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Cinemática relativística: paradoxo dos gêmeos

Relativistic kinematics: twin paradox

Resumos

O paradoxo dos gêmeos foi formulado há quase 100 anos atrás mas ainda hoje é um dos meios mais eficazes para compreendermos a essência da dependência no estado de movimento do observador das noções espaço e de tempo. Nesta releitura abordamos o paradoxo dos gêmeos em sua formulação convencional salientando os seus pontos chaves e uma versão modificada onde consideraremos um universo com dimensões espaciais compactificadas. Neste último caso é possível fazer com que os gêmeos se reencontrem sem que nenhum deles sofra nenhuma aceleração retirando assim a assimetria que convencionalmente é atribuida à resolução do paradoxo. Em seguida aproveitamos para analisar qual o verdadeiro papel da aceleração e concluímos com uma reflexão sobre a sincronização de relógios e com a relevância dos verdadeiros observáveis em relatividade restrita.

epistemologia relativística; cinemática relativística


The twin paradox was first formulated almost 100 years ago but still nowadays is one of the best ways to present the dependence on the definition of space and time of the state of motion of the observer. In this paper we present the conventional formulation of the twin paradox pointing out some of its key concepts and analyse one of its modification in which we compactify one of the spatial dimensions. Given the compactification, it is no more necessary to accelerate one of the twins to rejoin them. In this way, we circunvent the conventional explanation to the asymmetry between the twins. Following this reasoning, we move to clarify the fundamental role played by acceleration and conclude with some comments on synchronization of clocks and observables in special relativity.

relativistic epistemology; relativistic kinematics


ARTIGOS GERAIS

Cinemática relativística: paradoxo dos gêmeos

Relativistic kinematics: twin paradox

F.T. Falciano1 1 E-mail: ftovar@cbpf.br.

Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, Coordenação de Cosmologia, Relatividade e Astrofísica, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

RESUMO

O paradoxo dos gêmeos foi formulado há quase 100 anos atrás mas ainda hoje é um dos meios mais eficazes para compreendermos a essência da dependência no estado de movimento do observador das noções espaço e de tempo. Nesta releitura abordamos o paradoxo dos gêmeos em sua formulação convencional salientando os seus pontos chaves e uma versão modificada onde consideraremos um universo com dimensões espaciais compactificadas. Neste último caso é possível fazer com que os gêmeos se reencontrem sem que nenhum deles sofra nenhuma aceleração retirando assim a assimetria que convencionalmente é atribuida à resolução do paradoxo. Em seguida aproveitamos para analisar qual o verdadeiro papel da aceleração e concluímos com uma reflexão sobre a sincronização de relógios e com a relevância dos verdadeiros observáveis em relatividade restrita.

Palavras-chave: epistemologia relativística, cinemática relativística.

ABSTRACT

The twin paradox was first formulated almost 100 years ago but still nowadays is one of the best ways to present the dependence on the definition of space and time of the state of motion of the observer. In this paper we present the conventional formulation of the twin paradox pointing out some of its key concepts and analyse one of its modification in which we compactify one of the spatial dimensions. Given the compactification, it is no more necessary to accelerate one of the twins to rejoin them. In this way, we circunvent the conventional explanation to the asymmetry between the twins. Following this reasoning, we move to clarify the fundamental role played by acceleration and conclude with some comments on synchronization of clocks and observables in special relativity.

Keywords: relativistic epistemology, relativistic kinematics.

1. Introdução

O pressuposto newtoniano da possibilidade de se estabelecer um tempo global ao universo e assim ser capaz de descrever a sua evolução (sua história) a partir da dicotomia antes/depois é uma hipótese geralmente aceita com facilidade devido a nossa experiência cotidiana de mundo. No entanto, na teoria da gravitação einsteiniana esta hipótese não é em geral verdadeira para todas as possíveis soluções. Nesta teoria podemos inclusive obter soluções matematicamente corretas mas de difícil interpretação física, como é o caso do modelo cosmológico de Gödel. Em Gödel existem curvas tipo-tempo fechadas que representam voltas ao passado levando a diversos tipos de paradoxos como, por exemplo, a possibilidade de alguém viajar ao seu passado e matar o seu próprio avô. Caso isto fosse possível não conseguiríamos explicar causalmente os eventos subseqüentes, inclusive o seu próprio nascimento! Mas se por outro lado ele não nasceu, quem matou o seu avô?

A teoria da relatividade geral (TRG) foi construída por Einstein para compatibilizar a gravitação newtoniana com a sua recente teoria da relatividade, que passou a ser chamada de restrita (TRR) com o advento da TRG. Porém esse rompimento com o conceito de um tempo global absoluto, caracterizado pelo estabelecimento de um agora em todos os pontos do universo independente do observador, já se apresenta na própria TRR. Fundamentalmente, o avanço alcançado por Einstein e seus contemporâneos como Lorentz e Poincaré se deve ao reconhecimento do papel do observador na descrição física dos fenômenos. A formulação da TRR se deu a partir da modificação da cinemática da teoria mecânica para sua conciliação com o eletromagnetismo. É um fato observacional que a velocidade da luz no vácuo em uma região onde podemos desprezar efeitos gravitacionais é uma constante universal para todos observadores inerciais. Isto quer dizer que qualquer observador inercial sempre medirá a velocidade da luz igual a c.2 2 velocidade da luz c = 2.99792458 x 10 10 cm.s -1 [1]. Note porém que isso se torna incompatível com a hipótese de que a relação que conecta dois observadores inerciais seja dada pelas transformações de Galileu (r' = r +Vt) uma vez que a velocidade teria necessariamente que se transformar como u' = u + V. Desta forma só poderia haver um único referencial onde a velocidade da luz valesse c. Durante algum tempo estudou-se a possibilidade de existir um referencial imutável chamado éter no qual a luz viajasse com velocidade c. Ao final da análise, com a ajuda de dados observacionais como o resultado negativo do experimento de Michelson-Morey [2], a linha argumentativa da necessidade de se rever as transformações de Galileu se mostrou mais condizente e seus avanços desembocaram na TRR.

A formulação da TRR baseia-se exclusivamente na tentativa de acomodar o fato experimental da constância da velocidade da luz com a equivalência entre observadores inerciais.3 3 O termo equivalência aqui é usado para dizer que dois observadores inerciais sempre concordarão com a descricão de um dado fenômeno. Note que a única modificação necessária para a revolução mecanicista é a maneira pela qual associamos dois observadores inerciais, sendo deixados intactos toda a dinâmica newtoniana, a lei da inércia e o papel privilegiado dos observadores inerciais. Porém o simples fato da dependência de quantidades físicas com o estado de movimento do observador, manifestado nas novas transformações, gerou modificações drásticas nas noções de espaço e de tempo.

Na visão newtoniana temos o espaço como um ente pleno imutável sobre o qual todos os fenômenos físicos se desenrolariam. Este espaço absoluto seria contínuo e infinito, porém observadores inerciais seriam incapazes de determinar se estão parados ou se movendo com velocidade constante em relação a este referencial. A argumentação newtoniana de sua existência se dá em movimentos circulares onde aparecem naturalmente forças não-inerciais associadas à manifestação empírica de movimentos em relação ao espaço absoluto. Contudo outra linha argumentativa desaprova esta visão considerando-a excessivamente metafísica. Um dos mais ilustres opositores a esta noção absolutista foi Ernst Mach.[3] Sua visão relacional considera fisicamente relevante apenas movimentos com relação a outros corpos materiais, ou seja, a única noção satisfatória seria a de movimentos relativos. Assim como o espaço, o tempo também assume um papel absolutista na teoria newtoniana. Postula-se que o tempo é um fluxo contínuo e constante independente de qualquer outro elemento natural. Nada é capaz de alterar a passagem deste fluxo perfeito. Este tempo é definido globalmente de forma que possamos atribuir um agora a todos os pontos do espaço univocamente a todos observadores inerciais.

De acordo com a TRR [4,5], para compararmos nossas medidas espaço-temporais com as de um outro observador () que viaja com velocidade constante em relação a nós devemos utilizar as transformações de Lorentz. Sem perda de generalidade podemos assumir que o observador possuiu velocidade v apenas na direção de forma que as transformações de Lorentz se escrevem

A partir destas transformações uma série de propriedades podem ser demonstradas: nenhum corpo material pode atingir a velocidade da luz pois para tal seria necessária uma quantidade infinita de energia; sendo |v| < c, o fator de contração de Lorentz definido por g = é sempre maior ou igual a 1; devido ao fator de contração, o comprimento espacial entre dois eventos4 4 Evento é definido como um conjunto de 4 números reais designando o tempo e a posicão espacial com relacão a um sistema de referência. Os eventos são em geral utilizados para especificar algum fenômeno físico como por exemplo o choque entre duas partículas. dependerá da velocidade do observador sendo menor quanto maior for a sua velocidade;5 5 Por causa da contracão de Lorentz a forca de empuxo depende da velocidade do objeto. Assim poderíamos pensar que enquanto para um observador o objeto pode estar em equilíbrio com o meio que o permeia para um outro observador se movendo com relacão a este o objeto poderia parecer afundar. Este é mais um exemplo de pseudo-paradoxos em relatividade [6,7]. em contra-posição a contração espacial, o intervalo de tempo entre dois tiques de um relógio (dt) também dependerá de sua velocidade porém neste caso haverá uma dilatação temporal, ou seja, quanto maior a velocidade, maior será o intervalo de tempo entre dois tiques.

Estes resultados nos mostram que as próprias definições de espaço e de tempo dependem do observador. O que um dado observador chama de espaço e de tempo é diferente do espaço e de tempo de um outro observador que se move com relação a este. Ademais, a noção de simultaneidade, o estabelecimento de um agora, também depende do estado de movimento do observador, uma vez que a sua construção deve ser estabelecida através da sincronização de relógios de um mesmo referencial, sendo assim necessário abandonar a noção newtoniana de tempo absoluto. De fato, a constância da velocidade da luz nos impõe o rompimento com as noções newtonianas de espaço absoluto e tempo absoluto para uma nova noção quadri-dimensional de um espaço-tempo absoluto.

2. Paradoxo dos gêmeos

As transformações de Lorentz possuem uma simetria com relação à direção da velocidade do observador. Se invertermos apenas o sentido da velocidade, i.e. considerarmos v® -v, as transformações de Lorentz não se alteram. Este fato está associado com a equivalência entre observadores inerciais. Descrever o afastamento de um observador com velocidade v com relação a um observador parado é equivalente a descrever o observador parado e se movendo com velocidade -v. No entanto, a passagem de tempo depende do estado de movimento do observador, logo, poderíamos fazer a seguinte pergunta: se dois gêmeos são separados, um permanecendo na Terra e o outro sendo levado para viajar numa espaço-nave com velocidade comparável a da luz durante alguns anos terrestres, ao retornar à Terra como será a relação entre as idades dos dois gêmeos?

Devido à dilatação temporal deveríamos responder que o gêmeo que viajou com velocidade comparável à da luz deveria estar mais novo já que um ano para este gêmeo equivale a mais de um ano terrestre. Porém, devido à simetria das transformações de Lorentz o gêmeo viajante poderia perfeitamente dizer que ele permaneceu parado enquanto foi a Terra que se moveu para longe de si, concluindo assim que o seu gêmeo terrestre deveria estar mais novo. É uma exigência da física clássica que haja apenas uma resposta para esta pergunta. Esta formulação ficou conhecida pelos acadêmicos como o paradoxo dos gêmeos.

Existem várias possíveis respostas para este pseudo-paradoxo sendo ao meu ver a mais simples a consideração geométrica associada ao intervalo entre dois eventos.6 6 O intervalo é uma quantidade geométrica definida por ds = , onde dt é o tempo e a distância espacial entre dois eventos infinitesimalmente próximos. O intervalo entre dois eventos associados ao mesmo ponto espacial do referencial de um dado observador é nada mais que o tempo marcado pelo relógio que se move consigo, também chamado de tempo próprio. No caso onde a seqüência de eventos está associada a mudanças espaciais, como por exemplo uma partícula se movendo com relação a um dado sistema de coordenadas, o intervalo é igual ao tempo próprio da partícula - o tempo medido por um relógio anexado à partícula. No sistema de referência que observa a partícula se movendo, pelas transformações de Lorentz, obtemos que o intervalo desta partícula é dado pelo tempo próprio do observador parado dividido pelo fator de contração, ou seja, menor do que o tempo próprio da partícula em repouso. O interessante em utilizar o intervalo é por ele ser um invariante de Lorentz.7 7 Invariante de Lorentz é uma quantidade que não se altera para referenciais que são conectados por transformacões de Lorentz de forma que ele possui o mesmo valor para todos os observadores inerciais. Assim o paradoxo fica resolvido quando percebemos que o intervalo do gêmeo viajante ao longo de toda a viagem é menor do que o intervalo do gêmeo terrestre.

Uma outra maneira canônica de se explicar este pseudo-paradoxo é observar que embora as transformações de Lorentz exibam simetria entre o afastamento dos gêmeos, ao longo de toda a jornada, existe uma diferença crucial entre as duas situações. Enquanto o gêmeo terrestre permanece com velocidade constante ao longo de toda a viagem, o gêmeo viajante é acelerado para possibilitar o seu retorno à Terra. Esta assimetria rompe com a argumentação de equivalência entre os gêmeos onde poder-se-ia dizer que na realidade era a Terra como um todo que se moveria para longe, enquanto o gêmeo viajante permaneceria parado. Para responder à assimetria entre os gêmeos, podemos observar que a aceleração conduz o gêmeo viajante na mudança constante de referenciais. Refraseando o que foi dito acima, enquanto o gêmeo terrestre permanece sempre em um mesmo referencial inercial, o gêmeo viajante muda de referencial ao longo de sua viagem.

3. Topologia não-trivial

A essência da não equivalência entre os gêmeos na situação descrita acima é a necessidade de acelerarmos um dos dois gêmeos para podermos fazê-los se reencontrarem. Consideremos então um universo onde uma das dimensões espaciais é compacta [8,9], ou seja, se caminharmos sempre na mesma direção acabaremos retornando ao mesmo ponto de partida.8 8 Este não é um puro exercício acadêmico. Hoje em dia se estuda seriamente a possibilidade de compactificacão de dimensões espaciais tanto em teorias de gravitacão quântica como na própria TRG. Acredita-se que neste último caso seja possível se detectar manifestacões na física local dos efeitos de compactificacão [10]. Por simplicidade tomemos o caso onde a direção é compacta de forma que as coordenadas (t,x) formem um cilindro9 9 Vale relembrar que a mudanca na topologia de uma dada superfície não altera as suas propriedades locais. De fato, a superfície de um cilindro é localmente indistinguível a de um plano, o que equivale a dizer que as transformacões de Lorentz devem ser válidas localmente. (Fig. 1).


Se um dos gêmeos viaja com velocidade constante na direção , mesmo sem acelerarmos nenhum dos dois, eles eventualmente iram se reencontrar. Porém de acordo com as transformações de Lorentz a passagem de tempo para esses observadores inerciais será diferente sendo menor quanto maior a velocidade do observador. Note que neste caso a simetria entre os observadores é mantida ao longo de toda a viagem uma vez que cada um deles permanece em um único referencial e pode assim concluir que o outro envelhece mais devagar. Haverá no reencontro um gêmeo mais velho do que o outro, ou as transformações de Lorentz de fato geram paradoxos para universos compactos?

Assumamos que o comprimento da circunferência da dimensão compacta seja . Para o gêmeo terrestre o tempo de retorno do gêmeo viajante medido por seu relógio será simplesmente t = , onde v é a velocidade do gêmeo viajante. Pelas transformações de Lorentz, o relógio do gêmeo viajante deverá medir t' = de modo que o gêmeo viajante estará mais novo por um fator g. Para calcularmos os mesmos tempos a partir da perspectiva do gêmeo viajante notemos primeiro a diferença entre a identificação dos pontos iniciais e finais (Fig. 2).


Para o gêmeo terrestre os seus pontos inicial e final assim como de seu gêmeo são respectivamente [Gti = (0,0), Gtf = (,0)] e [Gvi = (0,0), Gvf = (, )], enquanto que para o outro gêmeo os pontos inicial e final são [Gti' = (-vg,g), Gtf' = (,0)] e [Gvi' = (0,0), Gvf' = (,0)]; esse resultado é derivado diretamente das transformações de Lorentz lembrando-se que estamos considerando uma dimensão compacta com identificação a cada espaçamento . O tempo próprio do gêmeo viajante será simplesmente enquanto que, devido ao deslocamento espacial do gêmeo terrestre, o gêmeo viajante dirá que o tempo para o gêmeo terrestre será

concordando com o esperado pelo gêmeo terrestre.

Uma outra maneira de entendermos a assimetria entre os gêmeos é observarmos que, embora ainda haja invariância de Lorentz local, ela é globalmente quebrada. Isto é fácil de percebermos pela condição de identificação entre os pontos da dimensão compacta. Para o gêmeo terrestre essas identificações são lidas como

onde n é um inteiro. Porém pelas transformações de Lorentz para o gêmeo viajante essas mesmas identificações resultam em

o que mostra que os pontos que devem ser identificados no referencial do gêmeo viajante ocorrem em tempos diferentes. Esta diferença entre os observadores pode ser medida de maneira absoluta mandando simultaneamente pulsos de luz em ambas as direções. Apenas um único observador, caracterizado por não estar se movendo (v = 0), receberá os dois pulsos simultaneamente. Qualquer outro observador receberá primeiro o pulso enviado em sentido contrário e depois o emitido no mesmo sentido de sua velocidade. Através deste exercício o observador pode medir a sua velocidade como sendo dada por

onde t(S+) e t(S–) são respectivamente o tempo próprio medido pelo observador entre o momento da emissão e da recepção dos sinais no sentido de sua velocidade e no sentido contrário.10 10 Embora correto, na prática este procedimento é inviável uma vez que poderia ser necessário esperar um tempo da idade do universo para o retorno do sinal emitido. No entanto, existe experimentos locais possíveis para a determinacão da velocidade absoluta do observador [9].

Este é um exemplo interessante de como propriedades globais do espaço-tempo podem interferir na física local. Neste caso a compactificação acarreta a seleção de um referencial especial, a saber, aquele no qual o comprimento da dimensão compacta é o maior possível. Mesmo mantendo a invariância local das transformações de Lorentz, referenciais que se movem com velocidade constante com relação a este referencial privilegiado não são equivalentes e de fato é possível, experimentalmente, distinguí-los.

4. Papel da aceleração

O intuito deste trabalho é realizar o aprendizado que os pseudo-paradoxos associados à cinemática relativística nos ensinam. Já vimos como situações à primeira vista equivalentes podem apresentar diferenças sutis, porém fundamentais entre dois observadores. Nesta seção o enfoque é tentar esclarecer qual o verdadeiro papel da aceleração na diferença do envelhecimento entre os dois gêmeos.

Relembrando o paradoxo original, as explicações da inequivalência entre os dois gêmeos são em geral atribuídas ao fato de que enquanto um dos gêmeos permanece no mesmo referencial, a saber o terrestre, seu irmão é forçado, através da aceleração necessária para possibilitar o seu retorno, a uma mudança contínua de referenciais inerciais. Devido à equivalência entre referenciais inerciais, a percepção da passagem do tempo assim como toda descrição física é indistinguível para ambos os gêmeos. Todavia, poderíamos nos perguntar em que instante, ou melhor, durante qual período da viagem os gêmeos envelhecem de maneira diferente.

Uma resposta ingênua e imediata seria atribuir à aceleração a responsabilidade do envelhecimento díspar. Na literatura, principalmente em livros-texto para não-especialistas, ainda é frequente tal erro. Um argumento simples rompe com tal interpretação. Considere duas situações: a primeira, o gêmeo viajante viaja com velocidade constante durante 1 ano marcado em seu relógio até o momento em que é acelerado e em seguida retorna. Na segunda situação, o gêmeo viajante viaja com a mesma velocidade que a anterior porém por apenas 1 dia marcado em seu relógio, e em seguida, sofrendo a mesma aceleração, retorna à Terra. É claro que no segundo caso a diferença de idade será menor. Um cálculo rigoroso, porém simples, nos mostra que a diferença de idade é proporcional ao tempo de viagem despendido com velocidade constante, e não ao período de aceleração.

Na literatura [11-14] pode-se encontrar diversos exemplos muito instrutivos do ponto de vista acadêmico tentando justamente tirar da aceleração a causa do envelhecimento. Como exemplo citamos o caso onde dois gêmeos são ambos acelerados cada um em sua espaço-nave as quais são completamente equivalentes inclusive na quantidade de combustível. Na condição inicial ambos estão vinculados a um mesmo referencial com seus relógios sincronizados da maneira convencional de Einstein sendo a única diferença entre eles as suas posições iniciais. Um observador que permaneça neste mesmo referencial inercial descreverá de forma equivalente à viagem de ambos, concluindo que a distância que os separa é igual à diferença inicial e que não houve diferença de envelhecimento. Contudo para os gêmeos, ao término do combustível, quando ambos viajam com a mesma velocidade constante, o gêmeo posicionado mais à frente com relação à direção da aceleração estará mais velho! Neste caso fica claro que não pode ter sido a aceleração a causa do envelhecimento visto que ambos sofrem a mesma aceleração. Sabemos que observadores não-inerciais, ao contrário dos inerciais, não conseguem sincronizar relógios em posições diferentes, de forma que, embora os rélogios dos gêmeos estivessem sincronizados antes do começo da viagem, ao serem acelerados, a separação espacial dos gêmeos nos impossibilita de continuarmos considerando seus relógios sincronizados. Para novamente compararmos seus relógios precisamos fazer com que os gêmeos se reencontrem num mesmo ponto, ou seja, é preciso levarmos um dos gêmeos ao encontro do outro. Esta última etapa responde pela assimetria entre os gêmeos.

5. Comentários

A concepção espaço-temporal sensível das pessoas é construída a partir das suas experiências cotidianas. As noções assim desenvolvidas condizem com a física pré-relativística justamente por ser esta a sua faixa de aplicabilidade. Um dos obstáculos mais altos a serem ultrapassados no entendimento da TRR é deixarmos de pensar de um modo clássico. A epistemologia da TRR nos ensinou a relatividade de conceitos antes tomados como globais e absolutos. Uma das questões mais importantes é a dependência no estado de movimento do observador das noções de tempo e espaço. Ademais, o processo de sincronização de relógios passou a ser um ponto crucial. Considero pessoalmente que este ponto é a questão chave para entendermos uma série de pseudo-paradoxos temporais. Primeiramente devemos novamente destacar que observadores não-inerciais não são capazes de sincronizar relógios em pontos diferentes do espaço, ou seja, para estes observadores, relógios inicialmente sincronizados porém em pontos diferentes do espaço perderão gradativamente a sincronização [13-17].

A outra questão diz respeito ao método de sincronização [18,19]. Ainda é debate na comunidade científica se de um ponto de vista experimental é possível verificar a isotropia da velocidade da luz [20-25]. Suponha um experimento onde um raio de luz é emitido em uma dada direção e que haja um anteparo que reflita a luz de volta à origem. A questão é saber se é possível afirmar que a luz leva o mesmo tempo para a viagem de ida quanto para a de volta, ou se isto nada mais é do que uma mera convenção e como tal não carrega nenhum significado físico.

Com relação à formulação original do paradoxo dos gêmeos, Debs e Redhead [26] demonstraram que é possível escolher vários possíveis métodos de sincronização que nos fornecem corretamente a mesma resposta ao paradoxo. Esse trabalho é de especial importância pois demonstra a inadequação de perguntas como: durante qual momento da viagem o gêmeo terrestre envelheceu mais rápido? Este tipo de pergunta não faz sentido pois não carrega em si nenhum significado físico. Existe mais de uma resposta consistente com a física do problema. Esta liberdade possui uma analogia com a liberdade de calibre. Em teorias de calibre a quantidade de variáveis dinâmicas utilizada para a descrição de um sistema físico estão em excesso, sendo possível mais de um conjunto de configurações para representar uma mesma situação física.

Observáveis na TRR são quantidades que não se modificam frente à atuação das transformações de Lorentz. Um exemplo muito útil é o intervalo entre dois eventos. Ademais, se quisermos comparar relógios distintos será necessário que eles tenham sido previamente sincronizados e que seja garantida a sua permanência, caso contrário, precisaremos aproximá-los no mesmo ponto para uma comparação local.

Até hoje não existe nenhum experimento que demonstre a isotropia da velocidade da luz, o que implicaria em demonstrar que a sincronização de relógios na TRR é única e possui significado físico. Assim, se a sincronização de relógios é de fato uma convenção, concluímos que para o gêmeo terrestre não faz sentido afirmar qual a idade do gêmeo viajante durante a sua viagem. Só podemos atribuir significado físico à idade do gêmeo viajante antes do começo da viagem, e no instante do seu retorno. Caso em seguida o gêmeo viajante continue a sua viagem, então novamente não poderemos mais afirmar qual é a sua idade até um possível novo momento de reencontro.

Agradecimentos

Gostaria de agradecer ao grupo de cosmologia do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas do qual desfruto do excelente ambiente produtivo e ao CNPq órgão financiador da minha bolsa de estudo.

Referências

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Recebido em 7/8/2006; Aceito em 19/9/2006

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    O termo equivalência aqui é usado para dizer que dois observadores inerciais sempre concordarão com a descricão de um dado fenômeno.
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    Por causa da contracão de Lorentz a forca de empuxo depende da velocidade do objeto. Assim poderíamos pensar que enquanto para um observador o objeto pode estar em equilíbrio com o meio que o permeia para um outro observador se movendo com relacão a este o objeto poderia parecer afundar. Este é mais um exemplo de pseudo-paradoxos em relatividade [6,7].
  • 6
    O intervalo é uma quantidade geométrica definida por
    ds =
    , onde
    dt é o tempo e
    a distância espacial entre dois eventos infinitesimalmente próximos.
  • 7
    Invariante de Lorentz é uma quantidade que não se altera para referenciais que são conectados por transformacões de Lorentz de forma que ele possui o mesmo valor para todos os observadores inerciais.
  • 8
    Este não é um puro exercício acadêmico. Hoje em dia se estuda seriamente a possibilidade de compactificacão de dimensões espaciais tanto em teorias de gravitacão quântica como na própria TRG. Acredita-se que neste último caso seja possível se detectar manifestacões na física local dos efeitos de compactificacão [10].
  • 9
    Vale relembrar que a mudanca na topologia de uma dada superfície não altera as suas propriedades locais. De fato, a superfície de um cilindro é localmente indistinguível a de um plano, o que equivale a dizer que as transformacões de Lorentz devem ser válidas localmente.
  • 10
    Embora correto, na prática este procedimento é inviável uma vez que poderia ser necessário esperar um tempo da idade do universo para o retorno do sinal emitido. No entanto, existe experimentos locais possíveis para a determinacão da velocidade absoluta do observador [9].
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Jun 2007
    • Data do Fascículo
      2007

    Histórico

    • Aceito
      19 Set 2006
    • Recebido
      07 Ago 2006
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