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Óptica e geometria dinâmica

Optics and dynamic geometry

Resumos

Os programas de geometria dinâmica foram os principais responsáveis pela revitalização do ensino de geometria ocorrida nos últimos anos. Esses programas de computador produzem representações visualmente acuradas de objetos e relações geométricas, que são modificadas interativamente com simples movimentos do mouse. Neste trabalho nós discutimos como programas de geometria dinâmica podem ser transformados em ambientes de aprendizagem de óptica geométrica. Em particular, sugerimos que algumas dificuldades conceituais que os estudantes tradicionalmente encontram nessa disciplina podem ser superadas com ajuda da geometria dinâmica. A título de exemplo, mostramos como fenômenos de reflexão e refração podem ser estudados com essas ferramentas.

geometria dinâmica; óptica geométrica; ensino de física


Dynamic geometry software has played a major role in the renewal of geometry teaching that occurred in recent years. These computer programs produce visually accurate representations of geometrical objects and relations, which can be manipulated with simple point-and-click mouse operations. In this paper we discuss how dynamic geometry programs can be transformed into environments for learning geometrical optics. In particular, we suggest that well known conceptual difficulties frequently encountered by students of this discipline may be reduced with help of dynamic geometry. We show examples of how reflection and refraction phenomena can be studied with these tools.

dynamic geometry; geometrical optics; physics education


ARTIGOS GERAIS

Óptica e geometria dinâmica

Optics and dynamic geometry

C.E. Aguiar1 1 E-mail: carlos@if.ufrj.br.

Instituto de Física, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

RESUMO

Os programas de geometria dinâmica foram os principais responsáveis pela revitalização do ensino de geometria ocorrida nos últimos anos. Esses programas de computador produzem representações visualmente acuradas de objetos e relações geométricas, que são modificadas interativamente com simples movimentos do mouse. Neste trabalho nós discutimos como programas de geometria dinâmica podem ser transformados em ambientes de aprendizagem de óptica geométrica. Em particular, sugerimos que algumas dificuldades conceituais que os estudantes tradicionalmente encontram nessa disciplina podem ser superadas com ajuda da geometria dinâmica. A título de exemplo, mostramos como fenômenos de reflexão e refração podem ser estudados com essas ferramentas.

Palavras-chave: geometria dinâmica, óptica geométrica, ensino de física.

ABSTRACT

Dynamic geometry software has played a major role in the renewal of geometry teaching that occurred in recent years. These computer programs produce visually accurate representations of geometrical objects and relations, which can be manipulated with simple point-and-click mouse operations. In this paper we discuss how dynamic geometry programs can be transformed into environments for learning geometrical optics. In particular, we suggest that well known conceptual difficulties frequently encountered by students of this discipline may be reduced with help of dynamic geometry. We show examples of how reflection and refraction phenomena can be studied with these tools.

Keywords: dynamic geometry, geometrical optics, physics education.

1. Introdução

Programas de geometria dinâmica são "réguas e compassos" virtuais, com os quais objetos geométricos podem ser construídos e manipulados no computador [1]. Esses programas criam ambientes de grande impacto visual, onde relações geométricas são exploradas interativamente e teoremas são descobertos empiricamente. A versatilidade e facilidade de uso dos programas de geometria dinâmica os tornaram instrumentos populares entre professores e alunos de matemática, renovando o interesse pela geometria dentro das escolas.

O potencial pedagógico da geometria dinâmica não se restringe ao ensino de geometria. Neste trabalho discutimos como os programas de geometria dinâmica podem facilitar o aprendizado da óptica geométrica, ajudando a superar algumas das dificuldades conceituais que os estudantes tradicionalmente encontram nessa disciplina. A óptica geométrica deveria ser fácil de aprender – afinal, são apenas alguns conceitos e um pouco de geometria. Ela é, também, uma das áreas da física em que os estudantes mais facilmente podem usar modelos matemáticos abstratos para descrever sistemas reais ligados à sua experiência cotidiana. E é, ainda, um campo com importantes aplicações práticas: fotografia, microscópios, telescópios e o próprio funcionamento dos nossos olhos são alguns exemplos. Apesar de todas essas características favoráveis, são notórias e bem documentadas as dificuldades que os estudantes encontram no estudo da óptica geométrica [2-6]. Há muitas evidências de que a familiaridade que temos com os fenômenos visuais cria uma série de concepções intuitivas que se chocam com os princípios físicos da óptica e atuam como barreiras ao aprendizado. Por exemplo, uma fração significativa dos estudantes entra e sai (aprovada) dos cursos de óptica acreditando que a imagem de um objeto formada por um espelho plano muda de posição quando o observador se move [2]. E um grande número de alunos afirma que, se estiverem frente a um espelho pequeno, dando um passo para trás verão mais de seu próprio corpo [2]. Ao que parece, algumas noções intuitivas que temos sobre imagens em espelhos não são compatíveis com as leis da óptica, nem são facilmente deslocadas durante os cursos tradicionais. Pior ainda, existem fortes motivos para supor que uma parte das concepções errôneas que os estudantes carregam após os cursos de óptica tiveram origem nos próprios métodos de ensino pelos quais eles passaram. A ênfase usualmente dada a uns poucos "raios de construção" leva muitos estudantes a acreditarem que esses são os únicos raios existentes, e que sem eles uma imagem não pode ser formada [3, 5]. Outro problema comum, associado ao anterior, é a falta de compreensão do papel desempenhado pelo olho do observador, em particular das condições necessárias para que este possa ver uma imagem [2, 3, 7, 8, 9].

É nesse contexto que os ambientes de geometria dinâmica podem ser úteis. Eles permitem estudar sistemas ópticos em um "micromundo" de grande riqueza visual e alta interatividade, capaz de gerar impressões fortes e duradouras. Isso dá ao estudante uma chance melhor de superar as concepções errôneas mas arraigadas que ele traz de sua experiência diária, facilitando a fixação de novas estruturas conceituais. Como veremos a seguir, nesses ambientes é fácil produzir representações de sistemas ópticos em que todos os raios relevantes são mostrados. Isso dispensa o uso de raios de construção durante a introdução de conceitos básicos e evita que os estudantes considerem esses raios como elementos físicos essenciais.

Nas próximas seções daremos alguns exemplos de como sistemas ópticos podem ser estudados nos ambientes de geometria dinâmica. As construções que discutiremos foram elaboradas com o Tabulæ, um programa de geometria dinâmica desenvolvido no Instituto de Matemática da UFRJ [10]. A adaptação dessas construções a outros programas, como Cabri [11] ou Geometer's Sketchpad [12], pode ser feita facilmente. Para manter este artigo dentro de limites aceitáveis de tamanho, não descreveremos em detalhe as operações de geometria dinâmica necessárias ao desenvolvimento das construções que apresentamos. Os leitores interessados encontrarão esses detalhes, assim como uma introdução ao uso do Tabulæ, na Ref. [13].

2. Formação de imagens no espelho plano

A reflexão por um espelho plano ilustra bem como a geometria dinâmica pode ser útil no ensino de óptica. A Fig. 1 mostra a janela do Tabulæ após a criação de representações de um espelho, um objeto pontual, e um raio luminoso que vai do objeto ao espelho. Esses elementos são objetos geométricos (pontos e segmentos de reta) facilmente criados nos ambientes de geometria dinâmica. Segundo os princípios da óptica geométrica, o ângulo que o raio refletido forma com o espelho é igual ao ângulo de incidência. Essa relação permite construir o raio refletido, que está mostrado na Fig. 2 juntamente com sua extensão virtual para trás do espelho.



O próximo passo é estudar o que acontece com os outros raios que saem do objeto e atingem o espelho. Utilizando a ferramenta de construção de lugar geométrico (locus) que quase todos os ambiente de geometria dinâmica possuem, é possível fazer isso rapidamente e com resultados muito instrutivos. A Fig. 3 mostra o lugar geométrico dos raios incidente e refletido (com sua continuação virtual) quando o ponto de incidência percorre o espelho. O aspecto mais notável desta figura é que todas as continuações virtuais se encontram em um mesmo ponto. Um estudante não terá dificuldade em reconhecer que, para um observador, os raios refletidos parecem emanar de uma fonte luminosa pontual situada atrás do espelho, ou seja, que uma imagem do objeto foi formada. A forma heurística como o conceito de imagem surge nessa construção deve ser contrastada com maneira usual de se ensinar óptica geométrica. Nessa última, quase sempre a formação da imagem é primeiro postulada, sem que os alunos entendam bem os motivos, e em seguida vem uma demonstração formal. No ambiente de geometria dinâmica o conceito de imagem é, primeiro, "descoberto empiricamente" e só depois, com a motivação criada pelo achado, vem a busca pela demonstração geral da idéia.


Até aqui não mencionamos o aspecto dinâmico da construção geométrica obtida. O que está mostrado na Fig. 3 não é um desenho estático, mas algo com o qual se pode interagir. Com movimentos do mouse é possível mover o espelho e o objeto, e investigar o que acontece com a imagem. Na Fig. 4 vemos o que ocorre quando deslocamos o objeto: a imagem move-se junto, ficando sempre em posição simétrica em relação ao espelho. Isso mostra que a formação da imagem pontual é um resultado geral, não um acidente criado pela configuração específica da Fig. 3.


Construções geométricas desse tipo, além de facilitarem a compreensão do processo de formação de imagens, podem ajudar os estudantes a superar as dificuldades conceituais mencionadas na Introdução. Por exemplo, criando um elemento que represente o observador e movendo-o pela tela, é trivial notar que a posição da imagem não muda. As condições para a visibilidade da imagem também são facilmente estabelecidas. Isso simplifica a discussão de problemas envolvendo o campo visual. Por exemplo, voltando à idéia de que é possível ver uma parte maior de nosso corpo afastando-nos do espelho, a construção da Fig. 5 mostra porque ela é errônea.


3. Espelhos esféricos

O espelho esférico é um sistema bem mais complexo que o espelho plano, mas pode ser tratado com a mesma simplicidade nos ambientes de geometria dinâmica. A construção da Fig. 6 mostra um espelho côncavo refletindo a luz de um objeto pontual. Vemos que esse espelho é capaz de produzir imagens reais, ao contrário do espelho plano cujas imagens de objetos reais são sempre virtuais. É possível usar esse sistema para explorar os limites do conceito de imagem. A Fig. 7 mostra que nem sempre o espelho esférico produz uma imagem bem definida – aberrações ópticas aparecem quando o objeto está longe do eixo de simetria do espelho. Essa "descoberta" das aberrações é um bom exemplo de como o caráter exploratório da geometria dinâmica leva naturalmente a situações que normalmente só seriam tratadas em cursos avançados.



Assim como no caso do espelho plano, muitas das dificuldades conceituais apresentadas pelos estudantes podem ser minoradas com esse tipo de modelagem geométrica. Por exemplo, uma parcela grande dos alunos costuma afirmar que metade da imagem desaparece se metade do espelho esférico for coberta, um erro tipicamente causado pela interpretação indevida dos raios especiais [3]. Construções como as das figuras acima, que não usam raios especiais, provavelmente não levariam a esse tipo de conclusão [5].

4. Refração

A refração na interface entre dois meios opticos diferentes também pode ser estudada nos ambientes de geometria dinâmica. O princípio básico, nesse caso, é a lei de Snell

n1 sen θ1 = n2 sen θ2

onde n1 e n2 são os índices de refração dos meios e θ1 e θ2 são os ângulos que os raios incidente e refratado fazem com a normal à superfície de separação. A Fig. 8 mostra como a lei de Snell é implementada geometricamente. Os dois círculos que aparecem na figura têm diâmetros proporcionais aos índices de refração, e é fácil constatar que a construção leva à relação angular prevista pela lei de Snell [14].


O lugar geométrico dos raios incidentes e refratados está mostrado na Fig. 9. O resultado é uma visão muito sugestiva do processo de refração, bem mais esclarecedora que a obtida com apenas um raio. A formação de imagens também pode ser investigada com a construção. A Fig. 10 mostra a continuação virtual dos raios refratados (para não sobrecarregar a figura omitimos os raios incidentes). Vemos que, assim como no caso do espelho esférico, não há formação de uma imagem bem definida. Para raios próximos à normal, a imagem e formada um pouco acima do objeto, à assim chamada "profundidade aparente". Entretanto, para raios que incidem mais obliquamente sobre a interface, a imagem desloca-se ao longo da cáustica virtual que é vista na figura. Nã uma unica profundidade aparente – a distância entre a imagem e a superfície tende a zero à medida que o ângulo de observação torna-se mais rasante. Vemos também que, numa observação oblíqua, a imagem não é mais formada diretamente acima do objeto, um fato que parece ser ignorado em muitos livros didáticos.



Fenômenos que combinam reflexão e refração também podem ser estudados com os métodos da geometria dinâmica. Um exemplo é o arco-íris. A Fig. 11 mostra os raios que são espalhados por uma gota d'água após sofrerem duas refrações e uma reflexão. Para não sobrecarregar a figura, apenas os raios incidentes no hemisfério superior foram desenhados. Notamos que existe um ângulo máximo entre os raios que emergem da gota e a direção de incidência – é nesse ângulo que é formado o arco-íris (aproximadamente 40º para uma gota d'água). Um exercício interessante é usar a interatividade da geometria dinâmica para variar o índice de refração da gota e investigar como muda o ângulo de arco-íris.


5. Comentários finais

Esperamos ter mostrado com os exemplos acima que a modelagem de sistemas ópticos em um ambiente de geometria dinâmica pode dar aos estudantes uma perspectiva nova, mais intuitiva e menos sujeita a equívocos de interpretação, sobre os conceitos básicos da óptica geométrica e sua relação com fenômenos cotidianos. Os casos tratados aqui não esgotam, é claro, as possibilidades de aplicação desses programas. Com igual facilidade é possível estudar lentes, prismas, instrumentos ópticos e muito mais. E importante ressaltar o caráter interativo e exploratório das construções produzidas nos ambientes de geometria dinâmica. Modificações em uma figura freqüentemente revelam aspectos novos e inesperados do problema, que por sua vez podem ser estudados em maior detalhe com outras construções, e assim por diante. Este tipo de atividade, a modelagem geométrica, é uma base promissora para o desenvolvimento de novas estratégias instrucionais no ensino de óptica.

Agradecimentos

Este trabalho foi financiado pela Finep e Faperj.

Recebido em 10/1/2009

Aceito em 18/2/2009

Publicado em 22/9/2009

  • [1] U. Kortenkamp, Foundations of Dynamic Geometry. Ph.D. Thesis, Swiss Federal Institute of Technology, Zurique, 1999. Disponível em http://kortenkamps.net/papers/diss.pdf
  • [2] F.M. Goldberg and L.M. McDermott, The Physics Teacher 24, 472 (1986).
  • [3] F.M. Goldberg and L.M. McDermott, American Journal of Physics 55, 108 (1987).
  • [4] I. Galili and A. Hazan, International Journal of Science Education 22, 57 (2000).
  • [5] D.J. Grayson, The Physics Teacher 33, 42 (1995).
  • [6] S.L. Talim, Mudanças conceituais no ensino de ótica: a formação de imagens pelo espelho côncavo, in Anais do IX Encontro de Pesquisa em Ensino de Física (Jaboticatubas, MG, 2004).
  • [7] I. Galili, F. Goldberg and S. Bendall, The Physics Teacher 29, 471 (1991).
  • [8] F.L. da Silveira, R. Axt e M.A. Pires, Revista Brasileira de Ensino de Física 26, 19 (2004).
  • [9] F.L. da Silveira e R. Axt, Revista Brasileira de Ensino de Física 28, 421 (2006).
  • [10] Tabulæ, http://tabulae.net
  • [11] Cabri-Géomètre, http://www.cabri.com.br
  • [12] Geometer's Sketchpad, http://www.dynamicgeometry.com
  • [13] C.E. Aguiar, Ótica Geométrica com o Tabulæ, LIMC Nota Técnica 01/08, UFRJ, 2008. Disponível em http://www.if.ufrj.br/carlos/ geomdin/geomdin.html
  • [14] F.A. Jenkins and H.E. White, Fundamentals of Optics McGraw-Hill, New York, 1976), 4Ş ed.
  • 1
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Out 2009
    • Data do Fascículo
      Set 2009

    Histórico

    • Aceito
      22 Set 2009
    • Revisado
      18 Fev 2009
    • Recebido
      10 Jan 2009
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