Acessibilidade / Reportar erro

Max Planck e os enunciados da segunda lei da termodinâmica

Max Planck and the statements of the second law of thermodynamics

Resumos

Esse trabalho explora aspectos da história das formulações e da transmissão da segunda lei da termodinâmica. A investigação tem assim um duplo objetivo, de um lado analisar o tratamento dado por Max Planck à segunda lei da termodinâmica, apresentado no livro Treatise of Thermodynamics, de outro destacar na argumentação de Planck suas visões sobre o energetismo. Além disso, faremos uma ilustração de livros didáticos utilizados nos cursos de graduação em física, com o intuito de observar como as versões originais dos enunciados da segunda lei da termodinâmica aparecem em livros-texto atuais, haja vista que alguns deles fazem referência a Planck quando abordam a segunda lei mas não apontam as suas contribuições.

Max Planck; segunda lei da termodinâmica; história das ciências; energetismo


This paper explores aspects of the history of the formulation and the transmission of the second law of thermodynamics. The investigation thus has a dual purpose, on the one hand to analyze the treatment given by Max Planck to the second law of thermodynamics presented in the book Treatise of Thermodynamics, on the other hand to point out in the text of Planck his views on energetics. In addition, we will sample a few textbooks used in undergraduate courses in physics in order to see how the original versions of statements of the second law of thermodynamics are presented in current textbooks, considering that some of them refer to the Planck law when addressing the second law, but do not point out his contributions.

Max Planck; second law of thermodynamics; history of sciences; energetics


HISTÓRIA DA FÍSICA E CIÊNCIAS AFINS

Max Planck e os enunciados da segunda lei da termodinâmica* * Uma versão preliminar deste trabalho foi apresentada no XII Encontro de Pesquisa em Ensino de Física. Este artigo é baseado na dissertacão de mestrado da primeira autora, intitulada segunda lei da termodinâmica: os Caminhos Percorridos por William Thomson defendida no Programa de Pós-Graduacão em Ensino, Filosofia e História das Ciências da Universidade Federal da Bahia/Universidade Estadual de Feira de Santana. A dissertacão teve como objetivo apresentar a análise da evolucão do pensamento de Kelvin na construcão da segunda lei da termodinâmica. Em um primeiro momento apresentamos uma história contextual do desenvolvimento da termodinâmica enquanto ciência, destacando os trabalhos de Carnot, Clapeyron e Joule. Depois mostramos a relacão de Kelvin com estes pensadores e como eles o influenciaram nesta trajetória, além de evidenciar a co-criacão da segunda lei por Kelvin e Clausius. Por último, falamos da forma como a segunda lei é apresentada nos livros didáticos, onde mostramos as contribuicões de Planck para a transmissão desta lei.

Max Planck and the statements of the second law of thermodynamics

M.L. NóbregaI, 1 1 E-mail: maynobrega@gmail.com. ; O. Freire Jr.II; S.T.R. PinhoII

IUniversidade Federal do Vale do São Francisco, Campus Serra da Capivara, São Raimundo Nonato, PI, Brasil

IIInstituto de Física, Universidade Federal da Bahia, Campus Universitário de Ondina, Salvador, BA, Brasil

RESUMO

Esse trabalho explora aspectos da história das formulações e da transmissão da segunda lei da termodinâmica. A investigação tem assim um duplo objetivo, de um lado analisar o tratamento dado por Max Planck à segunda lei da termodinâmica, apresentado no livro Treatise of Thermodynamics, de outro destacar na argumentação de Planck suas visões sobre o energetismo. Além disso, faremos uma ilustração de livros didáticos utilizados nos cursos de graduação em física, com o intuito de observar como as versões originais dos enunciados da segunda lei da termodinâmica aparecem em livros-texto atuais, haja vista que alguns deles fazem referência a Planck quando abordam a segunda lei mas não apontam as suas contribuições.

Palavras-chave: Max Planck, segunda lei da termodinâmica, história das ciências, energetismo.

ABSTRACT

This paper explores aspects of the history of the formulation and the transmission of the second law of thermodynamics. The investigation thus has a dual purpose, on the one hand to analyze the treatment given by Max Planck to the second law of thermodynamics presented in the book Treatise of Thermodynamics, on the other hand to point out in the text of Planck his views on energetics. In addition, we will sample a few textbooks used in undergraduate courses in physics in order to see how the original versions of statements of the second law of thermodynamics are presented in current textbooks, considering that some of them refer to the Planck law when addressing the second law, but do not point out his contributions.

Keywords: Max Planck, second law of thermodynamics, history of sciences, energetics.

1. Introdução

O físico alemão Max Planck (1858-1947) se notabilizou como o pai da mecânica quântica, recebendo o Nobel em 1918, prêmio que foi concedido em reconhecimento à sua descoberta dos quanta de energia. Com o Prêmio Nobel, Planck passou a ser reconhecido principalmente pelas suas contribuições para a mecânica quântica, por isso, faz-se necessário lembrar, conforme nos faz o historiador da ciência John Heilbron [1, p. 13], que já no século XIX, com todos os seus trabalhos publicados, e o livro que sintetizava suas publicações, Planck era considerado uma das maiores autoridades mundiais em termodinâmica. Mas, esse fato pouco é mencionado quando falamos da história da termodinâmica.

Em seu trabalho de doutorado de 1879, Planck fez uma revisão dos dois princípios da termodinâmica: a primeira e a segunda lei. Pouco tempo depois, em 1897, Planck reuniu suas investigações sobre termodinâmica em um único texto inspirado em uma das mais importantes sínteses teóricas da física clássica, feita por Rudolf Clausius e William Thomson na década de 1850:2 2 Vale ressaltar que no momento em que Planck faz esta síntese o conceito de entropia já havia sido introduzido por Clausius em 1862, em seu trabalho Über die Wärmeleitung gasförmiger Körper [ On the application of the theorem of the equivalence of transformations to the internal work of a mass o matter]. Para maiores informações sobre como o conceito de entropia foi sendo interpretado ao longo da segunda metade do século XIX, ver Clark (1976) [2]. a termodinâmica [1, p. 9]. O interesse gerado pelos seus trabalhos o levou a publicar Vorlesungen über Thermodinamik [4], como podemos ver no trecho retirado do prefácio da tradução para o inglês, Treatise on Thermodynamics, da primeira edição do livro que reuniu essas investigações:3 3 Ao longo do texto optamos por inserir o trecho original da citação em inglês visto que trata-se de uma tradução de época e que chegou a ser revisada por Planck.

Os pedidos frequentes para publicar minha coletânea de artigos sobre termodinâmica, ou trabalhá-los em um tratado global, sugeriram pela primeira vez a escrita deste livro. Embora o primeiro plano tivesse sido o mais simples, especialmente porque eu não encontrei nenhuma ocasião de fazer quaisquer mudanças importantes na linha de pensamento dos meus trabalhos originais, decidi reescrever todo o assunto, com a intenção de dar maior extensão, e com maiores detalhes [3, p. vii].4 4 The oft-repeated requests either to publish my collected papers on Thermodynamics, or to work them up into a comprehensive treatise, first suggested the writing of this book. Although the first plan would have been the simpler, especially as I found no occasion to make any important changes in the line of thought of my original papers, yet I decided to rewrite the whole subject-matter, with the intention of giving at greater length, and with more detail [3, p. vii].

Em livros-texto atuais o nome de Planck aparece, por vezes, associado ao enunciado da segunda lei na sua versão dada por William Thomson - Lord Kelvin (1824-1907), mas esses livros, em geral, não esclarecem qual a relação de Planck com a formulação dessa lei. Para entender a contribuição de Planck para a segunda lei da termodinâmica, realizamos a análise do livro Treatise of Thermodynamics. Com a formulação de Planck para a segunda lei o debate sobre atomismo e energetismo aparece naturalmente.

A motivação para esta investigação surgiu a partir de uma conversa com o Professor Peter Clark, no XXIII ICHST,5 5 XXIII International Congress of History of Science and Technology, 29 de julho de 2009, Budapest, Hungary. na época editor do British Journal for the Philosophy of Science e Professor da University of St. Andrews. Ao apresentarmos uma comunicação falando da argumentação feita por Lord Kelvin até chegar no enunciado da segunda lei da termodinâmica, Clark sugeriu que o enunciado, da forma apresentada por Kelvin, era insatisfatório e que seria Planck o responsável pelas versões apresentadas em livros-texto de física. Clark afirmava não conhecer trabalhos que estabelecessem essa relação entre o enunciado proposto por Kelvin em 1851 e as modificações sugeridas por Planck no final do século XIX. Essa afirmativa nos deixou curiosos e por este motivo resolvemos investigar o livro que resume as contribuições de Planck para a termodinâmica para entender melhor o argumento de Clark.

Peter Clark se tornou conhecido por suas contribuições para a Filosofia da Ciência, mas iniciou sua carreira acadêmica em história da ciência com o doutorado que investigou a relação entre Atomismo e termodinâmica.6 6 A tese foi orientada pelo filósofo da ciência Imre Lakatos, que tinha em alta conta o trabalho realizado por Clark. A admiração de Lakatos por Clark aparece em uma carta que ele enviou para o historiador e filósofo da ciência Thomas Kuhn, onde Lakatos faz elogios à Clark: "[...]since 1965, a new young generation grew up, for whom naive falsification and Karl [Popper] are mere historical curiosities: they set out, however, to try out your and my philosophical ideias on the testing ground on the history of physics [...]. They are competent, brilliant young men, and I am rather pround of them. On their iniciative now a conference is taking shape in which I should like to get you interested.[...] The third paper would be by Peter Clark on the Victory of Atomism over the Phenomenological Theory of Heat: a paper which will culminate in Einstein's work on the Brownian Motion and Perrin's experiments"[5]. A tese de Clark aborda aspectos teóricos da teoria cinética dos gases e da termodinâmica enquanto programas de pesquisa.7 7 A abordagem lakatosiana dos programas de pesquisa está presente nos próprios conceitos de Clark de programas progressivos e degenerativos. Para a abordagem lakatosiana ver [6]. Segundo ele,

[...] a história do que é agora chamado teoria cinética deve ser apreciada como o desenvolvimento de um programa de pesquisa poderoso, que depois de alguns sucessos iniciais notáveis, na última década do século XIX, foi degenerando. Em contraste, o programa de pesquisa da termodinâmica pura foi progressivo desde seu começo.8 8 [...] the history of what is now called the kinetic theory must be appraised as the development of a powerfull research programme, which after some early notable successes, in the last decade of the nineteenth century, was degenerating. In contrast the research programme of pure thermodynamics was progressive from its inception [2, p. 43].

Para Clark, o problema do programa atômico-cinético consistia na tentativa de explicar as leis da termodinâmica em termos do comportamento da agregação de sistemas que envolvem um grande número de moléculas. Então, são dois os argumentos centrais apresentados na sua tese: o programa cinético-atômico é incompatível com a segunda lei fenomenológica; e a heurística da termodinâmica foi limitada a generalizações empíricas relacionadas à segunda lei e em resolver anomalias pelo ajuste de fatos experimentais. Com base nestes argumentos ele fala da racionalidade de Planck em rejeitar o programa cinético e na tentativa de desenvolver alternativas para providenciar uma base para termodinâmica [2, p. 44]. De certo modo, resgatar as contribuições de Planck para o desenvolvimento da termodinâmica era um dos objetivos de Clark, mas a segunda lei é pouco explorada em sua tese, por isso resolvemos fazer esta investigação, na tentativa de verificar como Planck apresentou o enunciado da segunda lei da termodinâmica.

2. Planck e os livros-texto de física

Sabemos que os enunciados da segunda lei da termodinâmica foram, inicialmente, apresentados por Clausius e Thomson (Kelvin). O enunciado de Kelvin para a segunda lei nos diz que "é impossível, por meio de um agente material inanimado, derivar efeito mecânico de uma porção de matéria resfriando-a abaixo da temperatura do mais frio dos objetos adjacentes" [7, p. 179].9 9 "It is impossible, by means of inanimate material agency, to derive mechanical effect from any portion of matter by cooling it below the temperature of the coldest of the surrounding objects" [7, p. 179]. Entretanto, em alguns livros-texto este enunciado é referido como enunciado Kelvin-Planck. Talvez isso se deva ao fato de que o enunciado apresentado por Planck tem um caráter mais geral do que o de Kelvin. Outros livros apresentam como sendo o enunciado de Kelvin, embora os termos do enunciado sejam muito próximos da formulação de Planck.

Essas diferenças em livros didáticos contemporâneos colocam um problema histórico interessante, que é o de examinar as vicissitudes que cercaram a transmissão dos enunciados da segunda lei, tanto o de Kelvin quanto o de Planck. Tal problema, entretanto, escapa ao escopo desse trabalho; faremos apenas breve referências aos trabalhos de Maxwell, Fermi e Tisza. Examinaremos como o enunciado aparece em alguns desses livros, lembrando que Planck enuncia a segunda lei da seguinte forma: "É impossível construir uma máquina que trabalhe em um ciclo completo, cujos únicos efeitos sejam o levantamento do peso e o resfriamento de um reservatório térmico" [3, p. 89].10 10 "It is impossible to construct an engine which will work in a complete cycle, and produce no effect except the raising of a weight and the cooling of a heat-reservoir" [3, p. 89].

No tratado de James C. Maxwell (1831-1879), Theory of Heat, na edição publicada em 1888, o enunciado da segunda lei é apresentado da seguinte forma: "É impossível, apenas pela ação de processos naturais, transformar alguma parte de calor de um corpo em trabalho mecânico, exceto permitindo que calor passe de um corpo para outro com temperatura mais baixa"11 11 "It is impossible, by the unaided action of natural processes, to transform any part of heat of a body into mechanical work, except by allowing heat to pass from that body into another at a lower temperature" [8, p. 153]. [8, p. 153]. Para chegar a este enunciado, Maxwell partiu da discussão sobre a máquina de Carnot e da inquietação em saber as condições sob as quais seria possível remover calor de um corpo; concluiu que, apenas admitindo o calor como sendo o movimento das partes de um corpo, poderia ser possível visualizar a transferência de calor de um corpo para qualquer outro. Segundo ele, Clausius havia sido a primeira pessoa a tratar o princípio de Carnot de uma maneira consistente com a verdadeira teoria do calor, que admite o calor como sendo uma forma de energia, deduzindo-o a partir da segunda lei da termodinâmica [8, p. 153].

É interessante notar que estas formulações do Theory of Heat nas quais Maxwell expressa o entendimento das contribuições de Clausius na formulação das leis da termodinâmica não estavam presentes na primeira edição desta obra, publicada em 1871 pela Longmans Green. Foi através de Gibbs que ele adquiriu a compreensão do conceito de entropia formulado por Clausius, como ele mesmo reconheceu em carta a P.G. Tait em 1 de dezembro de 1873:

Foi apenas recentemente sob a orientação do Professor Willard Gibbs que eu corrigi um erro que tinha absorvido da sua [Thermodynamics], isto é, que a entropia de Clausius é a energia não disponível enquanto aquela de [Tait] é energia disponível. A entropia de Clausius não é nem uma nem outra [9, p. 223-226].12 12 "It is only lately under the conduct of the Professor Willard Gibbs that I have been led to recant an error which I had imbibed from your [Thermodynamics], namely that the entropy of Clausius is unavailable energy while that of [Tait] is available energy. The entropy of Clausius is neither the one nor the other" [9, p. 223-226].

Na verdade, a escrita do Theory of Heat teve início quando Maxwell revisou, a pedido do próprio autor, a obra sobre a termodinâmica e sua história [A Sketch of Thermodynamics, Edinburgh: Edmonston adn Douglas, 1868] que Tait estava escrevendo. Esta obra, conforme comentário de Garber, Brush e Everitt [9, p. 34-35], era marcada pelo chauvinismo, subestimando a contribuição de Clausius na formulação da segunda lei, atribuindo todo o crédito pela mesma ao seu compatriota Lord Kelvin. Revisando este livro, Maxwell não só evitou o chauvinismo, como adquiriu uma compreensão mais ampla da própria termodinâmica.13 13 Agradecemos ao editor da RBEF, S. Salinas, ter chamado nossa atenção para a interação entre Maxwell e Gibbs a propósito da primeira edição do Theory of Heat.

Quarenta anos após o trabalho de Planck, o físico italiano Enrico Fermi, prêmio Nobel de 1938 por seu trabalho sobre radioatividade induzida, apresenta o enunciado no formato hoje adotado pelos livros didáticos: "É impossível realizar uma transformação cujo único resultado final seja transformar em trabalho o calor extraído de uma fonte que está na mesma temperatura." [10, p. 30].14 14 "A transformation whose only final result is to transform into work heat extracted from a source which is at the same temperature throughout is impossible" [10, p. 30]. De acordo com o físico húngaro Laszlo Tisza, que desenvolveu sua carreira no MIT, conhecido por suas pesquisas em física teórica, especialmente sobre fundamentos da termodinâmica e da mecânica quântica, o enunciado, da forma apresentada por Planck,

[...] é normalmente designado como a formulação de Kelvin-Planck. Podemos mostrar ser equivalente à formulação de Clausius: é impossível construir um dispositivo que, operando em um ciclo, não irá produzir nenhum efeito, para além de transferência de calor do mais frio para um corpo mais quente [11, p. 37].15 15 This statement of the second law is usually designated as the Kelvin-Planck formulation. It can be shown to be equivalent with Clausius' formulation: It is impossible to construct a device that, operating in a cycle, will produce no effect other than transfer of heat from a colder to a hotter body [11, p. 37].

Entre as formulações propostas por Maxwell e aquelas apresentadas por Fermi e Tisza, temos o trabalho de Planck sobre termodinâmica. Para ilustrar como Planck aparece nos livros-texto, destacamos aqui quatro livros utilizados contemporaneamente em cursos de física básica, mostrando como o enunciado da segunda lei é apresentado:

Kelvin: "Não é possível ocorrer um processo cujo único efeito seja remover calor de um reservatório térmico e produzir uma quantidade equivalente de trabalho" [12, p. 207].

Kelvin: "Nenhum processo é possível cujo único resultado seja a conversão de calor, extraído de um reservatório térmico, em trabalho. Em outros termos, é impossível construir uma máquina térmica que converta todo o calor recebido em trabalho" [13, p. 44].

Kelvin-Planck: "É impossível para qualquer sistema passar por um processo no qual absorve calor de um reservatório a uma dada temperatura e converte o calor completamente em trabalho mecânico de modo que o sistema termine em um estado idêntico ao inicial" [14, p. 286].

Kelvin-Planck: "Não é possível ocorrer um processo cujo único efeito seja um fluxo de calor Q saindo de um reservatório a uma temperatura T e a realização de trabalho W igual em magnitude a Q" [15, p. 126].

Como vimos, alguns livros atribuem a contribuição de Planck ao enunciado da segunda lei da termodinâmica proposto por Kelvin colocando seu nome explicitamente; e mesmo os que não fazem referência direta à Planck, trazem a ideia de que o sistema retorna ao estado inicial, que foi por ele evidenciada. Entretanto, a natureza deste reconhecimento é um assunto que carece de maiores explicações, haja vista que as contribuições dadas por Planck para que o enunciado da segunda lei alcançasse generalidade não estão explicitas em alguns livros textos.

3. Planck, o energetismo e a 2ª lei da termodinâmica

O fato de Planck ser uma figura respeitada na termodinâmica o levou a mencionar o debate que ocorria naquela época entre atomistas e energetistas. Enquanto os primeiros defendiam a teoria atômica da matéria, os últimos acreditavam que "estava fora do escopo da física lidar com entidades hipotéticas não-observáveis" [16, p. 313]. De acordo com Fleming [17, p. 10], Planck acreditava na veracidade absoluta do princípio proposto por Clausius em 1862 no trabalho intitulado Über die Wärmeleitung gasförmiger Körper [On Different Forms of the Fundamental Equations of the Internal Work of a Mass of Matter], segundo o qual a entropia de um sistema sempre tende a crescer, fato que fez dele desde cedo um anti-atomista. Nas palavras de Planck citadas por Fleming:

O segundo princípio da teoria mecânica do calor, levado às últimas consequências, é incompatível com a suposição de que existem átomos finitos. É de se pressupor, por este motivo, que no desenvolvimento da teoria venha a se travar uma guerra entre essas duas hipóteses, que custe a vida a uma delas. Se o resultado desta luta ainda não pode ser predito com segurança, diversos indícios parecem sugerir que, apesar dos sucessos da teoria atomística até o presente, teremos que optar pela hipótese de uma matéria contínua [17, p. 11].

Contudo, Planck logo chegou à conclusão de que não poderia permanecer na vanguarda da termoquímica, investigando o calor envolvido nas reações químicas, sem recorrer a uma visão molecular da matéria. E, em 1887, incluiu a hipótese de Avogadro sobre a constituição molecular dos gases em seus estudos sobre as leis da termodinâmica [1, p. 14-15].

Segundo Planck [3, p. 79], a segunda lei da termodinâmica é essencialmente diferente da primeira lei, uma vez que trata de questões que não são englobadas pela primeira lei, como a direção em que um processo ocorre na natureza. Nem tudo que é consistente com o princípio da conservação de energia satisfaz as condições da segunda lei, ou seja, o princípio da conservação da energia não é suficiente para uma determinação única de um processo natural. Para retratar a diferença entre as duas leis, Planck ressalta que apenas em casos particulares é que a mecânica e o princípio da conservação da energia prescrevem uma direção para o processo, como por exemplo, um sistema de partículas em repouso. O princípio prescreve essa direção quando uma das formas de energia em um sistema é um máximo absoluto, ou um mínimo absoluto, e a direção da transformação deve ser tal que a energia considerada diminui, ou aumente. Em um sistema de partículas em repouso em que a energia cinética está em um mínimo absoluto qualquer alteração do sistema é acompanhado por um aumento de energia cinética. Isto dá origem a uma importante proposição na mecânica, que caracteriza a direção do movimento possível, e estabelece, em consequência, a condição geral do equilíbrio mecânico [3, p. 80].

Outro exemplo relatado por Planck [3, p. 81], é o caso de um metal líquido, inicialmente em repouso, em dois vasos comunicantes a diferentes níveis. Se este metal mover-se, de forma a igualar os níveis, para o centro de gravidade do sistema, a energia potencial diminui. Neste caso, o equilíbrio se dá quando o centro de gravidade está mais baixo e, portanto, a energia potencial atinge valor mínimo, ou seja, quando o líquido está no mesmo nível em ambos os tubos. Entretanto, se nenhuma hipótese especial for feita com relação à velocidade inicial do líquido, a energia potencial não necessariamente diminui, e o metal no nível superior pode subir ou afundar a depender das circunstâncias.

O que Planck queria destacar com estes exemplos particulares era que:

É, portanto, impossível tentar reduzir as leis gerais sobre a direção das mudanças termodinâmicas, bem como as de equilíbrio termodinâmico, às proposições correspondentes em mecânica que valem apenas para os sistemas em repouso [3, p. 81].16 16 It is, therefore, hopeless to seek to reduce the general laws regarding the direction of thermodynamical changes, as well as those of thermodynamical equilibrium, to the corresponding propositions in mechanics which hold good only for systems at rest [3, p. 81].

Aqui a oposição de Planck às tentativas de reduzir as leis da termodinâmica a um tratamento mecânico é evidenciada. Um dos principais representantes destas ideias era Ludwig Boltzmann (1844-1906), que acreditava ter reduzido a segunda lei aos princípios da mecânica molecular, mas sua interpretação foi contestada e tornou-se objeto de muitas controvérsias.

O posicionamento de Boltzmann em relação à essas ideias fica claro em seus Escritos Populares:17 17 Embora exista uma tradução dos Escritos Populares para o português [], optamos por uma tradução própria a partir do original alemão. Agradecemos ao Professor Roberto F.S. Andrade a colaboração com esta tradução.

Alguns pesquisadores hoje em dia acreditam ser possível se livrar de todas estas complicações e enunciar todas as leis fundamentais de uma forma muito mais simples. Como eles terminam por chegar à conclusão que a energia é a grandeza que fundamentalmente existe, eles chamam a si mesmos de energetistas. Nós não sabemos se a nossa concepção atual da natureza é a mais adequada. Por isso, o esforço de apresentar alguns pontos de vista mais gerais e abrangentes do que aquele oferecido pela física teórica é plenamente justificado. Os atuais energetistas, no entanto, não se dedicam a este esforço mais aprofundado, mas afirmam de maneira enfática que eles já atingiram este ponto de vista mais abrangente. Por isso todos os modos de expressão e os métodos da física teórica atual deveriam ser abandonados imediatamente, ou então serem modificados em pontos muito básicos e essenciais. A seguir, eu espero poder refutar todas estas afirmações [19, p. 104].

Ao se referir àqueles que discordam da sua posição, como é o caso de Wilhelm Ostwald (1853-1932), Boltzmann afirma

Pode-se dizer que, em geral, os métodos tradicionais da física teórica de hoje em dia estão cheios de falhas e, portanto, ainda bem distante de poderem oferecer uma descrição consequente e suficientemente clara de todos os fenômenos naturais. No entanto os energetistas apresentam uma descrição ainda mais cheia de falhas, e sua descrição dos fenômenos naturais é igualmente ainda mais obscura. Assim, Ostwald não conclui que se deve prosseguir testando as bases do energetismo, mas que se deve abandonar imediatamente a perspectiva atual da física teórica e substituí-la pela descrição energetista [19, p. 130].

Sobre esse posicionamento de Boltzmann, um dos seus maiores críticos foi o alemão Ernst Zermelo (1871-1953), assistente de Planck, que "argumentou, com o teorema da recorrência18 18 O teorema de Recorrência de Poincaré afirma que todo sistema mecânico, sujeito apenas a forças conservativas, cuja dinâmica está restrita a uma região limitada do espaço de fase, evoluirá para um estado final tão próximo quanto se queira do estado inicial. de Poincaré de 1896, que a segunda lei não poderia ser derivada da mecânica e, portanto, era incompatível com uma concepção unitária de mundo baseada apenas na mecânica" [20, p. 7].

Por outro lado, Planck, afastando-se do energetismo, havia evidenciado que o princípio da conservação da energia não poderia servir para determinar a direção dos processos termodinâmicos, e enfatizou que tais tentativas, em muitos casos, atrapalham uma apresentação clara da segunda lei. E, reafirmou sua postura de distanciamento crítico em relação a estas tentativas:

[...] O termo muito restrito "Energetics" é às vezes aplicado a todas as investigações sobre essa questão. [Entretanto] o conceito de energia não é suficiente para a segunda lei. Ele não pode ser exaustivamente tratado dividindo um processo natural em uma série de processos em que ocorrem mudanças de energia, e em seguida investigando em que direção tais mudanças dar-se-ão. Podemos sempre dizer, é verdade, que os diferentes tipos de energia são transformados um no outro, pois não há dúvida de que o princípio da energia deve ser cumprido, mas a expressão das condições dessas mudanças permanece arbitrária, e essa ambigüidade não pode ser completamente removida por nenhum pressuposto geral [3, p. 81].19 19 "[...] The too restricted term "Energetics" is sometimes applied to all investigations on these questions. The concept of energy is not sufficient to the second law. It cannot be exhaustively treated by breaking up a natural process into a series of changes of energy, and then investigating the direction of each change. We can always tell, it is true, what are the different kinds of energy exchanged for one another; for there is no doubt that the principle of energy must be fulfilled, but the expression of the conditions of these changes remains arbitrary, and this ambiguity cannot be completely removed by any general assumption" [3, p. 81].

Estava claro para Planck que as tentativas de reduzir o tratamento da segunda lei ao princípio da conservação da energia eram ingênuas. Para ele, nem a visão mecânica da matéria nem o princípio da conservação da energia eram suficientes para explicar a segunda lei. Sua preocupação consistia na necessidade de apresentar a segunda lei da termodinâmica de uma forma mais clara não devendo ser reduzida a um tratamento puramente mecânico nem a uma definição energética. Então, ele destacou como a segunda lei era apresentada na época, e enfatizou que a proposição abaixo é correta para alguns casos especiais, mas não expressa a característica essencial do processo:

A transformação de trabalho mecânico em calor pode ser completa, porém no sentido contrário, de calor em trabalho, deve necessariamente ser incompleta, uma vez que, sempre que certa quantidade de calor é transformada em trabalho outra quantidade de calor deve ser submetida a uma mudança correspondente e compensadora; como por exemplo, a transferência de calor de uma fonte de alta para baixa temperatura [3, p. 81-82].20 20 "The change of mechanical work into heat may be complete, but, on the contrary, that of heat into work must need be incomplete, since, whenever a certain quantity of heat is transformed into work, another quantity of heat must undergo a corresponding and compensating change; e.g.transference from higher to lower temperature" [3, p. 81-82].

Para Planck havia apenas uma forma de mostrar claramente a importância da segunda lei, a que se baseie em fatos, formulando proposições que podem ser comprovadas ou refutadas por experimentos. Segundo ele, são três as proposições essenciais que caracterizam o processo de transformação de calor em trabalho:

[Proposição I] Não é possível reverter completamente qualquer processo em que o calor tenha sido produzido pelo atrito [3, p. 83].21 21 "It is in no way possible to completely reverse any process in which heat has been produced by friction" [3, p. 83].

[Proposição II] Não é possível reverter completamente qualquer processo em que um gás expande sem realizar trabalho ou absorver calor, ou seja, com energia total constante [3, p. 83].22 22 "It is in no way possible to completely reverse any process in which a gas expands wihtout performing work or absorbing heat, i.e. with constant total energy" [3, p. 83].

[Proposição III] Supondo que um corpo recebe certa quantidade de calor de outro com maior temperatura, não é possível reverter completamente este processo, ou seja, transmitir o calor de volta sem realizar qualquer outra mudança [3, p. 84].23 23 "Supposing that a body receives a certain quantity of heat from another of higher temperature, the problem is completely reverse this process, i.e. to convey back the heat without leaving any change whatsoever" [3, p. 84].

Com estas três proposições Planck destacou uma noção que até então não havia aparecido com tanta ênfase: a noção de irreversibilidade. Então, a partir desta noção presente nas proposições acima ele chega a seguinte definição: "Um processo que não pode ser completamente revertido é chamado irreversível, todos os outros processos são chamados reversíveis" (grifos do autor) [3, p. 84].24 24 "A process which can in no way be completely reversed is termed irreversible, all the other process reversible. [3, p. 84]. Assim, o conjundo das proposições associada a definição dos processos reversíveis e irreversíveis sugerida por Planck nos leva a concluir que dizer que um processo não pode ser revertido completamente não é suficiente para afirmar que ele é irreversível. A exigência para tal afirmação é que seja impossível restaurar o estado inicial exato do processo, uma vez que este tenha ocorrido. Aqui aparece a noção de ciclo relacionada à reversibilidade, que também não havia sido apresentada no enunciado da segunda lei. A proposição III afirma que a condução de calor é um processo irreversível, e coincide exatamente com a condição posta pelo princípio fundamental de Clausius que nos diz que "calor não pode por si só passar de um corpo frio para um corpo quente" [21, p. 81]. E Planck deixa claro que

[...] este princípio não se limita a dizer que o calor não flui diretamente de um corpo frio para um corpo quente - isto é evidente, e é uma condição da definição de temperatura - mas refere expressamente que o calor não pode ser transportado de um corpo frio para um mais quente sem realizar novas alterações, ou seja, sem compensação. (grifo do autor) [3, p. 85].25 25 This principle does not merely say that heat does not flow directly from a cold to a hot body - that is self-evident, and is a condition of the definition of temperature - but it expressly states that heat can in no way and by no process be transported from a colder to a warmer body without leaving further changes, i.e. without compensation [3, p. 85].

Para Planck, o significado da segunda lei da termodinâmica dependia do fato de que ela forneceu um critério necessário e importante: saber se um determinado processo que ocorre na natureza é reversível ou irreversível. A segunda lei aponta para o fato de que se um processo é reversível, existe a possibilidade de ter estados inicial e final idênticos, mas se é irreversível evidentemente estes estados serão diferentes.

Em seu livro Thermodynamics and Statistical Mechanics, que constitui o volume 5 das suas famosas Lectures on Theoretical Physics, publicado postumamente em 1952, mas revisado pelo autor em 1951, o físico alemão Arnold Sommerfeld26 26 Sobre Sommerfeld e seu estilo de produção da física ver a Ref. [23] reconhece a contribuição de Planck para a segunda lei da termodinâmica:

Planck se opõe (e com razão) ao ponto de vista de certos físicos de que a essência da segunda lei consiste na demonstração de que a energia tende a degradar. Evidentemente, um aumento na entropia causa em muitos casos uma diminuição na diferença de temperatura disponível e, portanto, na disponibilidade de trabalho. Planck cita o exemplo óbvio no qual o calor é transformado completamente em trabalho, ou seja, o exemplo de uma expansão isotérmica de um gás ideal, com a transferência de calor a partir de um reservatório de temperatura mais elevada e com uma utilização completa da pressão do gás para realizar o trabalho. Neste processo a energia não é degradada, mas muito pelo contrário, é enobrecida (calor completamente transformado em trabalho).27 27 "Planck opposes (and rightly so) the view of certain physicists that the essence of the Second Law consists in the statement that energy tends to degrade. Evidently an increase in entropy causes in many cases a decrease in the available temperature difference and hence also in the availability of work. Planck quotes the obvious example in which heat is transformed into work completely, namely the example of an isothermal expansion of a perfect gas with heat transfer from a reservoir of higher temperature and with complete utilization of the pressure of the gas to perform work. In this process energy is not degraded but quite to the contrary, it is ennobled (heat completely transformed into work) [21, p. 38].”

Na nossa opinião e na de Planck, a essência da segunda lei consiste na existência da entropia e na impossibilidade de sua diminuição em condições bem definidas [21, p. 38]28 28 "In our and in Planck's opinion, the essence of the Second Law consists in the existence of entropy and in the impossibility of its decreasing under well defined conditions" [21, p. 38].

Disso depende a grande fertilidade da segunda lei no tratamento de processos cíclicos. Além disso, Planck destaca que

Existe na natureza, para cada sistema de corpos, uma quantidade – a entropia, introduzida por Clausius - que em todas as mudanças de um sistema ou permanece constante (em processos reversíveis) ou aumenta o valor (em processos irreversíveis) [3, p. 88].

Contudo, para chegar em sua proposição do enunciado da segunda lei, Planck não parte da definição de entropia, ele parte da noção de processos cíclicos e irreversibilidade, usando a definição de entropia apenas para corroborar suas conclusães. Planck afirma que o segundo princípio fundamental da termodinâmica poderá ser deduzido a partir de uma única lei simples a qual suas experiências não deixam dúvidas. A lei a que ele se refere é a seguinte "É impossível construir uma máquina que trabalhe em um ciclo completo e cujos únicos efeitos sejam o levantamento de um peso e o resfriamento de um reservatório de calor" [3, p. 89].29 29 "It is impossible to construct an engine which will work in a complete cycle, and produce no effect except the raising of a weight and the cooling of a heat-reservoir" [3, p. 89].

Essa máquina poderia ser utilizada simultaneamente como um motor e um refrigerador, sem qualquer desperdício de energia ou material, e seria em qualquer caso, o motor mais rentável de todos os tempos. Tal máquina

[...] não seria equivalente ao moto perpétuo, pois não produz trabalho a partir do nada, mas a partir do calor que retira o reservatório. Não contradiria, portanto, como o moto perpétuo, o princípio da conservação da energia, mas, todavia, possuiria para o homem a vantagem essencial do moto perpétuo, a oferta de calor sem custo [3, p. 89].30 30 "It would, it is true, not be equivalent to perpetual motion, for it does not produce work from nothing, but from the heat, which it draws from the reservoir. It would not, therefore, like of perpetual motion, contradict the principle of energy, but would, nevertheless, possess for man the essential advantage of perpetual motion, the supply of heat without cost" [3, p. 89].

Por esta razão, Planck assumiu a proposição acima como ponto de partida para deduzir a segunda lei. Ele nos diz que este moto é impossível, um moto perpétuo de segunda espécie está relacionado com a segunda lei da mesma forma que o moto perpétuo de primeira espécie está relacionado com a primeira lei. Em uma nota de rodapé, ele afirma:

O ponto de partida escolhido por mim para a prova da segunda lei coincide fundamentalmente com o que R. Clausius, ou que Sir W. Thomson, ou que J. Clerk Maxwell utilizaram para a mesma finalidade. A proposição fundamental que cada um destes investigadores colocou no início de suas deduções, afirma a cada vez, apenas de forma diferente, a impossibilidade da realização do moto perpétuo do segundo tipo [3, p. 90].31 31 "The starting point selected by me for the proof of the second law coincides fundamentally with that which R. Clausius, or which Sir W. Thomson, or which J. Clerk Maxwell used for the same purpose. The fundamental proposition which each of these investigators placed at the beginning of his deductions asserts each time, only in different form, the impossibility of the realization of perpetual motion of the second kind" [3, p. 90].

Desta forma, não existe apenas uma única formulação realmente racional da segunda lei, mas várias contribuições foram dadas nesse sentido [3, p. 90]. A formulação de Planck acrescenta conceitos importantes para tornar o enunciado mais claro, a noção de irreversibilidade e de processos cíclicos. Assim, sua contribuição consistiu em apresentar maior generalidade ao enunciado de Kelvin, evidenciando a inexistência de um moto contínuo de segunda espécie, isto é, uma máquina térmica que troca calor com apenas um reservatório térmico transformando-a completamente em trabalho (motor térmico ideal). Planck relaciona de forma mais estreita o enunciado de Kelvin com o princípio de aumento de entropia, apesar de não utilizá-lo para chegar as suas conclusõoes. Planck também evidencia, mesmo que de forma indireta, a equivalência entre os enunciados de Kelvin e Clausius, segundo o qual não existe uma máquina que transfira calor completamente de um reservatório para outro a temperatura mais alta. Sua síntese, através da inexistência do moto continuo de segunda espécie traduz o caráter irreversível dos processos naturais. Neste sentido, sua contribuição tem grande importância na forma que a segunda lei é apresentada hoje nos livros didáticos de graduação em física.

4. Considerações finais

Neste trabalho, procuramos enfatizar as contribuições de Planck para o enunciado da segunda lei, tendo em vista que a forma como o enunciado de Kelvin, em alguns casos Kelvin-Planck, aparece nos livros didáticos está bem próxima da interpretação dada por Planck à segunda lei da termodinâmica. Vale ressaltar que não nos propusemos a realizar uma análise de livros didáticos, mas deveríamos apontar essa discussão nas nossas aulas de física, pois na maioria das vezes essa contribuição de Planck acaba sendo esquecida. De todo modo, nos parecem mais precisos em termos históricos os livros que apresentam este enunciado identificando a contribuição de Planck na denominação da lei.

Alguns temas mencionados neste trabalho, embora escapem ao seu escopo, merecem ser investigados com maior cautela, tais como uma "linha do tempo" mais completa dos textos que tratam da segunda lei entre Maxwell e Planck, e entre Planck e Fermi, a apresentação da segunda lei em livros didáticos e a equivalência entre os enunciados de Clausius e Kelvin-Planck. Outro ponto que nos fez refletir é a forma como as leis da termodinâmica são apresentadas no Ensino Médio, visto que Planck mostra uma abordagem para a segunda lei que não parte do conceito de entropia, mas sim usa a entropia para corroborar a segunda lei. A proposta de Planck pode conferir um caráter mais didático para trabalharmos as leis da termodinâmica no Ensino Médio.

Agradecimentos

Os autores agradecem os apoios da CAPES e CNPq que permitiram a realização deste trabalho, bem como ao professor Roberto F.S. Andrade, pela tradução do original de Boltzmann, e aos árbitros da RBEF pelas sugestões que permitiram o aprimoramento deste artigo.

Recebido em 17/7/2012

Aceito em 10/1/2013

Publicado em 9/9/2013

Copyright by the Sociedade Brasileira de Física. Printed in Brazil.

  • [1] J.L. Heilbron, The Dilemmas of an Upright Man (The Holland Press, London, 1986).
  • [2] P. Clark, In: Method and Appraisal in the Physical Sciences: The Critical Background to Modern Science, 18001905 edited by C. Howson, (Cambridge University Press, Cambridge, 1976) p. 41-106.
  • [3] M. Planck, Treatise on Thermodynamics(Dover Publications, New York, 1945).
  • [4] M. Planck, Vorlesungen über Thermodinamik (Verlag von Veit & Comp, Leipzig, 1897).
  • [5] I. Lakatos para Thomas Kuhn, april 24, 1973, T.S. Kuhn Papers, Institute Archives and Special Collections, MIT. Box 22, folder 37.
  • [6] I. Lakatos, The Methodolohy of Scientific Research Programmes - Philosophical Papers ed. by J. Worral & G. Currie (Cambridge University Press, Cambridge, 1978), Vol I, p. 8-101.
  • [7] W. Thomson, In: The Second Law of Thermodynamics edited by J. Kestin (Dowden, Hutchinson and Ross, Stroudburg, 1975) p. 106-132.
  • [8] J.C. Maxwell, Theory of Heat (Dover Publications Inc, New York, 2001).
  • [9] E. Garber, S.G. Brush and C.W.F. Everitt, Maxwell on Heat and Statistical Mechanics - On "Avoiding All Personal Enquiries" of Molecules (Lehigh University Press, Bethlehem, 1995).
  • [10] H. Fermi, Thermodynamics (Dover Publications Inc, New York, 1936).
  • [11] L. Tisza, Generalized Thermodynamics (Massachusetts Institute of Technology, Cambridge, 1966), p. 3-52.
  • [12] H.M. Nussenzveig, Curso de Física Básica (Blucher, São Paulo, 2002), v. 2.
  • [13] M.J. Oliveira, Termodinâmica (Editora Livraria da Física, São Paulo, 2005).
  • [14] H.D. Young, Física II: Termodinâmica e Ondas (Addison Wesley, São Paulo, 2008) 12Ş ed.
  • [15] F.W. Sears e G.L. Salinger, Termodinâmica, Teoria Cinética e Termodinâmica Estatística (Editora Guanabara Dois, Rio de Janeiro, 1979).
  • [16] S. Volchan, Revista Brasileira de Ensino de Física 28, 313 (2006).
  • [17] H. Fleming, In: 100 Anos de Física Quântica editado por M.S. Hussein e S. Salinas (Editora Livraria da Física, São Paulo, 2001), p. 1- 12.
  • [18] L. Boltzmann, Escritos Populares Tradução: Antônio Augusto Passos Videira (São Leopoldo, Editora da Unisinos, 2005).
  • [19] L. Boltzmann, Populäre Schriften (Verlag von Johann Ambrosius Barth, Leipzig, 1905).
  • [20] H. Kragh, Quantum Generations: A History of Physics in the Twentieth Century (Princeton University Press, Princeton, 1999).
  • [21] R. Clausius, In: The Second Law of Thermodynamics edited by J. Kestin (Dowden, Hutchinson and Ross, Stroudburg, 1976), p. 133-161.
  • [22] A. Sommerfeld Thermodynamics and Statistical Mechanics. Lectures on Theoretical Physics, translated by J. Kestin (N.Y. Academic Press Inc., New York, 1956), v. V.
  • [23] S. Seth, Crafting the Quantum: Arnold Sommerfeld and the Pratice of Theory, 1980-1926 (Massachusetts Institute of Technology, Cambridge, 2010).
  • *
    Uma versão preliminar deste trabalho foi apresentada no XII Encontro de Pesquisa em Ensino de Física. Este artigo é baseado na dissertacão de mestrado da primeira autora, intitulada
    segunda lei da termodinâmica: os Caminhos Percorridos por William Thomson defendida no Programa de Pós-Graduacão em Ensino, Filosofia e História das Ciências da Universidade Federal da Bahia/Universidade Estadual de Feira de Santana. A dissertacão teve como objetivo apresentar a análise da evolucão do pensamento de Kelvin na construcão da segunda lei da termodinâmica. Em um primeiro momento apresentamos uma história contextual do desenvolvimento da termodinâmica enquanto ciência, destacando os trabalhos de Carnot, Clapeyron e Joule. Depois mostramos a relacão de Kelvin com estes pensadores e como eles o influenciaram nesta trajetória, além de evidenciar a co-criacão da segunda lei por Kelvin e Clausius. Por último, falamos da forma como a segunda lei é apresentada nos livros didáticos, onde mostramos as contribuicões de Planck para a transmissão desta lei.
  • 1
    E-mail:
  • 2
    Vale ressaltar que no momento em que Planck faz esta síntese o conceito de entropia já havia sido introduzido por Clausius em 1862, em seu trabalho
    Über die Wärmeleitung gasförmiger Körper [ On the application of the theorem of the equivalence of transformations to the internal work of a mass o matter]. Para maiores informações sobre como o conceito de entropia foi sendo interpretado ao longo da segunda metade do século XIX, ver Clark (1976) [2].
  • 3
    Ao longo do texto optamos por inserir o trecho original da citação em inglês visto que trata-se de uma tradução de época e que chegou a ser revisada por Planck.
  • 4
    The oft-repeated requests either to publish my collected papers on Thermodynamics, or to work them up into a comprehensive treatise, first suggested the writing of this book. Although the first plan would have been the simpler, especially as I found no occasion to make any important changes in the line of thought of my original papers, yet I decided to rewrite the whole subject-matter, with the intention of giving at greater length, and with more detail [3, p. vii].
  • 5
    XXIII International Congress of History of Science and Technology, 29 de julho de 2009, Budapest, Hungary.
  • 6
    A tese foi orientada pelo filósofo da ciência Imre Lakatos, que tinha em alta conta o trabalho realizado por Clark. A admiração de Lakatos por Clark aparece em uma carta que ele enviou para o historiador e filósofo da ciência Thomas Kuhn, onde Lakatos faz elogios à Clark: "[...]since 1965, a new young generation grew up, for whom naive falsification and Karl [Popper] are mere historical curiosities: they set out, however, to try out your and my philosophical ideias on the testing ground on the history of physics [...]. They are competent, brilliant young men, and I am rather pround of them. On their iniciative now a conference is taking shape in which I should like to get you interested.[...] The third paper would be by Peter Clark on the
    Victory of Atomism over the Phenomenological Theory of Heat: a paper which will culminate in Einstein's work on the Brownian Motion and Perrin's experiments"[5].
  • 7
    A abordagem lakatosiana dos programas de pesquisa está presente nos próprios conceitos de Clark de programas progressivos e degenerativos. Para a abordagem lakatosiana ver [6].
  • 8
    [...] the history of what is now called the kinetic theory must be appraised as the development of a powerfull research programme, which after some early notable successes, in the last decade of the nineteenth century, was
    degenerating. In contrast the research programme of pure thermodynamics was
    progressive from its inception [2, p. 43].
  • 9
    "It is impossible, by means of inanimate material agency, to derive mechanical effect from any portion of matter by cooling it below the temperature of the coldest of the surrounding objects" [7, p. 179].
  • 10
    "It is impossible to construct an engine which will work in a complete cycle, and produce no effect except the raising of a weight and the cooling of a heat-reservoir" [3, p. 89].
  • 11
    "It is impossible, by the unaided action of natural processes, to transform any part of heat of a body into mechanical work, except by allowing heat to pass from that body into another at a lower temperature" [8, p. 153].
  • 12
    "It is only lately under the conduct of the Professor Willard Gibbs that I have been led to recant an error which I had imbibed from your [Thermodynamics], namely that the entropy of Clausius is unavailable energy while that of [Tait] is available energy. The entropy of Clausius is neither the one nor the other" [9, p. 223-226].
  • 13
    Agradecemos ao editor da RBEF, S. Salinas, ter chamado nossa atenção para a interação entre Maxwell e Gibbs a propósito da primeira edição do
    Theory of Heat.
  • 14
    "A transformation whose only final result is to transform into work heat extracted from a source which is at the same temperature throughout is impossible" [10, p. 30].
  • 15
    This statement of the second law is usually designated as the Kelvin-Planck formulation. It can be shown to be equivalent with Clausius' formulation: It is impossible to construct a device that, operating in a cycle, will produce no effect other than transfer of heat from a colder to a hotter body [11, p. 37].
  • 16
    It is, therefore, hopeless to seek to reduce the general laws regarding the direction of thermodynamical changes, as well as those of thermodynamical equilibrium, to the corresponding propositions in mechanics which hold good only for systems at rest [3, p. 81].
  • 17
    Embora exista uma tradução dos
    Escritos Populares para o português [], optamos por uma tradução própria a partir do original alemão. Agradecemos ao Professor Roberto F.S. Andrade a colaboração com esta tradução.
  • 18
    O teorema de Recorrência de Poincaré afirma que todo sistema mecânico, sujeito apenas a forças conservativas, cuja dinâmica está restrita a uma região limitada do espaço de fase, evoluirá para um estado final tão próximo quanto se queira do estado inicial.
  • 19
    "[...] The too restricted term "Energetics" is sometimes applied to all investigations on these questions. The concept of energy is not sufficient to the second law. It cannot be exhaustively treated by breaking up a natural process into a series of changes of energy, and then investigating the direction of each change. We can always tell, it is true, what are the different kinds of energy exchanged for one another; for there is no doubt that the principle of energy must be fulfilled, but the expression of the conditions of these changes remains arbitrary, and this ambiguity cannot be completely removed by any general assumption" [3, p. 81].
  • 20
    "The change of mechanical work into heat may be complete, but, on the contrary, that of heat into work must need be incomplete, since, whenever a certain quantity of heat is transformed into work, another quantity of heat must undergo a corresponding and compensating change; e.g.transference from higher to lower temperature" [3, p. 81-82].
  • 21
    "It is in no way possible to completely reverse any process in which heat has been produced by friction" [3, p. 83].
  • 22
    "It is in no way possible to completely reverse any process in which a gas expands wihtout performing work or absorbing heat,
    i.e. with constant total energy" [3, p. 83].
  • 23
    "Supposing that a body receives a certain quantity of heat from another of higher temperature, the problem is completely reverse this process,
    i.e. to convey back the heat without leaving any change whatsoever" [3, p. 84].
  • 24
    "A process which can in no way be completely reversed is termed
    irreversible, all the other process
    reversible. [3, p. 84].
  • 25
    This principle does not merely say that heat does not flow directly from a cold to a hot body - that is self-evident, and is a condition of the definition of temperature - but it expressly states that heat can in no way and by no process be transported from a colder to a warmer body without leaving further changes,
    i.e. without
    compensation [3, p. 85].
  • 26
    Sobre Sommerfeld e seu estilo de produção da física ver a Ref. [23]
  • 27
    "Planck opposes (and rightly so) the view of certain physicists that the essence of the Second Law consists in the statement that energy tends to degrade. Evidently an increase in entropy causes in many cases a decrease in the available temperature difference and hence also in the availability of work. Planck quotes the obvious example in which heat is transformed into work completely, namely the example of an isothermal expansion of a perfect gas with heat transfer from a reservoir of higher temperature and with complete utilization of the pressure of the gas to perform work. In this process energy is not degraded but quite to the contrary, it is ennobled (heat completely transformed into work) [21, p. 38].”
  • 28
    "In our and in Planck's opinion, the essence of the Second Law consists in the existence of entropy and in the impossibility of its decreasing under well defined conditions" [21, p. 38].
  • 29
    "It is impossible to construct an engine which will work in a complete cycle, and produce no effect except the raising of a weight and the cooling of a heat-reservoir" [3, p. 89].
  • 30
    "It would, it is true, not be equivalent to perpetual motion, for it does not produce work from nothing, but from the heat, which it draws from the reservoir. It would not, therefore, like of perpetual motion, contradict the principle of energy, but would, nevertheless, possess for man the essential advantage of perpetual motion, the supply of heat without cost" [3, p. 89].
  • 31
    "The starting point selected by me for the proof of the second law coincides fundamentally with that which R. Clausius, or which Sir W. Thomson, or which J. Clerk Maxwell used for the same purpose. The fundamental proposition which each of these investigators placed at the beginning of his deductions asserts each time, only in different form, the impossibility of the realization of perpetual motion of the second kind" [3, p. 90].
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      31 Out 2013
    • Data do Fascículo
      Set 2013

    Histórico

    • Recebido
      17 Jul 2012
    • Aceito
      10 Jan 2013
    Sociedade Brasileira de Física Caixa Postal 66328, 05389-970 São Paulo SP - Brazil - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: marcio@sbfisica.org.br