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Medida da velocidade do som através da análise dos modos acústicos ressonantes utilizando um celular

Measurement of speed of sound via resonant acoustic mode analysis using a smartphone

Resumos

Neste trabalho é proposto um método para medição da velocidade do som que faz uso de um aparato de baixo custo. O experimento utiliza um tubo semiaberto de PVC como cavidade acústica e um aplicativo gratuito de celular que detecta e processa o som emitido por este tubo ao ser preenchido com água a uma taxa constante. A partir do modelo físico que descreve as frequências ressoantes desse sistema, as componentes espectrais do som produzido pela cavidade foram analisadas e a velocidade do som a 25C encontrada foi de (347±6) m/s, concordando com valores reportados na literatura. Dada a simplicidade e acurácia do experimento, este pode ser uma atividade viável para ser implementada tanto para laboratórios de ensino de física quanto para demonstrações em sala de aula.

Palavras-chave:
Velocidade do som; modos ressonantes; acústica; celular


In this work, it is proposed a method to measure the speed of sound that requires a low cost apparatus. The experiment uses a semi opened PVC pipe as acoustic cavity and a free smartphone app to record and process the sound emitted by the pipe as it was filled with water at a constant rate. From the physics model that describe the system’s resonant frequencies, spectral components of the sound produced by the cavity were analyzed and a speed of sound at 25C of (347±6) m/s was measured, in agreement of reported values in the literature. Due to the simplicity and accuracy of the proposed experiment, it can be implemented as an activity in physics experimental classes and classroom demonstrations.

Keywords:
Speed of sound; resonant modes; acoustic; smartphone


1. Introdução

A busca por melhores experimentos de Física e ainda mais integrados com as novas ferramentas tecnológicas disponíveis é constante. Idealmente o experimento deve ser de montagem simples, de fácil execução e capaz de demonstrar com clareza os fenômenos físicos envolvidos, de tal forma que a medida seja eficiente e a análise a mais completa possível. Em acústica, um dos experimentos de mais destaque é o da determinação da velocidade do som. Na literatura podem ser encontradas diferentes formas de se realizar tal medida, que podem ser divididas principalmente entre medidas diretas da propagação do som [1[1] S. Tobias e C.E. Aguiar, Propagação Do Som: Conceitos e Experimentos. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro (2011)., 2[2] E. Lüdke, P.J. Cauduro, A.M. Vieira e R.B. Adornes, Rev. Bras. Ensino Física 34, 1702 (2012).] e medidas indiretas via análise de modos normais em tubos ressonantes [3[3] W.P. Silva, C.M.D.P.S. Silva, T.V. Fereira, J.S. Rocha, D.D.P.S. Silva e C.D.P.S. Silva, Rev. Bras. Ensino Física 25, 74 (2003)., 4[4] F. Baraúna, J. Furtado e S. Perez, Rev. Bras. Ensino Física 37, 3310 (2015)., 5[5] D.C. Pizetta, A.B. Wanderley, V.R. Mastelaro e F.F. Paiva, Rev. Bras. Ensino Física 39, e3301 (2017).]. Nos exemplos de medidas diretas é geralmente necessária uma montagem complexa de circuitos eletrônicos composta por emissores e detectores de som separados a uma distância de vários metros, devido à alta velocidade de propagação do som no ar à temperatura ambiente [6[6] Z. Guimarães, M. Andrade, L. Werneck e L. Mariano, em: Anais do XXXII Simpósio Nacional Ensino Física (São Carlos, 2017).]. Já no caso de medidas indiretas que fazem uso de modos normais em cavidades acústicas, apesar da montagem menos complexa, a qualidade da medida é fortemente dependente da percepção auditiva de quem conduz o experimento na determinação das frequências de ressonâncias.

Neste trabalho é proposto um método de medida indireta da velocidade do som que atende os requisitos de simplicidade da medida, rapidez na execução e qualidade da informação obtida que permita um entendimento aprofundado da Física em questão. Por se tratar de uma medida indireta, faz-se uso das frequências de ressonâncias de uma cavidade acústica excitada e para eliminar a necessidade da percepção humana da frequência de ressonância é utilizado um aplicativo gratuito de celular que determina a frequência sonora produzida, analisando o áudio capturado pelo microfone embarcado no próprio aparelho. O experimento aqui apresentado tem por objetivo ser de caráter didático e que possa ser facilmente reproduzido de forma caseira ou incorporado à rotina de laboratórios de ensino.

2. Procedimento Experimental

Para a realização do experimento de determinação da velocidade do som no ar foram utilizados um celular com o aplicativo gratuito Phyphox® [7[7] L.S. Pedroso, J.A. Pinto, J.A. Macêdo e G.A. Costa, Am. J. Phys. Educ 14, 4301 (2020).] instalado, um tubo de PCV de (32,0 ± 0,5) mm de diâmetro com uma das extremidades fechadas por um tampão de PVC totalizando um comprimento de (35,00 ± 0,05) cm e uma torneira.

No aplicativo de celular, foi escolhida a opção de aquisição de dados do tipo espectro de áudio na seção de acústica. Nesta opção, foi selecionada a forma de medida denominada “história” que fornece tanto um gráfico de intensidade das componentes espectrais de frequências em função do tempo, calculadas via Transformada de Fourier, quanto um gráfico da frequência do pico de maior intensidade em função do tempo, que corresponde as frequências da ordem fundamental. Antes de iniciar a gravação do áudio pelo aplicativo de celular e a coleta dos dados, a torneira é aberta numa vazão adequada, nem tão baixa que impeça formação de um jato contínuo de água, nem alta demais que cause muita turbulência na água e no ar dentro do tubo, impossibilitando perceber o fenômeno de ressonância. O ideal é um jato d’água contínuo com fluxo o suficiente para perturbar a superfície de água no interior do tubo que aja como uma membrana de um tambor que ao ser perturbada gera ondas sonoras no ar da cavidade semiaberta. É importante mencionar que a água não deve descer escoando pelas paredes internas do tubo para garantir que o ar no interior da cavidade seja excitado pela perturbação da superfície da água, e também que a vazão de água deve ser mantida constante para que o preenchimento do tubo seja uniforme. A gravação do som produzido pelo ar dentro tubo deve ser iniciada simultaneamente com o posicionamento dele abaixo do jato de água. A Figura 1 mostra um instante do experimento sendo realizado. Nela é possível ver o tubo de PVC, com uma das suas extremidades fechadas e a outra aberta, sendo preenchido com água da torneira a uma taxa constante. O som emitido pelo aparato é então registrado pelo aplicativo de celular Phyphox.®

Figura 1:
Experimento sendo realizado. Tubo semiaberto de comprimento (35,00 ± 0,05) cm sendo preenchido com água a uma taxa constante.

3. Fundamentação Teórica

A partir dos estudos desenvolvidos na área de ondulatória, sabemos que uma onda mecânica pode ser entendida como propagações de perturbações em meios materiais [8[8] S.L. Piubelli, H.A. Errobidart, S.T. Gobara e N.C.G. Errobidart, Rev. Bras. Ensino Física 32, 1501 (2010).]. Também é sabido que funções que descrevem ondas propagantes têm como variáreis a posição e o tempo, que no caso mais geral assume a forma f(xvt) e é solução da equação da onda

(1) 2 f x 2 - 1 v 2 2 f t 2 = 0 .

Das mais diversas formas de ondas propagantes que são soluções da equação de onda, as ondas harmônicas recebem enorme destaque. Estas assumem uma expressão geral do tipo f(x,t)=Acos(kxωt), onde A é a amplitude da onda, e o argumento do cosseno é a fase desta onda, que contém com a frequência angular (ω) e a frequência espacial (k) da onda.

Como o experimento aqui proposto trata-se de ondas sonoras viajando dentro de um tubo, devemos estudar as condições às quais as variações de densidade do ar u(x,t) estão sujeitas devido às extremidades dessa cavidade. No caso particular desse experimento, a cavidade se dá na forma de um tubo semiaberto, que nos leva a duas condições de contorno, onde a Eq. (2) representa a condição referente à extremidade fechada e a Eq. (3) à extremidade aberta.

(2) u ( x , t ) = 0
(3) u x = 0

Ou seja, temos a formação de um nó da onda na extremidade fechada e um anti-nó na extremidade aberta. Ao se excitar o ar, são geradas ondas sonoras de diferentes frequências que ao se propagarem sofrem reflexões nas extremidades do tubo e se interferem no interior da cavidade. As únicas frequências que se interferem construtivamente e são amplificadas são aquelas que satisfazem as condições de contorno impostas pelo tubo semiaberto, recebendo o nome de ressonantes e determinando os modos normais permitidos nela. As demais frequências sofrem interferência destrutiva e são aniquiladas. Ao aplicar as condições de contorno da cavidade na equação geral da onda harmônica, é possível encontrar as frequências ressonantes do tubo, as quais são dadas por

(4) f n = ( 2 n - 1 ) 4 L v .

Analisando a Eq. (4), é possível ver que a frequência de ressonância diminui com o comprimento do tubo (L) e cresce à medida que a ordem do harmônico (n=1,2, 3,) aumenta. Nota-se que a frequência ressonante também depende da velocidade desta onda (v), que no caso do experimento é a velocidade do som.

No experimento proposto, são analisadas as frequências ressonantes de um tubo que tem seu comprimento diminuído ao passar do tempo, pois ele está sendo preenchido com água a uma taxa constante. Para adaptar a Eq. (4) para esse caso particular, é necessário incluir a diminuição do comprimento do tubo com o passar do tempo descrita por (L0-ct), onde L0 é o comprimento inicial do tubo e c é a velocidade de diminuição do comprimento do tubo devido ao seu preenchimento com água. Portanto, a Eq. (5) é a expressão que dita as frequências das diferentes ordens presentes no tubo em função do tempo.

(5) f n = ( 2 n - 1 ) 4 ( L 0 - c t ) v

4. Resultados e Discussão

Após realizado o experimento conforme proposto, os dados do som produzido pelo ar no tubo semiaberto coletados pelo aplicativo foram exportados do celular para o computador, onde foram analisados. Na Figura 2(a) é apresentado o gráfico de intensidade das componentes espectrais em função do tempo. Nele é possível perceber a presença de ramos definidos que correspondem as ordens dos modos normais permitidos na cavidade. Cada ordem tem sua frequência alterada em função do tempo devido ao encurtamento uniforme da cavidade acústica à medida que a água preenche o tubo, de acordo com a Eq. (5). A linha pontilhada horizontal no gráfico de intensidade indica o instante de 2,4 s cujo espectro é mostrado na Figura 2(b), onde os pontos experimentais representam as intensidades das componentes espectrais de frequências naquele instante de tempo. Nesta representação fica ainda mais nítida a presença de seis ordens presentes, as quais são destacadas por faixas de diferentes tons de cinza. As linhas pontilhadas verticais são de guias para os olhos com o intuito de conectar as ordens das ressonâncias presentes em ambos os gráficos. Também é possível observar a diminuição da magnitude da frequência de ressonância com a ordem do modo normal excitado, confirmando o esperado, que o modo fundamental é o de maior amplitude e, por consequência, a frequência mais percebida.

Figura 2:
(a) Gráfico de intensidade das componentes espectrais de frequência em função do tempo. (b) Espectro de frequências no instante 2,4 s indicado pela linha pontilhada horizontal no gráfico de intensidades. As faixas de diferentes tons de cinza representam os seis modos normais observados.
Figura 3:
Pico de frequência (pontos) referente ao primeiro modo normal (n=1) excitado na coluna de ar dentro da cavidade semiaberta do tipo tubo ajustada pelo modelo teórico (linha vermelha) do problema físico.

A partir do gráfico de intensidade foi possível observar o comportamento da frequência de maior magnitude, correspondente ao modo fundamental (n = 1), em função do tempo e ajustá-lo à expressão teórica. Na Figura 3, os pontos representam os valores experimentais dos picos de frequência de primeira ordem, enquanto a curva vermelha representa o ajuste com a Eq. (5). Pode-se observar um crescimento monotônico da frequência medida, que concorda com a nítida variação som emitido pelo tubo durante a execução do experimento. Também se nota o excelente ajuste (R2=0,99) do modelo teórico aos dados, de onde foi determinada a velocidade do som como sendo (347±6) m/s. Sendo que a incerteza de menos de 2% com relação ao valor da medida foi obtida através do Método dos Mínimos Quadrados aplicado para ajustar os dados experimentais ao modelo teórico. O valor esperado para a velocidade de propagação do som no ar a uma temperatura ambiente a 25°C é de 346,3 m/s [9[9] D.A. Bohn, J. Audio Eng. Soc. 36, 223 (1988).], o que confirma que o valor medido é bastante satisfatório, pois coincide dentro da margem de erro experimental com o valor esperado, e valida a proposta de experimento apresentada neste trabalho.

O modelo físico do problema prevê que as frequências das ordens dos modos normais superiores (fn,n>1) são múltiplos ímpares da frequência fundamental (f1). Portanto, a fim de estender a discussão sobre a concordância entre experimento e teoria, a curva de frequências ajustada para a ressonância de primeira ordem foi multiplicada pelo fator multiplicativo (2n-1), onde n é a o número das ordens superiores, e sobreposta no gráfico de intensidade. É possível ver na Figura 4 uma clara coincidência entre os dados experimentais de frequências dos modos da segunda ordem em diante (n2) com a frequência fundamental multiplicada pelo fator multiplicativo (2n - 1) correspondente as diferentes ordens modais. Tal resultado corrobora que o experimento é descrito corretamente pelo modelo teórico, o que reforça o nível de confiança no valor medido para a velocidade do som.

Figura 4:
Gráfico de intensidade das componentes espectrais de frequência em função do tempo. A linha pontilhada correspondente às frequências do modo normal (f1) representa o ajuste pela curva teórica, enquanto as demais linhas representam a frequência fundamental multiplicada pelo fator multiplicativo (2n - 1).

5. Conclusão

A proposta de experimento aqui apresentada para a determinação da velocidade do som no ar se mostrou bem-sucedida dada a concordância com o valor tabelado reportado na literatura. O experimento baseado na detecção e análise do som emitido por uma cavidade acústica semiaberta excitada com diferentes comprimentos é de fácil montagem, simples execução e rico no quesito de informações obtidas. Além do valor obtido de (347±6) m/s para a propagação do som no ar a 25°C, foi possível observar nitidamente as diferentes ordens excitadas na cavidade ressonante e suas relações de intensidade. Foi verificado que a intensidade da frequência de ressonância é menor quanto maior a sua ordem. O modelo físico discutido representa adequadamente o sistema físico estudado, mostrando que esta proposta de experimento pode ser utilizada em contextos didáticos, tanto em sala de aula quanto em laboratórios de ensino, para demonstração da validade da teoria de física ondulatória e como prática de física experimental à nível de graduação.

Referências

  • [1]
    S. Tobias e C.E. Aguiar, Propagação Do Som: Conceitos e Experimentos Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro (2011).
  • [2]
    E. Lüdke, P.J. Cauduro, A.M. Vieira e R.B. Adornes, Rev. Bras. Ensino Física 34, 1702 (2012).
  • [3]
    W.P. Silva, C.M.D.P.S. Silva, T.V. Fereira, J.S. Rocha, D.D.P.S. Silva e C.D.P.S. Silva, Rev. Bras. Ensino Física 25, 74 (2003).
  • [4]
    F. Baraúna, J. Furtado e S. Perez, Rev. Bras. Ensino Física 37, 3310 (2015).
  • [5]
    D.C. Pizetta, A.B. Wanderley, V.R. Mastelaro e F.F. Paiva, Rev. Bras. Ensino Física 39, e3301 (2017).
  • [6]
    Z. Guimarães, M. Andrade, L. Werneck e L. Mariano, em: Anais do XXXII Simpósio Nacional Ensino Física (São Carlos, 2017).
  • [7]
    L.S. Pedroso, J.A. Pinto, J.A. Macêdo e G.A. Costa, Am. J. Phys. Educ 14, 4301 (2020).
  • [8]
    S.L. Piubelli, H.A. Errobidart, S.T. Gobara e N.C.G. Errobidart, Rev. Bras. Ensino Física 32, 1501 (2010).
  • [9]
    D.A. Bohn, J. Audio Eng. Soc. 36, 223 (1988).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    21 Jul 2022
  • Revisado
    09 Out 2022
  • Aceito
    17 Out 2022
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