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Revisitando o Experimento de Eratóstenes: medida do raio de Terra

Revisiting the Eratosthenes’ experiment: a measurement of the radius of Earth

Resumos

Neste trabalho, medimos o raio da Terra reproduzindo o histórico experimento de Eratóstenes, realizado por volta de 240 a.C., nas antigas cidades de Siena e Alexandria. Aqui, obtemos as medidas nas cidades do Rio de Janeiro-RJ e Teresina-PI, cidades cujas coordenadas de longitude são muito próximas. Utilizando equipamentos simples, como fios de prumo e cartolinas, medimos, de forma simultânea, a inclinação dos raios solares sobre a superfície da Terra quando o Sol está no ponto mais alto do céu. Através de dados de satélites – para a determinação da distância (latitude) entre as cidades – e pelas medidas obtidas para a diferença dos ângulos em cada cidade, estimamos o raio médio volumétrico da Terra com um erro de 0,5% em relação aos valores da literatura. Ademais, a partir da diferença do horário em que o Sol fica no ponto mais alto do céu nos locais de medida, estimamos a velocidade angular de rotação da Terra em torno do seu próprio eixo. Com isso, apresentamos (de forma didática e simples) como obter a curvatura média do planeta, assumindo uma superfície de forma aproximadamente esférica, além da sua velocidade de rotação.

Palavras-chave:
Experimento de Eratóstenos; raio da Terra; velocidade angular da Terra


In this work, we measure the volumetric mean radius of the Earth, reproducing the historical experiment of Eratosthenes, carried out around 240 BC, in the ancient cities of Siena and Alexandria. Here, we perform measurements in the cities of Rio de Janeiro-RJ-Brazil and Teresina-PI-Brazil, whose longitude coordinates are close. Using simple equipment, such as plumb lines and rulers, we simultaneously measure the height of an object and its shadow’s length at midday, when the Sun is at its highest elevation, in order to obtain the shadow angle. After determining the distance (latitude) between cities from satellite data, we use the measured shadow angles to estimate the volume mean radius of the Earth, from basic trigonometric arguments, finding a result whose error is 0.5% with respect to the literature. Furthermore, from the difference of time in which the Sun is at the highest point in the sky in each location, we also estimate the Earth’s angular velocity. In summary, we pedagogically present how to obtain the mean curvature of the planet, assuming an approximately spherical surface, in addition to its angular velocity.

Keywords
Eratosthenes’ experiment; radius of Earth; angular velocity of Earth


1. Introdução

Com a crescente onda de pseudociência e negacionismo, que levantam falsas dúvidas sobre conhecimentos já estabelecidos e testados, é cada vez mais importante a utilização de novas metodologias de ensino e de divulgação científica. Neste contexto, a revisitação de experimentos históricos tem um papel crucial, por apresentar de forma didática as etapas da construção do conhecimento. Isto estimula a divulgação da importância do método científico e da reprodutibilidade de experimentos – os alicerces da ciência moderna [11 K.R. Popper, A lógica da pesquisa científica (Cultrix, São Paulo, 2004).] – cujas etapas são indispensáveis para o desenvolvimento de modelos e teorias, assim como suas aplicações em novas tecnologias.

Um dos experimentos históricos mais conhecidos é o da medição do raio da Terra feito por Eratóstenes [22 R.A. Brown e A. Kumar, The Physics Teacher 49, 445 (2011)., 33 J. Weir, Journal of the Royal Astronomical Society of Canada 25, 294 (1931)., 44 M. Longhorn e S. Hughes, Phys. Educ. 50, 175 (2015)., 55 M. Božić, L. Vušković, S. Popović, J. Popović e T. Marković-Topalović, Eur J Phys 37, 065801 (2016)., 66 V. Babović e M. Babović, Eur J Phys 35, 065005 (2014)., 77 P.C.R. Pereira, Revista Latino-Americana de Educação em Astronomia 3, 19 (2006)., 88 Sociedade Astronômica Brasileira, Projeto Eratóstenes Brasil, disponível em: https://sites.google.com/site/projetoerato/get-started, acessado em 23/09/2021.
https://sites.google.com/site/projetoera...
, 99 A.J.J. Santos, M.R. Voelzke e M.S.T. Araújo, Cad. Bras. Ens. Fís. 29, 1137 (2012).], por volta de 240 a.C. A partir da leitura de documentos presentes na biblioteca de Alexandria, Eratóstenes notou que, no solstício de verão, as paredes dos poços na cidade de Siena não projetavam sombra no fundo dos poços. Porém, na mesma data e horário, esse fenômeno não acontecia em Alexandria. Assumindo que os raios solares incidiam paralelamente na Terra, ele levantou a hipótese de que a superfície do planeta deveria possuir uma curvatura, como mostrado na Figura1, o que explicaria a ausência de sombra numa cidade, mas não na outra. Motivado pelas idéias de formas perfeitas e simétricas, elementos comuns nos estudos científicos na Grécia antiga [1010 T.B. de Oliveira, V.T. Lima e A.C. Bertuola, Revista Brasileira de Ensino de Física 38, e2304(2016)., 1111 L.V. Freitas, R.M. Santucci e I.A. Marques, Revista Brasileira de Ensino de Física 43, e20210062 (2021)., 1212 A.S.T. Pires, Evolução das Idéias da Física (Editora Livraria da Física, São Paulo, 2011).], Eratóstenes propôs que a Terra teria uma forma esférica, e então elaborou um experimento para medir o seu raio.

Figura 1:
Ilustração representando as duas cidades citadas no texto, Siena e Alexandria, distantes entre si de 5.000 estádios (ou 920 km). Figura meramente ilustrativa, com as dimensões da haste e da sombra fora de escala para enfatizar o ângulo, cuja tangente é tan(α)=d/h.

De forma resumida, o experimento de Eratóstenes consistia em obter uma relação de proporção entre a circunferência da Terra e a distância entre as duas cidades. Para esta finalidade, ele primeiramente mediu a distância entre Siena e Alexandria, encontrando um valor de cerca de 5.000 estádios (ou cerca de 920 km) [1313 R.R. Newton, Quarterly Journal of the Royal Astronomical Society 21, 379 (1980)., 1414 D. Engels, The American Journal of Philology 106, 298 (1985)., 1515 A.D. Pinotsis, Journal of Astronomical History and Heritage 9, 57 (2006).]. Em seguida, em dois solstícios de verão (anos) consecutivos, ele mediu a sombra de hastes verticais ao meio-dia, em cada cidade. Através de relações trigonométricas para a sombra e a altura das hastes, ele estimou o ângulo de incidência dos raios solares em relação à superfície da Terra na cidade de Siena, encontrando cerca de 7,2. Como exemplificado na Figura1, e também por argumentos de trigonometria para igualdade de ângulos alternos internos à retas paralelas, Eratóstenes compreendeu que o ângulo de incidência em Siena correspondia, de fato, ao ângulo α entre as duas cidades, a partir do centro da Terra. Com isso, utilizando a relação de arco de circunferência,

(1) α 360 = dist a ^ ncia entre as cidades circunfer e ^ ncia da Terra ,

ele estimou a circunferência da Terra em 46.620 km, com cerca de 16% de erro em relação as estimativas atuais [1515 A.D. Pinotsis, Journal of Astronomical History and Heritage 9, 57 (2006).]. É impressionante notar que, mesmo com um experimento feito há mais de dois milênios, o valor obtido é compatível com as medidas modernas, de 40.030 km [1616 https://nssdc.gsfc.nasa.gov/planetary/factsheet/earthfact.html, acessado em 21/09/2021.
https://nssdc.gsfc.nasa.gov/planetary/fa...
].

Porém, é importante lembrar que a Terra não é uma esfera perfeita: a rotação em torno do seu próprio eixo, juntamente com os efeitos da Lua sobre as marés, levam a distorções em relação à uma esfera. De fato, medidas modernas apontam para uma geometria similar à um elipsóide, com uma diferença entre os raios medidos nos polos, RT(p), em relação ao raio no equador, RT(e) (veja, e.g., as discussões na Ref. [1717 https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Raio_terrestre&oldid=61691241, acessado em 23/07/2021.
https://pt.wikipedia.org/w/index.php?tit...
] e referências citadas lá). Apesar disso, estima-se que |RT(e)-RT(p)|20 km, sendo, deste modo, uma diferença desprezível numa análise menos precisa, como a feita por Eratóstenes (e também neste trabalho). Assim, assumindo uma geometria esférica, medimos o chamado “raio médio volumétrico”, que é um valor intermediário entre RT(e) e RT(p), e serve como uma primeira estimativa do raio terreste. Então, chamamos atenção ao fato que, apesar de desconhecer esses detalhes sobre a Terra, Eratóstenes partiu de uma hipótese correta ao assumir uma forma esférica. Em outras palavras, o modelo que servia de fundamento para suas pesquisas geográficas (i.e., um planeta esférico) era, com boa precisão, suficiente para explicar os fenômenos e questionamentos da época [1818 D. Hestenes, American Journal of Physics 60, 732 (1992).].

Em vista desses resultados estimulantes, buscamos neste trabalho reproduzir o experimento de Eratóstenes de forma didática, no âmbito do Museu Interativo da Física da Universidade Federal do Rio de Janeiro (LADIF-UFRJ)[1919 https://ladif.if.ufrj.br, acessado em 23/09/2021.
https://ladif.if.ufrj.br...
]. O LADIF-UFRJ é um museu científico que se dedica à divulgação de Física e História da Física, com público alvo principal sendo professores e estudantes do ensino fundamental e médio. Nossas medidas foram obtidas nas cidades do Rio de Janeiro-RJ e Teresina-PI, que possuem coordenadas de longitude muito próximas, mas estão muito separadas em coordenadas de latitude (veja, por exemplo, o mapa no painel superior da Figura2). Por meio de uma análise simples, e usando dados de satélite para a distância entre as cidades, apresentamos como obter o raio médio do planeta, além da sua velocidade de rotação em torno do eixo. Todos os detalhes da metodologia utilizada neste trabalho estão apresentados na próxima seção, enquanto os resultados e as discussões estão na Seção3 3. Resultados O experimento foi realizado no dia 20 de fevereiro de 2021, a partir de medidas obtidas simultaneamente nas cidades do Rio de Janeiro-RJ e Teresina-PI. Como primeira passo, obtemos os dados de satélite via plataforma Google Earth. Tomando as coordenadas dos locais de medida como referências, encontramos diferenças latitudinais e longitudinais iguais a 17∘51’21” (≈17,86∘) e 0∘26’23” (≈0,44∘), respectivamente, que são equivalentes à distâncias de 1.975,8 km (latitude) e 48,8 km (longitude). Aqui, assumimos o erro dos dados de satélite como sendo 0,1 km. Em seguida, passamos a medir as projeções de sombra. Essas medidas foram realizadas aproximadamente entre 11:10h e 13:00h, com as marcações sendo feitas em intervalos de 5 a 10 minutos, em ambas as cidades. Os resultados para d⁢(t) estão apresentados na Figura4, enquanto as alturas h das pontas de tubo de caneta estão disponíveis na Tabela1. Repetindo o procedimento descrito na seção anterior, obtemos o valor de projeção mínima de sombra através do ajuste hiperbólico dos dados, equação (2), como representado nas curvas sólidas da Figura4. De posse de d0 e h, calculamos o módulo dos ângulos (mínimos) de incidência |ϕmin|, equação (3), cujos resultados são apresentados na Tabela1. Consequentemente, encontramos o ângulo de abertura de latitide α=(17,7±0,1)∘. Aqui, como “controle de qualidade”, é importante notar que esse resultado para α é consistente com os dados de satélite usados como referência, que apontam uma diferença de aproximadamente 17,86∘ entre os locais de medidas. Tabela 1: Dados obtidos no experimento, referentes (i) ao início das medidas em cada localidade, (ii) à altura h da ponta do tubo de caneta, (iii) ao tamanho de projeção mínimo de sombra d0, (iv) ao tempo t0 transcorrido até o ponto de projeção mínima e (v) ao ângulo de incidência |ϕmin|. Rio de Janeiro Teresina Inícioa (GMT-3) 11:12:00 h 11:15:00 h h (mm) 507 ± 2 848 ± 2 d0 (mm) 111 , 6 ± 0 , 3 78 , 4 ± 0 , 8 t0 (min)b 53 , 4 ± 0 , 2 49 , 0 ± 0 , 2 | ϕ min | ⁢ ( graus ) 12 , 42 ± 0 , 06 c 5 , 3 ± 0 , 1 d a A diferença se deu por questões metereológicas. b Relativo aos seus respectivos inícios de obtenções de medidas. Vide primeiro item desta tabela. c Direcionado para o Sul. d Direcionado para o Norte. Assim como feito por Eratóstenes, faremos aqui uso de argumentos trigonométricos para obter o raio da Terra. Usando a equação (1), e fixando a distância latitudinal entre os locais de medida como 1.975,8±0,1 km, encontramos que a circunferência da Terra é CT=(40,2±0,2)×103 km, com as barras de erro sendo obtidas por cálculos usuais de propagação de incerteza de medidas indiretas. Logo, a nossa estimativa para o raio médio volumétrico terrestre é (4) R T = C T 2 ⁢ π = ( 6 , 40 ± 0 , 03 ) × 10 3 ⁢ km . Este valor de raio da Terra deve ser comparado com valores da literatura, fornecidos pelo Space Science Data Coordinated Archive da agência espacial norte-americana National Aeronautics and Space Administration (NASA) [16], de RT⁢(best)=6.371km. Assim, nossos resultados experimentais para RT estão em excelente acordo com a literatura mais recente, com um erro relativo de (5) ϵ R = | R T ⁢ ( best ) - R T | R T ⁢ ( best ) ≈ 0 , 5 % . Por fim, vamos examinar a velocidade média de rotação da Terra, ω¯T. Para isso, devemos medir a taxa de variação do ângulo de longitude Δ⁢θ entre as duas cidades como função do tempo, usando os instantes de projeção mínima de sombra como referências. De acordo com a Tabela 1, os instantes de Sol no ponto mais alto de céu ocorreram as 12h 04min 00s ±12 s no local de medida em Teresina, e as 12h 05min 24s ±12 s no Rio de Janeiro. Daí, a diferença real de tempo entre a ocorrência de d0 em Teresina e Rio de Janeiro é Δ⁢t=(84±17) s. Como já mencionado, por meio dos dados fornecidos por satélite, obtemos a diferença de coordenadas longitudinais de aproximadamente 0∘26’23” ± 0∘00’06” (barra de erro compatível com as incertezas de ± 0,1 km de distância de cada local de medida). Isto equivale a Δ⁢θ=(0,440±0,002)∘=(7,68±0,03)×10-3 rad, e nos conduz a (6) ω ¯ T = Δ ⁢ θ Δ ⁢ t = ( 9 ± 2 ) × 10 - 5 ⁢ rad / s , = ( 0 , 33 ± 0 , 07 ) ⁢ rad / h . Novamente, é necessário compararmos esse resultado com os valores da literatura. De acordo com a Ref. [16], o período médio de rotação da Terra é TT⁢(best)=23,9345h, que leva à ω¯T⁢(best)≈0,2625 rad/h. Apesar de satisfatório, nosso resultado para ω¯T é pouco acurado, por apresentar um erro relativo de ϵω≈26%. É importante enfatizar que esse valor de ϵω não pode ser associado à uma possível flutuação (em relação à média) no período de rotação da Terra, uma vez que a ordem de grandeza dessas variações é de 10-3 s, e podem ser desprezadas [20, 21]. De fato, tal erro é devido à imprecisões sistemáticas e de instrumento que se acumulam ao se realizar as medidas de tempo (feitas por relógios usuais) e, consequentemente, levam a incertezas na diferença de tempo da mesma ordem de grandeza de Δ⁢t. Há pelo menos duas maneiras de superar essa dificuldade sem a necessidade de relógios de alta precisão: (i) realizar medidas em localidades mais separadas longitudinalmente, ou (ii) realizar muitas medidas similares para essas mesmas cidades (em dias diferentes) e, em seguida, fazer uma análise estatística dos resultados. Em particular, essa última opção eliminaria incertezas aleatórias, e seria tão mais precisa quanto maior fosse o número de medidas realizadas. Contudo, uma análise estatística vai além do escopo dos objetivos iniciais dessa proposta. . Fazemos nossas considerações finais na Seção4 4. Conclusões Neste trabalho, revisitamos o experimento de Eratóstenes para medição do raio médio da Terra, por meio do uso de materiais simples, e de plataformas de acesso público, como o Google Earth. Apresentamos um roteiro para a obtenção e análise dos dados, que nos forneceram (com boa precisão) os ângulos mínimos de incidência e seus respectivos tempos de ocorrência, em cada localidade. De posse desses resultados, resumidos na Tabela1, encontramos o raio médio volumétrico da Terra como sendo RT=(6,40±0,03)×103⁢km, em excelente acordo com os dados da literatura, com um erro relativo de apenas 0,5%. Similarmente, medimos a velocidade média de rotação da Terra, equação (6), encontrando um resultado compatível com o da literatura, porém com um erro relativo de 26%. Neste caso, explicamos os motivos para isso e propomos alternativas de redução de tal incerteza. Em linhas gerais, é admirável que um experimento simples, feito com materias caseiros, nos forneça resultados com alto grau de concordância com os valores mais recentes da NASA [16], em particular para o raio da Terra. Ademais, vale ressaltar que a realização de medidas em dias diferentes permite a observação também da taxa de variação do ângulo de incidência ϕmin e, eventualmente, da inclinação do eixo de rotação da Terra (que é de aproximadamente 23,5∘). Mas, deixaremos esses estudos para trabalhos futuros. Muito além da acurácia dos resultados obtidos, a revisitação deste experimento tem um grande potencial didático, uma vez que serve como uma utilização direta do método científico. Dentre outras coisas, este experimento tem o potencial de ensinar/abordar técnicas de medida, montagem de aparato experimental, análise dos dados e comparação com resultados da literatura; habilidades que quando desenvolvidas corretamente ajudam a eliminar vícios comuns no aprendizado de ciências naturais. Assim, esperamos motivar professores e tutores do ensino básico para a utilização deste experimento como ferramenta de desmistificação de ciências e do método científico. .

Figura 2:
Painel superior: Mapa do Brasil com a localização das cidades de Teresina e do Rio de Janeiro. Painel inferior: Ilustração representando o experimento simultâneo feito nas duas cidades. Figura meramente ilustrativa, com as dimensões das sombra fora de escala para enfatizar os ângulos.

2. Metodologia

Seguindo o procedimento desenvolvido por Eratóstenes, utilizamos medidas de sombras projetadas no chão, por um objeto posto numa determinada altura. Para esta finalidade, utilizamos materiais simples, como tubos de plástico extraídos de canetas, fios de prumo, cadeiras, trenas, cartolinas e livros. É importante destacar que a utilização do fio de prumo, ao invés de uma haste vertical, se dá para reduzir erros associados à inclinação da haste. Isto é, a atração gravitacional entre a Terra e a massa na ponta do fio de pruno nos garante que o fio estará na vertical durante toda a medida. Ademais, ressaltamos que o experimento pode ser realizado em qualquer período do ano, independentemente da ocorrência de solstícios. Deste modo, o valor de α na equação (1) passa a representar a diferença entre os ângulos medidos em cada cidade, como ilustrado no painel inferior da Figura2.

A Figura3 apresenta um exemplo de montagem utilizada neste experimento. Passamos o fio de prumo por dentro do tubo de caneta, que, por sua vez, fica preso aos livros, numa altura que determinamos com a trena. Mantendo a altura e a posição do tubo de caneta sempre fixas, medimos a distância entre a projeção da ponta do tubo até o eixo do fio de prumo no chão. Note que a utilização do tubo de caneta aumenta a acurácia da medida do tamanho da sombra do fio, devido à sua espessura fina. Por fim, como discutido anteriormente, é preciso também determinar a distância entre as cidades. Para isso, utilizamos ferramentas modernas, de domínio público, como o Google Earth, para obter as diferenças/distâncias latitudinais e longitudinais entre Rio de Janeiro e Teresina.

Figura 3:
Esquerda: Um esquema de montagem do aparato utilizado neste trabalho. Direita: foto das medidas de projeção das sombras da ponta da caneta feitas no chão, para vários intervalos de tempo.

Aqui, chamamos atenção para uma dificuldade inerente ao experimento: devido à distância longitudinal não desprezível entre as duas cidades, os instantes de Sol no ponto mais alto do céu não são simultâneos. Além disso, determinar o momento exato em que isso ocorre (i.e., o menor ângulo da projeção da sombra) é um problema não trivial. Para superarmos essas dificuldades, realizamos várias medidas de tamanho da sombra do objeto, entre as 11h e 13h, com intervalos de 5 a 10 minutos entre elas, como mostrado na Figura3. Isso nos fornece o entre os locais de medida comportamento do tamanho das projeções de sombra d como função do tempo t, como exibido na Figura4 para ambas as cidades, no qual o valor mínimo d0 para o tamanho da sombra pode ser estimado.

Figura 4:
Tamanho das projeções de sombra em relação ao fio de prumo (símbolos) medido como função do tempo no Rio de Janeiro (curva vermelho sólida) e em Teresina (curva azul tracejada), nas proximidades do meio-dia, em 20 de Fevereiro de 2021. As curvas são ajustes não lineares por uma função hiperbólica.

Como mostrado no painel direito da Figura3, os pontos que marcam a posição da sombra da ponta da caneta ao longo do tempo descrevem, com boa aproximação, uma linha reta. Deste modo, os tamanhos das sombras d(t) correspondem às distâncias de um ponto (ponta do fio de prumo) a uma reta (as medidas de sombra da ponta da caneta), que, por sua vez, definem uma hipérbole. Então, para estimarmos d0, fazemos um ajuste não linear dos valores de d(t) pela expressão

(2) d ( t ) = d 0 2 + a 2 ( t - t 0 ) 2 ,

onde t0 é o exato momento em que o mínimo de sombra ocorre, enquanto a é um fator que varia de acordo com a inclinação dos raios solares no dia da medida. Tal procedimento pode ser feito com auxílio de softwares de análise de dados, como Qtiplot (www.qtiplot.com) ou Root (https://root.cern/). Esse procedimento nos fornece valores de d0 e t0 mais precisos. Apesar de adotarmos um ajuste hiperbólico, ajustes polinomiais podem também ser utilizados.

Continuamos nossa análise por determinar os ângulos mínimos ϕRmin e ϕTmin para as cidades do Rio de Janeiro e Teresina, respectivamente. De posse da altura h da ponta do tubo de caneta, o módulo dos ângulos de incidência dos raios solares em cada cidade é determinado por

(3) | ϕ min | = arctan ( d 0 h ) .

Alertamos que, para a época do ano que as medidas foram realizadas, a projeção mínima de sombra no Rio de Janeiro apontava para o Sul, ϕRmin<0, enquanto em Teresina apontava para o Norte, ϕTmin>0. Deste modo, sendo α=ϕTmin-ϕRmin (que neste caso torna-se α=|ϕTmin|+|ϕRmin|), utilizamos a equação (1) para obtenção do raio da Terra. Ademais, fazendo uso dos valores de t0 em cada cidade, também é possível estimar o valor de velocidade rotação ω¯T da Terra em torno do seu próprio eixo, como mostrado na próxima Seção.

3. Resultados

O experimento foi realizado no dia 20 de fevereiro de 2021, a partir de medidas obtidas simultaneamente nas cidades do Rio de Janeiro-RJ e Teresina-PI. Como primeira passo, obtemos os dados de satélite via plataforma Google Earth. Tomando as coordenadas dos locais de medida como referências, encontramos diferenças latitudinais e longitudinais iguais a 1751’21” (17,86) e 026’23” (0,44), respectivamente, que são equivalentes à distâncias de 1.975,8 km (latitude) e 48,8 km (longitude). Aqui, assumimos o erro dos dados de satélite como sendo 0,1 km.

Em seguida, passamos a medir as projeções de sombra. Essas medidas foram realizadas aproximadamente entre 11:10h e 13:00h, com as marcações sendo feitas em intervalos de 5 a 10 minutos, em ambas as cidades. Os resultados para d(t) estão apresentados na Figura4, enquanto as alturas h das pontas de tubo de caneta estão disponíveis na Tabela1. Repetindo o procedimento descrito na seção anterior, obtemos o valor de projeção mínima de sombra através do ajuste hiperbólico dos dados, equação (2), como representado nas curvas sólidas da Figura4. De posse de d0 e h, calculamos o módulo dos ângulos (mínimos) de incidência |ϕmin|, equação (3), cujos resultados são apresentados na Tabela1. Consequentemente, encontramos o ângulo de abertura de latitide α=(17,7±0,1). Aqui, como “controle de qualidade”, é importante notar que esse resultado para α é consistente com os dados de satélite usados como referência, que apontam uma diferença de aproximadamente 17,86 entre os locais de medidas.

Tabela 1:
Dados obtidos no experimento, referentes (i) ao início das medidas em cada localidade, (ii) à altura h da ponta do tubo de caneta, (iii) ao tamanho de projeção mínimo de sombra d0, (iv) ao tempo t0 transcorrido até o ponto de projeção mínima e (v) ao ângulo de incidência |ϕmin|.

Assim como feito por Eratóstenes, faremos aqui uso de argumentos trigonométricos para obter o raio da Terra. Usando a equação (1), e fixando a distância latitudinal entre os locais de medida como 1.975,8±0,1 km, encontramos que a circunferência da Terra é CT=(40,2±0,2)×103 km, com as barras de erro sendo obtidas por cálculos usuais de propagação de incerteza de medidas indiretas. Logo, a nossa estimativa para o raio médio volumétrico terrestre é

(4) R T = C T 2 π = ( 6 , 40 ± 0 , 03 ) × 10 3 km .

Este valor de raio da Terra deve ser comparado com valores da literatura, fornecidos pelo Space Science Data Coordinated Archive da agência espacial norte-americana National Aeronautics and Space Administration (NASA) [1616 https://nssdc.gsfc.nasa.gov/planetary/factsheet/earthfact.html, acessado em 21/09/2021.
https://nssdc.gsfc.nasa.gov/planetary/fa...
], de RT(best)=6.371km. Assim, nossos resultados experimentais para RT estão em excelente acordo com a literatura mais recente, com um erro relativo de

(5) ϵ R = | R T ( best ) - R T | R T ( best ) 0 , 5 % .

Por fim, vamos examinar a velocidade média de rotação da Terra, ω¯T. Para isso, devemos medir a taxa de variação do ângulo de longitude Δθ entre as duas cidades como função do tempo, usando os instantes de projeção mínima de sombra como referências. De acordo com a Tabela 1, os instantes de Sol no ponto mais alto de céu ocorreram as 12h 04min 00s ±12 s no local de medida em Teresina, e as 12h 05min 24s ±12 s no Rio de Janeiro. Daí, a diferença real de tempo entre a ocorrência de d0 em Teresina e Rio de Janeiro é Δt=(84±17) s. Como já mencionado, por meio dos dados fornecidos por satélite, obtemos a diferença de coordenadas longitudinais de aproximadamente 026’23” ± 000’06” (barra de erro compatível com as incertezas de ± 0,1 km de distância de cada local de medida). Isto equivale a Δθ=(0,440±0,002)=(7,68±0,03)×10-3 rad, e nos conduz a

(6) ω ¯ T = Δ θ Δ t = ( 9 ± 2 ) × 10 - 5 rad / s , = ( 0 , 33 ± 0 , 07 ) rad / h .

Novamente, é necessário compararmos esse resultado com os valores da literatura. De acordo com a Ref. [1616 https://nssdc.gsfc.nasa.gov/planetary/factsheet/earthfact.html, acessado em 21/09/2021.
https://nssdc.gsfc.nasa.gov/planetary/fa...
], o período médio de rotação da Terra é TT(best)=23,9345h, que leva à ω¯T(best)0,2625 rad/h. Apesar de satisfatório, nosso resultado para ω¯T é pouco acurado, por apresentar um erro relativo de ϵω26%.

É importante enfatizar que esse valor de ϵω não pode ser associado à uma possível flutuação (em relação à média) no período de rotação da Terra, uma vez que a ordem de grandeza dessas variações é de 10-3 s, e podem ser desprezadas [2020 J.O. Dickey, Highlights of Astronomy 10, 17 (1995)., 2121 R.S. Gross, Treatise on geophysics 3, 239 (2007).]. De fato, tal erro é devido à imprecisões sistemáticas e de instrumento que se acumulam ao se realizar as medidas de tempo (feitas por relógios usuais) e, consequentemente, levam a incertezas na diferença de tempo da mesma ordem de grandeza de Δt. Há pelo menos duas maneiras de superar essa dificuldade sem a necessidade de relógios de alta precisão: (i) realizar medidas em localidades mais separadas longitudinalmente, ou (ii) realizar muitas medidas similares para essas mesmas cidades (em dias diferentes) e, em seguida, fazer uma análise estatística dos resultados. Em particular, essa última opção eliminaria incertezas aleatórias, e seria tão mais precisa quanto maior fosse o número de medidas realizadas. Contudo, uma análise estatística vai além do escopo dos objetivos iniciais dessa proposta.

4. Conclusões

Neste trabalho, revisitamos o experimento de Eratóstenes para medição do raio médio da Terra, por meio do uso de materiais simples, e de plataformas de acesso público, como o Google Earth. Apresentamos um roteiro para a obtenção e análise dos dados, que nos forneceram (com boa precisão) os ângulos mínimos de incidência e seus respectivos tempos de ocorrência, em cada localidade. De posse desses resultados, resumidos na Tabela1, encontramos o raio médio volumétrico da Terra como sendo RT=(6,40±0,03)×103km, em excelente acordo com os dados da literatura, com um erro relativo de apenas 0,5%. Similarmente, medimos a velocidade média de rotação da Terra, equação (6), encontrando um resultado compatível com o da literatura, porém com um erro relativo de 26%. Neste caso, explicamos os motivos para isso e propomos alternativas de redução de tal incerteza. Em linhas gerais, é admirável que um experimento simples, feito com materias caseiros, nos forneça resultados com alto grau de concordância com os valores mais recentes da NASA [1616 https://nssdc.gsfc.nasa.gov/planetary/factsheet/earthfact.html, acessado em 21/09/2021.
https://nssdc.gsfc.nasa.gov/planetary/fa...
], em particular para o raio da Terra. Ademais, vale ressaltar que a realização de medidas em dias diferentes permite a observação também da taxa de variação do ângulo de incidência ϕmin e, eventualmente, da inclinação do eixo de rotação da Terra (que é de aproximadamente 23,5). Mas, deixaremos esses estudos para trabalhos futuros.

Muito além da acurácia dos resultados obtidos, a revisitação deste experimento tem um grande potencial didático, uma vez que serve como uma utilização direta do método científico. Dentre outras coisas, este experimento tem o potencial de ensinar/abordar técnicas de medida, montagem de aparato experimental, análise dos dados e comparação com resultados da literatura; habilidades que quando desenvolvidas corretamente ajudam a eliminar vícios comuns no aprendizado de ciências naturais. Assim, esperamos motivar professores e tutores do ensino básico para a utilização deste experimento como ferramenta de desmistificação de ciências e do método científico.

Agradecimentos

Os autores agradecem o suporte financeiro das agências brasileiras de financiamento CNPq, CAPES e FAPERJ. Os autores são gratos ao Prof. J.P. de Lima, Prof. F. Nogueira Lima e ao Dr. J.M. Dias pelas discussões e sugestões durante o desenvolvimento do trabalho.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    01 Out 2021
  • Revisado
    29 Out 2021
  • Aceito
    05 Nov 2021
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