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A questão dos modelos no ensino de Mecânica Quântica: a equação de Schrödinger para partículas de spin semi-inteiro

The issue of models in the teaching of Quantum Mechanics: the equation Schrödinger for semi-integer spin particles

Resumos

Neste artigo, discutimos noções de modelos utilizados nas ciências e, em particular, no âmbito da Mecânica Quântica, apresentando um modelo físico para partículas de spin semi-inteiro. Ele é baseado na quantização de uma representação do sistema realizada no espaço de fase, fornecendo a representação de Schrödinger que descreve partículas de spin semi-inteiro. A partir das soluções da equação, derivamos as representações usuais dadas na literatura em termos de matrizes. A vantagem da arquitetura aqui apresentada é a discussão do problema do spin a partir da interpretação de Schrödinger para a Mecânica Quântica. Discutimos, assim, a possibilidade do spin ser visto como uma variável dinâmica, substituindo a sua corriqueira interpretação como propriedade intrínseca da partícula. Por fim, ficaram aduzidas possibilidades de incursão epistemológica e de transposição didática, além de assinaladas as limitações curriculares mais típicas.

Palavras-chave:
Modelos; spin semi-inteiro; equação de Schrödinger; ensino; Mecânica Quântica


In this work, we discuss notions of models used in the sciences and, in particular, in the field of Quantum Mechanics, presenting a physical model for semi-integer spin particles. It is based on quantization of a representation of the system performed in phase space, providing the Schrödinger representation that describes semi-integer spin particles. From the solutions of the equation, we derive the usual representations given in the literature in terms of matrices. The advantage of the architecture presented here is the discussion of the spin problem from of Schrödinger’s interpretation of Quantum Mechanics. We thus discuss the possibility of spin being seen as a dynamic variable, replacing its common interpretation as an intrinsic property of the particle. Finally, possibilities of epistemological incursion and didactic transposition were presented, in addition to pointing out the most typical curricular limitations.

Keywords:
Models; semi-integer spin; Schrödinger equation; teaching; Quantum Mechanics


1. Introdução

Em cursos de Mecânica Quântica, é usual que os processos de ensino e aprendizagem veiculem um fenômeno físico sobremaneira interessante, mas que raramente é percebido pelos estudantes e, em muitos dos casos, sequer pelos professores. O estudo da Mecânica Quântica, quando se trata de apresentar a resolução relativa a sistemas físicos concretos (e.g., átomo de hidrogênio, oscilador harmônico, potenciais quadrados) é quase sempre realizado a partir da representação de Schödinger, que corresponde a uma abordagem matemática na qual a função de onda (entidade matemática que representa o sistema físico analisado) depende do tempo, enquanto os operadores (entidades matemáticas que representam os observáveis) são constantes. A evolução temporal da função de onda é governada pela Equação de Schrödinger, e a análise do comportamento do sistema físico é realizada a partir das suas soluções [1[1] C. Cohen-Tannoudji, B. Diu e F. Laloë, Quantum mechanics (Wiley, New York, 1977), v.1., 2[2] J.J. Sakurai e J. Napolitano, Mecânica Quântica Moderna (Bookman, Porto Alegre, 2013), 2. ed., 3[3] D.J. Griffiths, Mecânica Quântica (Pearson, São Paulo, 2011), 2 ed.].

Entretanto, ao introduzir a discussão acerca do spin semi-inteiro, há súbita mudança de estratégia expositiva: passa-se imediatamente de uma abordagem centrada na equação de Schrödinger para outra segundo a formulação matricial de Heisenberg. Nesta representação, dirigida pela equação homônima, são os operadores que evoluem com o tempo, enquanto a função de onda é tida como constante [1[1] C. Cohen-Tannoudji, B. Diu e F. Laloë, Quantum mechanics (Wiley, New York, 1977), v.1., 2[2] J.J. Sakurai e J. Napolitano, Mecânica Quântica Moderna (Bookman, Porto Alegre, 2013), 2. ed., 3[3] D.J. Griffiths, Mecânica Quântica (Pearson, São Paulo, 2011), 2 ed.].

Essa descontinuidade expositiva (mas, antes, epistemológica), por certo, tem razões profundas que mereceriam uma discussão mais atenta: isso é feito porque, ao contrário dos sistemas físicos já mencionados, assume-se que não se tem um modelo físico capaz de representar partículas de spin semi-inteiro (certamente, o modelo de corpos girando, associado ao grupo O(3), não é apropriado, como é amplamente reconhecido).

Entretanto, um dos fundamentos da Mecânica Quântica é justamente a equivalência absoluta entre as duas formas de apresentação – Schrödinger e Heisenberg –, de modo que, mesmo que não saibamos qual seja, há de existir uma representação segundo Schrödinger para o spin semi-inteiro.

Nesse bojo, outra maneira de se estudar as partículas de spin-1/2 sem utilizar a formulação matricial de Heisenberg é por meio da equação de Pauli-Schrödinger, que pode ser obtida a partir da equação de Dirac considerando o seu limite não-relativístico [4[4] W. Pauli Jr., Zeitschrift Für Physik 43, 601 (1927)., 5[5] T.C. Chapman, Am. J. Phys. 52, 994 (1984).]. Tal itinerário é geralmente adotado em cursos de pós-graduação em física em razão do nível de abstração conceitual e de recursos matemáticos a que recorre. Assim, a função obtida como solução da equação de Pauli-Schrödinger é um objeto matemático denominado spinor de duas componentes. Generalizações dessa equação para partículas com outros valores de spin semi-inteiro (como, por exemplo, spin-3/2), são encontradas na literatura [6[6] G.F. Torres del Castillo e J. Velázquez Castro, Rev. Mex. Fís. 50, 306 (2004).].

Contudo, o tratamento apresentado neste trabalho busca divergir daqueles usualmente empregados nos cursos de graduação e pós-graduação na área, e, mais ainda, pretende-se autocontido do ponto de vista interpretativo dos sistemas físicos analisados.

Uma equação de Schrödinger para partículas de spin semi-inteiro implica, por sua vez, em uma representação no espaço de fase para o problema: representação que, uma vez quantizada, leva exatamente à equação de Schrödinger pretendida.

Dessa forma, a formulação que perseguimos busca, além desta problematização, apresentar uma noção de modelos em física para fundamentar a revigoração de um problema clássico – de fácil resolução, mas suficientemente dotado das condições introdutórias de um modelo material para partículas de spin semi-inteiro. A partir da abordagem clássica, propomos um modelo para a estrutura da partícula de spin semi-inteiro que nos permita derivar todas as relações matemáticas conhecidas para os comutadores e anticomutadores de Dirac, representados, como usual, no âmbito clássico pelos parênteses e “antiparênteses” de Poisson. A equação de Schrödinger é, então, obtida e resolvida para encontrar as amplitudes de probabilidade (autofunções) de partículas de spin semi-inteiros. Na sequência, mostramos que o modelo desenvolvido permite estabelecer, entre as representações de Heisenberg e Schrödinger, as relações de equivalência esperadas, dando-se as bases para uma breve discussão acerca da possibilidade de interpretarmos o spin de uma partícula como uma variável dinâmica. Finalmente, apresentamos considerações finais e perspectivas que projetem o arranjo proposto para um vasto feixe de situações didáticas de interesse, marcando – pelo mesmo movimento – suas limitações em contextos curriculares herméticos.

Entretanto, vale assinalar que, mesmo não encontrando eco na literatura tradicional em Mecânica Quântica, já foram realizados trabalhos no sentido de expressar spins semi-inteiros por meio de equações diferenciais [4[4] W. Pauli Jr., Zeitschrift Für Physik 43, 601 (1927)., 5[5] T.C. Chapman, Am. J. Phys. 52, 994 (1984)., 6[6] G.F. Torres del Castillo e J. Velázquez Castro, Rev. Mex. Fís. 50, 306 (2004)., 7[7] T.F. Ricci e C. Scherer, J Stat Phys 67, 1201 (1992)., 8[8] G. Spavieri, Found of Phys 20, 45 (1990).]. Tais trabalhos, de modo geral, focam na dinâmica interna das partículas de spin semi-inteiro, raramente fazendo apelo à sua estrutura, no que diferem do presente trabalho. De fato, uma diferença importante entre o presente trabalho e a referência [9[9] V. Ho, Journal of Modern Physics 10, 1374 (2019).], por exemplo, pode ser notada na introdução daquele, em que se encontra: “da mesma forma, o momento angular de rotação pode ser introduzido na mecânica quântica como um operador com a mesma formulação matemática que o momento angular orbital, exceto pelo fato de que o momento angular do spin não possui um objeto comparável na física clássica, de modo que não pode ser representado como girando em torno de um eixo ou associado a alguma forma de movimento no espaço” (tradução nossa), que é precisamente o argumento que defendemos neste artigo.

2. Modelos em Física e seu ensino

Noções lato sensu acerca de modelos começaram a integrar o debate científico por volta da segunda metade do século XIX e, desde então, evoluíram vertiginosamente, de modo a englobar diferentes necessidades surgidas – não apenas, mas sobretudo – nas ciências naturais. No curso histórico, tais noções foram transitando nas seguintes categorias: i) modelo mecânico, caracterizado por uma representação de objetos concretos ou abstratos voltada à compreensão dos fenômenos naturais; ii) modelo semântico, que postula que as teorias científicas devem ser interpretadas como coleções de modelos, que, por sua vez, corresponderiam a representações de objetos matemáticos; iii) modelo matemático, sistema lógico-semântico dedicado à representação da realidade; iv) modelo por simulação computacional, que se utiliza de algoritmos para forjar uma situação, um processo ou um sistema real; e v) no campo do ensino, o modelo didático, que faz a transposição dos saberes contidos nos modelos científicos para torná-los compreensíveis em contexto educacional. Para além disso, os modelos podem cumprir as importantes funções lógicas ou cognitivas de: (a) aprender sobre os sistemas-alvo; (b) explicar certos comportamentos a partir da usa manipulação; e (c) compreender, a partir deles, fenômenos naturais e/ou teorias científicas [10[10] G.G. Gomes e M. Pietrocola, Rev. Bras. Ens. Fís. 33, 1 (2011)., 11[11] F.S. Silva e F. Catelli, Rev. Bras. Ens. Fis. 41, e20190029 (2019).].

Tendo em vista a diversidade de noções de modelo, bem como que sua compreensão é central para a defesa teórica contida nesta discussão, nos comprometeremos aqui com a ideia de “modelo físico” presente em Archinstein [12[12] P. Achinstein, Concepts of Science: A Philosophical Analysis (The Johns Hopkins Press, Maryland 1968).] e Readhead [13[13] M. Redhead, Brit.J. Phil. Set. 31, 145 (1980).]:

  • um conjunto de suposições acerca de determinado objeto ou sistema material;

  • tais suposições atribuem uma estrutura interna, composição ou mecanismo, que manifesta-se em outras propriedades exibidas pelo objeto;

  • tais suposições são tratadas como aproximações simplificadas úteis a certos propósitos;

  • o modelo é proposto tendo como pano de fundo alguma teoria mais básica;

  • o modelo pode apresentar uma analogia entre objetos e sistemas.

Ao aderir a essa perspectiva, assumimos uma posição sobre o papel de modelos para nosso aprendizado, explicação e compreensão de fenômenos naturais ou teorias. Em particular, assumimos a ideia de que modelos são postulações idealizadas de uma realidade subjacente e que tais idealizações não influem na sua capacidade de implementar os itens (a)-(c), anteriormente mencionados [10[10] G.G. Gomes e M. Pietrocola, Rev. Bras. Ens. Fís. 33, 1 (2011)., 11[11] F.S. Silva e F. Catelli, Rev. Bras. Ens. Fis. 41, e20190029 (2019).].

Há razões profundas para que modelos, como apresentados anteriormente, tenham visto ser corroída parte de sua importância na Física Moderna [13[13] M. Redhead, Brit.J. Phil. Set. 31, 145 (1980).]. Em particular, tais modelos são mais buscados sob perspectivas vinculadas ao realismo científico, algo que perdeu parte da sua atratividade no âmbito da Mecânica Quântica, uma vez que tal realismo postula que as teorias científicas em geral, e a física em particular, visam descrever com veracidade, ao menos aproximada, as entidades e os fenômenos que ocorrem no universo, considerando-os independentes do sujeito que observa.

Também fazem mais sentido no âmbito de uma teoria física mais geral, interessada em introduzir elementos ontológicos, ou seja, entidades físicas das quais se afirma uma existência concreta e independente da cognição humana, no processo de compreensão da natureza. No presente caso, entretanto, a imposição de um modelo físico que permita a construção de uma equação de Schrödinger assim como a conexão entre a abordagem via representação de Schrödinger e aquela associada ao formalismo de Heisenberg cumpre funções teóricas importantes.

Esse ponto, de fato, pode ser muito útil para introduzir no ensino de Mecânica Quântica, mesmo que brevemente, uma discussão acerca da importância de modelos e suas limitações para a própria compreensão da teoria. Nesse sentido, podemos entender as teorias científicas como possuindo dois componentes de igual importância: o lógico e o psicológico. O primeiro se refere aos fatos que podem ser extraídos a partir das regras da lógica e matemática; já o segundo, ao conhecimento que efetivamente pode ser derivado por um cientista a partir de uma teoria [14[14] H.A. Simon e A. Newell, Models: their uses and limitations, disponível em: https://digitalcollections.library.cmu.edu/node/35201?search_api_fulltext=Models%3A%20their%20uses%20and%20limitations, acessado em 28/03/2022.
https://digitalcollections.library.cmu.e...
]. Dessa forma, é possível perceber um componente subjetivo na obtenção de conhecimento a partir de uma teoria, o qual depende da forma como ela é apresentada e do cientista que a interpreta.

Uma discussão como essa ocorreu com grande intensidade quando do nascimento da Mecânica Quântica, entre Bohr e Schrödinger (o que pode ser igualmente interessante de se trazer para o contexto de sala de aula). Schrödinger insistia na necessidade de modelos por meio da sua exigência por “visualizabilidade” da teoria (anschaulichkeit – que também significa “nitidez”) [15[15] J. Mehra, Foundations of Physics 17, 461 (1987).]. Contra essa posição, colocavam-se Heisenberg e praticamente todos os físicos mais próximos da escola de Copenhagen (que, em breve, apresentaria a primeira interpretação da Mecânica Quântica, conhecida como Interpretação de Copenhagen). Assim, após um extenuante debate entre Bohr e Schrödinger acerca dos saltos quânticos, Heisenberg diz [16[16] W. Heisenberg, Physics and Beyond (Harper and Row, New York, 1971).]:

Nenhuma compreensão concreta poderia ser esperada [sobre saltos quânticos] pois, naquela época, nenhum dos lados era capaz de oferecer uma interpretação completa e coerente da Mecânica Quântica. Por tudo isso, nós em Copenhagen estávamos convencidos, ao fim da visita de Schrödinger, que estávamos no caminho correto, ainda que nós compreendêssemos completamente como seria difícil convencer mesmo físicos de frente que eles deveriam abandonar todas as tentativas de construir modelos perceptuais de processos atômicos (grifos adicionados.

A citação anterior mostra como, no contexto da busca por uma interpretação do formalismo quântico já desenvolvido, em grande medida, se adotou uma decisão epistemológica básica que passou a nortear grande parte das pesquisas e do ensino na área. De fato, a recusa foi, evidentemente, apenas parcial, já que tais modelos permanecem para a maioria absoluta dos sistemas quânticos, como átomos, moléculas, sólidos, dentre outros. Essa parcialidade, por sua vez, revela uma dimensão mais profunda do que aqui se discute: ao se assumir que alguns sistemas possuem modelos físicos (de caráter clássico, como átomos e moléculas), mas que outros, como o spin, não os possuem, assume-se, implicitamente, que não há possibilidade de correlacionar tais sistemas, como o spin semi-inteiro, com comportamentos clássicos que, quando quantizados, tornam-se seus representantes quânticos, naquilo que se convencionou chamar de “análogo clássico”. É deste processo que resulta a afirmação de que “o spin não possui análogo clássico”.

Entretanto, todas essas questões permanecem obnubiladas por uma estratégia didática que não as explicita, e nem mesmo as menciona, sendo esta a ideia central deste artigo. A partir dessa discussão, e seguindo as definições de Redhead [13[13] M. Redhead, Brit.J. Phil. Set. 31, 145 (1980).], apresentamos, na próxima seção, um modelo físico para a estrutura interna do elétron, fundamentado em uma analogia com o oscilador harmônico isotrópico bidimensional, de forma a acrescentar mais um componente epistêmico à teoria. Enfatizamos essa dimensão, inclusive, em detrimento à cognitiva (ou psicológica), baseada em mecanismos mentais de ordem superior, por entendê-la como uma inteligibilidade essencialmente individual, isto é, uma forma de apreensão subjetiva de processos lógicos da qual legitimamente pode se ocupar a filosofia da ciência [17[17] A.I. Goldman, Synthese 64, 29 (1985).]. Para além disso, e mesmo que este não seja o foco desse trabalho, entendemos ser possível, utilizando-se de adequada transposição didática desse modelo, levar o tema ao ensino de graduação em Física.

3. O Oscilador Bidimensional Clássico: um modelo introdutório e transitório ao ensino de Mecânica Quântica

O oscilador isotrópico clássico é um problema muito conhecido e de simples resolução da Mecânica Clássica. Começamos com o hamiltoniano clássico

H = 1 2 m ( p x 2 + m 2 ω 2 x 2 ) + 1 2 m ( p y 2 + m 2 ω 2 y 2 )

que nos permite encontrar as três constantes de movimento do problema

(1) S 1 = 1 2 m ω ( p x p y + m 2 ω 2 x y ) S 2 = 1 4 m ω [ p y 2 - p x 2 + m 2 ω 2 ( y 2 - x 2 ) ] S 3 = 1 2 ( x p y - y p x )

que, juntamente com a energia totalH, formam quatro constantes algébricas de movimento[18[18] H. Goldstein, C. Poole e J. Safko, Classical Mechanics (Addison Wesley, San Francisco, 2002), 3ª ed.]. Também é fácil mostrar, por avaliação direta, que

S 1 2 + S 2 2 + S 3 2 = H 2 4 ω 2

ou

H = 2 ω S ,

se S2=S12+S22+S32 e também

(2) { S i , S j } = ε ijk S k ,

onde εijk é o tensor totalmente antissimétrico e {*,*} é o parênteses de Poisson. O ponto importante aqui é que [18[18] H. Goldstein, C. Poole e J. Safko, Classical Mechanics (Addison Wesley, San Francisco, 2002), 3ª ed.]

[…] o grupo de transformações geradas pode, portanto, ser identificado com o O(3) ou o SU(2). Na verdade, há alguma ambiguidade na identificação. Há um homomorfismo (neste caso, um mapeamento) entre o grupo unimodular ortogonal também chamado de grupo de rotação em três dimensões e o grupo unimodular unitário em duas dimensões. Acontece que este último é aqui mais apropriado.

Na verdade, todos sabemos que as relações (2) são as responsáveis (na Mecânica Quântica e usando os comutadores de Dirac) pelas propriedades matemáticas globais das partículas de spin semi-inteiro. Na verdade, a representação completa do espaço de fase do grupo SU(3) é dada pelas funções [19[19] L.I. Schiff, Quantum Mechanics (McGraw-Hill, Singapore, 1968) 3ª ed.]

(3) L x = y p z - z p y L y = z p x - x p z L z = x p y - y p x Q x y = α x y + β p x p y Q y z = α y z + β p y p z Q z x = α z x + β p z p x Q 0 = α 2 3 ( x 2 + y 2 - 2 z 2 ) + β 2 3 ( p x 2 + p y 2 - 2 p z 2 ) Q 1 = α 2 ( x 2 - y 2 ) + β 2 ( p x 2 - p y 2 ) .

Tomando isso como nosso ponto de partida, propomos como modelo físico para entidades quânticas de spin semi-inteiro uma estrutura em que uma partícula (poderíamos chamá-la de partícula nua) gira sobre um plano por meio de uma força harmônica bidimensional isotrópica central: a entidade quântica de spin semi-inteiro seria, portanto, a partícula nua mais esse comportamento dinâmico de rotação. Modelos físicos similares seriam igualmente compatíveis com os elementos formais apresentados. Na verdade, bastaria pensar na partícula como tendo o formato de um elipsoide de revolução oblato girando via S3 (em torno de um eixo z) e capaz de sofrer deformações no plano xy, regidas pelas funções S1 e S2.

Essa arquitetura proposta cumpre todos os cinco critérios definidos por Archinstein [12[12] P. Achinstein, Concepts of Science: A Philosophical Analysis (The Johns Hopkins Press, Maryland 1968).] e Readhead [13[13] M. Redhead, Brit.J. Phil. Set. 31, 145 (1980).] para um modelo físico: 1) e 2) entende a entidade quântica de spin semi-inteiro como um sistema composto de uma partícula somada ao comportamento de rotação; 3) é uma simplificação visual da entidade quântica real; 4) possui, como sua base conceitual, a teoria quântica; e, por fim, 5) faz uma analogia entre a entidade quântica e o mecanismo clássico descrito. Além disso, possui a natureza de um modelo mecânico, uma vez que busca representar um objeto real, a entidade quântica de spin semi-inteiro, de modo a se tentar melhor compreender a estrutura interna do elétron.

Agora, voltamos nossa atenção para as três funções Si acima definidas. Evidentemente, como existem muitas partículas de spin semi-inteiros diferentes, as constantes α ou β, conhecidas como constantes de estrutura, entram apenas para selecionar qual partícula específica está sendo considerada. No que se segue, usamos as definições

(4) S 1 = 1 2 Q 1 = 1 2 σ 2 , S 2 = 1 2 Q x y = 1 2 σ 2 , S 3 = 1 2 L z = 1 2 σ 3

de tal forma que temos

{ S i , S j } = ε i j k S k

ou

{ σ i , σ j } = 2 i ε i j k σ k .

Temos, ainda, as relações

S 0 = 1 2 [ α β ( x 2 + y 2 ) + β α ( p x 2 + p y 2 ) ]

e

(5) S 2 = S 1 2 + S 2 2 + S 3 2 = 1 4 S 0 2 .

Para mostrar que esse modelo acompanha as relações de comutação quânticas, mas segundo o parênteses de Poisson, o que é uma imposição para o modelo, também introduzimos as funções

(6) S + = S 1 + i S 2 , S - = S 1 - i S 2 ,

que podem ser explicitamente escritas como

(7) S + = 1 4 [ α β ( x + i y ) 2 + β α ( p x + i p y ) 2 ] S - = 1 4 [ α β ( x - i y ) 2 + β α ( p x - i p y ) 2 ] .

Podemos também definir o anti-parênteses de Poisson pela expressão

(8) { f , g } A = k = 1 3 ( f q k g p k + f p k g q k )

e

(9) S ± = 1 2 ( σ 1 ± i σ 2 ) .

Com todas essas definições, encontramos as seguintes relações entre as diversas funções em relação ao parênteses de Poisson e o anti-parênteses:

(10) { S + , S - } = 2 S 3 { σ i , σ j } A = 2 S 0 δ i j { S + , S - } A = S 0 { S + , S + } = { S - , S - } = 0 ,

e também notamos que

{ S 0 , σ i } = 0 , { S 0 , σ i } A = 2 σ i , { S 0 , S 0 } = 2 S 0 2 ,

que são exatamente as mesmas relações encontradas no contexto do formalismo da Mecânica Quântica.

3.1. As Funções de Onda de Spin

Agora que encontramos uma representação das entidades quânticas com spin semi-inteiros em termos de funções de espaço de fase, torna-se possível prosseguir com a quantização dessas funções para derivar uma equação de Schrödinger que nos fornecerá as autofunções de spin semi-inteiros. As três funções S0, S3 e S2 são os candidatos naturais a serem quantificados (para formar o Conjunto Completo de Operadores que Comutam). No entanto, a expressão para S2 em termos das variáveis x,y,px,py é dada por

S 2 = 1 16 [ α β ( x 2 + y 2 ) 2 + β α ( p x 2 + p y 2 ) 2 + 2 ( x 2 + y 2 ) ( p x 2 + p y 2 ) ]

que, fazendo o procedimento usual de quantização de substituição px=-ix e py=-iy, fornece a uma equação diferencial parcial de quarta ordem. Felizmente, temos a relação (5) em que

S 0 = 1 2 [ α β ( x 2 + y 2 ) + β α ( p x 2 + p y 2 ) ]

que, após a quantização, resulta em uma equação diferencial parcial de segunda ordem. A quantização desta última função é bastante simples (note que este é o Hamiltoniano do oscilador isotrótrópico bidimensional) e temos a equação de Schrödinger subjacente

(11) 1 2 [ - β α ( 2 x 2 + 2 y 2 ) + α β ( x 2 + y 2 ) ] ψ ( x , y ) = λ ψ ( x , y ) ,

correspondente a

(12) S ^ 0 ψ = λ ψ .

Se introduzirmos coordenadas polares

x = r cos ( θ ) , y = r sin ( θ ) ,

e usarmos

u = ( α β 2 ) 1 / 4 r ,

encontramos a equação

(13) - 1 u u ( u ψ u ) + ( u 2 - 2 λ - 1 u 2 2 θ 2 ) ψ = 0 .

Temos, também,

S ^ 3 ψ = m ψ

que, por quantização, resulta em

S ^ 3 ψ = - i 2 ψ θ = m ψ .

Assim, é imediato ver que devemos ter

ψ ( u , θ ) = e 2 i m θ R ( u ) ,

a qual deve ser uma função unívoca, de modo que m possa ser um número semi-inteiro. Este resultado transforma (13) em

1 u u ( u R u ) + ( 2 λ - u 2 - 4 m 2 u 2 ) R = 0 .

A substituição de

R ( u ) = u 2 | m | e - u 2 / 2 g ( u )

na equação diferencial fornece

d 2 g d u 2 + ( 1 + 4 | m | u - 2 u ) d g d u + [ 2 λ - 2 ( 1 + 2 | m | ) ] g = 0 ,

e, adotando v=u2, encontramos:

(14) v d 2 g d v 2 + ( 2 | m | + 1 - v ) d g d v + [ ( λ - 1 ) 2 - | m | ] g = 0 ,

a qual é a equação diferencial associada de Laguerre. O último resultado implica que devemos ter λN-12-|m|=N ou

2 N = λ N - 1 - 2 | m | .

Note-se que, uma vez que devemos ter N0, então

(15) | m | λ N - 1 2 .

Note-se também que, uma vez que m é um número semi-inteiro, então λN deve ser um número (par) tal que N é igual a um número inteiro. A solução de (14) é bem conhecida e é dada por

g ( v ) = L N 2 | m | ( v ) ,

em que LN2|m| é uma função associada de Laguerre, de tal forma que nossa solução completa não normalizada se torna

ψ N , m ( r , θ ) = ( α β 2 ) | m | / 2 e 2 i m θ r 2 | m | × e - 1 2 α β 2 r 2 L N 2 | m | ( α β 2 r 2 ) .

Resta ainda encontrar a relação entre os operadores quânticos S^2 e S^0, que não pode ser simplesmente S^2=S^02/4 por causa dos termos não comutativos cruzados. É fácil descobrir que [20[20] L.S.F. Olavo, Principles, New Perspectives, Extensions and Interpretation (Nova Science, New York, 2016)][21[21] L.S.F. Olavo e A.D. Figueiredo, Physica A, 262 181 (1999).]:

S ^ 2 = 1 4 ( S ^ 0 2 - 2 ) ,

de tal forma que, se (12) é satisfeita, então

S ^ 2 ψ = 2 ( λ N 2 - 1 4 ) ψ

Se tivéssemos escrito a última equação usando o número quântico tradicional S para o momento angular total,

S ^ 2 ψ = 2 S ( S + 1 ) ψ ,

teríamos

S = λ N - 1 2 ,

ou seja, juntamente com (15), que |m|S, como de costume. Em termos dos números quânticos S e m, nossa solução torna-se, uma vez que N=S-|m|,

ψ S , m ( r , θ ) = ( α β 2 ) | m | / 2 e 2 i m θ r 2 | m | × e - 1 2 α β 2 r 2 L S - | m | 2 | m | ( α β 2 r 2 ) ,

que é a solução final para qualquer partícula de spin semi-inteiro.

Terminamos, assim, com os resultados mostrados na Tabela 1.

Table 1
Valores de λ, S, m e N para valores semi-inteiros.

Alguns exemplos de funções para diferentes valores dos números quânticos seriam (=α=β=1)

ψ 1 / 2,1 / 2 ( r , θ ) = e i θ r e - r 2 / 2 ψ 3 / 2,1 / 2 ( r , θ ) = e i θ r e - r 2 / 2 ( 2 - r 2 ) ψ 5 / 2,1 / 2 ( r , θ ) = e i θ r e - r 2 / 2 ( 3 - 3 r 2 + r 4 / 2 ) ψ 7 / 2,3 / 2 ( r , θ ) = e 3 i θ r 3 e - r 2 / 2 ( 10 - 5 r 2 + r 4 / 2 )

e a representação gráfica das funções de densidade de probabilidade subjacentes é mostrada na Figura 1.

Figura 1:
densidades de spin para valores dos números quânticos e. Pois também é mostrada uma possível representação material visualizal do modelo. SmS=32,m=12.

A interpretação dessas funções de densidade é simples: as funções de densidade de probabilidade são a representação da probabilidade de encontrar a partícula nua a alguma distância da origem. Uma vez que a entidade quântica de spin semi-inteiro é aqui modelada como a partícula nua juntamente com sua dinâmica, a densidade de probabilidade reflete a forma final da referida entidade quântica. Assim, para partículas de spin 12, a estrutura geral é dada por

ρ ( r ) = r 2 e - r 2 ,

com as constantes da estrutura α,β=1 (responsáveis pela fixação da partícula específica que está sendo estudada). Este perfil significa que a entidade quântica de spin semi-inteiro se assemelha a um anel plano, como esperado. Observe também que o número de “anéis de corrente” concêntricos representando cada partícula é dado por S-|m|+1.

4. Representações

Com os resultados da seção anterior, podemos fazer a conexão usual entre a representação funcional [em termos das amplitudes de probabilidade ψS,m(r,θ)] e a representação matricial. Isso pode nos garantir que estamos trabalhando com estruturas matemáticas e físicas equivalentes.

Sabemos que a representação funcional dos operadores de spin é dada como (=β=α=1)

(16) σ ^ 1 = 1 2 ( x 2 - y 2 + p x 2 - p y 2 ) 1 2 ( x 2 - y 2 + 2 y 2 - 2 x 2 ) σ ^ 2 = x y + p x p y x y - 2 x y σ ^ 3 = x p y - y p x i ( y x - x y ) ,

com a representação matricial do operador dada em termos das variáveis x e y. Se usarmos essas representações e calcularmos as matrizes

[ σ ^ i ] = ( 1 2 , 1 2 | σ ^ i | 1 2 , 1 2 1 2 , 1 2 | σ ^ i | 1 2 , - 1 2 1 2 , - 1 2 | σ ^ i | 1 2 , 1 2 1 2 , - 1 2 | σ ^ i | 1 2 , - 1 2 )

encontramos como resultado precisamente as matrizes de Pauli. Para fins didáticos, calcularemos a representação matricial de σ^3. Deixamos a cargo do leitor a demonstração que a escrita de σ^3 em coordenadas polares é dada por

σ ^ 3 = - i θ .

Com esse resultado e as funções

(17) ψ 1 / 2,1 / 2 ( r , θ ) = 1 π e i θ r e - r 2 / 2

e

(18) ψ 1 / 2 , - 1 / 2 ( r , θ ) = 1 π e - i θ r e - r 2 / 2 α = β = = 1 ,

podemos calcular os elementos da matriz [σ^i]. Nesse caminho, temos

1 2 , 1 2 | σ ^ 3 | 1 2 , 1 2 = 0 0 2 π ψ 1 / 2,1 / 2 ( r , θ ) × ( - i θ ) ψ 1 / 2,1 / 2 ( r , θ ) r d θ d r = 0 0 2 π r 3 e - r 2 d θ d r .

Usando a relação 0r2n+1e-x2a2dx=n!2a2n+2, obtemos

1 2 , 1 2 | σ ^ 3 | 1 2 , 1 2 = 1 .

De maneira análoga, temos que

1 2 , 1 2 | σ ^ 3 | 1 2 , - 1 2 = 0 0 2 π ψ 1 / 2,1 / 2 ( r , θ ) × ( - i θ ) ψ 1 / 2 , - 1 / 2 ( r , θ ) r d θ d r = 0 0 2 π e - 2 i θ r 3 e - r 2 d θ d r = 0 0 2 π cos ( 2 θ ) r 3 e - r 2 d θ d r + i 0 0 2 π sin ( 2 θ ) r 3 e - r 2 d θ d r .

É fácil verificar que as integrais na variável θ são nulas. Assim, obtemos

1 2 , 1 2 | σ ^ 3 | 1 2 , - 1 2 = 0 .

Fica como exercício ao leitor verificar que

1 2 , - 1 2 | σ ^ 3 | 1 2 , 1 2 = 0 ,

e

1 2 , - 1 2 | σ ^ 3 | 1 2 , - 1 2 = - 1 .

Por fim, escrevemos a matriz

[ σ ^ 3 ] = ( 1 0 0 - 1 )

Usando raciocínio análogo, as outras matrizes de Pauli podem ser obtidas. Ademais, tais resultados evidenciam a consistência entre o modelo teórico apresentado neste artigo e as formulações tradicionais dos livros de mecânica quântica usualmente adotados.

Enfim, os dois formalismos são, portanto, completamente equivalentes, dada alguma escolha de S (note que o formalismo funcional é mais geral: enquanto o formalismo matricial exige a escolha de uma matriz de representação de ordem já dada (e.g., 2×2), o resultado do cálculo funcional permite obter todas as autofunções e, com elas, construir facilmente as matrizes de representação para uma combinação S,Szqualquer, desde que envolvendo valores semi-inteiros.

Assim, resumindo nossos resultados, podemos dizer que, a partir dos cálculos do oscilador isotrótrópico bidimensional, propusemos um modelo físico para as entidades quânticas de spin semi-inteiro como sendo composto por uma partícula nua movendo-se sob o potencial 12mω2(x2+y2). O hamiltoniano do movimento da partícula nua é dado por (3) quando se faz z,pz0.

A quantização pode ser feita em termos usuais e vemos que nosso conjunto completo de observáveis de deslocamento são S0,S3,S2, mas, como S2 é um múltiplo de S02, só podemos trabalhar com o conjunto S3,S2. Resolvemos, então, o problema da diagonalização para encontrar a representação do movimento do corpúsculo nu como ψS,m(r,θ). Uma vez que a entidade quântica de spin semi-inteiro consiste na partícula nua acrescida de seu movimento, existe uma distribuição de probabilidade dada por ρ(x,y,z) que, multiplicada pela massa, corresponde à respectiva distribuição espacial de massa. Por exemplo, seu raio médio seria dado por

r ¯ , m = ψ S , m * ( r , θ ) r ψ S , m ( r , θ ) r d r d θ

e, para a entidade quântica de spin 12, teríamos

r ¯ 1 2 , 1 2 = 3 π 4 ( α β ) - 1 / 4 ;

é claro que cada entidade de spin 12 em particular tem valores diferentes dos α,β que dão suas características específicas como partícula. Por exemplo, se considerarmos o elétron, que possui um raio estimado de 210-12m [22[22] A.H. Compton, Phys. Rev. 2, 330 (1918).], adotamos que (αβ)-1/4 tem 104s/kg.m como ordem de grandeza.

5. O Spin visto como uma variável dinâmica

No arcabouço do modelo apresentado neste trabalho, vemos a possibilidade de reinterpretação do que seria o spin de uma partícula. Nos cursos de mecânica quântica, aprendemos que o spin é uma propriedade intrínseca da partícula, o que a define como entidade, tal qual a sua massa e carga. Por exemplo, o elétron é a partícula que tem carga 1,610-19C, massa 9,1110-31kg e spin 1/2. Porém, tendo em vista o que foi discutido na seção anterior, essa interpretação pode ser modificada. Para esse fim, lembremos que a função que define o estado da partícula resulta de uma combinação linear das funções dadas por

ψ S , m ( r , θ ) = ( α β 2 ) | m | / 2 e 2 i m θ r 2 | m | × e - 1 2 α β 2 r 2 L S - | m | 2 | m | ( α β 2 r 2 )

Note que, como resultado da apresentação do modelo físico de natureza mecânica aqui discutido, acrescentamos mais um componente psicológico à teoria quântica, qual seja: independentemente da partícula que estamos analisando, os elementos de base contêm diferentes valores de S, desde que sejam semi-inteiros. Ou seja, a priori, não há qualquer conflito teórico para a existência de elétrons, por exemplo, com outros valores de spin. Nesse percurso, o leitor pode estar se perguntando o porquê de o experimento de Stern-Gerlach, por exemplo, não trazer evidências da existência de elétrons com spin diferente de 1/2. Uma possível resposta seria que as variáveis experimentais não atingiram o limite necessário para percebermos essa manifestação da natureza, ou que o campo aplicado não tem a estrutura formal para proceder a transições do spin 1/2 para outros valores. Talvez campos magnéticos muito mais fortes, ou um experimento com outra conformação estrutural, possibilitem tal descoberta. Neste ponto, em particular, reside uma perspectiva complementar do objeto de estudo deste trabalho: calcular probabilidades de transição entre diferentes “níveis” de spin (por exemplo, a transição entre S=1/2 e S=3/2) quando a partícula nua for submetida a um campo externo.

6. Explicação das Rotações por 4π

Uma questão que tem sido considerada de difícil interpretação, assumida apenas a perspectiva de Heisenberg, é aquela que associa os spins semi-inteiros a rotações por múltiplos de 4π, e não 2π, como é usual para os operadores de momento angular, por exemplo. Isso decorre, matematicamente, do fato de o grupo SU(2) ser de dupla cobertura do grupo O(3). Esta “explicação”, entretanto, é de cunho exclusivamente matemático. Um físico poderia perguntar, afinal, qual a razão dessa diferença? De qual característica das partículas de spin semi-inteiro ela derivaria? Perguntas com claro conteúdo físico, suas respostas têm sido elusivas na literatura, para dizer o mínimo [23[23] L.S.F. Olavo, Found. Phys. 45, 1483 (2015)].

Ocorre aqui uma das características importantes, e, até mesmo, cruciais, de um modelo físico. Ainda que tenha sido desenvolvido para reproduzir certas características já conhecidas de um fenômeno físico (no caso, os valores do spin semi-inteiro), um modelo físico não se deixa controlar pela intencionalidade de seu autor, perfazendo o que poderíamos chamar de transbordamentos hermenêuticos, apresentando muitas outras características, usualmente não imaginadas em seu processo de desenvolvimento, mas que, por isso mesmo, são de importância crucial para a eventual confiança que a ele se pode atribuir.

Assim, especificamente para o modelo que apresentamos neste trabalho, é fácil explicar as razões pelas quais deve-se perfazer rotações de 4π para que se obtenha a mesma configuração do sistema. Isso decorre do fato de que o operador S1 é um tensor de segunda ordem. É sabido que tensores de segunda ordem, quando um sistema gira por um ângulo θ, giram por um ângulo θ/2. Assim, é a própria estrutura (proposta) para a partícula de spin semi-inteiro (uma estrutura achatada ou um anel que pode se deformar no plano) que explica o comportamento assinalado. Qualquer sistema, ademais, regido por tensores de segunda ordem apresentará o mesmo comportamento, não implicando isso em qualquer tipo de estranheza.

É particularmente interessante observar em ação esse efeito de transbordamento do modelo físico, e suas dimensões epistemológicas, assim como as pedagógicas, não deveriam ser subestimadas.

Finalmente, é interessante retomar as funções cognitivas que, neste trabalho, se supôs que um modelo deveria ter, agora apresentando-as no contexto do modelo proposto. Assim, o modelo aqui proposto permite, em princípio: (a) aprender mais sobre o sistema alvo – as partículas de spin semi-inteiro; (b) explicar características do sistema-alvo que não eram adequadamente compreendidas; (c) compreender mais profundamento o fenômeno (e, de certa maneira, a própria teoria). A perspectiva desenvolvida para o modelo apresentado neste trabalho se organiza em uma perspectiva de caráter realista, ainda que não precisasse ser. Nesta, o modelo mecânico apresentado e suas decorrências e extensões, representam, ainda que aproximadamente, ou no escopo do fenômeno estudado, a entidade física sendo considerada como real [24[24] https://plato.stanford.edu/entries/models-science/#ModeOtheDebaPhilScie, acessado em 26/05/2022.
https://plato.stanford.edu/entries/model...
].

7. Considerações Finais: perspectivas didáticas e limitações curriculares

Neste trabalho, tendo como ponto de partida a apresentação de um modelo físico de natureza mecânica, apresentou-se um formalismo alternativo para o estudo de partículas de spin semi-inteiro. O leitor deve ser lembrado de que nos cursos de Mecânica Quântica ministrados nas universidades, tanto na graduação, como na pós-graduação, usualmente adota-se como referência livros-textos em que a parte predominante do conteúdo segue a representação de Schrödinger, na qual a função de onda evolui com o tempo; contudo, no momento em que a natureza do spin do elétron vai ser analisada, há uma mudança abrupta na abordagem, passando-se a utilizar a representação de Heisenberg, na qual ao invés da função de onda evoluir com o tempo, os operadores (entidades matemáticas que representam os observáveis) assumem essa propriedade [1[1] C. Cohen-Tannoudji, B. Diu e F. Laloë, Quantum mechanics (Wiley, New York, 1977), v.1., 2[2] J.J. Sakurai e J. Napolitano, Mecânica Quântica Moderna (Bookman, Porto Alegre, 2013), 2. ed., 3[3] D.J. Griffiths, Mecânica Quântica (Pearson, São Paulo, 2011), 2 ed.]. Nesse processo, qualquer justificativa para o intercâmbio entre as representações de Schrödinger e Heisenberg, comprometendo a compreensão da situação física ilustrada pelo modelo. Na tentativa de atenuar essa dificuldade, este artigo trouxe um formalismo no qual o spin é analisado mediante equações diferenciais que ditam a evolução temporal da função de onda. Tal abordagem foi construída no espaço de fase e nos trouxe vantagens quando comparada àquela matricial, que é geralmente utilizada nos cursos universitários de Mecânica Quântica. Uma dessas vantagens é que fica evidente a possibilidade de se estabelecer um análogo clássico para sistemas de spin semi-inteiro. Além disso, também foi apresentada uma equação de Schrödinger que descreve qualquer sistema de spins semi-inteiros, definidos pelos valores dos números quânticos S e m discutidos neste texto. Finalmente, os desenvolvimentos mostram a possibilidade, vista ainda como uma hipótese, de se associar o spin não a características intrínsecas de partículas, mas àquelas dinâmicas, o que pode ser de grande relevo científico e didático.

As considerações anteriores apontam para a importância da adoção de modelos físicos no desenvolvimento das teorias, mesmo que para sua posterior superação. De fato, essa é uma das importâncias de se apresentar um caso concreto de modelagem física, em um contexto epistemologicamente pouco permeável a esse tipo de abordagem, retomando discussões que estiveram no âmago do processo de construção histórica da primeira interpretação da Mecânica Quântica. Tais discussões são muito raramente desenvolvidas no contexto do ensino, impactando rigorosamente no tipo de formação oferecida em currículos usuais na graduação e na pós-graduação em física no Brasil, excessivamente focada nas questões operacionais-matemáticas de manipulação da teoria, mas pouco desenvolvido quanto à habilidade de pensar epistemologicamente acerca dos temas ali tratados [25[25] O. Pessoa Jr., Conceitos de Física Quântica (Livraria da Física, São Paulo, 2003)., 26[26] R.S. Souza, I.M. Greca, I. Silva e E.S. Teixeira, Rev. Bras. Pesq. Educação em Ciências 20, 1363 (2021)].

Ao mesmo tempo, muitas abordagens voltadas para questões epistemológicas deixam de lado as obviamente importantes questões operacionais-matemáticas. O que pretendemos mostrar neste trabalho é que é possível desenvolver as duas dimensões não apenas como justapostas, mas absolutamente interligadas.

Referências

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    C. Cohen-Tannoudji, B. Diu e F. Laloë, Quantum mechanics (Wiley, New York, 1977), v.1.
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    J.J. Sakurai e J. Napolitano, Mecânica Quântica Moderna (Bookman, Porto Alegre, 2013), 2. ed.
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    D.J. Griffiths, Mecânica Quântica (Pearson, São Paulo, 2011), 2 ed.
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    W. Pauli Jr., Zeitschrift Für Physik 43, 601 (1927).
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    T.C. Chapman, Am. J. Phys. 52, 994 (1984).
  • [6]
    G.F. Torres del Castillo e J. Velázquez Castro, Rev. Mex. Fís. 50, 306 (2004).
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    G. Spavieri, Found of Phys 20, 45 (1990).
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    G.G. Gomes e M. Pietrocola, Rev. Bras. Ens. Fís. 33, 1 (2011).
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    F.S. Silva e F. Catelli, Rev. Bras. Ens. Fis. 41, e20190029 (2019).
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    P. Achinstein, Concepts of Science: A Philosophical Analysis (The Johns Hopkins Press, Maryland 1968).
  • [13]
    M. Redhead, Brit.J. Phil. Set. 31, 145 (1980).
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    H.A. Simon e A. Newell, Models: their uses and limitations, disponível em: https://digitalcollections.library.cmu.edu/node/35201?search_api_fulltext=Models%3A%20their%20uses%20and%20limitations, acessado em 28/03/2022.
    » https://digitalcollections.library.cmu.edu/node/35201?search_api_fulltext=Models%3A%20their%20uses%20and%20limitations
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    J. Mehra, Foundations of Physics 17, 461 (1987).
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    W. Heisenberg, Physics and Beyond (Harper and Row, New York, 1971).
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    H. Goldstein, C. Poole e J. Safko, Classical Mechanics (Addison Wesley, San Francisco, 2002), 3ª ed.
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    L.I. Schiff, Quantum Mechanics (McGraw-Hill, Singapore, 1968) 3ª ed.
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    L.S.F. Olavo, Principles, New Perspectives, Extensions and Interpretation (Nova Science, New York, 2016)
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    L.S.F. Olavo e A.D. Figueiredo, Physica A, 262 181 (1999).
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    A.H. Compton, Phys. Rev. 2, 330 (1918).
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    L.S.F. Olavo, Found. Phys. 45, 1483 (2015)
  • [24]
    https://plato.stanford.edu/entries/models-science/#ModeOtheDebaPhilScie, acessado em 26/05/2022.
    » https://plato.stanford.edu/entries/models-science/#ModeOtheDebaPhilScie
  • [25]
    O. Pessoa Jr., Conceitos de Física Quântica (Livraria da Física, São Paulo, 2003).
  • [26]
    R.S. Souza, I.M. Greca, I. Silva e E.S. Teixeira, Rev. Bras. Pesq. Educação em Ciências 20, 1363 (2021)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    13 Abr 2022
  • Revisado
    27 Maio 2022
  • Aceito
    01 Jul 2022
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