] H.M. Nussenzveig, Curso de Física Básica -- Eletromagnetismo (Edgard Blücher, São Paulo, 1997), v. 3, p. 31.]. Esta nuvem ocupa o espaço em torno do raio R da esfera propriamente dita, conforme apresentado por Slodkowski et al[1][1] K. Slodkowski, M.C. Pinheiro e T.C. Luchese, Rev Bras Ens Fís 40, e2311 (2018).. Para resolver o problema vamos propor as seguintes hipóteses simplificadoras:

- os raios interno e externo da casca (nuvem eletrônica) são, respectivamente, R1 e R2, de modo que, R2=R1+2δ;

- será considerada uma carga total positiva na casca (Q>) e, quando não nulo, o campo é radial apontando para fora da mesma, já se admitindo a situação de equilíbrio eletrostático;

- a densidade de cargas é função do raio e dada por ρ(r)=Crnpara R1rR2 e ρ(r)=0 para qualquer outro valor de r, sendo C uma constante arbitrária e n um expoente qualquer, desde que n - 3, determinado pelo modelo escolhido;

Para determinar o campo no interior da casca (R1rR2), já que os campos externo e interno a ela são resultados bem consolidados e livres de divergências, vamos invocar a lei de Gauss, considerando uma superfície gaussiana esférica de raio r e concêntrica à casca:

(1) ε 0 E ( r ) d A = q E n v ( r )

Assim,

(2) E ( r ) = q E n v ( r ) 4 π ε 0 r 2 ,

onde qEnv(r) é a carga envolvida pela superfície gaussiana. Esta carga é dada por

(3) q E n v ( r ) = ρ ( r ) d V = 4 π R 1 r ρ ( r ) r 2 d r .

Como ρ(r)=Crn, através da equação (3) expressa-se a carga envolvida pela superfície gaussiana em termos da carga total líquida da esfera por:

(4) q E n v ( r ) = Q ( r n + 3 R 1 n + 3 ) ( R 2 n + 3 R 1 n + 3 )

Substituindo a equação (4) na equação (2) e tomando os resultados para os campos interno e externo à casca, o sistema mostrado no conjunto da equação (5) completa a descrição analítica do campo.

(5) { E ( r ) = 0 , 0 r < R 1 E ( r ) = ( Q 4 π ε 0 R 2 2 ) r n + 1 R 2 n + 1 ( 1 R 1 n + 3 r n + 3 ) ( 1 R 1 n + 3 R 2 n + 3 ) , R 1 r R 2 E ( r ) = Q 4 π ε 0 r 2 , r > R 2

Para fins de comparação e validação da formulação matemática, os resultados mostrados na equação (5) concordam, exatamente, com o mostrado em [1][1] K. Slodkowski, M.C. Pinheiro e T.C. Luchese, Rev Bras Ens Fís 40, e2311 (2018)., quando se faz n=0, ou seja, quando a densidade de cargas é constante na casca esférica (ou nuvem eletrônica). Observa-se ainda que, com o uso da equação (5b), o campo transita de E(R1)=0 para E(R2)=Q4πε0R22 ao longo da casca sem descontinuidade alguma.

A Figura 2 mostra o comportamento do campo elétrico para alguns valores de n, indicando, qualitativamente, a transição entre valores internos e externos, considerando-se uma casca de espessura não desprezível em relação aos raios da casca.

Figura 2
Comportamento do campo elétrico para uma casca esférica com diferentes densidades de carga ao longo de sua espessura (R1 r R2): (a) ρ= cte; n = 0, (b) ρ r2; n = 2 e (c) ρr5; n = 5.

Numa escala mais realista, quando R1 e R2 se aproximam, de modo que a espessura da nuvem seja de R2R1=2δ=2.10-10m, conforme sugerem as referências [5[5] J.D. Jackson, Classical Electrodynamics (Wiley, New York, 1998), 3ª ed, p. 20.-[6] N.D. Lang e W. Kohn, Phys Rev B 3, 1215 (1971). 7[7] H.M. Nussenzveig, Curso de Física Básica -- Eletromagnetismo (Edgard Blücher, São Paulo, 1997), v. 3, p. 31.], a transição entre 0<E(r)E(R2)<1 apresenta um comportamento linear1 1 Qualquer função bem comportada pode ser aproximada por uma reta nas proximidades de um ponto. A possibilidade de expansão em série de Taylor evidencia esse fato! , o que será mostrado mais adiante. A equação (5b), com R2=R1+2δ, pode ser reajustada para:

(6) E ( r ) E ( R 2 ) = ( R 1 r ) 2 ( 2 δ R 1 + 1 ) 2 ( r 3 + n R 1 3 + n 1 ) [ ( 2 δ R 1 + 1 ) 3 + n 1 ]

Considerando as seguintes grandezas adimensionais, E(r)E(R2)=E˜(r˜), δR1=δ˜ e rR1=r˜, a equação (6) pode ser reescrita da seguinte forma:

(7) E ˜ ( r ˜ ) = 1 r ˜ 2 ( 2 δ ˜ + 1 ) 2 ( r ˜ 3 + n 1 ) [ ( 2 δ ˜ + 1 ) 3 + n 1 ]

Para valores típicos em que o raio interno da esfera é da ordem de centímetros, considere-se δ˜~108 e observe na Figura 3 os gráficos que mostram a transição para n=0 e n=100.

Figura 3
Transição do campo elétrico no interior da nuvem de espessura 2Å quando seu raio interno é R1 ~ 1cm em duas distribuições de cargas distintas: a) ρ=cte; n=0, b) ρr100; n=100.

Estes gráficos mostram que, em escala microscópica, o valor do campo passa, em excelente aproximação, linear e continuamente por infinitos valores (0E˜1) do interior na nuvem ao exterior da mesma, inclusive passando pelo valorE˜=12 no ponto médio da nuvem, independentemente da distribuição de cargas.

A transição mostrada nas figuras acima pode ser mais realisticamente ratificada por um dos mais famosos compêndios de eletrodinâmica clássica [5][5] J.D. Jackson, Classical Electrodynamics (Wiley, New York, 1998), 3ª ed, p. 20. 2 2 A figura 1.5 da referência [5] (p.21) mostra a evolução do campo elétrico para um modelo de distribuição de cargas pautado na teoria de superfícies metálicas com ênfase na forma da distribuição da densidade de elétrons e na energia da superfície. Tal modelo pode ser encontrado em [6]. . Segundo esta referência:

Num nível microscópico, a carga não está exatamente na superfície, e o campo não se altera descontinuamente. [...]. O excesso de carga eletrônica parece estar confinado a uma região de ±2 Å em torno da “superfície” da distribuição iônica. O campo elétrico cresce suavemente nesta região até seu valor σε0 no “exterior” do condutor.

Desta forma, observando a Figura 4, vê-se o comportamento macroscópico do campo E˜(r˜), desde o centro da esfera a pontos externos, mostrando que há uma transição súbita dos valores do campo através da nuvem, desde zero até 1 e, depois, caindo com 1r˜2.

Figura 4
Campo de uma nuvem eletrônica de espessura muito fina.

Agora, para descrever o comportamento do campo de uma distribuição singular de cargas, utiliza-se o modelo anterior, usando-se a formulação no limite em que a espessura da casca tende a zero, querendo assim se chegar ao modelo de distribuição superficial de cargas. Pois bem, em [1][1] K. Slodkowski, M.C. Pinheiro e T.C. Luchese, Rev Bras Ens Fís 40, e2311 (2018). propõe-se que a superfície física da esfera de raio R fique exatamente no meio da nuvem, tal que, R1=Rδ e R2=R+δ, uma escolha ad hoc e arbitrária. De fato, o resultado com o fator 12 será encontrado, entretanto, qualquer outra posição da nuvem eletrônica (casca) levará a outro resultado conveniente para o campo na superfície do condutor, indicando que qualquer outro valor seria tão correto quanto o suposto verídico σ2ε0. Toma-se, então, a equação (5b), escreve-se R1 e R2 em função de δ (definindo a posição da superfície da esfera em relação a nuvem eletrônica) e avalia-se o campo em r=R, onde R é o raio da esfera carregada. Após isto, faz-se o limite de E(R) quando δ0 e utiliza-se a densidade superficial de cargas da esfera como sendo σ=Q4πR2.

A Tabela 1 a seguir mostra três possíveis valores para o campo na superfície do condutor, para uma densidade de cargas, ρ(r), proporcional a rn.

Tabela 1
Alguns resultados possíveis para o campo na superfície de uma esfera condutora, com distribuição de cargas dada em uma nuvem eletrônica de espessura infinitesimal e de densidade de cargas, ρ(r)n.

O modelo adotado na tentativa de encontrar que o valor do campo na superfície do condutor esférico seja σ2ε0 não se sustenta, pois infinitos outros valores de E(R) podem ser encontrados, a depender da posição da nuvem eletrônica em relação à esfera.

Um modo analítico alternativo e interessante de se verificar os resultados acima, que levam em conta a posição da nuvem em relação à superfície da esfera é se considerar os limites de distribuição de carga da nuvem dados por

{ R 1 = R f δ R 2 = R + ( 2 f ) δ

com 0f2 de modo a manter R2R1=2δ. Substituindo esses limites em E(r), equação (5b), e, nessa, fazendo r=R, obtém-se:

(8) E ( R ) = Q 4 π ε 0 R 1 + n [ R + ( 2 f ) δ ] 3 + n × [ 1 ( R f δ ) 3 + n R 3 + n ] { 1 ( R f δ ) 3 + n [ R + ( 2 f ) δ ] 3 + n }

Quando δ R, usando expansões até primeira ordem em δ na expressão acima, é possível mostrar que

(9) E ( R ) f σ 2 ε 0

quando, na expressão final, toma-se o limite de δ0. Esse resultado depende de f e varia continuamente, desde 0 até σε0, passando por σ2ε0quando f=1. Ou seja, é arbitrário, como se deseja demonstrar.

3. Modelo 2: superposição de campos de anéis

Neste modelo utilizado para a discussão do campo elétrico em um ponto exatamente sobre a superfície de um condutor, vamos fazer uma integração de campos de anéis, dispostos sobre a esfera para calcular o campo em um ponto qualquer de um eixo que passa pelo centro da esfera e, também, pelos centros dos anéis.

Observe a Figura 5 que mostra uma esfera condutora com densidade superficial de cargas (σ) constante. Tomando a equação do campo elétrico de um anel de carga dq e raio r, em um ponto sobre o eixo de simetria do anel e a uma distância z de seu centro, tem-se:

(10) E ( z ) = 1 4 π ε 0 d q z ( z 2 + r 2 ) 3 2
Figura 5
Esquema de um anel da esfera carregada.

Para o anel da Fig. 5, dq=σAAnel=2πσR2senθdθ, z=Rcosθ+x e r=Rsenθ. Assim, após simplificações, o campo deste anel em um ponto do eixo de simetria é:

(11) d E ( x , θ ) = σ 2 ε 0 s e n θ ( c o s θ + x R ) [ ( c o s θ + x R ) 2 + ( s e n θ ) 2 ] 3 2 d θ

Tomando as seguintes grandezas adimensionais, E(x,θ)σε0=E˜(x˜,θ) e xR=x˜, reescreve-se:

(12) d E ˜ ( x ˜ , θ ) = 1 2 s e n θ ( c o s θ + x ˜ ) [ ( c o s θ + x ˜ ) 2 + ( s e n θ ) 2 ] 3 2 d θ = 1 2 s e n θ ( c o s θ + x ˜ ) ( x ˜ 2 + 2 x ˜ c o s θ + 1 ) 3 2 d θ

Para determinar o campo ao longo do eixo x, dado por todos os anéis que constituem a esfera, procede-se com a integração:

(13) E ˜ ( x ˜ ) = 0 π 1 2 s e n θ ( c o s θ + x ˜ ) ( x ˜ 2 + 2 x ˜ c o s θ + 1 ) 3 2 d θ

Assim,

(14) E ˜ ( x ˜ ) = 1 2 x ˜ 2 [ 1 + x ˜ ( 1 + x ˜ ) 2 + 1 ] x ˜ 0 e x ˜ 1

A descontinuidade no valor do campo pode ser rigorosamente obtida quando se faz o limite de E˜(x˜) com x˜ tendendo a 1 pela direita e pela esquerda, além de que, E˜(1) é indefinido em um ponto pertencente à superfície carregada da esfera: vide Figura 6.

(15) { lim x ˜ 1 E ˜ ( x ˜ ) = 0 lim x ˜ 1 + E ˜ ( x ˜ ) = 1
Figura 6
Descontinuidade do campo elétrico na superfície do condutor.

Neste ponto, dando atenção à descrição do campo na superfície de um condutor esférico apresentada por [1[1] K. Slodkowski, M.C. Pinheiro e T.C. Luchese, Rev Bras Ens Fís 40, e2311 (2018).-2[2] F.M.S. Lima, Resonance 23, 1215 (2018).] que fazem uma integração de anéis, semelhante a anterior, para determinar o valor do campo na superfície da esfera com distribuição superficial de cargas, encontrando o valor σ2ε0. Como o campo elétrico tem uma singularidade não integrável no ponto da superfície onde se deseja calcular o campo, [1][1] K. Slodkowski, M.C. Pinheiro e T.C. Luchese, Rev Bras Ens Fís 40, e2311 (2018). e [2][2] F.M.S. Lima, Resonance 23, 1215 (2018). fazem a regularização da integral divergente alterando o limite superior da integração dos anéis, equivalendo a retirar da soma um elemento infinitesimal de carga da posição onde se deseja calcular o campo, deixa-se um pequeno “buraco” na superfície. Artificio este que NÃO é utilizado no resultado dado pela equação (14) deste artigo e cuja descontinuidade do campo, para este modelo, é evidenciada nas equações. (15), onde toda a superfície da esfera foi levada em consideração, a carga da esfera foi considerada na íntegra e nenhum “buraco” foi feito na superfície para a obtenção destes resultados.

De antemão, não é surpreendente que se encontre o resultado com o fator supramencionado. É fácil encontrar a ampla literatura este resultado, à guisa de informação, vide [7[7] H.M. Nussenzveig, Curso de Física Básica -- Eletromagnetismo (Edgard Blücher, São Paulo, 1997), v. 3, p. 31.-[8] R.P. Feynman, R.B. Leighton e M. Sands, in: Lições de Física de Feynman (Bookman, Porto Alegre, 2008), v. II. [9] P.A. Tipler e G. Mosca, Física para cientistas e engenheiros: eletricidade e magnetismo, ótica (LTC, Rio de Janeiro, 2006), v. 2, p. 56. [10] D. Halliday, R. Resnick e K.S. Krane, Física 3 (LTC, Rio de Janeiro, 2004), v. 3, p. 61. [11] E.M. Purcell, Eletricidade e Magnetismo, Curso de Física de Berkeley (Edgard Blücher, São Paulo, 1970), 1ª ed., v. 2, p. 48. [12] E.M. Purcell e D.J. Morin, Electricity and Magnetism (Cambridge University Press, New York, 2013), 3ª ed., v. 2, p. 30. 13[13] D.J. Griffiths, Introduction to Electrodynamics (Prentice Hall, Upper Saddle River, 1999), p. 71.]3 3 Não se deve confundir a força sobre um elemento de carga na superfície F=dqσ/2ε0 com o campo gerado por toda a distribuição de cargas da esfera. Na seção 1.14 da referência [12], por exemplo, a discussão se dá sobre “The force on a layer of charge”. Neste artigo, não entraremos nesta discussão pois este fato já foi diretamente discutido em [4] . A questão está no fato de que o valor σ2ε0 é: i) o campo de todas as cargas da superfície da esfera, excetuando-se um elemento de carga dq, com direção radial e apontando para fora da esfera; ii) é o campo do elemento de carga dq, exatamente como o campo nas proximidades das faces de um disco infinitesimal carregado, de um lado, para fora da esfera (fazendo com que o campo externo total seja σε0) e, de outro, para dentro (fazendo com que o campo interno total seja nulo). Veja a Figura 7 que clarifica o texto acima com explicação que pode ser encontrada em [4][4] G.E. Assad, Rev Bras Ens Fís 34, 4701 (2012). e [8][8] R.P. Feynman, R.B. Leighton e M. Sands, in: Lições de Física de Feynman (Bookman, Porto Alegre, 2008), v. II..

Figura 7
Esquema que mostra o campo nas proximidades do disco e o campo do restante das cargas da esfera. O campo do condutor esférico é, então, dado pela superposição desses dois.

Pois bem, se retirarmos o disco carregado (sem que isto afete a distribuição das cargas remanescentes), o campo neste “buraco” da superfície será σ2ε0, mas não representará o campo de toda a carga da esfera e os campos, externos e internos, imediatamente próximos deste “buraco”, também não serão, respectivamente σε0 e 0, tenderão a ser, igualmente, σ2ε0.

Para observarmos este fato vamos modificar o limite superior de integração da equação (13) procedendo, analogamente, ao feito por [1][1] K. Slodkowski, M.C. Pinheiro e T.C. Luchese, Rev Bras Ens Fís 40, e2311 (2018). e [2][2] F.M.S. Lima, Resonance 23, 1215 (2018).. Veja a seguir:

(16) E ˜ ( x ˜ ) = 0 π ξ 1 2 s e n θ ( c o s θ + x ˜ ) ( x ˜ 2 + 2 x ˜ c o s θ + 1 ) 3 2 d θ

Assim,

(17) E ˜ ( x ˜ , ξ ) = 1 2 x ˜ 2 ( 1 + 1 + x ˜ c o s ( ξ ) 1 + x ˜ 2 2 x ˜ c o s ( ξ ) )

Desta forma [1][1] K. Slodkowski, M.C. Pinheiro e T.C. Luchese, Rev Bras Ens Fís 40, e2311 (2018). e [2][2] F.M.S. Lima, Resonance 23, 1215 (2018). mostram que E˜(1,ξ)=12. Para mostrar que os campos interno e externo também tendem a este valor, façamos os limites laterais de E˜(x˜,ξ), quando x˜1+ e quando x˜1, depois vejamos o resultado quando ξ0. Assim,

(18) E ˜ ( x ˜ , ξ ) = E ˜ ( x ˜ , ξ ) = 1 2 ( 1 + 1 + c o s ( ξ ) 2 2 c o s ( ξ ) )

Então,

(19) E ˜ ( x ˜ 1 + , , ξ ) = 1 2

Estes resultados, mostram que, quando o elemento de carga dq é retirado da superfície (em x˜=1), o campo ao longo do eixo x˜ não é descontínuo na superfície (E˜(x˜,ξ)=E˜(x˜,ξ), 0<ξπ), o campo não é nulo no interior da esfera e não é σε0 no exterior (em pontos muito próximos à superfície). Para reiterar ainda mais os resultados acima, observe a Figura 8 que mostra o gráfico da equação (17), para ξ=107rad, mostrando a transição do campo para pontos do domínio próximos à superfície da esfera.

Figura 8
Gráfico da equação (17), que usa ξ=107rad e mostra a transição do campo para posições próximas à superfície.

Desta forma, é possível mostrar neste artigo e nas referências [1][1] K. Slodkowski, M.C. Pinheiro e T.C. Luchese, Rev Bras Ens Fís 40, e2311 (2018). e [2][2] F.M.S. Lima, Resonance 23, 1215 (2018). que, por integração direta da Lei de Coulomb de campos de anéis, temos E˜ (1) =12, porém, quando o anel de carga dq, retirado nessa abordagem limite é acrescentado à esfera, fechando-a, não podemos definir nenhum valor para E˜ (1). Resultado este confirmado na seção anterior.

4. Modelo 3: série de Fourier

Ainda, para completar a análise dos artigos mais recentes e que citam [4][4] G.E. Assad, Rev Bras Ens Fís 34, 4701 (2012). e que fazem alusão ao escopo deste texto, se faz mister citar o belo artigo de Al-Jaber & Saadeddin [3][3] S.M. Al-Jaber e I. Saadeddin, Applied Mathematics 10, 226 (2019). que utiliza uma modelagem estritamente matemática, com uma série de Fourier associada a uma função descontínua para justificar o fator 12. Tomando as palavras dos próprios autores, “[...] no ponto da descontinuidade (x=0) a série [...] converge para 12, que é o valor médio entre os dois limites de f(x), antes e depois do salto”. Os autores utilizam uma função descontínua em x=0, exatamente como uma onda quadrada periódica, muito conhecida na ampla literatura e, para que o campo se adapte a esta função, consideram o período (2λ) muito pequeno. Para mostrar que a descontinuidade de Fourier se aplica a qualquer domínio assimétrico (ou não) em relação à origem do sistema de coordenadas e ratificar o resultado encontrado por [3][3] S.M. Al-Jaber e I. Saadeddin, Applied Mathematics 10, 226 (2019)., vamos escolher uma função cujo ponto de descontinuidade pode variar ao longo do período 2λ. Vide a seguir:

(20) f ( x ) = E ( x ) ( σ ε 0 ) = { 0 , - λ x < k λ 1 , k λ < x λ ; com -1 < k < 1 .

A Figura 9 mostra o comportamento gráfico da equação (20). Como uma expansão em séries de Fourier para uma função f(x) de período 2λ, seccionalmente contínua, pode ser convenientemente escrita da seguinte forma:

(21) F ( x ) = a 0 2 + n = 1 [ a n c o s ( n π x λ ) + b n s e n ( n π x λ ) ] ~ f ( x )
Figura 9
Gráfico ilustrativo da equação (20).

Tomando critérios de ortogonalidade das funções trigonométricas, seus coeficientes são dados por:

(22) { a 0 = 1 λ λ λ f ( x ) d x a n = 1 λ λ λ f ( x ) c o s ( n π x λ ) d x n b n = 1 λ λ λ f ( x ) s e n ( n π x λ ) d x n

Assim, a série de Fourier associada a função descontínua dada pela equação (20), após cálculos de seus coeficientes, é:

(23) F ( x ) = ( 1 k ) 2 1 π n = 1 1 n { s e n ( n π k ) c o s ( n π x λ ) + [ ( 1 ) n c o s ( n π k ) ] s e n ( n π x λ ) } .

De fato, no ponto de descontinuidade (x=kλ),

(24) F ( k λ ) = ( 1 k ) 2 1 π n = 1 ( 1 ) n s e n ( n π k ) n = 1 2 , com 1 < k < 1

Para o caso mostrado em [3][3] S.M. Al-Jaber e I. Saadeddin, Applied Mathematics 10, 226 (2019)., basta fazer k=0 e F(0)=12 4 4 Um caso interessante se dá quando k=1/2, nesta situação, o segundo termo do lado direito da equação (23) resulta em ∑n=1∞(−1)nsen(nπ2)n=−1+13−15+17−, que é o negativo da fórmula de Leibniz para o número π e resulta em −π4, fazendo com que F(λ/2) também resulte no recalcitrante 1/2. . A Figura 10 mostra o comportamento da série de Fourier associada à função, explicitamente descontínua, dada na equação (20) e para alguns valores de termos da expansão. Nota-se, ainda, que a n-ésima soma parcial da série de Fourier oscila bastante perto da descontinuidade, o que faz aumentar o valor máximo da soma parcial acima do valor da própria função original, caracterizando o fenômeno de Gibbs (Vide [14][14] E. Kreyszig, Advanced Engineering Mathematics (Wiley, NewYork, 1998), 9ª ed., p. 510.).

Figura 10
Gráficos da expansão em série de Fourier para a função descontínua da equação (20) para n=5, n=10, n=20 e n=100. Observa-se ainda o fenômeno de Gibbs nas proximidades do ponto de descontinuidade.

Enfim, o modelo apresentado pela série de Fourier, leva uma função descontínua (a equação do campo mostrada na equação (20)) a ser representada por uma expansão em senos e cossenos, que transita pelo fator 12 no ponto de descontinuidade da função original, como visto nos modelos anteriores. Ainda, evidencie-se que nenhum gráfico da Figura 10 se assemelha ao da Figura 1.

5. Considerações finais

Começando pelo primeiro modelo, onde se considera uma nuvem eletrônica de espessura da ordem de 2Å (muito menor que o raio da esfera), que se assemelha ao de uma casca esférica fina com distribuição regular de cargas, o campo varia de modo aproximadamente linear (modelo microscópico), desde 0 a σε0, radialmente ao longo da nuvem mas não é, necessariamente, σ2ε0 na superfície da esfera. Quando se faz o limite em que a espessura da casca tende à zero, não há garantia que o campo elétrico seja σ2ε0 na superfície do condutor, sendo que a Tabela 1 e a equação (9) mostram que outros valores podem ser encontrados, a depender da posição da nuvem eletrônica em relação à esfera, ademais, adotar o fator 12 é como admitir que metade da carga está dentro da esfera e a outra está fora, ipsis verbis justificado por [4][4] G.E. Assad, Rev Bras Ens Fís 34, 4701 (2012). com relação ao modelo adotado por Ganci [15][15] S. Ganci, Rev Bras Ens Fís 30, 1701 (2008)..

Já no segundo modelo, para uma distribuição superficial de cargas, o campo foi determinado através de uma integração de campos de anéis. A equação (14) e os limites indicados nas equações (15) mostram, com precisão, a descontinuidade do campo em um ponto sobre a superfície. A ideia de se modificar o limite superior de integração feito por [1][1] K. Slodkowski, M.C. Pinheiro e T.C. Luchese, Rev Bras Ens Fís 40, e2311 (2018). e [2][2] F.M.S. Lima, Resonance 23, 1215 (2018)., leva ao fator 12, porém, quando o elemento de carga, retirado devido a esta modificação, é reintegrado ao cálculo, fechando a esfera, não se pode definir nenhum valor para o campo “na superfície”. Não obstante, deve-se deixar claro que modelos não traduzem, com absoluta perfeição, a realidade física, existem bons e maus modelos, o que os qualificam é um comparativo com o experimento para fins de benchmarking.

No terceiro modelo, utiliza-se uma expansão em série de Fourier para representar uma função originalmente descontínua, como o valor campo elétrico de uma esfera com distribuição superficial uniforme de cargas que apresenta descontinuidade na superfície. A série converge para o fator 12 no ponto de descontinuidade mas, ainda assim, não é igual à função (campo elétrico) original.

Para finalizar, os modelos aqui apresentados encontram sim, em algum ponto e de alguma forma, o fator 12, entretanto, de modo algum, podem ser representados pelo gráfico da Figura 1, pulverizada em tantos livros do ensino médio, conforme citados por [1][1] K. Slodkowski, M.C. Pinheiro e T.C. Luchese, Rev Bras Ens Fís 40, e2311 (2018)., [2][2] F.M.S. Lima, Resonance 23, 1215 (2018). e [4][4] G.E. Assad, Rev Bras Ens Fís 34, 4701 (2012).. Assim, como este tema começa a ser abordado neste segmento, além de acreditarmos que existem outros temas mais importantes a se discutir com esta classe de alunos que ora precisam se deslumbrar com o maravilhoso mundo da Física, é uma excelente oportunidade para se discutir o conceito de descontinuidade e, então, pode-se uniformizar o discurso definindo: “o campo é nulo no interior do condutor, vale k|Q|R2 em pontos muito próximos da superfície e apresenta uma descontinuidade em pontos da superfície”. Em querendo se aprofundar no mundo microscópico da escala atômica, pode-se dizer que: “há uma transição, aproximadamente linear de zero a k|Q|R2, passando por infinitos valores ao longo da nuvem eletrônica, inclusive pelo fator 12”.

Agradecimentos

Meus, nunca descontínuos, agradecimentos ao Prof. Carlos Romero Filho pela disponibilidade, leitura e crítica incentivadora, ao Prof. Mário Assad (in memoriam) pelas lições ao longo de minha história, ao Prof. Pedro Júnior pelo auxílio para formatação do trabalho e aos revisores pela cautelosa leitura e valiosas retificações sugeridas.

Referências

  • [1]
    K. Slodkowski, M.C. Pinheiro e T.C. Luchese, Rev Bras Ens Fís 40, e2311 (2018).
  • [2]
    F.M.S. Lima, Resonance 23, 1215 (2018).
  • [3]
    S.M. Al-Jaber e I. Saadeddin, Applied Mathematics 10, 226 (2019).
  • [4]
    G.E. Assad, Rev Bras Ens Fís 34, 4701 (2012).
  • [5]
    J.D. Jackson, Classical Electrodynamics (Wiley, New York, 1998), 3ª ed, p. 20.
  • [6]
    N.D. Lang e W. Kohn, Phys Rev B 3, 1215 (1971).
  • [7]
    H.M. Nussenzveig, Curso de Física Básica -- Eletromagnetismo (Edgard Blücher, São Paulo, 1997), v. 3, p. 31.
  • [8]
    R.P. Feynman, R.B. Leighton e M. Sands, in: Lições de Física de Feynman (Bookman, Porto Alegre, 2008), v. II.
  • [9]
    P.A. Tipler e G. Mosca, Física para cientistas e engenheiros: eletricidade e magnetismo, ótica (LTC, Rio de Janeiro, 2006), v. 2, p. 56.
  • [10]
    D. Halliday, R. Resnick e K.S. Krane, Física 3 (LTC, Rio de Janeiro, 2004), v. 3, p. 61.
  • [11]
    E.M. Purcell, Eletricidade e Magnetismo, Curso de Física de Berkeley (Edgard Blücher, São Paulo, 1970), 1ª ed., v. 2, p. 48.
  • [12]
    E.M. Purcell e D.J. Morin, Electricity and Magnetism (Cambridge University Press, New York, 2013), 3ª ed., v. 2, p. 30.
  • [13]
    D.J. Griffiths, Introduction to Electrodynamics (Prentice Hall, Upper Saddle River, 1999), p. 71.
  • [14]
    E. Kreyszig, Advanced Engineering Mathematics (Wiley, NewYork, 1998), 9ª ed., p. 510.
  • [15]
    S. Ganci, Rev Bras Ens Fís 30, 1701 (2008).
  • 1
    Qualquer função bem comportada pode ser aproximada por uma reta nas proximidades de um ponto. A possibilidade de expansão em série de Taylor evidencia esse fato!
  • 2
    A figura 1.5 da referência [5][5] J.D. Jackson, Classical Electrodynamics (Wiley, New York, 1998), 3ª ed, p. 20. (p.21) mostra a evolução do campo elétrico para um modelo de distribuição de cargas pautado na teoria de superfícies metálicas com ênfase na forma da distribuição da densidade de elétrons e na energia da superfície. Tal modelo pode ser encontrado em [6][6] N.D. Lang e W. Kohn, Phys Rev B 3, 1215 (1971)..
  • 3
    Não se deve confundir a força sobre um elemento de carga na superfície F=dqσ/2ε0 com o campo gerado por toda a distribuição de cargas da esfera. Na seção 1.14 da referência [12][12] E.M. Purcell e D.J. Morin, Electricity and Magnetism (Cambridge University Press, New York, 2013), 3ª ed., v. 2, p. 30., por exemplo, a discussão se dá sobre “The force on a layer of charge”. Neste artigo, não entraremos nesta discussão pois este fato já foi diretamente discutido em [4][4] G.E. Assad, Rev Bras Ens Fís 34, 4701 (2012).
  • 4
    Um caso interessante se dá quando k=1/2, nesta situação, o segundo termo do lado direito da equação (23) resulta em n=1(1)nsen(nπ2)n=1+1315+17, que é o negativo da fórmula de Leibniz para o número π e resulta em π4, fazendo com que F(λ/2) também resulte no recalcitrante 1/2.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Mar 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    09 Set 2019
  • Revisado
    21 Jan 2020
  • Aceito
    22 Jan 2020
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